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Max Du Veuzit
Tradução de
A, DUARTE DE ALMEIDA
I.
II.
Antes de chegar ao grande armazém que indicara ao motorista, Micaela
ordenou:
- John! Pare!
O carro parou.
- Mudei de opinião. Leve-me à igreja de Notre-Dame-de-la-Croix.
- Muito bem.
Apesar destas palavras, parecia hesitar. Micaela viu-o pegar num pequeno
roteiro de Paris e consultá-lo.
Então observou-lhe:
- Não sabe o caminho?
- Estou indeciso, mademoiselle.
- Ao cimo da rua das Amendoeiras.
Não pôde ver o espanto que se manifestou no rosto do motorista, e como ele
ficasse calado, insistiu:
- Disse-lhe, ao cimo da rua das Amendoeiras. Não conhece? Em Menilmontant.
- Sim, sei, mas julguei não ter percebido bem. Micaela teve um estremecimento
nervoso.
- Então se sabe onde é, vamos. Reflicta amanhã.
O automóvel pôs-se novamente em marcha, leve e silencioso, sob a mão que o
guiava.
O jovem Russo ficara bastante admirado. Pouco habituado, sem dúvida, a servir
senhoras tão arrogantes como aquela boneca milionária, achou estranha a
indicação dada por ela. Conhecia bastante Paris para saber que a rua das
Amendoeiras não era usualmente frequentada pelos habitantes do bairro de
l'Étoile.
Ao fim de meia hora, tendo aproveitado uma paragem forçada para se informar
discretamente onde estava situada a igreja, parou em frente de Notre-Dame-de-
la- Croix.
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Algumas pessoas pararam, olhando para o carro e para quem o ocupava. Micaela
fez um trejeito de desagrado; tinha horror a exibições.
Quando John voltou, murmurou baixo, mas em tom suficiente para ele a ouvir:
- É filantropo ou humanitário? John fixou-a e disse:
- Não, mademoiselle; apenas egoísta.
- Egoísta, como?
- Não gosto de ver chorar uma criança.
Micaela fez um gesto de mau humor.
- Pois eu não gosto dessas demonstrações públicas de generosidade - retorquiu
-, Diante de mim, conserve-se na posição que lhe compete.
Por entre as pálpebras mal fechadas, o motorista olhou longamente para a
cabecinha orgulhosa que reclamava tanto servilismo, e conservou-se de pé,
imóvel, impecável. Os lábios apertados retiveram a ironia que se esboçava
neles.
Micaela teve de se conter com este pesado silêncio. Feliz por lhe ter feito
sentir o peso da sua autoridade, benevolamente, continuou:
- Você vai esperar-me aqui, John. Talvez me demore, mas não se preocupe comigo
e espere.
- Está bem, mademoiselle.
Micaela deu alguns passos em direcção à igreja, mas voltou-se para trás,
olhando para ele. O motorista subira para o seu lugar e, indiferente a tudo
quanto o rodeava, recomeçou a leitura do livro.
A filha de Jourdan-Ferrières teve uma hesitação: aquele glacial rapaz impunha-
se-lhe mais do que ela confessava a si própria. Mas depressa se resolveu.
Dirigiu-se novamente para o automóvel e perguntou familiarmente:
- Quanto lhe dá meu pai, por mês, de ordenado, John?
- Mil e oitocentos francos - respondeu o motorista, surpreendido com a
pergunta.
- Eia, não lhe paga mal!
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III.
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Sem dizer nada, este notou-lhe o olhar inquieto, o rosto assustado e um tremor
nas mãos.
* Isto vai mal!+ pensou, pondo o carro em movimento.
A sua íntima convicção era que Micaela vinha de uma entrevista clandestina...
qualquer paixoneta desproporcionada com a sua situação. E sentiu um pouco de
desprezo por essa jovem milionária que corria semelhantes aventuras. A imagem
pura mesmo muito pura, reconhecia-o de Micaela, estava em desacordo com a
suposição desse flirt culposo. No entanto, fora ela própria quem exigira do
seu motorista a maior discrição.
Não proclamara orgulhosamente o seu desejo de absoluta independência?
Entre os frequentadores habituais da casa, John procurava em vão a favor de
quem podia Micaela ter esquecido a reserva natural do seu sexo. Mas, na
verdade, não descobria ninguém que pudesse merecer aquele excesso de
precauções.
Seria apenas curiosidade doentia, ou tara oculta?
A verdade é que o jovem Russo experimentava um sentimento, complexo de
amargura e de cólera, pensando que era cúmplice de uma aventura pouco digna.
Nesse dia, principalmente, a consciência de John gritava mais alto,
censurando- lhe o papel que representava.
Não seria mais honesto despedir-se e afastar-se assim daqueles misteriosos
passeios?
Mas, censurando as longas ausências de Micaela e a comoção que sempre
manifestava no regresso, pensou que a sua revolta era um pouco tardia.
* Naturalmente, iremos hoje pela última vez a esse bairro afastado; deve ter-
se dado o rompimento+.
Como se enganava!
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Passaram-se alguns dias sem que Micaela lhe desse ordem para seguir até
Menilmontant. Mas, uma tarde, na semana seguinte, apareceu no alto da
escadaria
com o tailleur escuro, e John adivinhou o caminho que iam tomar. Dirigiu-se
para ele, sem pressa e sem o olhar. Quando ia a subir para o carro, disse de
forma que só ele ouvisse:
- Dirija-se para a estação do Metro Couronnes. Ali direi o que desejo.
John obedeceu, pressentindo novidades. A poucos metros da estação de
Couronnes, o automóvel parou. Micaela ordenou-lhe:
- Venha cá, John.
Surpreendido, o rapaz voltou a cabeça. A milionária indicou-lhe, com a mão, o
lugar vago, a seu lado. John não manifestou, no olhar, nem espanto por aquela
estranha familiaridade, nem satisfação pelo favor inesperado; e, sem pressa, o
mais naturalmente possível, obedeceu, sentando-se ao lado da jovem patroa.
- Oiça, John. Preciso de si, e que compreenda o que desejo por meias palavras.
- Estou às suas ordens.
- Tem que me acompanhar a uma casa onde sou obrigada a ir.
- E o automóvel?
- Deixá-lo-emos perto da igreja... em qualquer sítio onde veja que fica em
segurança.
- Bem! E onde vamos?
- A uma ruazinha...
- Atrás da igreja?
- Não, mais abaixo... à direita... ao cimo da rua das Amendoeiras.
- Tenho que fazer alguma coisa?
- Não, apenas acompanhar-me.
- Estou às suas ordens.
O jovem Russo pensava na singularidade do pedido. Que significava aquele
desejo de ser acompanhada?
Como Micaela adivinhasse, pelo mutismo de John, os pensamentos que ele não
exprimia, continuou:
- Vou visitar um desgraçado que uma amiga me recomendou...
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- Visita de caridade?
- Apenas.
John sentiu uma espécie de alívio.
- Esse homem precisa de si?
- Muito... e, com franqueza, não sei o que hei-de fazer. Tem uma vida
irregular, devido, certamente, ao meio em que se encontra. Seria preciso tirá-
lo dali... e pensei que poderia ajudar-me.
Micaela falava com hesitação, um pouco humilde, espiando no rosto do motorista
os reflexos que as suas palavras lhe causavam.
Mas John continuava impenetrável. Esta atitude de Micaela, contrafeita e
suplicante, estava tão pouco nos seus hábitos que o Russo desorientava-se. E
de novo afirmou:
- Estou à sua disposição, mademoiselle.
Esta afirmativa devia, de momento, bastar a Micaela. Receava que,
acrescentando qualquer palavra mais, John gozasse com as suas súplicas. E esse
receio estava tão perto da verdade que, nesse momento, a filha de Jourdan-
Ferrières conheceu pela primeira vez como o seu orgulho quebrara a ponto de a
ter feito dirigir-se humildemente a um inferior. Esta certeza produziu-lhe o
efeito de uma queimadura com um ferro em brasa. Ergueu a cabeça, e os lábios
readquiriram o seu jeito desdenhoso:
- Vamos, John. Vá para o seu lugar e conduza o carro para onde combinámos.
O rapaz sentiu o dardo que o feria, mas não lhe ligou importância. Pensava que
ia conhecer o segredo de Micaela... e esse segredo não era um flirt banal, nem
a suspeitosa aventura que supusera.
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IV.
O automóvel parou em frente de um restaurante, à porta do qual estava um homem
gordo. John pediu-lhe que tomasse conta do carro. Era uma precaução útil,
naquele sítio. Depois, acompanhou Micaela. Era a primeira vez que caminhavam
lado a lado, e se bem que ela, como mulher, fosse alta, ao pé dele parecia
pequena.
Mal tinha dado uns vinte passos, Micaela, importunada por um pensamento,
reteve o companheiro:
- John, tenho que o prevenir... de que, na última vez, dois homens me
seguiram, e tive medo.
- Que queriam eles?
- Penso que esses homens... especiais... de boné... não estão habituados a
falar respeitosamente às senhoras... Tomaram-me por...
- Por uma das suas. concluiu ele, vendo-a hesitar.
- Justamente! retorquiu Micaela, encantada por ter sido compreendida.
Estava aliviada por ter falado. Prevenira-o, e não seria tomado de surpresa se
os dois temíveis homens reaparecessem.
Os olhos de John envolveram-na, subjugados por um reflexo íntimo. Adivinhava
que era por medo que se fizera acompanhar. Ia, pois, representar o papel de
protector. Este pensamento divertia-o, mas abstinha-se de o exprimir.
Micaela adivinhava as reflexões que o motorista fazia, mas estava tranquila
com a sua presença. Olhava-o, sentia-se absolutamente em segurança. Quem
ousaria atacá-la, indo acompanhada de semelhante colosso?
Tinha chegado a uma ruazita estreita, suja, mal-cheirosa, com roupas às
janelas; crianças esfarrapadas brincavam num rego que dividia em duas partes o
beco.
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- Bem o desejo! Visto que já sabe o que se passa, ajude-me com a sua
experiência; o senhor deve conhecer o povo.
O jovem Russo não respondeu. Pensou de repente, como se enganara quando
julgara conhecer o povo da Rússia. Ilusões e crenças tinham esbarrado no
horrível massacre onde aqueles que amava tinham morrido. Na verdade, se fosse
apenas esse o seu conhecimento do povo, para o animar a salvar o farrapo
humano que Micaela vinha ver, seria um auxiliar bem pouco convicto.
- Visto queixar-se do meio que o rodeia, gostaria de deixar este quarto e ir
viver noutro sítio? inquiriu John, de novo.
- Sim; se mademoiselle me levar consigo, prestar-lhe-ei os serviços que me
pedir, e envelhecerei feliz.
Ouvindo esta proposta, Micaela fez um enérgico gesto de protesto. Não! Decerto
que não podia aceitar sob pretexto de caridade, ou mesmo do dever, semelhante
promiscuidade.
Isto não deixou a menor dúvida no espírito de John, pois nem sequer respondeu
às palavras do velho.
- Oiça - continuou -, Vamos tirá-lo daqui. Quando tudo estiver arranjado,
viremos buscá-lo.
- Para onde me levam? Quero sabê-lo.
- Veremos! De resto, é inútil dizer-lho de antemão. As pessoas que o rodeiam
escusarão, assim, de o perseguir.
- E se eu me recusar a partir sem saber para onde vou?
- Então ficará aqui. Mas também lhe digo que é a última vez que nos verá em
sua casa.
Micaela quis intervir, mas o Russo insistiu com o gesto e o olhar, impedindo-a
de falar.
- Deixe-me tratar deste caso, mademoiselle. Não vamos, agora, alimentar o
bairro inteiro à sua custa, a pretexto de filantropia para com este homem.
E, voltando-se novamente para o velho, continuou:
- Reflicta. É a nossa última palavra.
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John parecia não querer deixar-se comover. Dirigiu-se para Micaela, tirou-lhe
das mãos o copo que ela limpava, e disse-lhe:
- Deixe esse trabalho para outras mãos. Os amigos que vêm fazer companhia a
este homem, ajudá-lo a gastar com as suas liberalidades o seu pouco dinheiro,
podem, em troca, limpar o quarto.
Subjugada pela autoridade que emanava daquelas palavras, Micaela abandonou a
limpeza. John continuou:
- Dê-lhe uma quantia suficiente para viver um mês... e até lá terá notícias
nossas. Previna-o, principalmente, de que nunca mais porá aqui os pés.
A rapariga hesitou, porque, na verdade, o ultimato de John dirigia-se tanto a
ela como ao velho. Se bem que lhe fosse desagradável parecer obedecer às
ordens do seu motorista, resignou-se a agir como ele lhe aconselhava.
Pressentia que nunca mais se arriscaria a voltar àquele lugar sem ir
acompanhada e, por outro lado, a quem se confiaria ela para prosseguir naquela
empresa, se John se recusasse a voltar ali outra vez?
Apesar da sua submissão aparente, os olhos claros do Russo indicavam uma certa
decisão, e Micaela compreendia que não seria prudente afrontar de frente esse
único aliado.
Despediu-se do velho nos termos que John lhe indicara. Quando iam para sair, o
homem balbuciou:
- Bem, está entendido. Não me abandonem; farei tudo o que quiserem.
- Então, conte connosco!
E John afastou-se para deixar passar Micaela.
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- Não! Não! Aqui não!... A seu lado - gritou ela, com terror.
E fechando brutalmente a portinhola, sentou-se no lugar da frente.
- Depressa, John! Depressa!
Sem se apressar, porque não queria dar a impressão de uma fuga aos seus
perseguidores, o motorista pôs o carro em marcha quase ao mesmo tempo que os
apaches chegavam junto dele.
Soaram alguns gritos, assobios, e ouviu-se um tiro de pistola.
- Falhou! disse John, fleumaticamente.
- Atiraram?
- Sim, creio que aos pneumáticos.
- Mas esses homens são uns bandidos!
- Estavam em sua casa, e não devíamos vir visitá-los. Este carro de luxo
insulta a sua miséria.
- Bem sabem que fui ali com um fim caridoso.
- Sim, aos olhos deles não era com mau fim que a queriam!
- Se não fosse o senhor, ter-me-iam assassinado, não é verdade?
- Não - disse John, sorrindo -, Creio que, pelo contrário, queriam ensinar-lhe
a viver... a sua vida.
Morreria de medo.
- Vê bem que não deve voltar aqui?
E acrescentou, como que zombando de si próprio:
- Há pouco fui fanfarrão, mas não estava muito tranquilo. Nada percebo de boxe
nem de luta, não estava armado, e, em caso de batalha, apesar da minha alta
estatura, não levaria a melhor.
Micaela olhou-o com admiração.
- E, contudo, o senhor ia bem devagar!
- Precisava de tranquilizá-la. O meu sossego dava-lhe confiança.
- Tiveram medo de si. John riu.
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Julgou tê-la encontrado. Quando saíram do Café, depois de John ter pago a
despesa, disse, muito alto, malevolamente:
- Que Café tão suspeito! É a primeira vez que ponho os pés numa baiuca como
esta!
- É semelhante à casa onde me conduziu - respondeu o rapaz, vivamente.
E sem querer saber mais de Micaela, foi levantar o capot do carro, como se
tivesse qualquer coisa a examinar no motor.
VI.
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E como John fechasse o livro sem se apressar, Landine disse, com um sorriso
zombeteiro:
- Não se faça esquisito, senhor motorista. A pequena Feijão é um bom bocado,
com o qual muitos desejariam regalar-se. Tem inúmeros pretendentes!
- Não há-de ser tanto assim! respondeu John por fim, para não ficar calado.
- Aos montões! Pense no número de milhões que ela representa.
O rapaz arqueou as sobrancelhas.
- E ela prefere algum desses adoradores... de dotes?
A criada fez um gesto de ignorância:
- Segundo parece, nenhum! Flirtou com dezenas de rapazes, quando tinha
dezassete ou dezoito anos, o que não teve importância, porque era muito garota
e travessa. Agora, que está na idade de escolher marido, repele todos os
partidos.
- Porque aquele a quem ama não a pede.
- É provável. Mas não o diz... E, se alguém o sabe, é certamente o senhor.
- Eu! Porquê?
- Acompanha-a a toda a parte...
- Mas fico à porta das casas onde ela vai..
- E vê, justamente, quais são os mais cuidadosos em a acompanhar ao carro.
- Pois olhe, confesso que nunca tive a curiosidade de examinar isso.
- Não? Poucas vezes! Que ingénuo você é! Se não quer ver é porque é cego.
- Ou porque sou ainda muito novo na casa para poder ter notado qualquer coisa
dessas.
- É possível que desconfie de si. Mas raspo-me; há um quarto de hora que
tagarelamos e ela vai ficar furiosa quando você lá chegar. Miss Feijão não
gosta de esperar.
- Porque lhe dá esse nome?
- O quê! Não sabe? exclamou Landine, alegremente -, O pai era fabricante de
conservas...
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- E então?
- Não compreende? Você sempre me saiu um tanso! O pai, Couve fermentada, a
mãe, Ervilha, e a garota, Feijão, eis a família Jourdan-Ferrières...
- Ah!
- Você, às vezes, não é lá muito esperto. Desta vez é que me vou embora! Até
breve, querido loiro! Quando quiser ir ao cinema, pense em mim para o
acompanhar.
E John viu-a afastar-se, ligeira e desembaraçada. Verificava que a criadagem
parisiense era ainda menos respeitosa do que a de São Petersburgo.
*O pai, Couve fermentada, a mãe, Ervilha, e a garota, Feijão, eis a família
Jourdan-Ferrières!+
Que ironia nestas três alcunhas, apesar dos múltiplos milhões que o antigo
fabricante de conservas possuía!
Pela primeira vez sentiu um pouco de piedade por esses novos-ricos, que
sofriam toda a vida o peso das suas obscuras origens.
Censura-se aos aristocratas o seu nascimento e antepassados, mas devemos ser
mais severos para aqueles que, saídos do nada, dominam o Mundo à força dos
seus milhões.
Era a segunda vez que John penetrava no palácio, tendo sido a primeira no dia
em que Jourdan-Ferrières o contratara como motorista.
Micaela esperava-o com impaciência.
- Parece que não tem muita pressa! disse-lhe, secamente, quando o viu entrar.
- Tive que me informar onde era o seu quarto, mademoiselle.
- Diga antes que a conversa com Landine o interessava muito. Estava à janela e
vi a tagarelice.
John nada respondeu; o que ela dizia era verdade. O seu silêncio exasperou
Micaela.
- Naturalmente, estavam dizendo mal dos patrões. Conheço a minha criada, tem a
língua comprida, e não deve ter cerimónias para os namorados.
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No rosto do jovem Russo houve uma espécie de fadiga, por ter de se defender de
tal assunto.
- Quando se tem de tratar diariamente com uma criada que não é de confiança, o
melhor é mandá-la embora.
Aquele tom hostil surpreendeu Micaela.
- O que diz?
- Que é o caminho mais simples e mais digno, tanto para a ama como para a
criada.
A milionária mediu-o de alto a baixo.
- Noto que se permitiu responder-me num tom inaceitável.
- Há suposições incompatíveis com a dignidade de um homem.
- Talvez, antes, com a virtude de Landine! Que bom defensor ela tem!
- Não creio que haja na minha atitude motivo que estabeleça essa confusão.
- Então de que falavam?
- Banalidades...
- Da tarde de ontem, provavelmente.
- Oh! protestou o rapaz, com indignação -, Se a palavra que há dias lhe dei
não basta para a tranquilizar, que mais hei-de dizer?
- A sua palavra...
- Se não acredita nela, só me resta retirar-me.
E deu um passo para a porta. Micaela deteve-o.
- Peço-lhe que não tome a mal o que eu disse.
John parou, olhando-a duramente, esperando uma retratação mais clara. Mas
Micaela, levando a mão à testa, onde um martelar sem descanso parecia
concentrar-se, acrescentou:
- Passei uma noite atroz, por sua causa, John. Tinha a certeza de que não me
trairia; mas é livre de contar os acontecimentos em que se encontrou envolvido
sem querer.
- Não creio que a interpretação de uma palavra dada comporte tantas
subtilezas. Garanti-lhe o meu silêncio, tê-lo-á.
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- É para mim uma grande felicidade... Sim, um grande alívio, sentir a sua
dedicação. Quero agradecer-lhe... Ontem foi correctíssimo. Tome, peço-lhe que
aceite.
Estendeu-lhe uma nota de cem francos. O jovem Russo teve um estremecimento.
Olhou para Micaela e depois para o dinheiro.
- Não me deve nada, mademoiselle; guarde a sua nota - disse, com ar
contrariado.
- Não. Tome, insisto. Ainda vou ser obrigada a recorrer a si, e quero
indemnizá- lo de todo o trabalho que lhe causo.
- Indemnizar-me com dinheiro?
Micaela fez um gesto embaraçado.
- Decerto que não posso dar-lhe um presente.
- Basta-me o seu agradecimento, mademoiselle.
- Mas não é o suficiente para mim - disse, com vivacidade -, Pago sempre,
quando devo alguma coisa a alguém.
John sorriu vagamente.
- É lastimável que eu não esteja habituado a receber dinheiro por certos
actos naturais num homem bem-educado.
Micaela esboçou com a mão um gesto um pouco cansado.
- Vamos, John, deixe-se de tolices. Aceite o que lhe é devido, e terminemos
com isto.
O Russo não respondeu. Olhava-a e os seus olhos mergulharam nos dela, tentando
compreender aquela alma de rapariga, desvirtuada pela sua enorme fortuna, a
ponto de não poder admitir que houvesse coisas que se não podem pagar.
- Julga que tudo se vende? perguntou, secamente.
- Julgo que, quando se é rico, é um dever gratificar quem nos ajuda.
- E com o dinheiro paga-se a dedicação, a simpatia, a amizade, como se paga ao
sapateiro ou à modista; como mais tarde se pagará o noivo que se escolher ou o
marido que se quiser guardar...
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Micaela recuou, ferida por esta reprimenda que nunca esperaria da impecável
correcção do motorista.
- Sim, não compreende a minha revolta. Paga-me e é suficiente.
Dominava mal o seu arrebatamento perante tão afrontosa insistência.
De repente, decidiu-se, com uma raiva concentrada:
- Está bem, mademoiselle Jourdan-Ferrières, pague-me então, visto que além do
dinheiro nada mais há para si no Mundo. Aceito o seu dinheiro.
- Muito lhe agradeço, é melhor assim.
E estendeu-lhe a nota de cem francos.
John, afastando a nota, disse com desprezo:
- Não é com esta irrisória quantia que conta ficar quite comigo, penso eu.
Salvei-lhe a honra e talvez a vida, porque aqueles homens, que a desejavam,
talvez se tivessem entregue a violências se não se prestasse de boa vontade
aos seus desejos! Parece-me que a honra e a vida de mademoiselle Jourdan-
Ferrières valem mais de cem francos!
E como Micaela, interdita, o olhasse sem responder, acrescentou, com voz
fremente de ironia:
- Não é essa a sua opinião, visto que deseja tão lealmente pagar as suas
dívidas?
- Quanto quer? perguntou, perturbada, pegando na malinha que estava em cima da
mesa.
- Ponha essa mala de parte, porque, certamente, não contém o bastante para
pagar a honra de uma rapariga.
Micaela esboçou um gesto, mas replicou com altivez:
- Indique a quantia, pedi-la-ei a meu pai.
- A quantia? Posso lá saber em quanto se avalia! Qual é, precisamente, o valor
venal de mademoiselle Jourdan-Ferrières? A falar a verdade, vendo-a tão bela,
altiva e orgulhosa, creio que metade da fortuna do seu pai, se não a
totalidade, não seria de mais para a salvar das mãos daquelas distintas
personagens de ontem.
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VII.
Micaela dissera:
- Vá por Saint-Cloud e Versalhes, ao Vale de Chevreuse; paremos ali, em
qualquer recanto solitário.
E pouco depois já estavam a meia encosta de um caminho retirado, trepando, à
direita, por uma ladeira orlada de grandes árvores.
Parado o automóvel, sentaram-se à beira de um talude, com as costas para a
estrada, tendo aos pés o vale; os seus olhos podiam seguir, por cima das
moitas e das raízes emaranhadas no declive, a estrada, que se prolongava
indefinidamente.
- Já pensou, John, na promessa que fizemos, outro dia, àquele desgraçado?
- Já pensei, mademoiselle. Não precisava que me lembrasse a execução dos seus
desejos.
Micaela fez esta observação, num ímpeto quase involuntário:
- Antes de tudo, não quero agir pessoalmente.
- Contava com isso - disse o rapaz, com simplicidade.
Depois, com uma hesitação misturada de solicitude, continuou:
- Peço-lhe, mademoiselle, que me responda, mesmo que eu seja indiscreto. É
apenas por si que receava ver o seu interesse descoberto?
- Porquê?... Porque me pergunta isso?
- Para desviar o perigo da cabeça que está ameaçada.
- Não há perigo nenhum, nem ninguém ameaçado - respondeu ela, com orgulho, e
acrescentou com simplicidade -, São lágrimas e aflições que eu receio... para
mim... e para alguém que me é muito querido...
Escondeu o rosto entre as mãos, para não deixar ver as lágrimas que
subitamente lhe encheram os olhos. John olhou-a silenciosamente, e uma ruga
lhe vincou a testa.
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Micaela dissera:
*Para alguém que me é muito querido...+. E John procurou adivinhar quem
poderia ser esse alguém. Por fim, afastou o pensamento importuno.
- Trabalharei só por si, porque não quero vê-la chorar - disse, sem dar conta
do ousado tom em que falara, e continuou, mais suavemente -, O seu nome não
será pronunciado, e ninguém poderá pensar em si. Contar-lhe-ei o que se
passar, e dir-me-á se procedi como desejava.
Micaela levantou a cabeça e olhou-o com mais benevolência.
- É preciso tirar aquele homem de semelhante antro, instalá-lo noutro sítio,
limpo, e arranjar alguém que o trate... Enfim, fixar uma mensalidade, sem que
seja preciso andar atrás dele para a realização deste plano.
- E se esse plano se executar, ficará livre da obrigação que contraiu com esse
homem?
- Sim... completamente.
- Então, prometo-lhe que assim se fará.
A jovem milionária estendeu-lhe a mãozinha, num rasgo de gratidão.
- Permitirá Deus que eu não venha a lastimar a confiança que depositei em si?
- Duvida? - disse John, chegando os dedinhos aos lábios quentes.
- Não sei. Metendo-o neste negócio, obedeci a um sentimento mais forte do que
a minha vontade: o medo: E em quem podia eu ter confiado? Fosse qual fosse dos
meus amigos, teria feito suposições sobre a minha filantropia... A si, pouco
me importava! Podia admirar-se, acaso, de me ver exercer a caridade em favor
de um desgraçado?
John pensou, consigo próprio, que se admirara. E que as reflexões íntimas que
fizera, outros as poderiam ter feito igualmente. Mas não quis desiludi-la com
tais observações.
Então, Micaela continuou:
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- Foi preciso uma quadrilha de apaches para modificar os meus planos. O senhor
censurou-me, não gostou de se encontrar envolvido neste caso; tive que lhe
pedir desculpa... As palavras são como as cerejas... e agora estou à sua
mercê.
Suspirou dolorosamente, como se a situação lhe parecesse complicada.
- Não está à minha mercê - replicou o Russo -, Tem o direito a todo o meu
respeito.
- Agradeço-lhe a afirmação.
O tom em que Micaela falara não era sincero, porque John retorquiu
asperamente:
- Se duvida dos meus sentimentos, tranquilize-se; vou-me embora, nunca mais me
verá. Afirmo-lhe, pela memória de minha mãe, que é tudo quanto há de mais
sagrado para mim, que nunca mais ouvirá falar a meu respeito.
Aquela voz firme e decidida deu coragem a Micaela.
- Não, não me abandone. Agora conto consigo... e, se ao menos tivesse querido
aceitar uma gratificação, ficaria mais satisfeita.
- Não vejo a razão.
- Quando está em jogo o interesse das pessoas, conta-se com elas mais
facilmente.
- Pois bem, mademoiselle Jourdan-Ferrières, habitue-se à ideia de que pode
contar com Alexandre Isborsky, sem necessidade de lhe prometer qualquer
recompensa.
- Não quis magoá-lo - protestou ela.
- Então, se não tem intenção de ser agressiva comigo, nunca me fale em
dinheiro.
- Mas para que é esse desinteresse comigo? Sou rica e posso pagar os serviços
que me prestam.
- O que me pede é de categoria especial! Trata-se de uma missão de confiança.
Se duvida de mim, acabou-se, e não se fala mais nisso.
Micaela fitou-o e, depois, em tom mais suave, notou:
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Apanhados no meio do ciclone, tendo à volta árvores desenraizadas, chaminés
caídas, muros deitados abaixo, deveram apenas a sua salvação ao sangue-frio
com que o Russo guiou o automóvel, levando-o para um abrigo natural entre dois
taludes escarpados, onde puderam arrostar o furor do vento, que passava em
turbilhão desencadeado por cima das suas cabeças.
John não pensou em voltar para casa se não quando o furacão abrandou. Levou
duas horas para alcançar Paris, pelas estradas devastadas, mas o automóvel
chegou sem uma arranhadura e Micaela bem disposta.
No palácio da Avenida Marceau os criados já estavam inquietos e Jourdan-
Ferrières correu para a filha assim que a viu aparecer.
- Minha querida! Que mau bocado me fizeste passar! Saber-te sozinha, em
qualquer sítio, no meio da tempestade e da noite, ia-me endoidecendo.
- Mas, meu pai, eu não estava só - explicou gentilmente, beijando-o -, Quando
eu estiver com John, não se inquiete: é um motorista admirável e com um
sangue-frio maravilhoso. Asseguro-lhe que pode estar sossegado.
O pai voltou-se para o Russo, que despia nesse momento o casaco molhado.
- Ouviu o que minha filha pensa a seu respeito, meu amigo? O senhor é
admirável!
- Não creio ter feito qualquer coisa extraordinária - respondeu o rapaz,
modestamente -, Tinha obrigação de trazer o carro em bom estado, e foi tudo
questão de mais ou menos tempo.
- Sim, era preciso olhos alerta! Vou dar-lhe cem francos de recompensa, meu
amigo. Procure-me amanhã.
Micaela começou a rir.
- Está contente, John? exclamou, com ironia. E, sem lhe dar tempo a responder,
acrescentou:
- A sua habilidade profissional está colocada numa categoria especial ou
também é uma missão de confiança?
John sorriu, e, com placidez, respondeu:
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- Está entendido, meu velho. Bem mereces descansar esta noite. Vai comer, meu
amigo; quando acabares, já o trabalho estará pronto, e irás deitar-te.
Micaela, estupefacta, ouvia os dois homens. Sob a bonomia aparente das
palavras proferidas por John, sentiu a censura que lhe faziam. Por momentos
teve tentações de intervir e exigir que o carro fosse lavado por quem era
responsável por ele, mas encontrou o olhar impassível do jovem Russo e,
aborrecida, furiosa, afastou-se, esforçando-se por parecer indiferente ao que
acabava de passar-se.
VIII
No dia seguinte, Micaela desceu muito cedo. John ainda não tinha
chegado, mas Mathieu Belland tinha trazido para o pátio os dois automóveis,
que brilhavam como um espelho.
- Foi você quem limpou ontem o meu carro, Mathieu?
O motorista olhou para ela, sorrateiramente.
- Creio que não foi crime ajudar um camarada cansado.
- Fez bem, é claro; mas meu pai não quer que o seu colega fique sem a
gratificação que lhe prometeu.
- Isso agora é mais difícil de conciliar...
- Não tanto como imagina. Meu pai encarregou-me de lhe entregar esta nota de
cem francos, que John lhe prometeu, mas quando ele lhe quiser dar o dinheiro,
dir- lhe-á que o patrão já liquidou essa dívida.
- O senhor é muito generoso e agradeço...
Esta pechincha era tão inesperada que gaguejava ao agradecer.
- Meu pai é muito bom, nunca o esqueça, Mathieu - disse Micaela, com
autoridade -, serve um patrão muito justo, o qual deseja que o pessoal esteja
contente em sua casa.
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- Não há dúvida de que é um bom patrão - disse o motorista, convicto.
A gratificação recebida enchia-lhe a alma de alegria.
- Agora vou falar com o meu pai. É preciso que patrões e criados conheçam
mutuamente os seus sentimentos.
E afastou-se serena, enigmática, o rostozinho impenetrável, não deixando
perceber o menor pensamento.
- Paizinho! Está disposto a receber a senhora sua filha?
E metia a cabeça garota pela porta do gabinete de trabalho do pai. O antigo
fabricante de conservas estendeu-lhe os braços.
- Vem cá, pequena. Não me favoreces muitas vezes com as tuas visitas. Há meses
que não conheço carícias tuas.
- Venho ralhar-lhe, meu pai - declarou ela, beijando-o e sentando-se-lhe nos
joelhos.
- Porquê?
- Porque ontem não foi galante com John.
- Como?
- Vexou-o!
- Essa agora! Tu é que...
- Eu não conto. Mas consigo o caso é mais grave.
- Não me lembro.
- Recorde-se: ofereceu-lhe cem francos.
- E tu devias fazer esta manhã a mesma coisa a Mathieu.
- Sim, mas com este o caso é diferente. Creio que se lhe dessem cem francos
desde manhã à noite, ele aceitaria sem se cansar!
O pai soltou uma gargalhada.
- Estou convencido disso!
- Pois bem! Com John não se dá a mesma coisa.
- Trabalha, então, por amor à arte?
- Não digo isso. Mas é preciso saber oferecer-lhe.
- Hum...
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- Uma pessoa que o pai aprecia pelo seu justo valor. Um ser, o mais
desagradável possível... Mas, apesar disso, apresenta-se bem, raciocina como o
pai, a meu respeito.
- Tanto melhor e fico muito satisfeito com isso - disse o milionário, a quem
aquele tagarelar ligeiro começava a cansar -, E agora, minha filha, deixa-me
sossegado. Estou encantado por termos conversado um bocadinho; mas preciso de
ver a minha correspondência.
- E John?
- Dar-lhe-ei o dobro, está entendido?
- Então não julgas que um milhão?... insistiu Micaela, sufocando o riso,
apesar de desejar estar séria.
- A brincadeira já dura de mais.
- É pena, porque me divertia. Há uma hora que estou alegre como um canário.
E, rodeando o pescoço do pai com abraços, falou-lhe ao ouvido, explicando-lhe
longa e minuciosamente qualquer coisa.
O pai admirava-se, queria protestar, mas ela, a cada protesto, fechava-lhe a
boca com um beijo. Por fim, desprendeu-se-lhe dos braços, tirou os óculos para
melhor poder olhar a filha, cujos grandes olhos suplicavam.
- Vamos, acaba, visto que não me deixarás tranquilo sem te ter feito todas as
vontades.
- Bem; quando lhe tiver dito muito mal de mim e tiver louvado as suas
qualidades como merecem, anunciar-lhe-á, pomposamente, que, conhecendo o seu
valor, lhe eleva o ordenado a quatro mil francos por mês.
Jourdan-Ferrières deu um pulo.
- Quanto disseste?
- Quatro mil francos.
- É insensato.
- Então, se o prefere, cinco mil!
- Mas não há motorista algum que tenha esse ordenado!
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* Há-de receber o meu sujo dinheiro, esse senhor a quem não posso
compreender+.
E nos olhos negros, que olhavam sem ver, passou um clarão de triunfo.
IX
John chegou deveras tarde nessa manhã. Mathieu viu-o, com espanto,
saltar de um táxi e pagar a corrida.
- Mademoiselle perguntou por mim? informou-se imediatamente.
- Não. Veio até cá abaixo, mas não se informou a teu respeito.
- Tanto melhor! Então, não tornou a falar na lavagem do carro?
- Sim, mas para me dizer que tinha feito muito bem em te ajudar.
- Óptimo!... Ah! É verdade! Devo-te cem francos, que o senhor Jourdan-
Ferrieres prometeu dar-me.
- Não te rales, meu velho. Já me deram a massa, e parece-me que o tio Couve
Fermentada te reserva igual quantia.
- Como é isso?
- O patrão não quer privar-te da gratificação e acha que negócios são
negócios... Por isso... compreendes...
- Veio dizer-to?
- Não! Foi a garota Feijão quando me trouxe a maquia.
- Ah! Foi mademoiselle...
Não disse mais nada, mas vincou-se-lhe uma ruga na fronte pálida. Andara toda
a manhã em serviço de Micaela. Porque se metia ela, na sua ausência, com o que
lhe dizia respeito?
*Evidentemente, tem que me atirar à cara os seus cem francos. Se julga que os
irei pedir ao pai.,.+.
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*Minha filha tem razão - pensou -, Este rapaz é soberbo! Fica bem ao volante
um homem assim!+
No seu orgulho de milionário, que pode pagar, para si e para os seus, todos os
luxos, não pensou que aquele homem era atraente de mais para acompanhar uma
rapariga de vinte anos, e que as invejas das amigas de Micaela podiam ter
diferentes interpretações.
Se alguém de outra época, principalmente de outra mentalidade, lhe fizesse
semelhante observação, responderia de boa fé que todos os milhões que a filha
tinha a punham ao abrigo de reflexões femininas e audácias masculinas.
Mas nem sequer pensou em tal. Pelo contrário, ficou lisonjeado por sua filha
ser bastante rica e, poder pagar a um motorista tão aristocrático.
- Reflecti, e não vou dar-lhe a gratificação que lhe prometi.
- Nada pedi, senhor - respondeu John, impassível, se bem que esta entrada no
assunto lhe fizesse prever coisa pior.
- O senhor vale mais do que essa quantia irrisória - continuou o milionário -,
É hábil, tem nervos e sangue-frio; felicito-me por poder dar-lhe o seu justo
valor.
- Muito obrigado!... balbuciou o jovem Russo, com aspecto surpreendido.
- Além disso, tenho uma filha... hum!... uma rapariga encantadora... e se bem
que a tenha amimado abominavelmente, tem um coração de oiro, adoro-a!
John não se mexeu, apesar do seu enorme desejo de rir, e perguntava a si
próprio o que tudo aquilo queria dizer.
- Ora foi a si a quem a confiei - continuou o milionário -, É uma terrível
responsabilidade. Deve ter compreendido o que exijo.
- Sei cumprir o meu dever - afirmou John, pensando que, em muitas
circunstâncias, tinha que satisfazer os caprichos de Micaela.
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E lembrou-se de Micaela lhe ter dito que ele tinha mau génio.
*Talvez seja verdade! Ninguém se conhece. Acho-a insuportável e cheia de
orgulho... E sou, sem dúvida, mais orgulhoso ainda!+
Quando a ajudou a descer do automóvel, disse-lhe, meio sério, meio zombeteiro:
- Muito obrigado, mademoiselle...
- De quê?
- Pela delicadeza de seu pai.
- Bem! Então sempre deu seguimento ao seu projecto?
- Graças a si, que generosamente lho sugeriu.
Arriscou esta audaciosa suposição, quase certo de não se enganar.
Micaela, que não sabia bem como o pai cumprira as suas recomendações, não
ousou negar abertamente.
- Meu pai queria recompensá-lo; aconselhei-o...
- Já o supunha - disse John, sorrindo.
- Sim, mas oiça: ele não me quis atender! Disse-lhe que lhe oferecesse um
milhão, ou vinte, ou cinquenta! Nem sei! O senhor impediu que me afogasse no
Bièvre e, graças ao seu sangue-frio, evitou todos os escolhos da estrada. Isto
merecia uma fortuna, não é verdade?
- Julgo que está a brincar! retorquiu John, já revoltado com o sarcasmo.
- Não! Não esqueci os seus argumentos; a vida da filha de meu pai não tem
valor possível... ou antes, é incalculável! Empreguei toda a minha eloquência
em lhe explicar o caso. Pois talvez não acredite! Riu-se muito e não
compreendeu!
- Acredito!
Custava-lhe a aguentar o riso. A impertinência de Micaela não lhe passava
despercebida, mas a ideia de que ela retivera as suas reflexões alegrava-o.
- Então - continuou a rapariga, com convicção -, o paizinho deu-lhe um milhão?
- Não. Mas, como nos contos de fadas, ofereceu-me a mão de sua irmã, mas não
aceitei.
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O que posso garantir é que não há mulher alguma misturada nos meus projectos
de futuro.
- O pastor espera a rainha?
- Seria preciso que ela fosse, de facto, muito bonita para me prender... Já
lhe afirmei o meu desejo de absoluta independência.
- Sim! Uma linda mulher... rica! arriscou Micaela, sem saber que demónio a
impelia a falar assim.
John estremeceu. Porque fazia Micaela uma tal suposição?
- Creio que seria melhor elevar uma pastorinha até mim.
- Desejo-lhe muita felicidade e bem-estar, com a sua flor campestre.
Por momentos, olharam-se curiosamente, como camaradas a quem o acaso
aproximasse e que, tendo emitido ideias gerais, percebessem a distância que os
separava.
Foi Micaela quem primeiro rompeu o silêncio:
- Vamos, são horas de almoço e tenho apenas o tempo indispensável para me
preparar. Pode dispor da tarde; hoje não saio.
E, como se o tal demoniozinho que a obrigava a tagarelar não tivesse dito a
última palavra, acrescentou:
- Esta tarde há grande recepção no palácio; meu pai apresenta-me a um dos
melhores partidos do Mundo.
Uma sombra passou pelo rosto do jovem Russo, extinguindo-lhe fugitivo sorriso.
- Uma fortuna colossal!...
- Desejo-lhe um pouco de felicidade com ele, mademoiselle - disse, suavemente.
Havia tanta sinceridade neste simples voto que a rapariga afastou-se,
repentinamente entristecida, a ponto de se lhe cravar uma ruga na fronte.
- Felicidade?!
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Era fabulosamente rica. Mas permitir-lhe-ia esse dinheiro comprar tudo quanto
quisesse? A impressão que sentia na alma não se dissipava. Sim, compraria
tudo... tudo quanto se pudesse comprar com dinheiro... Mas a felicidade?...
Num momento, teve uma fulminante revelação. A felicidade nunca a teria, porque
é a única coisa que não pode comprar-se! E na esplêndida habitação onde
acabava de entrar, Micaela sentiu-se terrivelmente pobre... mais pobre do que
o mais humilde dos servos, cujos risos alegres ressoavam, por vezes, nos seus
aposentos doirados.
X.
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- Parece-me...
Mas foi logo interrompida:
- Parece-lhe mal, mademoiselle. Sou motorista, e não tenho que usar o
fardamento das suas cavalariças.
Falava com voz um pouco velada, esforçando-se por torná-la calma. Micaela não
quis perceber-lhe o tremor.
De resto, havia alguns dias, depois do momento de abandono que por instantes
os aproximara, tinham tomado cada um o seu lugar: ela no seu orgulho altivo de
grande senhora, ele na sua delicadeza impecável, quase hostil, de motorista de
luxo.
Micaela quase se sentia feliz por encontrar ocasião de o humilhar um pouco.
Fingindo não compreender nem dar importância ao seu protesto, disse-lhe com
desdém:
- Enfim, vista o que quiser, se a nossa libré não lhe agrada. Há coletes e
casacos de todas as cores.
- Parece-me que mademoiselle não compreendeu. Se quiser que eu vá a seu lado,
há-de ser com um fato conveniente e não como um criado.
- E se eu não o quiser com esse aspecto?
- Então, terei o desgosto de lhe desagradar, mas fico aqui.
- Está bem - disse glacialmente -, Ajude-me a montar.
John estendeu o joelho, cruzou as mãos e ela saltou para a sela como uma
cavaleira consumada.
- Está pronto? disse, indicando o outro cavalo com o chicote.
- Apesar de estar assim vestido, quer que a acompanhe?
- Evidentemente, visto que não pode deixar de ser.
- Podemos passar pelas cocheiras, há sempre moços.
- Não. Para escudeiro basta-me o senhor.
- Muito bem!
Ao chegarem aos Campos Elísios, ela tomou a dianteira.
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XI.
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- Tem a certeza?
- Soube-o pelos seus documentos. Tem sessenta e sete anos e pertence a uma
família da Normandia da qual vivem ainda alguns membros. Recebeu uma boa
educação, cursou a Escola de Belas-Artes e teve alguma notoriedade como pintor
de retratos.
- Como pôde então cair tão baixo? balbuciou Micaela, que parecia agitada.
- Diz que, há vinte anos, um desgosto de amor o impeliu para uma vida
desregrada.
- Um desgosto de amor?
- Sim; explicou-me que começou a andar na estronice e a frequentar clubes
nocturnos, onde todas as noites se perde um pouco de dinheiro e muita
dignidade. Com o hábito do prazer, veio o aborrecimento pelo trabalho e, de
queda em queda, a miséria.
Micaela ficou pensativa por momentos, e depois perguntou, com ansiosa timidez:
- Disse-lhe o nome dessa mulher?
John hesitou levemente perante aquele rostozinho assustado e, por fim,
afirmou:
- Não! Um homem bem-educado nunca diz o nome da mulher que amou.
A fisionomia de Micaela transformou-se.
- Contou-lhe alguma coisa da sua vida íntima?
- Pormenores sem importância... e algumas más recordações.
- E... da mulher... Nunca teve notícias?
De novo a voz de Micaela se tornou hesitante.
- Essa mulher morreu pouco tempo depois de o ter abandonado...
- E porque o abandonou?... Não lho disse?
John, antes de responder, olhou, pensativo, para a sua jovem patroa. Não sabia
mentir, e perguntava a si próprio se tinha o direito de esconder uma parte da
verdade.
Então, enchendo-se de coragem, explicou:
- Parece que havia uma criança.
- Uma criança?
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um campo onde nunca batalhariam, mesmo no auge das contendas. E percebia que,
de todos os amigos e conhecidos, John era o único que não se dobrava diante
dela. Era a única pessoa que ousava fazer-lhe frente e reduzir a nada a maior
parte dos seus caprichos.
Ora, fosse qual fosse o estado de espírito, descontentamento ou cólera,
arrogância altiva da rapariga ou orgulho ferido do homem, bastava-lhes evocar
o segredo de Micaela para que imediatamente desaparecessem todos os rancores
entre eles, e ficassem de acordo, sem pensamento reservado.
A jovem milionária admirava-se daquele facto, que não podia explicar, mas do
qual beneficiava. Ingenuamente, suspeitava de que John fosse menos
desinteressado do que dizia e, acreditando no supremo poder do seu dinheiro,
deixava-se embalar pela dedicação silenciosa do rapaz, a qual, a todo o tempo,
poderia recompensar.
Não compreendera que o Russo era demasiado cavalheiresco para querer tirar
partido da sua situação de confidente e que não desejava que lhe pagassem, nem
sequer com uma palavra mais viva, o serviço que prestava.
Contudo, um dia, foi um pouco audacioso com ela, o que Micaela não percebeu
logo, e ele próprio, talvez, só mais tarde pudesse explicar a si mesmo.
Após uma das cavalgadas matinais, quando a ajudava a descer do cavalo, ousou,
premindo-lhe um pouco os dedos, chamar-lhe a atenção.
- Ainda não me disse se devo felicitá-la, mademoiselle.
- Felicitar-me? E porquê, meu Deus?
- Pelo seu noivado.
- Quem lhe disse que eu tinha noivo? respondeu, rindo francamente.
- Então não me informou de que seu pai devia apresentá-la a um dos melhores
partidos do Mundo?
- É desse homenzinho que quer falar?
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- Quando se ama, sim... Mas como mademoiselle não ama...
- Se esse rapaz me tivesse agradado, o amor podia vir depois.
- Não...
- Porque diz não, tão categoricamente?
- Porque um casamento de dinheiro nunca pode transformar-se num casamento de
amor.
- E porquê?
John sorriu, fixando, talvez um pouco de mais, os olhos de Micaela, e
explicou:
- Há um deus maligno que zomba de todas as convenções, entrava e derruba todos
os projectos... Se mademoiselle amar um dia, estou certo de que não há-de ser
nenhum dos noivos apresentados por seu pai... Será alguém que lhe fará mudar
as ideias sobre o casamento... e quando der por isso, já será tarde...
- Parece um profeta, John! notou ela, escarninha, sentindo a necessidade de
esconder a emoção que a assaltara, ouvindo essa evocação do amor espontâneo e
involuntário.
- Geralmente é assim que tudo se passa.
- Pois eu afirmo - disse com decisão -, que nunca amarei sem dar por isso... e
ainda menos um homem que não realize o ideal que sonhei! Não sabe como sou
senhora dos meus sentimentos e da minha vontade.
- Oxalá que o céu oiça os seus desejos e nunca lhe dê a prova de que a vontade
nada tem com isso - retorquiu John, gravemente -, Adivinho que, para si, o
fulminante seria uma diminuição dos seus direitos, e o amor do homem uma
mortificação do seu orgulho.
Teria acaso falado asperamente? Micaela corou, subitamente aborrecida por
falar dessas coisas com ele, e, de um salto, correu para a escadaria, cujos
degraus trepou a dois e dois.
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XII.
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Qual não foi o seu espanto quando, no dia seguinte, encontrou John com uma
jaqueta cinzento escuro, jaqueta de equitação, evidentemente, que lhe
valorizava a alta estatura, tornando-o ainda mais elegante. Nunca parecera
menos um motorista do que naquele dia.
O olhar em que a filha do milionário o envolveu tê-lo-ia espantado, se o
tivesse notado. Admiração, orgulho, cólera, tudo perpassou como um relâmpago
nos olhos que observavam o Russo.
Contudo, não disse palavra. Contentou-se, apenas, em se distanciar dele ainda
mais. Partiu à frente, e entrando no Bosque de Bolonha pela Porta de la
Muette, enfiou a galope por uma alameda, a seguir por outra, sem se inquietar
da direcção que tomava.
E andou tanto ou tão pouco que no fim de um certo tempo parou a montada,
perguntando a si própria onde estava.
Na Primavera parece que todas as alamedas do Bosque são iguais. É a mesma
verdura suave, as mesmas moitas floridas e cheias de seiva, erguendo para o
céu os rebentos coroados de pequenos botões cor-de-rosa.
- Onde estamos? perguntou a John, que parara o cavalo a alguns metros do seu.
O rapaz fez um gesto de ignorância.
- Disse-lhe que queria ir ao Pré-Catelan.
- Mademoiselle foi sempre à frente e pensei que conhecia o caminho.
- Devia ter-me guiado. Agora é que diz que me enganei!
- Julguei que conhecia outro caminho... estes atalhos parecem-se todos uns com
os outros.
- Não brinque comigo! Sabia onde eu ia, não devia deixar que me perdesse, por
gosto.
O tom agressivo que Micaela empregava desagradava a John.
- Perdão, mademoiselle. Quando sou eu quem a guia, tomo a responsabilidade do
caminho que sigo, mas tendo de ir atrás, a distância, não é o mesmo.
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John não respondeu, mas os seus olhos fixaram os da sua orgulhosa ama. Como
depois de todas as explosões de cólera, que eram tanto mais violentas quanto
mais fútil era a causa, a filha de Jourdan-Ferrières ficou abatida, com os
nervos despedaçados e as lágrimas quase a saltarem-lhe.
Mas reagiu, porque não queria dar esse espectáculo ao homem a quem acabava de
humilhar.
- Julga que, seguindo esse caminho, poderemos ir dar a uma alameda onde nos
informem? perguntou, esforçando-se por mostrar um tom indiferente, mas onde se
notava já o desejo de uma reconciliação.
- Podemos experimentar.
Micaela fez voltar o cavalo na direcção indicada e pôs-se a caminho. John
deixou-lhe um pouco de avanço e seguiu-a, desta vez a bastante distância.
Ela voltou ligeiramente a cabeça e, vendo a sua táctica, comoveu-se. Essa
distância, que ele marcava entre ambos, mostrava bem o seu ressentimento.
Desta vez estava realmente zangado. Dissera ser o último dia que a
acompanhava... Sentiu oprimir-se-lhe o coração ao pensar, com um certo terror,
nos dias que se seguiriam ao ver os seus hábitos modificados tendo que tomar
novo motorista.
E parou no fim da alameda, hesitante, tão amedrontada subitamente que não
sentiu o menor desejo de continuar a andar. Ficou parada, sem um movimento que
pudesse indicar o que desejava.
John teve que lhe passar à frente. Obteve facilmente, de um passeante, a
indicação do caminho a seguir até ao Pré-Catelan. Quando voltou para junto
dela, notou a palidez do seu rosto tragicamente tenso, numa atitude de comando
que desejava parecer altiva.
- Estamos perto do Pré-Catelan, mademoiselle; seguindo à esquerda, por esta
álea, estamos lá em poucos minutos.
- Sinto-me cansada, e é já tarde - respondeu -, Gostaria de descansar num
sítio qualquer antes de ir para casa.
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- Para que lado deseja ir? perguntou John, num tom impecável, mas que parecia
colocá-la a grande distância de si.
- A qualquer sítio deserto... seja onde for, contanto que seja isolado.
- Então, por aqui, creio eu.
Micaela seguiu a direcção indicada, com uma passividade que não estava nos
seus hábitos.
Ao fim de uns duzentos metros, avistando um talude próprio para repousar,
parou o cavalo e largou-lhe as rédeas. O jovem Russo ajudou-a a descer e a
instalar-se no talude, cuja erva bateu para ela ficar melhor.
Tudo isto foi feito sem que um movimento os aproximasse ou tivessem trocado um
olhar.
E depois dela estar sentada, John, pegando nas rédeas dos cavalos, conduziu-os
a uns vinte metros de distância, onde ficou com eles. Nunca tinha procedido
assim. Ordinariamente, quando Micaela descansava, John ficava perto e
conversavam, sem familiaridade, mas também sem cerimónia.
Micaela viu-o, de longe, acariciar a cabeça dos cavalos, verificar uma fivela
mal apertada, e depois acender um cigarro. Na sua imobilidade, adivinhou que
estava novamente mergulhado numa das nostálgicas meditações habituais, sempre
que ficava só. Teve a impressão de que pesava sobre ela uma solidão
esmagadora, deixando-a verdadeiramente isolada. A impressão foi tão nítida que
sentiu correr uma lágrima. Por uma tolice, por uma questão de orgulho e de
trajo, ferira o único ser que lhe era dedicado sem cálculo.
John não era apenas um motorista, um servo zeloso com quem podia contar, e via
agora que era um homem cheio de respeito, atenções e dedicação por ela. Nenhum
daqueles a quem honrava com a sua amizade tivera para ela os mesmos cuidados e
respeitos que este amigo obscuro e silencioso, que sofria o seu mau génio e
caprichos.
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Então, nova lágrima lhe rolou pela face, preparando a estrada húmida às que se
seguiriam e aos pesados soluços que enchiam o seu coração.
Quanto tempo ficariam assim afastados um do outro?
Todo o seu orgulho de homem se revoltara contra as censuras injustificadas de
Micaela, mas John estava aborrecido pelas proporções que a questão tomara, e
censurava-se vivamente por ter ajudado as coisas a irem tão além.
Mas pensando que teria de deixar Micaela e renunciar aos passeios quotidianos
que davam juntos, sentia um verdadeiro aperto no coração. Enumerava todas as
vantagens que lhe trazia o seu emprego de motorista. O lugar era bom, bem
retribuído e pouco fatigante. Tinha livres as horas das refeições e as noites
pertenciam-lhe. Sob o ponto de vista material, nunca encontraria um emprego
tão pouco incómodo. De resto, absolutamente ligado ao serviço da filha do
milionário, não tinha que suportar promiscuidades importunas, nem os caprichos
de vários senhores. Micaela era bastante altiva e demasiadamente autoritária.
Mas a maior parte das vezes dominava-se um pouco para com ele... E acabavam
por ficar sempre de acordo, tendo a zanga a singular vantagem de os aproximar
mais, como a terra, na Primavera, parece mais quente depois do aguaceiro que a
molha.
Fazia estas reflexões quando a égua de Micaela estendeu o pescoço em direcção
das tenras folhas das moitas. O seu companheiro quis tomar parte no festim,
fez um esforço para se colocar a par dela, e com esse movimento para a frente
obrigou John a voltar-se para a sua jovem patroa.
Para esconder as lágrimas, Micaela voltara a cabeça para o lado oposto, mas,
pelo movimento dos ombros provocado pelos soluços, John compreendeu o drama.
Duas vezes se lhe cravou na testa a mesma ruga má, desviando os olhos, mas
duas vezes também o seu olhar se fixou nela, como atraído por um íman.
Conhecia a causa dessas lágrimas: fora a discussão que motivara o desgosto de
Micaela.
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Por fim, sem que pudesse defender-se, o grande pesar dessa garota despertou-
lhe a emoção. Não podia ficar por mais tempo insensível àquelas lágrimas. Era
bastante generoso para poder assistir, impassível, a um desespero de que era
causa involuntária.
Prendeu os cavalos a uma árvore e dirigiu-se para a jovem. De pé, em frente
dela, ficou silencioso, ainda hostil no seu olhar, mas já vencido, visto que
viera, até ali.
Quando Micaela o sentiu, esforçou-se por reter as lágrimas. Não ousava
levantar os olhos, mas sentia-lhe o olhar fixo sobre ela.
John fez um esforço sobre-humano para quebrar o silêncio. O seu orgulho
rebelava-se contra a ideia de ser o primeiro a falar. Contudo, acabou por
dizer, com a voz rouca pela emoção:
- Mademoiselle, peço-lhe perdão do meu arrebatamento de há pouco. Diante de
uma senhora, um homem bem educado deve conservar-se calmo.
Esta desculpa, cheia de censuras, foi tudo quanto achou para dizer naquele
momento. E, contudo, estava extraordinariamente comovido; mas Micaela sentia-
se muito feliz em o ver ali e poder apreciar-lhe as palavras.
John dirigia-se-lhe, evitando-lhe a humilhação do primeiro momento. Respondeu
logo, pronta a confessar os seus erros e a fazer-se perdoar.
- Não tive intenção de ser tão agressiva consigo e lastimo imenso tudo quanto
lhe disse sem pensar.
- Não se desculpe, mademoiselle - disse o rapaz -, Na sua cólera exprimiu o
que pensava.
- Não creio isso - respondeu Micaela, calorosamente -, Mal acabei de falar,
desejaria poder engolir as palavras que dissera. Que me importa o trajo que
usa, contanto que, entre nós, nada tenha mudado e fique sempre a meu lado!
Ouvindo estas palavras, o rosto do atraente rapaz perdeu o seu aspecto severo.
Envolveu-a num olhar indefinível e disse:
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- Seria melhor ir-me embora.
- Não diga isso; ficaria imensamente desgostosa.
- Era preferível para ambos.
- Porquê?
- Receio que questionemos muitas vezes!
- Não temos que questionar; basta-me poupar a sua susceptibilidade, e que John
conserve a sua dedicação por mim; preciso tanto dela que já não poderia deixá-
la fugir.
A voz alterou-se-lhe ao pronunciar estas últimas palavras, e uma lágrima rolou
pela face pálida.
- Sou-lhe muito dedicado - assegurou John em voz baixa e trémula.
- Bem o sei; é por isso que me habituei a contar consigo, e só pensar que não
o veria mais me causa um verdadeiro desespero. Esqueça tudo quanto lhe disse
de mau e prometa-me que não me guarda rancor.
Assim falando, levantara-se e, num movimento espontâneo de reparação,
estendeu- lhe a mão. John pegou-lhe e conservou-a uns momentos entre as
suas...
Havia tanta pureza e lealdade nos grandes olhos que Micaela levantara para
ele, que não podia haver equívoco possível: palavras, gestos ou desgostos,
eram a impressão de um pesar sinceramente confessado.
Não desejava perturbar aquele rapaz com qualquer coquetismo. Fosse ele velho,
seu igual ou até superior, não manifestaria um arrependimento mais simples e
digno. Sabia reconhecer muito bem as suas maldades, e John, que era tão
difícil de contentar acerca da delicadeza feminina, concordou consigo próprio,
que, quando queria, sabia ser uma grande senhora.
Religiosamente, poisou os lábios na mãozinha, que ainda não largara.
Foi assim que terminou esta primeira grande zanga. Nunca mais se falou no
assunto, mas também nunca mais o esqueceriam.
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A datar desse dia, Micaela foi mais graciosa e cordial com John; esforçou-se,
realmente, por lhe poupar a susceptibilidade, mas este, apesar de ser sempre
serviçal e atencioso para com a jovem patroa, comprazia-se numa selvagem
reserva, sorridente e correcto, mas infinitamente distante...
XIII.
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79
- Como é aborrecida, quando não quer compreender, Molly!
- Eu fazer a diligência - disse esta ingenuamente, com os olhos brilhantes de
malícia.
- O meu motorista é um homem do povo, compreende agora?
Molly soltou uma gargalhada.
- Ser deveras engraçada, esta Micaela! John é do povo! É verdade. E nós de
onde somos? Micaela ter caído da lua?
A filha de Jourdan-Ferrières tornou-se muito vermelha, notando que a sua
interlocutora zombava desde o princípio da conversa, mas não podia esquivar-se
diante de todo o grupo feminino que as ouvia.
- Em França há classes na sociedade - respondeu -, Um motorista faz parte dos
trabalhadores... do povo!
- Até ao dia em que, também milionário, se meta, como seu pai e o meu, na alta
finança.
- Não creio que John venha a ser milionário - notou Micaela, com ironia.
- Talvez! Meu pai ter sido mercador, operário numa mina, magarefe, não saber
que mais! Agora ser o rei do açúcar, e a sua assinatura valer milhões de
dólares... Mas creio ter ouvido dizer que seu pai ter sido aprendiz de
salsicheiro... Em França, ser melhor do que motorista?
Micaela não respondeu. Tornara-se escarlate e os olhos brilhavam-lhe de
intensa cólera.
- Ser engraçado! Muito engraçado! ria Molly -, Você corou pelo salsicheiro. Eu
estar mais orgulhosa por papá ter sabido ganhar milhões de dólares de que se
ele tivesse achado sua fortuna num buraco.
- Desejo-lhe, pois, que case com um homem com os seus princípios.
- All right! Querer um marido que me agrade, mesmo que tenha que vender
pãezinhos com chouriço, à porta das escolas.
- Cada um tem o seu gosto!
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- Naturalmente! Por isso, mim, não aconselhar você a casar com John. Eu querer
ele para marido.
O grupo começou às gargalhadas.
- E que fará dele, durante a vida?
- Um marido de quem mim, apaixonada, terá orgulho... porque não ter precisão
de ensinar ele a ser elegante, gentleman. Ele saber tudo! E, quando tiver tal
marido, todas as mulheres invejarem a mim.
- Olha, Molly - exclamou uma das companheiras -, o que tu dizes talvez seja
verdade. Vê, Micaela, não fazem cerimónia para te roubarem o teu belo John.
E apontava para três raparigas que conversavam com o Russo.
- Bem vejo... estão no ar, por ele!
- Olha aquela... a fazer festas aos cavalos!
- Muito excitante! Verifico e tomo nota das probabilidades do querido rapaz;
há cinco minutos valer o dobro.
E, voltando-se para Micaela, que estava assombrada e silenciosa, acrescentou:
- Na verdade, Micaela, você achar que John precisa uma fortuna para agradar a
uma mulher?
- É ridícula, Molly! Por três levianas se atirarem à cara de um bonifrate fica
emocionada?
- Apre! Você ver mal, minha querida! O bonifrate conversa gentilmente, sem
berrar e sem gestos! Veja! Veja.
Micaela, enervada, exclamou:
- Há coisas mais interessantes para ver do que as acções e gestos de um
motorista!
Molly Burke olhou para ela.
- Noto... que o dinheiro, aqui, fazer perder todo outro qualquer direito.
Entre nós, no meu país, um homem valer oiro: hoje ser pobre, amanhã rico...
ou, como dizer?
Vice-versa.
Yes!
- E como tratam os vossos criados? interrogou Micaela, secamente.
81
- Segundo o seu valor, e não pela algibeira. Não os desprezamos como aqui. Eu
quero John para mim! Eu ter muita pena dele aqui...
Micaela encolheu os ombros e não respondeu. As reflexões de Molly eram-lhe
profundamente desagradáveis, e percebia que todas as palavras seriam mal
comentadas pela americanazinha e se voltariam contra ela. De resto, estava
persuadida de que se mostrava correcta com os inferiores. No entanto, ficou
seriamente aborrecida com tal discussão e tudo isso por inveja, porque tinha
um motorista fora do vulgar e que a outra cobiçava!
A filha de Jourdan-Ferrières pensou, num relâmpago, que aquela era bastante
rica para lhe tirar John! Questão de dólares... Dólares contra francos... A
luta seria desigual.
Molly Burke não olharia ao preço se se tratasse de humilhar outra rapariga. E
Micaela percebeu, com amargura, que a sua fantasia tinha limites e que os seus
milhões nem sempre tinham um poder ilimitado.
Já tinham deixado o Pré-Catelan havia alguns minutos e galopavam pela estrada,
de regresso. De fronte enrugada, Micaela relembrava cada palavra trocada com
Molly e a lembrança dos seus sarcasmos fazia-a saltar sobre a sela como sobre
o efeito de uma queimadura.
*Seu pai foi aprendiz de salsicheiro+.
Novamente o rubor lhe coloriu as faces. Para que lhe atiravam à cara,
forçando-a a corar, os princípios do pai? O seu orgulho não queria compreender
a grande lição de humanidade que a Americana, no seu modernismo, lhe dera.
*Um motorista! Falou em casar com um motorista! Como se isso fosse
possível!...+.
82
Só esta suposição lhe era odiosa. Quando voltou a cabeça, disposta a vingar-se
em John da admiração que Molly lhe tributava, viu-o tão bem montado, tão
perfeito cavaleiro, como se nunca tivesse feito outra coisa na sua vida. Com
olhos malévolos, examinou-o a fim de lhe descobrir a tara oculta, o defeito,
no envólucro de tão perfeito gentleman.
Era, na verdade, de uma grande beleza, de traços puros, perfil correcto,
cabeça altiva, olhar leal, mas cortante como alfange. Teve que reconhecer
nunca ter visto espécime igual. Nunca, até esse dia, a beleza russa, sem
mescla, ao mesmo tempo selvagem, guerreira e apurada através dos séculos, lhe
aparecera daquela forma.
*Sim, tem tudo quanto agrada a uma mulher! E se Molly casar com ele, será
rico... mais rico do que eu!+
E imaginou-o de casaca, atravessando os salões.
Seria um deus, perante o qual todas as mulheres se curvariam. Sentiu a
garganta seca. Viu que o seu motorista não destoaria em qualquer parte onde
estivesse. Era absolutamente um homem de sociedade, tão completamente como
qualquer dos rapazes com quem diariamente convivia.
Simples motorista, conservava-se sempre um gentleman impecável.
Quando fosse marido de Molly, a própria Micaela não seria, mais, a seu lado,
do que simples milionária francesa, cujas ideias acanhadas não tinham sabido
compreender o deus...
Molly vira claro; proclamava bem alto o seu desejo de escolher, primeiro do
que tudo, marido que lhe agradasse. Com a sua fortuna, podia arranjar um noivo
sem dinheiro; com as suas ideias modernas, aceitar um homem de humilde
posição; com o seu senso prático de Americana, seria feliz... amada... e...
invejada!
Era preciso impedir isso, fosse como fosse, não porque tivesse a consciência
de ter ciúmes, mas John era seu, o seu motorista, a quem estava habituada...
Molly não tinha o direito de lho roubar!
83
A filha de Jourdan-Ferrières compreendia que não podia passar sem esse homem
impecável, sempre dedicado e atento aos seus menores desejos. Molly invejara-
lho por ser belo, mas Micaela sabia bem que o que lhe agradava no jovem Russo
não era essa bela figura, nem o seu fino rosto de feições regulares e um pouco
altivas. O que, acima de tudo, a comovia era a protecção incessante que John
lhe dispensava.
Saía de carro ou a cavalo: estendia-lhe a mão, compunha-lhe a manta ou o fato
sobre os joelhos. Ia a pé: velava conscientemente pelo seu bem-estar, levando
a malinha ou o agasalho que ela esquecia. E sentia, continuamente em volta de
si, essa solicitude.
Nos seus encontros, nas suas saídas, nos seus jogos, lá estava ele sempre
pronto a socorrê-la, a velar por ela, a defendê-la contra todos os perigos e
impertinências.
Era esse amigo dedicado e silencioso que Molly lhe queria arrebatar! Mas
Micaela tentaria impedi-lo com toda a sua vontade e energia! E quis,
imediatamente, sondar as intenções de John.
Refreando o cavalo, esperou que ele estivesse perto e começou:
- Meu pai disse-me que deseja fazer um contrato consigo, John.
- Para quê?
- Quer garantir-se contra qualquer mudança no seu pessoal, oferecendo-lhe ao
mesmo tempo lucros interessantes...
E, como John se conservasse calado, continuou:
- Esse contrato seria... muito vantajoso para si... Uma sombra velou o rosto
do rapaz.
- Preferia que mademoiselle não tratasse essa questão comigo.
- Porquê? Diz-lhe respeito. Estou habituada consigo, e teria grande desgosto
se pensasse um dia em deixar-me.
- Não penso em afastar-me de si, actualmente, mas não quero comprometer-me com
contratos. É certo que mais tarde... um pouco mais tarde, devo seguir o meu
caminho, mas não vale a pena pensar nisso.
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- O seu caminho? Um motorista que pode obter o ordenado que quiser, pode
esperar melhor situação?
Um sorriso altivo fez-lhe tremer os lábios.
- Pois é esse o caso. Sou motorista apenas momentaneamente.
- Esperando melhor?
- Deverei chamar-lhe assim? Não julgo ser possível ter por tão pouco trabalho
lucros semelhantes...
- Então?
- Cada um deve seguir o seu Destino; o meu não é ficar eternamente motorista,
sejam quais forem as vantagens pecuniárias que esse título me traga.
- Mas se alguém lhe oferecer... muito dinheiro, uma situação mais brilhante...
deixar-me-ia sem custo?
Os olhos de John mergulharam nos de Micaela.
- Quem queria que me fizesse tais propostas?
Micaela corou imperceptivelmente e levantou os grandes olhos para John. Devia
falar em Molly? Seria mais razoável deixar as coisas caminharem por si? Era
combativa e, visto que estava certa de que Molly tentaria qualquer coisa, era
preciso parar os golpes, prevenindo-o.
- Creio que Molly Burke vai tentar tomá-lo ao seu serviço...
- Quem é Molly Burke?
- Uma amiga minha... muito loira... cabeleira revolta... estava hoje no Pré-
Catelan.
- Quer falar numa jovem americana que tem olhos de miosótis e um sorriso
encantador?
- Conhece-a? perguntou Micaela, cujo rosto se alterou.
Essas palavras olhos de miosótis e sorriso encantador pareceram-lhe, contudo,
exageradas.
- Tem-me falado já diferentes vezes quando a espero à porta das suas amigas.
- Ela já tentou...
- Tentou o quê?
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XIV.
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- Sou obrigado a passar por minha casa; apenas para envergar um traje mais
apropriado do que este.
Vestia, então, um casaco branco, com canhões de cor, e Micaela compreendeu que
ele não podia ir assim.
- Pois seja! Esperá-lo-ei no automóvel.
Minutos depois, o carro parava em frente de um belo prédio, na Avenida de
Temes.
Apenas uns minutos.
E, delicadamente,. entregou-lhe um jornal para ela se entreter.
- Se quiser ler...
Micaela pegou no jornal que o motorista lhe entregara. Era o Temps.
*Ah! O senhor John gosta de jornais sérios!+
Como não lhe apetecia ler, deitou a cabeça pela portinhola e examinou o portão
por onde o Russo entrara.
*Sua excelência não dispensa nada! Tenho amigas pior alojadas... Mas talvez
habite na mansarda!+
Este facto intrigava-a. Desceu do carro para interrogar o porteiro, e deu logo
com o ascensor.
*Evidentemente, é uma vantagem para as suas pernas! Não há dúvida, mora no
sétimo andar!+
- O senhor Isborsky? perguntou ao porteiro.
- No quinto, porta à direita. Subiu agora mesmo.
- Então, espero-o.
Se bem que se sentisse deveras curiosa, não ousou ir ter com ele, lá acima.
Quando voltou para o carro, levantou a cabeça e contou os andares. Pertencia
ao quinto andar uma grande varanda de pedra, devendo formar um terraço
bastante espaçoso.
*Se mora para o lado do pátio, está bem instalado+.
Nunca se sentira tão preocupada com a vida íntima do seu motorista. Como Molly
afirmara poder ele aspirar a todas as situações, pensava, muitas vezes, no
jovem Russo, e perguntava a si própria o que faria ele nas horas vagas.
*Meu pai informou-me que John exigira a liberdade das horas das refeições e as
noites também livres. Apesar do que me disse, deve viver com alguma mulher!+
89
E pensou, de repente, que teria graça anunciar isso a Molly. Mas foi arrancada
aos seus pensamentos pelo regresso do motorista. Este vestia uma gabardina por
cima de uma casaca, visto que devia conduzir o automóvel. Era sempre correcta
a sua figura, fosse qual fosse o fato.
A vista exercitada de Micaela analisava-o com surpresa. Cada vez que John
mudava de fato era para ela uma revelação. Não podia conceber como conseguia
assimilar todas as situações tão à vontade.
Enquanto John calçava as luvas de cabedal, perguntou-lhe:
- Não ficaram surpreendidos, em sua casa, de o ver chegar a esta hora?
- Em minha casa não estava ninguém.
- Nem sua mulher?
- Creio ter-lhe dito já que não sou casado. Moro só, com compatriotas a quem
cedo uma parte da casa, reservando para mim apenas dois quartos.
- Quem cozinha e arruma a casa?
- Os meus compatriotas fazem-me o serviço.
- Como criados?
- Pouco mais ou menos.
Micaela estava perplexa.
O seu motorista brincava aos donos de casa, com criado, etc. E de novo pensou
em Molly.
*Ela tem razão: apenas uma questão de dinheiro os separa! E, mesmo Molly,
ficar- lhe-ia inferior sob todos os pontos de vista+.
Pensava ainda nessas coisas quando o automóvel já ia em andamento. Fixava
John. Via-lhe as costas largas, a cabeça altiva, respirando um todo de
incomparável vigor.
E, pela primeira vez, formulou esta pergunta:
*Que faria ele na Rússia?+
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XV.
Pouco entusiasmada por entrar nessa casa desconhecida pelo braço do seu
motorista, Micaela notou ironicamente:
- Vamos a um casamento? John sorriu.
- Não, apenas a uma recepção russa.
- Bravo! Casaca e luvas brancas! Tem a certeza de que é esse aqui o protocolo?
Surpreendido com o tom zombeteiro de Micaela, o rapaz levantou os olhos e
disse, secamente:
- Para mim, é obrigatório!
- Como para os criados de serviço!
E indicava dois servos de calção curto, sapatos de fivela, e, é claro, de
luvas brancas, que estavam ao cimo da escadaria para introduzir os visitantes.
Uma expressão de pesar pairou no rosto do Russo, a quem os sarcasmos de
Micaela surpreendiam. Porque trouxera aquela nova-rica, aquela burguesa, a
esse meio quase feudal, onde todos conservavam religiosamente, no fundo do
coração, o pesar nostálgico da etiqueta e do cerimonial da corte?
- Se quer seguir-me... disse, friamente, sem insistir em lhe oferecer o braço.
E subiram, lado a lado, a escadaria. Um porteiro dirigiu-se-lhes:
- Quem devo anunciar?
John voltou o rebuço da casaca, atrás da qual estava pregada pequena estrela
branca.
- Não anuncie.
O homem inclinou-se profundamente, e John, como frequentador do lugar,
atravessou o vestíbulo.
Ao fundo da sala de espera Micaela viu uma outra sala, à entrada da qual um
par recebia os que entravam. E como John se encaminhasse para uma porta que
havia ao lado, ela observou, um pouco trocista, com um secreto desejo de se
vingar da audácia que o seu motorista tivera:
- Bem! A entrada de serviço! Evidentemente, o senhor não pode entrar por ali.
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John parou, espantado, e por um momento, olhou-a como se a descobrisse de
repente. Um sopro de cólera lhe passou pela face pálida e, dando meia volta,
disse:
- Anuncie mademoiselle Jourdan-Ferrières e Alexandre Isborsky.
A sua voz altiva e forte ressoou no hall, de uma maneira profunda, como a de
um chefe soltando um grito a reunir. O porteiro anunciou, e Micaela,
petrificada, teve de apressar o passo para o poder acompanhar antes que John
chegasse à outra porta.
O par que recebia dirigiu-se para eles:
- Meu querido Alexandre...
- Até que enfim, podes ser dos nossos, Sacha.
John pousou os lábios na mão da dona da casa.
- Princesa...
E apertou com força a mão do homem.
- Não é por minha culpa que tenho faltado às tuas reuniões, Jorge; não estava
livre.
- Como temos sentido a tua falta!
Trocadas estas palavras, o Russo apresentou a companheira:
- Mademoiselle Jourdan-Ferrières... os príncipes Youri-Bodnitzk.
Cerimoniosamente, inclinaram a cabeça; o príncipe interrogou-o com o olhar,
porque aquele nome nada lhe dizia.
John, a meia voz, pronunciou algumas palavras em russo, que tiveram o condão
de fundir imediatamente o gelo.
- Muito prazer em nos dar a honra da sua presença - disse o príncipe,
graciosamente, a Micaela -, É encantadora, e tanto a princesa como eu lhe
agradecemos que quisesse fazer companhia a Sacha.
Novos sorrisos de parte a parte, novas saudações, desta vez espontâneas, e
Micaela, um pouco atrapalhada, afastou-se com John através da brilhante
multidão que enchia a imensa sala.
Nessa sociedade elegante, onde Micaela não encontrava nenhuma cara conhecida,
estava reunida a aristocracia russa que vivia em Paris.
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- Quem é esse príncipe Bodnitzki? perguntou a John.
- O dono deste palácio. Casou com uma americana, e mostra-se muito bom para a
colónia russa menos afortunada.
- A princesa parece muito amável.
- É encantadora, e o seu grande coração faz esquecer a origem.
*Ah! pensou Micaela! Aqui é como nos arrabaldes Saint-Germain: não têm um
cêntimo, mas pouco lhes falta para desprezarem o dinheiro que as esposas lhes
trazem, por ter sido ganho com mãos plebeias+.
Nesse momento, uma rapariguinha de dezasseis anos, bela e viva como são na
Rússia todos os adolescentes, dirigiu-se para John.
Micaela notou a cabeleira loira, de cabelo apartado ao lado e tão curto que
parecia um pajenzinho saído de um quadro de Boticelli.
- Sacha! Que felicidade ver-te! Tenho muito boas notícias a dar-te.
Quase lhe saltara ao pescoço. Com as duas mãos apoiadas no rebuço da casaca,
fixava-o com terno olhar.
John parara. Com um sorriso bondoso correspondeu ao seu transporte, mas
desprendeu-se das mãozitas que o agarravam e, beijando-as, murmurou:
- Daqui a pouco vou ter contigo, Lenotchka.
E com os olhos fitos na donzela, que sorria, mostrando os lindos dentes,
pronunciou duas palavras em russo. Ela olhou-o, admirada, e examinou Micaela.
Depois, trocando um olhar de entendimento com o compatriota, disse, com
simplicidade:
- Até já, Alexandre Yourievitch.
E eclipsou-se, alegre e ligeira, figurinha encantadora que pareceu esvair-se
na multidão.
Esta aparição deixou Micaela pensativa. Aquela loira risonha fazia-lhe lembrar
Molly, mas levantava também uma ponta da vida particular do seu companheiro.
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- Ser bonito rapaz, é, então, uma vantagem na Rússia, e Alexandre Isborsky não
podia ter outra pretensão além das vantagens que lhe conferia um rosto
agradável e um corpo de atleta?
- Ser dotado de um físico como Isborsky já é alguma coisa.
- Evidentemente, pode fazer-se dele um soberbo picador de circo ou um tambor-
mor de bela aparência. Mas sempre esperei que valesse mais.
O antigo chefe da casa militar do Czar olhou para Micaela e sorriu da
prontidão da resposta.
- Quem lhe diz que o seu companheiro não valha mais? Julga, acaso, que se
recebe aqui, desta forma, um picador de circo ou um tambor-mor? Mas aí vem o
almirante Lerizoff. Admire-lhe a frescura, apesar da avançada idade.
Desviado, deste modo, o assunto da conversa sobre John, Micaela teve que se
interessar pelas múltiplas descrições que o atencioso general lhe fazia.
Ouvia, distraída, completamente entregue à sua obsessão. De repente, viu
aquele que a preocupava tanto na companhia da rapariga loira, a quem dera o
nome de Lenotchka. Estavam a um canto, em conversa animada. A garota parecia
radiante, e o seu companheiro falava-lhe com um sorriso de grande doçura.
Micaela sentiu irritante melancolia. Não conhecia daquele homem se não o olhar
reservado e correcto, igual ao tom impecável que usava sempre com ela.
Salvo Jourdan-Ferrières, que era afectuoso com a filha, nunca sentira fixar-se
em si um olhar tão indulgente. Por momentos, invejou a loira Lenotchka, para a
qual John se inclinava tão ternamente.
Quando o deixou, Micaela indicou-a ao velho militar.
- Quem é aquela bonita pequena, com um rosto de anjo, que vai além?
- É Lena Dmitrievna, a filha do antigo chefe da aviação de Kiew.
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- Pertence à aristocracia?
- Sim! A mãe, a baronesa Colensky, era filha do Grão-Duque Georgij.
Micaela julgou sonhar: o seu motorista tratava por tu a neta de um Grão-Duque.
- O exílio juntou-os a todos? notou ela.
- Sim, apesar de dispersos, continuamos unidos, e a nossa maior felicidade é
reunirmo-nos! Mas é a hora do nosso lanche - acrescentou -, Dá-me licença que
a apresente à generala Razine e às minhas duas filhas? Vamos tentar arranjar
uma mesa, e faremos, os cinco, uma óptima festa.
Micaela aceitou este projecto com prazer, e foi apresentada a uma senhora
idosa, muito simpática, e às duas raparigas, de aspecto tímido, que levantavam
para ela quatro pupilas de um azul desmaiado.
Nessa ocasião, a sua atenção fixou-se em John, que ajudava a instalar uma
senhora idosa, de compridos caracóis brancos, numa mesa um pouco distante.
Alexandra, a filha mais velha do general, seguira o olhar de Micaela e notou
com vivacidade:
- Este Sacha é irresistível! Quem o não estimará! Tem para a condessa
Bolkovsky, que já fez oitenta e quatro anos, tantos cuidados e atenções como
se se tratasse da sua avó.
- Parece conhecê-lo muito? perguntou Micaela.
- Minhas filhas conhecem toda a colónia russa exilada - interveio o pai -,
Pelo menos, a que se preza e não se encontra nos restaurantes nocturnos da
Praça Pigale.
- Será verdade haver fidalgos russos que se tenham exibido nesses restaurantes
nocturnos?
- Dizem que sim... retorquiu o general, secamente -, Nunca aí fui.
John sentara-se em frente da venerável senhora, que instalara na mesa e,
solícito, oferecia-lhe o chá, as torradas, os bolos, com um à-vontade
incomparável nos seus menores gestos.
Micaela não podia despregar os olhos do grupo.
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Micaela corou um pouco sob o olhar agudo do Grão-Duque, que a encarava, e por
se ver alvo da atenção de todos os presentes.
Nesse meio aristocrático, onde a fantasia de John a arrastara sem aviso,
sentia a estranha sensação de ser ingénua, nova e ignorante, e confortava-se
com a ideia de que não conhecia nenhuma das pessoas presentes, que não sabiam
bem quem ela era, e a quem nunca mais tornaria a ver.
Evidentemente perturbada, apesar do seu à-vontade habitual, Micaela ouviu a
voz um pouco velada de John, que dizia com subtileza incomparável, da qual
percebeu todos os cambiantes:
- Alteza, permita-me que lhe apresente mademoiselle Jourdan-Ferrières, que me
deu hoje a honra de me acompanhar.
- É encantadora, mademoiselle, e ao vê-los caminhar, admirava a proporção
magnífica das vossas duas figuras. Formam um lindo par.
Os convidados deixaram ouvir um murmúrio aprovador. E o Grão-Duque continuou,
com um sorriso indefinível nos lábios:
- Queria estar no tempo de Yvan, o Terrível, para poder manifestar-lhe o
desejo, Alexandre, de o ver desposar mademoiselle. Nunca haverá na nossa terra
bonitas crianças de mais, e os vossos filhos deviam ser soberbos.
Micaela sentiu tremer a mão do companheiro, e nos lábios dos cortesãos
transpareceu um sorriso.
O Grão-Duque, divertido com a cara comprometida de Sacha, inclinou-se para
Micaela, completamente absorta, e beijou-lhe a mão, continuando:
- Creio que já tive o prazer de encontrar o senhor seu pai. Queira dizer-lhe
que tem uma filha encantadora, que possui os mais lindos olhos do Mundo.
Micaela, atrapalhada com o tom soberanamente superior do Grão-Duque, bem como
pelas suas reflexões inesperadas, que a aproximavam de John, apenas pôde
balbuciar:
- Alteza, estou confusa...
101
- E eu, encantado, mademoiselle...
Com uma pressão de mão, John fez-lhe compreender que a audiência terminara. E
como ela não se mexesse, inclinou-se profundamente, constrangendo-a, com um
gesto, a fazer uma reverência.
Micaela ficara um pouco hirta. Não estava habituada a essa saudação profunda,
que passou de moda nos nossos salões depois da Guerra.
Quando se afastavam, notou, perturbada, que muita gente se inclinava à sua
passagem. Não pararam, e John só lhe largou a mão na escadaria. Quando
chegaram ao carro, a rapariga observou-lhe, com azedume:
- Devia ter-me prevenido do sítio onde me trazia... teria ficado menos
atrapalhada... não sabia o que devia fazer.
O rapaz respondeu, num tom sincero:
- Foi encantadora. O Grão-Duque não o diria se o não pensasse, e, quando
saímos, todos lho fizeram compreender.
Micaela não respondeu. Ainda estava muito perturbada e não analisava as suas
impressões.
Sentada no fundo do carro, viu-o vestir a gabardina e mudar de luvas. Então
lembrou-se do ousado comentário:
*Formam um lindo par... os vossos filhos deviam ser soberbos...+.
Corou e os dedos crisparam-se-lhe nos joelhos, mas não teve nenhuma veleidade
de revolta... nem compreendia como John pudera fazer semelhante figura.
A sua alma de nova-rica estava subjugada pela auréola que rodeava um príncipe
de sangue real. A pequena republicana sentia-se soberbamente orgulhosa, porque
um autêntico Grão-Duque lhe beijara a mão.
Cansada, muito cansada mesmo, incapaz de reagir naquele momento, sobre a
empresa de que Sua Alteza Real a incumbira,
102
XVI
Durante alguns dias houve uma espécie de tréguas entre Micaela e o seu
motorista. Evitavam qualquer palavra inútil, tanto amigável como hostil.
Abstiveram-se de evocar a recepção do príncipe Bodnitzky, como se lhes tivesse
deixado qualquer recordação má.
Em lugar de os aproximar, essa tarde, passada em pleno ambiente russo, parecia
tê-los afastado.
Micaela esforçava-se por não pensar, por não se lembrar, por banir da sua
memória tudo quanto se pudesse relacionar com John, com a sua pátria e os seus
amigos.
Adivinharia o rapaz o seu estado de espírito? Talvez, porque também se
distanciava dela, voluntariamente, silencioso.
Com o rosto feroz e intimamente absorto em qualquer vaga visão, parecia nem
sequer dar conta da presença feminina, a quem estava sujeito pelo trabalho. E,
maquinalmente, guiava o automóvel, mais com as mãos do que com o cérebro.
Caminhava, parava, tornava a partir, acelerava, manobrava o volante e os
pedais sem uma hesitação, sem um gesto supérfluo, qual autómato sem vida.
E isto durou muitos dias. Uma manhã, Micaela ordenou-lhe:
- Vamos a Cherburgo... Consulte o mapa e trace o itinerário. Devemos lá estar
antes das quatro horas.
E partiram...
Nada fazia prever que nesse dia se daria um dramazinho que lhes poria à prova
o orgulho. Micaela dissera:
- Almoçamos em Lisieux.
103
E quando John parou o carro, no meio da cidade, entre dois hotéis de boa
aparência, nada fez pressentir à milionária qual devia escolher, para sua
tranquilidade moral. Indicou ao motorista o mais moderno, por lhe parecer o de
assistência mais selecta.
Antes de entrar no hotel, pediu-lhe que fosse arranjar jornais.
John pouco se demorou. Micaela tê-lo-ia visto chegar? Seria intencionalmente
que esperava a sua volta para escolher mesa? Só passados uns minutos se
poderia responder a estas perguntas.
Quando John entrou na sala ouviu-a dar a seguinte ordem:
- Ponha o meu talher naquela mesa... lá ao fundo, ao pé da janela aberta.
- Só um talher?
- Sim, um.
A seguir, perguntou:
- Não há uma sala para os criados?
- Sim, minha senhora; há uma salinha perto da cozinha.
- Então, mande servir aí o meu motorista.
John, com os jornais na mão, parara, estupefacto, olhando interrogativamente
para Micaela. Seria a seu respeito que dissera aquilo? Dele, que a tinha
levado dias antes junto dos seus?...
Mas sua muda interrogação ficou sem resposta; a milionária parecia nem o ter
visto. Arranjava, ao espelho, a linda cabeleira, sob o feltrozinho, onde a
minúscula cabeça parecia enterrada.
Sem dizer palavra, John foi colocar os jornais sobre a mesa que ela marcara.
Depois, tranquilamente, saiu da sala.
Micaela viu-o sair e foi sentar-se à mesa escolhida.
- Era preciso proceder assim, depois das palavras audaciosas do Grão-Duque -
murmurou -, Agora, cada um de nós voltará ao seu lugar...
Mas não devia estar muito convencida da utilidade do seu gesto, porque ficou
pensativa, com a cabeça entre as mãos, encostada à mesa.
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- Não ousou protestar, mas durante alguns dias vai ficar zangado... Se
soubesse, não teria ido àquela festa; tudo isto me aborrece!
Sentia-se descontente consigo própria.
- Que necessidade tinha eu de o humilhar mais uma vez? É tão orgulhoso que
isto não acaba bem!
Nesse momento, o criado mudava-lhe o prato.
- O meu motorista está a comer?
- Vou ver.
Voltou passados dois minutos, dizendo:
- Nenhum motorista pediu para ser servido, minha senhora.
- Está bem! E reflectiu:
- Foi comer fora; é preferível!... Era de prever! ...
Para distrair o pensamento, olhou para a rua. Os seus olhos sonhadores
seguiram a multidão de trabalhadores que se dirigiam para as suas casas. De
repente, estremeceu. No hotel em frente, no terraço, estavam três pessoas
comendo. Os olhos estupefactos de Micaela reconheceram Molly, o pai e John.
Comiam à mesma mesa e conversavam alegremente. A jovem Americana parecia muito
excitada; seu pai, muito contente, e o motorista, com um sorriso nos lábios,
parecia seguir atentamente a conversa de mr. Burke.
Micaela mudara de cor: a sua amiga e John reunidos!
Sozinha na sua mesa, sentiu-se de repente muito desgraçada. A alegria dos três
fazia sobressair o seu isolamento. Molly e seu pai não tinham hesitado em
convidar John para a sua mesa! Instintivamente, adivinhavam um homem de boa
educação, nesse jovem Russo, e não se preocupavam com a sua actual situação
social. Se Micaela tivesse tido o mesmo gesto de generosidade, John, nesse
momento, estaria sentado na sua frente.
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- Que infâmia! Que teria ela combinado com o meu motorista depois de Marinette
se ir embora?
- Isso é que nós não sabemos... penso, apenas, que se entenderam muito bem,
visto que almoçaram hoje juntos.
Micaela empalideceu. Num momento, encarou todas as consequências do gesto de
Molly, e já não duvidava de que houvesse qualquer acordo entre ela, o pai e o
motorista.
- A sua partida é negócio de alguns dias; o tempo de me prevenir, porque
decerto não quererá deixar-me sem ter quem o substitua.
Esta perspectiva fê-la entristecer. Ellen Howes olhou-a fixamente e, abanando
a cabeça, disse afectuosamente:
- Não devia ter-te dito nada, querida Micaela. Causei-te um desgosto!
- É melhor que esteja prevenida, visto que, cedo ou tarde, sabê-lo-ia.
Mas Ellen continuou o seu anterior raciocínio:
- Têm-se muitas ilusões... mas o homem pende sempre para o lado onde há mais
vantagem, quer seja em negócio, afecto... ou mesmo amor! Antes de tudo, e em
primeiro lugar, o seu interesse!
- Não! - protestou Micaela, generosamente - Não creio que seja o dinheiro que
decida John a deixar-me. Mas é orgulhoso, e se Molly comentou as minhas
reflexões...
Ellen abanou a cabeça.
- Certamente o fez com a intenção de te prejudicar... e é mesquinho, pois
Molly sabia muito bem que não pensas assim.
- Perdão, mas creio pensar tudo quanto disse.
- Diz-se isso, mas quando se sabe que as nossas palavras foram repetidas, tem-
se pena...
- É verdade - confessou a filha do milionário - Não tive intenção de desgostar
John.
E baixava a cabeça, apoquentada pelos resultados que as suas reflexões
poderiam ter.
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XVII
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- Esta noite pode dormir tranquila. Tenho o sono muito leve, desde que servi
no exército branco.
E acrescentou, depois de curta reflexão:
- Se traz alguma coisa de valor, entregue-ma. É melhor não deixar nada no seu
quarto; assim, estará ainda mais sossegada.
- Já pensei nisso - disse ela com simplicidade, olhando para a malinha - Esta
noite confiar-lhe-ei a minha mala, com dinheiro e jóias.
John não respondeu. Um pouco perturbado, pensava nesses dois quartos com
comunicação, nessa porta aberta, nesses objectos de valor que lhe confiavam e,
com a garganta seca, dizia de si para si que, se ela fosse sua mulher, haveria
uma viagem de núpcias, a mesma intimidade, bem como aquela ansiosa reserva que
se apossava dele.
Teria Micaela, de repente, o mesmo pensamento? Um pouco perturbada também,
tirou maquinalmente o chapéu, que deitou para cima da mesa e, sentindo as
pernas a fraquejar, sentou-se numa poltrona.
Para dominar a sua confusão, John tirou da cigarreira de prata um cigarro. Ia
acendê-lo. Mas dando conta da sua incorrecção, exclamou logo:
- Perdão!
Micaela julgou que ele a ia deixar para poder fumar à vontade.
Inconscientemente, desejou retê-lo.
- Dê-me um cigarro e acenda o seu - disse, estendendo-lhe a mão.
John apresentou-lhe a cigarreira.
- Nunca notei que fumasse - observou.
- É muito raro. Hoje sinto-me horrivelmente oprimida e farei tudo para me
aturdir.
John teve de se aproximar para lhe oferecer lume. A mão que lhe estendia com o
fósforo aceso tocou nos dedos de Micaela. Esse contacto perturbante pareceu
dar-lhe ousadia.
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- Interpretou as minhas palavras num sentido tão vantajoso para si que não sei
já o que hei-de dizer,
- Ora! Visto que já está habituada a todas as minhas irregularidades, conceda-
me, esta noite, o direito de estar satisfeito consigo.
- Satisfeito comigo, como?
- Sim; visto que conseguiu expulsar para longe de si esse grande pesadelo que
há horas a aborrecia...
- Mas, eu... sinto-me desgostosa pela partida da minha amiga.
E esforçava-se por se mostrar consternada ao dizer isto.
- Deixe-a navegar para a América - replicou o jovem Russo, com brandura -
Dentro de uma hora, terá o seu flirt com o vizinho de mesa, e tê-la-á
esquecido completamente.
- John! Ellen Howes é a minha melhor amiga - protestou Micaela.
- Está bem. Prefiro vê-la pensar nela com essa boa alegria, do que com o seu
ar triste de há pouco. Vai jantar melhor do que almoçou.
Micaela hesitou, e pediu timidamente.
- Venha jantar comigo, John.
O rapaz olhou-a, subitamente perturbado.
- Seria tentador - disse - Mas não se julgue obrigada a copiar miss Molly.
- Então coma noutra mesa, na sala de jantar...
- Não, mademoiselle. Sabem que viemos juntos, os nossos quartos são lado a
lado; devo evitar-lhe qualquer comentário. Vou jantar num restaurante.
O rosto de Micaela transformou-se.
- Vou aborrecer-me imenso, sozinha, nesta terra desconhecida.
- Farei o possível por não me demorar.
Micaela estremeceu.
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XVIII.
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No momento em que Micaela se sentia feliz por ser amável para com ele,
desejaria que não a repreendesse tão subtilmente. Tinha a impressão de que
John calculava o que dizia como se tivesse medo de que uma palavra atraiçoasse
os seus desejos ou revelasse o seu verdadeiro pensamento.
Ao princípio era muito menos reservado. Lembrava-se da altiva independência
com que ousara por vezes impor-se-lhe. Agora, disfarçava com um sorriso ou
calava-se... Também verificava que estava mais à vontade com as suas amigas.
Desde as tagarelices que tivera com Molly, as amigas de Micaela eram todas
amabilidades para com John. Desculpavam-se, entre elas, das suas
familiaridades, dizendo alegremente que, visto o motorista estar destinado a
ser genro do rei do açúcar, mais valia tratá-lo como camarada.
A velhacaria feminina levava-as a falar assim diante de Micaela, de quem
sentiam muda repulsa.
Ora Micaela observava que John correspondia aos amáveis gracejos das suas
amigas com ar soberanamente superior de um homem que condescende em brincar
com raparigas mal-educadas.
Molly Burke, mais intrépida do que as outras, obtinha às vezes galantes
respostas. Ousava certas liberdades de gestos ou de linguagem para com o
motorista, oferecendo-lhe bombons, um cigarro, ou qualquer bebida;
encarregava-o até de pequenos recadinhos que faziam faiscar de indignação os
olhos de Micaela.
E John, sem parecer comover-se com as audácias equívocas da Americana, nem com
o descontentamento da sua jovem patroa, respondia, gracejando, com tal
liberdade de expressão e familiaridade que parecia impertinência, se pudesse
haver qualquer incorrecção na sua altiva atitude.
Então, Micaela perguntava a si própria porque era John tão cerimonioso com
ela.
Seria apenas por ser a patroa? Recearia perder um bom lugar se fosse menos
reservado? Ou, então, aquela correcção nunca desmentida esconderia a
recordação das palavras cruéis que lhe dissera, uma manhã, no Bosque?
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"- Apesar dos seus fatos bem cortados, ficará sempre para trás e nunca irá a
meu lado."
A suposição de que John estava ofendido era-lhe odiosa e, quando este
pensamento lhe atravessava o cérebro, desejaria arrancar essa recordação do
peito daquele homem.
Afinal, de que se queixava? Não lhe tinha dito ele, nessa manhã, com tanta
amabilidade, que o seu maior desejo era ser-lhe agradável? Que necessidade
tinha o seu subconsciente doutras palavras ou doutras atenções?
Suspirou.
Decididamente, era doença desejar sempre outra coisa, nunca estar contente com
a sorte, ambicionar felicidades desconhecidas, visões intangíveis, com as
quais era proibido à filha de Jourdan-Ferrières sonhar.
XIX.
Não viera Micaela espontaneamente unir-se a ele numa caridade que só lhe dizia
respeito?
- Bem! Já estamos prevenidos: lá dentro deve ser uma verdadeira desolação.
- Quer que eu entre primeiro para a prevenir da sua presença? - ofereceu-se
Micaela.
- Penso que seria melhor eu ir à frente para lhe poupar a vista de certas
misérias.
- Não - decidiu a rapariga - Não me metem medo e criam-me deveres. Mas é
preciso evitar a essa mulher uma comoção muito forte.
- Então, entre primeiro. A sua bondade amortecerá o choque.
Micaela dirigiu-se para a porta. Quando lá chegou, bateu, e como lhe
respondessem de dentro, abriu o fecho e entrou.
O aposento estava quase desguarnecido de móveis, e os que lá existiam não
tinham o menor valor, mas reinava ali o mais escrupuloso asseio, e uma jarra
com flores viçosas estava colocada em cima do fogão, em frente de uma imagem
da Virgem.
Perto de uma mesa coberta com um oleado encontrava-se sentada uma mulher de
cabelo grisalho.
Vendo a recém-chegada, levantou-se:
- O que deseja?
Micaela, que esperava ver uma aldeã, ficou estupefacta ouvindo a voz
harmoniosa e distinta com que a interpelavam. A figura feminina pareceu-lhe,
na penumbra, muito direita. Apesar do seu modesto vestido preto, o porte e
compostura revelavam uma mulher educada.
Um pouco desorientada, porque receava não ser aquela pessoa a quem procurava,
e não sabendo exactamente o nome da ama de John, respondeu:
- Perdoe-me entrar assim em sua casa... É Russa, minha senhora?
- Sou.
- E chama-se Natália?
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Trocaram algumas frases em russo, mas John, vendo Micaela imóvel no meio da
casa, disse:
- Deixa-me que te apresente a mademoiselle Jourdan-Ferrières, a quem devo a
grande felicidade de poder ver-te hoje.
- Já travámos conhecimento - atalhou Micaela, estendendo a mão à ama, que a
apertou com uma graça natural.
E, voltando-se para John, continuou, com malicioso sorriso:
- Imagine que esta senhora conhecia-me sem nunca me ter visto!
Como ele a interrogasse com o olhar, acrescentou:
- Sim, disse o meu nome sem hesitação, e como se lhe fosse familiar.
John corou.
- Talvez eu lhe tivesse feito, a seu respeito, uma descrição muito exacta -
tentou explicar.
- Sim - confirmou Micaela, rindo - Um retrato de adulador.
- Natália Petrovna é uma indiscreta; mas que poderia ter-lhe dito que mereça
tão grave censura?
E ria, apesar de um pouco inquieto, ao ver o sorriso das duas mulheres.
Mas Micaela continuava a olhar para ele, e nos seus olhos só se via
indulgência e alegria.
- Vamos comer contigo, Natália - disse, por fim, John, como para se furtar à
comoção daquele insistente olhar - Trouxemos provisões e vou buscá-las ao
carro.
- Vou consigo - decidiu Micaela, que sentia necessidade de movimento.
- E eu vou preparar a mesa - acrescentou a velha ama.
Mas nem sequer se moveu. Com as mãos juntas, num gesto de admiração religiosa,
seguiu-os com o olhar.
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- Como são ambos bonitos! - murmurou -Deus da Rússia, ouve os votos secretos
do meu Sacha!
Pouco tempo depois voltaram carregados de mantimentos.
John fizera bem as coisas. Não esquecera os hors-d'oeuvre variados tão
queridos ao paladar russo, a caixa de caviar, o presunto e o salmão fumados,
as carnes frias, trutas, pastelaria, frutas e vinhos generosos, que se bebem
sem água nas margens do Neva.
Micaela mandara arranjar um enorme empadão de coelho e um frango assado, que
vinham num cesto, entre rosas.
Quando John abriu o cesto comoveu-se com a delicada intenção de Micaela.
Não tardou que, sobre a toalha muito branca, surgissem as requintadas
iguarias.
A velha Russa, alegre com o inesperado banquete, exclamou, radiante:
- Não podemos comer tudo isso, meus filhos!
- A fartura nunca é de mais - respondeu Micaela, alegremente.
Natália dirigiu-se para a mesa, com o rosto sonhador, tocando em todas as
iguarias com infantil voluptuosidade.
Pegando nas rosas, apertou-as contra o peito.
- Há dez anos que não vejo em minha casa tal festim - murmurou, com voz
apagada - Há dez anos que não como assim. O passado ressuscita!
Mas John dirigiu-se-lhe e poisou-lhe as mãos nos ombros com comovedora
ternura.
- Então, Natália Petrovna, alegra-te com o presente que nos reuniu. Prometo-te
que faremos mais vezes estas refeições russas, de que tanto gostas.
E, abraçando-a, bateu-lhe nas faces suavemente, acrescentando:
- Então, minha niania, não reparas como hoje sou feliz?
- Tens razão, Alexandre Yourievitch. Sou uma rabujenta terrível. Assim,
apoquento-me e apoquento os outros.
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- Copiei estes bordados de um vestido antigo da corte, que uma senhora comprou
há tempos, vindo da Rússia. Também tenho que bordar a copa de um chapéu que
irá bem com o vestido.
Enquanto Micaela examinava de perto o trabalho, John fazia, em russo, algumas
perguntas à ama, que lhe respondeu afirmativamente. Então, voltando-se para
Micaela, pediu respeitosamente:
- Disse-me, ontem, que nunca lhe manifestei o menor desejo... Posso hoje usar
desse privilégio que tão generosamente me autorizou?
- Diga - respondeu a rapariga, com simplicidade.
- Pois bem! Há aqui um trajo da corte russa; quer vesti-lo, permitindo-me que
a admire sob esse aspecto?
- Mas isso tem muita graça! Uma rapariga nunca se nega a experimentar
vestidos.
Enquanto Micaela ia com Natália para um aposento próximo, John foi buscar à
algibeira do casaco, pendurado num cabide, pequena máquina fotográfica, que
logo preparou.
Pairou-lhe nos lábios um sorriso. Já por diferentes vezes quisera tirar um
retrato a Micaela. Mas não ousara pedir-lhe licença. Naquela altura, a ocasião
era favorável. A própria Micaela desejaria, decerto, conservar a fotografia do
seu curioso trajo. Esperando a volta das duas mulheres, acendera um cigarro e,
com o cotovelo encostado à mesa e as pernas cruzadas, seguia indolentemente as
nuvens de fumo azulado, quando a porta, ao fundo, se abriu por fim.
Natália Petrovna apareceu muito alegre.
- Sua Alteza, a czarina Micaela! - anunciou pomposamente.
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E afastou-se para deixar passar a milionária, que entrou risonha, mas um pouco
intimidada no seu amplo vestido de brocado doirado, cinto vermelho,
deslumbrante de pedrarias, e o pesado kokochnik (boné bordado de pérolas e
pedras, usado pelas czarinas e damas da corte), sob o qual o pequenino rosto
moreno sobressaía, idealmente belo.
John levantou-se de um salto, maravilhado, diante da radiosa visão. Deliciosa
comoção lhe encheu a alma e, com a respiração opressa, ficou de pé, extasiado,
cheio de admiração.
Esquecendo a sua habitual impassibilidade, envolveu-a num olhar apaixonado.
- Como é bonita! - disse, inconscientemente.
A sua voz era baixa, rouca, com entoações de mal contido ardor. Micaela, de
repente perturbada pelo olhar eloquente do Russo, baixou a cabeça e tornou-se
vermelha como uma papoila.
E começou a alisar as pesadas pregas do vestido sumptuoso. Na realidade, não
ousava levantar os olhos com medo de encontrar o olhar demasiadamente
expressivo de Sacha.
Algumas palavras pronunciadas em russo pela perplexa Natália chamaram o rapaz
à realidade. Olhou para a ama, depois para Micaela e, um pouco corado, dominou
os nervos e expulsou do rosto os sinais exteriores das suas emoções;
readquiriu a impassibilidade.
- Meu Deus! Como está encantadora! - disse por fim, num tom absolutamente
correcto - Quando me apareceu, há pouco, não vi mais diante de mim as paredes
desta casa, e tive a impressão de voltar doze anos atrás!
A voz grave dissipava a perturbação feminina. Micaela levantou a cabeça, olhou
para o motorista, admirada de o encontrar tão cortês, e perguntou a si mesma
se não sonhara havia pouco.
- Este vestido é magnífico - afirmou ela - As mulheres russas têm sorte em se
vestir tão brilhantemente.
- As parisienses nada têm a invejar a ninguém; são bonitas com todos os
trajos. Quer permitir-me que a imortalize sob esse aspecto? - perguntou John,
mostrando a máquina fotográfica.
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- Este fato não ficará tão bem a qualquer mulher que não seja como
mademoiselle Micaela - notou a ama, desejando adoçar as palavras de John.
Mas ninguém lhe respondeu.
John juntou os quatro chassis utilizados e entregou-os, depois de embrulhados,
a Micaela.
- Aqui tem, segundo o seu desejo.
Micaela pegou-lhes e, guardando-os na malinha, voltou-se para Natália e disse:
- Enviar-lhe-ei duas provas de cada pose. É bastante?
- Sim, mademoiselle, e muito lhe agradeço.
Um sorriso vitorioso perpassou pelos lábios de John. Naturalmente, das duas
provas anunciadas, uma era-lhe destinada, mas absteve-se de formular o seu
pensamento, e quando Micaela, depois de uns minutos, olhou para ele, viu-o
gravemente entretido a guardar a máquina fotográfica no estojo.
Nesse momento, abriu-se com ruído a porta, e uma mulher muito velha apareceu
no limiar.
- Deus os salve, e sejam abençoados, por saciarem hoje a minha fome.
Este tom declamatório fê-los voltar ,a cabeça para aquela que entrava. Era uma
velhinha, curvada e de pele apergaminhada pela idade. O fato esfarrapado, o
calçado esburacado, mal penteada, desdentada e suja, tal era o ser miserável
que acabava de entrar.
Micaela, um pouco assustada, recuara, pensando que laços podiam ligar Natália
Petrovna à recém-chegada.
Não teve tempo de responder à pergunta. A velha notara ainda a mesa posta e um
riso diabólico lhe saiu da horrível boca:
- Ah! Ah! Banqueteiam-se, aqui, enquanto os nossos irmãos morrem de fome!
E, em russo, numa linguagem dura, que Micaela não podia compreender, começou a
invectivar Natália Petrovna.
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John repetiu lentamente o nome famoso em certos meios, que não lhe era
desconhecido. De repente, lembrou-se:
- Kátia Gretzova! A feiticeira vermelha!
- Ela mesma.
E, enquanto a velha continuava na mesma posição humilde, explicou a Micaela:
- A feiticeira vermelha foi bem conhecida na Corte da Rússia! Esta mulher
altaica, isto é, da Rússia asiática, apareceu um dia em Tsarskouye sem que se
soubesse donde vinha, nem quem a introduzira no palácio. Por diferentes vezes
predisse ao nosso Czar as desgraças que haviam de cair sobre ele e sobre a
Rússia. Citam--se estranhas profecias insuspeitas, que ninguém podia prever, e
que se realizaram. Agora está muito velha, e não a teria reconhecido, apesar
do seu perfil correcto, dos seus olhos em amêndoa e da sua cor esverdeada.
- Ainda eras muito pequeno, Alexandre Yourievitch, quando a viste em Tsarskoye
- observou a ama.
- Mas de que vive? - perguntou Micaela, cuja bondade despertava perante aquele
vulto miserável caído por terra.
- Anda pelas casas russas - respondeu Natália - e cada um favorece-a conforme
pode. Ninguém sabe dizer por que caminho veio ter a França, nem que mão a guia
para os russos exilados! Chega quando não se espera e parte sem prevenir,
livre, selvagem, independente, até no exílio e na miséria.
- Interrogue-a! - pediu Micaela - Talvez nos prediga qualquer coisa
interessante.
John olhou fixamente a sua jovem patroa.
- Devemos recear o pior quando se interroga o futuro... Mas, se não tem
medo...
- Gostava tanto de saber!
O russo indicou-lhe uma cadeira. E, sentando-se também, disse à ama que
preparasse a refeição da velha.
Depois, dirigindo-se a esta, continuou:
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- Levanta-te, Kátia Gretzova, e sê bem-vinda à nossa casa.
A mulher descobriu o rosto e, humildemente, se bem que a voz fosse um pouco
altiva, disse:
- Que Deus te proteja! Sou a tua humilde serva!
- Em França, os russos são todos irmãos - retorquiu, com doçura, o motorista
-, Somos todos iguais na desgraça e no exílio. Levanta-te, Kátia Gretzova.
Ele próprio a ajudou a pôr-se de pé, e, como a sua mão tocasse na de Kátia,
esta agarrou-a e levou-a respeitosamente aos lábios.
- Desejo-te sorte e prosperidade. Que o céu registe o meu voto e te dê a
felicidade a que tens direito.
- Obrigado, Kátia Gretzova. Mas tu, que sabes tanto, não tens nada a dizer-me
sobre o negro futuro, tão fechado para mim?
- Vi-te na cara a raça, mas não o teu nome. Dize como te chamas, para eu ver
donde saiu a águia.
- Sou Alexandre Isborsky - respondeu -, não me fales no passado. Conheço-o! O
futuro é que me inquieta.
- Tu és Alexandre Isborsky?
- Sou.
- Conheci teu pai; que Deus tenha a sua alma. Era um homem generoso, mas vivo
e turbulento! Oxalá te pareças com ele, mas com moderação... Vamos, dá-me a
tua mão para eu ver o que a sorte lá escreveu.
John estendeu-lhe a mão esquerda, bem aberta, e a velha inclinou-se com
atenção, seguindo com o dedo o traço das linhas marcadas.
Depois ergueu-se, movendo a cabeça:
- Há na tua vida uma mulher ocupando o primeiro lugar... Por ela sofrerás
muito... muito... Fugirás para longe com a alma despedaçada... Mas o teu astro
brilha com uma luz singular, terás felicidade e riqueza e os teus filhos
preencherão todos os teus, desejos de pai... Tenho dito.
Um pormenor inquietou o jovem Russo.
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- Falaste numa mulher que me fará sofrer. Será também dela que me virá a
felicidade?
- Há só uma mulher na tua vida... Mas que importa que seja ela ou outra, visto
que serás feliz... Este sinal é certo e nunca engana!
E com o dedo indicava na mão duas linhas que se cruzavam nitidamente.
John ficou um segundo pensativo, mas, parecendo repelir qualquer pensamento
importuno, exclamou:
- Obrigado pelas tuas palavras, Kátia Gretzova. Reconfortaram-me...
- Agora eu! - disse Micaela, que estava impaciente.
E, por sua vez, estendeu a mão à velha.
- A andorinha tem sede do desconhecido - murmurou a vidente, com ênfase -
Julgas, Alexandre, que as suas asas possam suportar o voo?
- Mademoiselle é muito pura para ser atingida pelo mal. Tranquiliza-a, Kátia,
sem a desgostares...
- Não - atalhou Micaela, olhando para John com indignação - Quero conhecer a
verdade sem que me escondam uma parcela! Diga-me tudo, tudo!
A velha riu, com indulgência.
- Sim, minha pomba, sim, Kátia vai dizer tudo. De resto, uma alma forte pode
esconjurar a sorte quando está prevenida! E a mademoiselle é uma valente
francesinha, de olhos de diamante.
Inclinou-se curiosamente sobre a mão trémula de Micaela. Primeiro,
sobressaltou-se, e em voz baixa, em russo, murmurou qualquer coisa.
John, na mesma língua, respondeu bruscamente, como se desse uma ordem.
- Que diz ela? - perguntou Micaela, a quem estes à-partes inquietavam.
- Silêncio! - recomendou John, acrescentando logo em seguida - Dize tudo, mas
fala em francês.
A feiticeira vermelha conservou-se muito tempo olhando para a branca mãozinha.
Por fim, levantou a cabeça:
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- O homem não sabe contentar-se com uma esperança: desejaria uma certeza -
respondeu John.
E, benevolamente continuou:
- Acaba de comer, Kátia Gretzova. As tuas palavras fizeram-me bem, mesmo que
as tivesses dito para me comprazer. Não me esqueço do que predisseste para a
nossa querida Rússia e que de facto aconteceu... Mas quem teria ousado
acreditar, então, que a verdade saía dos teus lábios, tão cruelmente
proféticos?...
- Apesar da tua pouca idade, Alexandre Yourievitch, a tua voz tem modulações
de pessoa ajuizada... Sê também tão paciente como és belo e corajoso! O êxito
no amor coroará todos os teus esforços... Tenho dito!
A mulher levantou-se, e, com o braço estendido para o Russo, pareceu abençoá-
lo três vezes.
John inclinou, grave e respeitosamente, a cabeça, como se o gesto da
feiticeira lhe tivesse conferido uma distinção.
- Obrigado - murmurou apenas.
E levantou-se para acompanhar Micaela, que apareceu de chapéu e luvas, pronta
para se retirar.
XXI.
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E Micaela supôs que na Rússia os homens deviam ser, para as mulheres, uma
espécie de semideuses a quem serviam devotadamente...
Depois, lembrou-se da refeição: aquela mesa carregada de vitualhas e a alegria
pueril de Natália. A atitude de John, nesse momento, veio-lhe à ideia. Ele,
tão grave, tão sério habitualmente, de quem um sorriso apenas esboçado era o
único sinal aparente de alegria, parecia comovido, transfigurado perante a
satisfação da ama... E pareceu a Micaela que a alegria do seu motorista era
tão ingénua como a dela... e que ambos eram um quase nada ridículos em se
alegrarem ao ver uma mesa superfluamente servida.
A jovem milionária nunca conhecera a fome nem as restrições. Por isso, não
percebia o que representava aquela ementa delicada e abundante para os pobres
exilados privados de todos os bens e hábitos.
Uma boa mesa, iguarias abundantes, é todo o passado que ressurge. A vida
familiar, os jantares de festa, as recepções, os rostos queridos, tudo vem à
memória em volta da mesa... No trabalho quotidiano, nos passeios e conversas
pode esquecer-se o passado... É à mesa que tudo se rememora: os ausentes, os
lugares vazios, o bem estar desaparecido.
Sem poder adormecer, Micaela continuava a desenrolar a película das sensações
registadas. Reviu a entrada da feiticeira vermelha, a atitude provocante e
rabugenta; a maneira como aquela horrível velha a encarara e a intervenção de
John. Porque usara ele, depois, um tom autoritário? Estranha profetisa do
Destino!
Anunciara, a John, lágrimas, uma viagem, e depois felicidade e riqueza.
Sem querer, Micaela pensou em Molly. Figurou-se-lhe John fugindo de França,
por desgosto de amor... e Molly Burke consolando-o, tornando-o rico...
Era-lhe desagradável verificar que os vaticínios da velha se adaptavam
absolutamente aos desejos de Molly. Conseguiria ela, por fim, roubar-lhe o
motorista?
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- É uma excelente ideia! Onde vai fazer-se a assinatura?
- No cartório do tabelião.
- Onde é?
- Em Montparnasse.
- A que horas?
- Esta tarde.
- Donde me está a telefonar?
- De um Café na Avenida Wagram.
- Bem... oiça... Desejo ler a escritura antes da assinatura.
- Tem razão, mademoiselle.
- Vou consigo. Venha buscar-me...
- A que sítio? Quer que a espere num carro?
- Não, nada de carros. Oiça: vá almoçar e às duas horas esteja na Etoile...
junto do Soldado Desconhecido ...
- Entendido... Até logo, mademoiselle.
- Até logo.
Desligou o aparelho. Estava radiante.
- É um rapaz admirável! Que boa ideia ter pensado em João Bernier e
telefonar-me.
E acrescentou logo, consigo mesma, com uma sinceridade evidente.
- Devo certificar-me de que esta doação não deixa nada a desejar... porque,
depois de assinadas as escrituras, já seria tarde. Na verdade, esta saída com
John é um dever a que não podia eximir-me!
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XXII.
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Pensou que não podia fazê-lo sentar ao lado do motorista. E, como queria
evitar qualquer ocasião para familiaridades, a ideia de um carro e da sua
intimidade devia ser posta de parte.
- Talvez o metro - decidiu - Vá à frente e compre os bilhetes. Segui-lo-ei.
- Quer permitir-me que a ajude a atravessar a rua? Há tantos carros...
- Não sou uma criança a quem seja preciso guiar. Sei andar sozinha... Vá
adiante.
O tom em que falara não admitia réplica, e John afastou-se na direcção da
escada do metro, sem voltar a cabeça para ver se ela o seguia.
A essa hora, a multidão era enorme e as carruagens iam cheias, mesmo as de
primeira classe. Tiveram de viajar de pé e, como a afluência era grande,
Micaela teve de se encostar a ele para se equilibrar.
E, nessa multidão anónima, conservaram-se bastante tempo juntos um do outro.
Apesar de Micaela se esforçar por não ficarem face a face, o seu peito
encostava-se ao de John, sentindo-lhe a respiração.
A rapariga estava profundamente perturbada por este contacto que não podia
evitar. Parecia-lhe que o sangue lhe corria mais rápido nas veias e que todo o
seu ser desfalecia. Surpreendeu, várias vezes, os olhos de John fixos nos seus
e, quando os olhares se encontravam, invadia-a um delicioso tremor que lhe
distendia os nervos, abrandando-lhe a vontade de parecer indiferente.
Quando voltaram à superfície da terra, em frente da estação de Montparnasse,
Micaela estava muito corada e o seu companheiro bastante pálido.
O ar puro fez readquirir, imediatamente, o sangue-frio à filha de Jourdan-
Ferrières.
- Felizmente, sirvo-me raras vezes do metro. Viaja-se ali muito mal.
- Há sempre muita gente.
- Sim, e faz um calor sufocante! Agora estou coradíssima.
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John parou, interdito. Ela viu, sem olhar, a forma como o rapaz a encarou.
Tornando-se subitamente glacial, indicou-lhe o extremo da rua.
- Vá à frente. Quando ali chegar dir-lhe-ei o caminho a seguir. É a cinquenta
metros da próxima esquina.
Micaela encolheu os ombros, descontente consigo, e com ele.
- A sua susceptibilidade é ridícula - declarou - Disse que o acompanharia a
casa desse maldito tabelião, e iremos juntos. O que não quero é andar consigo
pelas ruas mais concorridas.
- Não vou lá para me divertir, assim como não foi por minha causa que há
alguns meses visitei a rua das Amendoeiras.
A brutal resposta vexou Micaela, que não replicou.
"Noutro tempo não me teria falado assim - pensou amargamente - A culpa é
minha, por tratá-lo com tanta condescendência; agora, julga que tudo lhe é
permitido".
E desesperou-se com ele, por ter estragado, pela sua deplorável
susceptibilidade, uma tarde que esperava tão bela.
Não se demoraram muito no cartório do tabelião. John apresentou-a como sendo a
secretária do dador. Este, não querendo ser conhecido, mandara-a para assistir
à assinatura do contrato, assegurando-se assim de que todos os seus desejos
estavam mencionados.
A deferência um pouco respeitosa que John mostrava e a reserva altiva de
Micaela contribuíram para tornar verosímil a explicação do Russo, quanto à
presença de Micaela na assinatura do contrato e às informações que exigia.
Meia hora depois estavam na rua Gaite.
- Sinto-me feliz por ver este caso liquidado - disse John - aconteça o que
acontecer, quando eu partir, ficará tranquila a respeito de João Berrier.
A menor alusão à possível partida do motorista entristecia Micaela.
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- Não sei! Não me importa o sítio, mas que seja um sítio isolado.
Olhava de revés, John viu-a tão pálida e rígida que o seu orgulho fundiu-se
como um bloco de neve exposto ao lume.
Inclinou-se para ela e disse-lhe com suavidade:
- Quer dar-me a honra de aceitar uma chávena de chá, num estabelecimento
russo, frequentado exclusivamente por estudantes do meu país? É um lugar
tranquilo que nenhum dos seus conhecimentos pensará frequentar.
- Não! - exclamou Micaela, sem mesmo reflectir, e com um desejo orgulhoso de o
humilhar pela sua recusa - chame um carro e dê a direcção do palácio. Volto
para casa.
- Como quiser.
Dois minutos depois instalava-se num táxi.
- Até amanhã de manhã, John.
O rapaz inclinou-se para a mãozinha que conservava entre as suas e, como
estivesse enluvada, voltou-a e ousou beijar a pele rosada que a abertura da
luva deixara à mostra.
Micaela empalideceu ao contacto daqueles lábios ardentes. E, por uma força
superior à sua vontade, os seus dedos prenderam os de John.
- Onde é essa casa de chá, russa, de que me falou? - disse com voz trémula.
- Em pleno Bairro Latino, a dois passos da Sorbonne.
- Aceito o convite. Vamos lá.
- Obrigado - disse ele, premindo com força a encantadora mãozinha.
Deu a direcção ao motorista e hesitou, esperando que Micaela o convidasse a
sentar-se a seu lado.
Como nada dissesse, decidiu-se a subir para o carro, mas sentou-se ao lado do
motorista. Ela ficou-lhe reconhecida por aquela reserva.
"Como ele sabe livrar-se de dificuldades, quando quer!" - pensou Micaela, com
reconhecimento.
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A verdade devia tê-la feito dizer que o jovem Russo se livrara sempre
correctamente de embaraços. Havia dez meses que estava ao seu serviço e nunca
tivera que censurar-lhe a menor indelicadeza nem a mais leve inconsequência.
Mas via mal as coisas e, como era por causa dele que conhecia essas lutas de
orgulho e sobressaltos de mau humor, tudo lhe atribuía.
"É tão susceptível e orgulhoso - pensava muitas vezes - que sou obrigada,
continuamente, a fazer-lhe novas concessões".
XXIII.
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Falavam numa linguagem um pouco rude, que ela não compreendia, mas que o
companheiro lhe traduzia, a seu pedido. Indicava-lhe a origem dos fregueses
pelos seus traços fisionómicos.
- Aqueles são cossacos do Ural, de cor ardente... onde as russazinhas usam
grossas tranças loiras... Os outros são caucasianos; mais para lá, autênticos
ciganos, nervosos, de rosto puro e olhar nostálgico...
Ia continuar a mencioná-los, mas Micaela interrompeu-o:
- A que raça pertence, John?
- Pura raça eslava.
- E onde habitava na Rússia?
- Quando meus pais estavam em São Petersburgo, morávamos na rua Znamensk (rua
aristocrática de São Petersburgo), mas, depois de perder meu pai, minha mãe
preferiu viver no campo.
- Em que se ocupava seu pai?
- Era oficial.
- E o senhor?
- Eu estava ainda no Pajesky Cospus, escola de pajens, quando estalou a
guerra.
- Isto é... estudante?
- Sim, se o prefere.
Micaela começou a rir.
- Se o prefiro? É tão lacónico nas suas respostas, quando se trata de si, que
sou obrigada a adivinhar metade. Ora, suponho que Pajesky Cospus é uma espécie
de universidade.
Coube a vez de John de sorrir.
- Não, trata-se de uma escola militar.
- Então, se a revolução não demolisse o Império dos czares, seria oficial?
- É provável.
- Mas o que tem feito nestes onze anos?
- Primeiro, servi o exército branco, com Kornilov, e, depois, com Wrangel.
Conheci o exército voluntário de Galípoli, a sua desmoralizadora deslocação e
o exílio, através da Sérvia, da Bulgária e Argélia, onde pouco me demorei,
para vir por fim fixar-me em Paris, há seis anos.
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John olhou-a verdadeiramente surpreendido, e, de repente, julgando
compreender, lembrou-se:
- Chamaram-me Alexandre Yourievitch.
- Exactamente.
- Esse nome quer dizer Alexandre, filho de Jorge. É hábito, na Rússia,
lembrar sempre o nome próprio do pai.
Micaela fixou-o para ver se ele não a enganava. Sem poder definir porquê,
suspeitava, muito intimamente, e tinha o pressentimento de que John iludira
bem todas as suas perguntas. A sua verdadeira personalidade continuava
incógnita.
Fitou-o, desejosa de conhecer a verdade que ele lhe não confessara por
completo.
Mas o olhar que se apoiou no seu, para a compenetrar da sua boa fé, foi de uma
luz tão viva que lhe fez baixar as pálpebras.
Que fluido magnético brotava das pupilas daquele homem, para lhe fazer sentir
tal estremecimento?
Sob a chama viva que ainda sentia pesar sobre si, tentou interessar-se pelos
outros clientes dispersos pelas mesas. Mas não distinguiu nada... nada, se não
dois grandes olhos azuis que a penetravam para lhe aniquilar a vontade.
De repente, sentiu que ele lhe pegava na mão e a cobria de loucos beijos.
- Diga-me, mademoiselle Micaela, não diminuirá a sua estima, agora que me
conhece melhor?
A milionária fixou comovidamente aquela cabeça altiva, de cabelos de um belo
loiro cendrado, inclinada sobre a sua mão, que continuava a beijar
ardentemente. Mas reagiu contra esta comoção que a fazia tremer.
A filha de Jourdan-Ferrières não podia perturbar-se ao contacto da ternura de
um motorista!
E, altiva, apesar da sua comoção, disse com um riso escarninho, retirando
negligentemente a mão:
- Porque lhe havia de querer mal? Ouvi as suas confidências, como teria lido
um livro curioso, que diverte um momento, e que se deita para o canto depois
de lido... Já esqueci todas as tolices que há uma hora me conta!
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XXIV.
Depois destes dois dias, vividos tão intimamente, John teve, de novo,
que suportar a hostilidade de Micaela.
Segundo o seu costume, cada vez que se mostrava muito familiar com ele,
humilhava-o a seguir com o seu orgulhoso desdém. Falava secamente, apenas para
lhe dar ordens; evitava encará-lo, afectando até não o ver quando o seu
serviço de motorista o obrigava a estar em contacto com ela.
Um dia, o jovem Russo pensou:
"O caso de João Bernier está terminado e ela já não precisa de mim".
Esta suposição pareceu-lhe odiosa e incomodou-o mais do que desejaria
confessar.
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Algumas semanas antes, tomando talvez os seus desejos pela realidade, deixara-
se levar por esperanças loucas e possíveis ilusões. O sorriso de Micaela era
tão radiante, os seus olhos fixavam-se tão suavemente nos seus, as mãos tão
trémulas sob os seus lábios, que, esquecendo a sua modesta situação, julgou
que aquele amor insensato achara eco no coração da rapariga. Mas, de repente,
a filha de Jourdan-Ferrières entrincheirava-se numa posição distante e
glacial, imprevisível depois dos dias de tão suave intimidade que os
aproximara.
Se estivesse menos apaixonado, teria percebido tudo quanto havia de fictício
no desdém exagerado de Micaela, e a experiência de homem afortunado ter-lhe-ia
feito adivinhar afectação nesse súbito orgulho.
Se ele lhe fosse realmente indiferente, não teria necessidade de se envolver
numa tão orgulhosa reserva; a própria exageração da atitude ter-lhe-ia aberto
os olhos. Mas John, que, havia meses, concentrava ferozmente em si próprio os
seus sentimentos, não conseguia dominar a paixão que o arrastara para Micaela.
Conservava-se na atitude de homem bem educado, mas era irresistivelmente
levado a registar os menores gestos e acções de Micaela, e tão bem que a menor
inflexão da sua voz fazia-o passar imediatamente da alegria à tristeza,
segundo a influência que sentia.
Nessa tarde, esperava bastante tempo à porta de uma casa de bela aparência,
onde, até então, nunca a levara. Os seus pensamentos não eram muito risonhos,
pois o rostozinho de Micaela obstinava-se em permanecer impenetrável ao seu
olhar. Adivinha-se, pois, a estupefacção que sentiu, vendo a jovem patroa sair
daquela casa na companhia de um rapaz moreno, de uns vinte e seis a vinte e
sete anos.
John ficou, por momentos, assombrado, perante essa aparição inesperada.
Passaram perto dele, sem sequer o notar, e começaram a conversar, andando pelo
passeio, até uns cem metros de distância.
Micaela parecia dirigir vivas censuras ao companheiro, ao passo que este
procurava defender-se com indignação.
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John, muito pálido, olhava para o par. Num relance, viu que o rapaz era
simpático. Alto, vestido com esmero, boa figura, era o tipo que agrada às
mulheres, e o jovem Russo, exagerando os encantos do desconhecido, não
duvidava de que Micaela gostasse dele.
Assaltou-o uma grande tristeza. Agora estava explicada a sua atitude hostil
naqueles últimos dias. Supusera tudo, menos um rival feliz. Não lhe veio à
ideia que pudesse enganar-se. O seu instintivo ciúme descobriu imediatamente
provas convincentes...
Por duas vezes, o rapaz tentou dar o braço a Micaela, e por duas vezes, ela,
certamente descontente, o repeliu.
Mas de que argumentos se serviu ele? Que palavras empregaria para se fazer
perdoar? John só podia fazer suposições.
À terceira tentativa do rapaz moreno, Micaela não fugiu e continuou o seu
passeio de braço dado, agora completamente de acordo e unidos.
Este espectáculo foi tão doloroso para John que se levantou com o desejo de
fugir, de escapar ao sarcasmo dessa intimidade que escarnecia da sua aflição
de apaixonado desprezado.
- Bom dia, John! Muito me alegra ver você!
A voz acariciadora de Molly Burke fê-lo despertar.
- Bom dia, miss Molly - disse, numa voz desconhecida, olhando-a sem a ver, tão
distante estava o seu pensamento.
- John! Que tem? Você estar pálido, trágico!
O rapaz passou a mão pela fronte, tentando acalmar e não dar a ninguém o
espectáculo da sua dor.
- Este calor faz-me mal - conseguiu articular num tom mais humano - Sou do
Norte e esta temperatura desagrada-me.
- Ser preciso reagir... aqui fazer muito sol; Micaela devia ter mandado parar
à sombra. Olhe, querer uma compensação? Enquanto ela falar com o namorado,
você vai oferecer a mim qualquer bebida gelada.
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Este pedido, que o obrigava a deixar o seu banco de motorista, era uma bênção.
Precisava de agir, afastar-se, para não suportar mais a obsessão daquele par
tão bem acasalado.
Levantou-se, desabotoou o casaco de motorista, para o tirar e seguir Molly.
Mas Micaela, que até ali parecera nem reparar em John, notou logo a presença
da Americana junto dele. E dirigindo-se-lhe imediatamente, exclamou:
- Então, Molly, que temos mais?
- Não, querida! Continuar o seu flirt e deixar a mim.
- Molly, peço-lhe que deixe o meu motorista em paz.
- Querida, como é ridícula em protestar tanto! Você ter um namorado... na
verdade, delicioso! E você querer impedir John de oferecer a mim um gelado, de
que tanto gosto... Eu não beber amor no passeio!
- Julgo que divaga, Molly - disse Micaela, que se voltou para John.
E, com um olhar duro, perguntou-lhe:
- Que significa isto? Porque tira o casaco?
Mas Molly interveio generosamente, impedindo John de responder.
- Eu dizer a ele para vir e ele vem, querida Micaela. Vá conversar
apaixonadamente com Henrique e deixar a mim com John. Ser firme nas ideias e
não mudar de um dia para o outro, eu!
Molly tinha uma tal maneira de pronunciar este eu, que Micaela estremecia
sempre que lho ouvia.
Neste momento apareceram mais três raparigas que se juntaram ao grupo.
- Que se passa? - informaram-se - Porque está Micaela tão irritada?
- Ser sempre a mesma coisa - respondeu Molly - Ela proibir John de ir beber
com mim!
- Então a questão continua?
- Yes! Sempre! Eu querer... Ela não querer! Isto poder durar muito tempo e
para quem tem sede não ser muito divertido.
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Micaela sorriu.
- Seja gentil com elas, Henrique. Estão sedentas. Não sei quantas chávenas de
chá e limonadas tomarão.
- Estar-se sempre melhor num bar, com um homem - cantarolou Molly.
- Tenha juízo, Henrique - recomendou Micaela ao rapaz, que se conservava junto
do carro.
- Prometo-lhe...
Um grande golpe de volante, dado por John, fez saltar o carro. Micaela,
violentamente projectada para trás, não pôde ouvir as últimas palavras de
Henrique Rousselin.
"Sua excelência está de mau humor - pensou ela, bastante descontente -
Escangalhei o seu flirt com Molly.
O carro caminhava num andamento desusado, que muito a admirava, tanto mais que
nas encruzilhadas havia polícia para regular o trânsito, e John era obrigado a
travar, de repente, para poder entrar novamente na fila.
A jovem milionária, cansada de ser assim sacudida, tomou o partido de ordenar
a John que moderasse o andamento. Como ele se não voltasse, para indicar que
compreendera a ordem, acrescentou em tom ameaçador:
- Previno-o, John, de que se continua a guiar assim, tão nervosamente, deixo-o
seguir só e tomo um táxi.
Julgava esta ameaça peremptória, mas o Russo contentou-se em encolher os
ombros e, tomando pelas ruas menos frequentadas, sem pensar em prolongar o
caminho, continuou na mesma desordenada corrida até à Avenida Marceau. Quando
Micaela desceu, no pátio do palácio, imediatamente o interpelou:
- Faz favor de me dizer porque guiou esta tarde tão mal? Estou moidíssima com
o seu excêntrico passeio.
Poderia ter continuado a falar por muito tempo que ele nem sequer a ouvia.
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Mas, olhando para aquele rosto martirizado, teve a intuição da verdade. Então,
começando a rir, colocou a mãozinha sobre a dele, e disse meigamente:
- Não acha que Molly é velhaca? Quis ver se me importava que Henrique Rosselin
a acompanhasse. Creio que, como dizem os garotos, se estendeu ao comprido. O
pior é para Henrique, se perder o seu tempo com ela: outra, e não eu, sofrerá
com isso!
E acentuou bem esta última frase como para bem o convencer. John voltou para
ela os olhos enevoados e encarou-a fixamente.
Micaela sorriu, maliciosa, e parecia muito ocupada em brincar com as luvas.
Após um momento de silêncio, continuou no mesmo tom, levemente indiferente:
- É como essa mania de Molly, de não poder ver duas pessoas de sexo diferente
a conversar, sem gritar que estão apaixonadas uma pela outra. Eu já não faço
caso; estou habituada aos seus exageros!... Mas, às vezes, é desagradável; se
Henrique não estivesse comprometido, podia julgar-se obrigado a fazer-me a
corte... Não acha, John, que Molly é, por vezes, inconveniente?
John sentia-se incapaz de responder. Naquela alma, amarfanhada havia mais de
uma hora, as palavras de Micaela derramavam um bálsamo consolador. Olhava para
ela com uma ternura grave, e agora que a angústia que o afligira desaparecera,
perguntava a si mesmo como pudera apoquentar-se tanto.
Como John não respondesse, Micaela olhou para ele e, com um tímido sorriso,
continuou:
- É claro que o que Molly diz a meu respeito não tem importância. Ninguém me
quer bastante para sofrer com a tagarelice! Mas ouvidos mal intencionados
poderiam escutar aqueles estúpidos gracejos e pensar coisas...
- Sim, disse ele por fim - às vezes, uma simples palavra pode fazer muito mal.
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- Justamente. Vê, John, se amar alguém, como disse há dias, nunca deve dar
ouvidos ao que se diz...
- A desgraça é que a razão nunca fala quando o coração se alarma... - murmurou
o rapaz, pensativo.
- Acredito isso! - retorquiu Micaela, comicamente desolada - Então, perdi o
meu latim consigo! E eu que estava tão contente por lhe pregar, esta tarde, um
sermão de moral!
E, como ele fosse a falar, Micaela disse vivamente:
- Vou-me embora! Até amanhã, John!
Subitamente, mergulhando com ousadia os seus olhos nos dele, acrescentou:
- Não tenha maus sonhos, esta noite, com a dama dos seus pensamentos.
E, a correr, galgou os degraus. Só parou quando entrou no seu quarto.
Atirando travessamente com o chapéu para cima da cama, exclamou com exaltação:
- Ciúmes! Tem ciúmes! - e comprimiu o peito com as mãos num gesto encantador -
Meu Deus! Como é delicioso. Ele tem ciúmes!
Chegou à janela e, através das cortinas, olhou para o rapaz que acabava de
deixar. John tirava o boné e as luvas. Dirigiu-se para o vestiário e apareceu
pouco depois, no pátio, com outro fato.
"- Todos mo invejam e é meu!... É pena que um rapaz tão bonito seja apenas um
simples motorista!"
E um grande suspiro lhe expirou nos lábios.
"- Sim, é pena! - repetiu, pensativa - Um homem como ele talvez me agradasse,
se fosse rico..."
Mas, sacudindo a linda cabeça, de cabelos ondulados, repreendeu-se seriamente:
- "Então, Micaela! Nada de tolices! Nada de quimeras! Certamente que é
delicioso ver um homem ciumento por nossa causa; mas seria menos divertido se
mademoiselle Jourdan-Ferrières amasse um motorista!"
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XXV.
John passou a noite tão bem como Micaela lhe desejara. Talvez não
sonhasse com ela, mas recordou-a, de pé, junto do carro, contando
travessamente as suas queixas contra Molly. Estremecia de alegria, pensando
que a jovem adivinhara o seu desgosto e quisera sossegá-lo.
Esta atenção íntima de Micaela abria-lhe horizontes radiantes que não podia
afastar. E quando no dia seguinte, de manhã, parou o Rolls-Royce em frente da
entrada do Parque Monceau, como Micaela lhe ordenara, não esperava a penosa
surpresa que ia sofrer.
Com efeito, mal o carro se enfileirara junto do passeio do boulevard
Courcelles, uma voz masculina, que logo reconheceu, exclamou:
- É adorável, Micaela! Não esperava que viesse.
- Quando prometo, cumpro, meu caro Henrique; e ontem insistiu tanto!
Absolutamente estupefacto, John viu o desconhecido dar-lhe o braço, procurando
levá-la para o Parque, deserto àquela hora matinal. Mas Micaela, encaminhando-
se para a bela alameda que atravessa o grande e pitoresco jardim a todo o
comprimento, apontou-a a Henrique, e começaram os dois a percorrê-la
lentamente, falando com animação.
Por momentos, John teve a impressão de que o crânio lhe estalava sob o
martelar de uma dor física intolerável. Tinha agora a alucinante certeza de
que Micaela zombara dele, na véspera.
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Mudando de tom, sem lhe dar tempo a reflectir, fingiu acreditar que ele estava
doente.
- Se não se sentia bem, ou se o calor o incomodava, devia ter-me dito. Tomaria
um táxi para ir encontrar-me com o meu primo, e não o obrigaria, hoje, a sair
comigo.
John conservava-se calado, esperando as mentiras que iria ainda ouvir.
Contudo, no seu cérebro fatigado infiltrava-se uma ideia:
"Ela deixara logo o outro e viera ter com ele!"
Entre o momento em que John chegara e Micaela descera do táxi houvera,
precisamente, o tempo para tomar o táxi e correr atrás dele, visto que o
Rolls-Royce andava infinitamente mais depressa do que os automóveis de praça.
Mas Micaela, arrostando a hostilidade do olhar, continuou:
- Realmente, esta entrevista de hoje era quase uma caridade para com o meu
primo...
Deteve-se, procurando coragem nos seus olhos, mas o rapaz evitava encará-la e
conservava-se, na aparência, absolutamente indiferente. A jovem milionária
estava, felizmente, estimulada pela iminência de uma partida irremediável.
Teve a intuição, também, de que a sua presença na rua não lhe facilitava a
tarefa. Deviam falar-se a distância, estribados nas aparências da correcção
mundana, sem que o som da sua voz ou o menor dos seus gestos permitisse
adivinhar o drama que havia entre os dois.
Enfim, se John quisesse afastar-se, bastaria levar a mão ao chapéu,
cumprimentando, e partir sem que ela pudesse achar, naquele sítio,
possibilidades de o reter. Continuou, pois, a falar, visto que as palavras
eram a única arma de que podia servir-se.
- Imagine, meu primo estava noivo de uma encantadora rapariga das nossas
relações... E estou persuadida que é sincero quando diz só a ela amar. Mas
esse doido praticou loucuras... com outra mulher,
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Mas esta sentiu que a partida estava ganha; John não podia já afastar-se,
visto que conhecia, desde esse momento, a verdade.
- Ainda não é tarde para levar a efeito o nosso plano. Quer vir comigo a casa
de Helena?
- Há pouco deixei a sua casa com a ideia de nunca mais voltar.
Uma ansiedade perpassou pelos olhos negros de Micaela, erguidos para ele.
- John! Agora já não pode realizar esse projecto.
- Não! - reconheceu ele com fervor - Mademoiselle voltou, e devo ficar junto
de si.
Olharam-se fixamente, trémulos, e John perguntou em voz baixa:
- Porque não me contou, ontem, o idílio do seu primo? Porque não me preveniu,
esta manhã, da entrevista que iam ter?
Micaela sentiu a importância da dolorosa censura.
- Porque não julgava que...
E deteve-se. Os pensamentos vacilaram-lhe no cérebro como se tivesse chocado
com um escolho perigoso.
- Não, não podia supor que...
E continuava desorientada, sem saber que palavras devia calar, nem encontrando
outras para se explicar. Mas tudo nela suplicava que não insistisse... que não
a forçasse a responder... Não poderia pronunciar as coisas que ele desejaria
ouvir e a ela pareciam monstruosas.
John adivinhou tudo quanto a sua hesitação encerrava de reserva e de abandono.
E, já senhor de si, mais do que Micaela estava, disse suavemente, para a
auxiliar:
- Não podia imaginar que eu era tão rigorista, e que me recusaria a ser seu
cúmplice!...
- É isso mesmo! - exclamou Micaela, livre e feliz, pelo pretexto que tão bem
se adaptava aos acontecimentos: a fuga desesperada de John e a sua corrida
atrás dele.
Como lhe soavam bem as palavras que ele encontrara para mascarar a verdade e
poupar o seu orgulho!
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XXVI.
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A altiva e orgulhosa Micaela dos maus dias reaparecia de novo, nessa veemente
apóstrofe. O seu olhar duro fixava-se sem indulgência sobre o pobre rapaz, que
não pestanejou.
- Disse minha mãe, minha irmã e ela - precisou. A filha de Jourdan-Ferrières
que começou a rir nervosamente.
- Sua irmã! É a primeira vez que oiço falar nela. E talvez conte endossar-lhe
os retratos inoportunos que não saberia explicar.
- Examine! - disse John, com simplicidade. Micaela abriu a carteira e tirou de
um compartimento algumas fotografias.
O rosto, um pouco fatigado, de uma senhora de cerca de quarenta anos, foi o
primeiro a aparecer.
- É minha mãe - elucidou John, gravemente.
- Era bonita e distinta, mas não se parece consigo.
- Não. Pareço-me com um avô de meu pai!... Depois, Micaela viu o retrato de
uma pequena de uns dezoito anos, cujos cabelos, separados em duas tranças, com
pérolas, lhe caíam sobre os ombros.
- Minha irmã Sônia - indicou.
O tipo da rapariga era demasiado russo para que Micaela pudesse duvidar da
palavra de John. Antes de continuar, olhou para ele.
- Até aqui encontrei o que disse. E, a seguir, o que irei ver?
- Ela - disse John, com os olhos fitos na jovem patroa.
- Ela - repetiu Micaela, empalidecendo - Aquela a quem... a dama dos seus
pensamentos?
- Sim, aquela a quem amo.
Era tão claro, tão formidável, que a arrogante milionária sentiu como que
violenta pancada no peito.
Desviou os olhos do motorista e pareceu-lhe que um nevoeiro lhe toldava a
vista.
182
Então, quando John falava da sua pastorinha ou daquela a quem amava, tratava-
se de uma mulher que existia, e que não era o reflexo da sua imaginação
masculina!...
Agora temia encarar a carteira. Tinha a intuição de uma indiscreta
curiosidade, da qual ia ser punida...
- Então, mademoiselle Micaela, já não quer... Pegara-lhe na mão, e sentia-lhe
os dedos trémulos entre os seus.
- Disse há pouco que receava fazer-me zangar? - perguntou em voz baixa.
- Sim...
- Então vou ter motivo para isso?
- Não. Será indulgente...
Micaela sentiu-se entristecer. Mas, suspirando, abriu a carteira, e
reconheceu-se nas duas fotografias em que pegara.
Era ela nas duas poses que fizera em casa de Natália Petrovna... Ela!... E,
falando dela, John ousara dizer aquela a quem amo!... Todo o sangue lhe afluiu
ao rosto e sentiu o coração bater desordenadamente.
- Conservou-as? - balbuciou, fazendo alusão às chapas fotográficas, e não
querendo reparar na audácia da declaração.
- Sim.
- Deu-me então dois negativos sem nada?
- Exacto.
- Por isso me disse que tinha gasto todos!
- O trajo, só por si, não me interessava. Perante esta nova audácia do seu
companheiro o
rosto de Micaela ficou impenetrável. Examinava as ampliações. Para poder pôr
na carteira tivera que as cortar, conservando apenas o busto.
- Enviei duas provas de cada uma das outras à sua ama -afirmou a rapariga,
respondendo a um pensamento íntimo.
- Ainda não as recebi - disse John, com simpli cidade, respondendo assim ao
pensamento da jovem patroa.
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XXVII.
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- Não! - respondeu John, gravemente - Creio que há entre nós recordações que
não se apagarão, apesar de nos separarmos.
Algumas palavras fazem, às vezes, estremecer o coração... Micaela julgou que
tudo girava em sua volta. As pernas dobravam-se-lhe sob a pressão de uma
fraqueza desconhecida.
- A nossa separação - repetiu, como num sonho
- Quando julga que terá lugar?...
- Dentro de poucos dias! Voltarei para lhe dizer adeus.
- Não!
Subitamente, o rosto da milionária descompôs-se. Uma sensação de opressão, que
quase a sufocava, já não lhe permitia fingir mais.
- Não, não! Não é possível!
- Agora é tarde!... Há três meses... - murmurou John dolorosamente.
Foi Micaela quem, instintivamente, lhe deu o braço, apertando-o contra si.
- É para me castigar das minhas tolas reflexões de há pouco que me diz isso,
não é?
- Infelizmente não.
- Não partirá ainda. É a época das férias, procurará um pretexto, e iremos
para uma praia.
- Não me tente, Micaela - protestou John, brandamente - Por um sorriso seu
faria todas as loucuras.
- E ficarmos sempre juntos, como estamos há seis meses, não seria uma loucura?
- Onde nos levaria isso? -notou o rapaz, com tristeza.
- Tem razão, John - concordou Micaela, suspirando
-, Seria preciso, fosse como fosse, tomar uma resolução.
- E essa resolução seria muito pior de tomar, visto que eu já não teria a
minha situação assegurada.
Micaela não respondeu. Com os olhos dilatados, olhava fixamente o espaço.
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- Julga que a situação é segura e lhe permitirá oferecer à sua futura mulher
todo o bem-estar que ela necessite? - perguntou, como em sonho.
- Creio que uma mulher se poderá contentar com ela. É o bem-estar amplamente
assegurado... tudo depende daquela que aceitar ligar a sua sorte à minha...
- Talvez tenha hábitos muito dispendiosos...
- Precisamente, desejo ver se a situação que me oferecem me dará tempo para
poder exercer clínica particular. Estou disposto a trabalhar noite e dia para
que a minha companheira não sofra nenhuma restrição.
- John! - balbuciou Micaela, comovida - a sua imaginação arrebata-o, fá-lo
sonhar... Receio que sofra cruéis decepções.
- Porquê? - perguntou o rapaz, com a garganta contraída.
- Aquela a quem ama talvez não seja livre; tem laços de família, situação,
pátria... talvez não se sinta com coragem de quebrar tudo por si...
John teve um sobressalto de revolta.
- Se eu julgasse isso partiria amanhã para nunca mais voltar. A minha bagagem
está pronta... e quando se trata apenas de malas, a viagem está quase
começada.
- Prometeu-me que voltaria dentro de três dias
- Protestou.
- Precisa desse prazo? - disse, com tristeza.
- Sim - replicou vivamente Micaela - porque não esperava perdê-lo tão
depressa.
John olhou-a, procurando ler naquele rostozinho, tão tragicamente resolvido a
ficar impenetrável. A custo reprimiu as palavras que lhe subiram aos lábios.
- Está entendido - disse por fim - voltarei para lhe dizer adeus... ou até
breve! Será o que decidir.
Calou-se, com a garganta contraída.
- Sou muito pobre para ousar uma tímida súplica - comentou por fim - Um homem
não tem o direito de oferecer a mediocridade a uma mulher muito rica.
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- Prometeu-me também, há pouco, que faria tudo quanto eu quisesse... Foi uma
promessa vã, por me ver chorar?
Como John a olhasse, surpreso, sem responder, porque tinha medo do sacrifício
que ela lhe ia exigir. Micaela acrescentou com um pálido sorriso de onde
parecia banir qualquer ilusão:
- Promete-se a lua, para impedir qualquer pessoa de chorar.
- Pessoa a quem se ama - reflectiu o jovem Russo, suavemente.
E baixinho, tão baixo que ela mais adivinhou as palavras do que as ouviu,
acrescentou:
- Amo-a, Micaela, e seja o que for que de mim exija, não terei coragem para
resistir.
Micaela fixou-o, e de novo os olhos do rapaz se encheram de lágrimas.
Tinham de se conservar, em frente um do outro, impassíveis, como se trocassem
banalidades; e, contudo, representavam um drama!
Os olhos húmidos de Micaela fitaram os de John.
- Volte daqui a três dias, Sacha. Esperá-lo-ei e, juntos, decidiremos.
Viu-lhe tremer os lábios... em palavras que não pôde proferir, mas cujo
sentido Micaela bem percebeu.
O seu coração recolheu a suprema súplica que ele não ousara formular, e à qual
ela não podia responder.
- Quando voltar, Sacha, quando voltar...
Olhou-o pela última vez e, vendo aquele rosto torturado sob a implacável
atitude de deferência, foi subitamente dominada por nova crise de lágrimas, e
fugiu, a fechar-se à chave no seu quarto.
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- Eu julgar que ele esperar outra... Quando a criada lhe dizer estar ali uma
rapariga, John correr, mas ficar desapontado quando viu a mim...
- E depois?
- Parecer surpreendido... também um pouco zangado! Pensar como você, que eu
não devia ir a sua casa àquela hora. A questão de correcção, em França, ser
pândega!... Eu achar que uma mulher pode ir a casa de um homem, sem fazer
mal... e ser pessoa séria...
- Evidentemente... questão de preconceitos...
- All right! Eu gostar de você, quando falar assim, Micaela!
A filha de Jourdan-Ferrières sorriu tristemente.
- É preferível ser reservada... as mulheres podem ser fracas.
- É o que eu pensar... Enfim, John levar a mim ao Café; ser melhor falar em
público!
- Não estava convencida disso, Molly - notou Micaela, com um sorriso, porque
adivinhara os pensamentos que tinham guiado John.
- Não, não - articulou a Americana - Só com ele, em sua casa, parecer-me mais
conveniente do que diante de toda a gente.
- Mas pôde, enfim, dizer-lhe o que queria?
- Yes! Ofereci-lhe casamento.
- Hein?
Molly soltou uma gargalhada, vendo o espanto de Micaela.
- Querida, não olhar para mim com esses olhos. Você dizer a mim: "Não se rouba
um criado". Eu responder: "Eu casar com ele!" E você continuar a ficar
zangada. Agora ele deixar a você... e dizer você saber a sua próxima
partida... Eu oferecer a ele casamento vantajoso, em lugar da posição medíocre
em Inglaterra... Assim não fazer mal a você, e você deve ajudar a mim!
- Ajudar em quê - perguntou Micaela, pensativa.
- A convencer John.
- Ele recusou?
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- Porque veio contar-me tudo isso, Molly - perguntou, após um grande silêncio.
- Mim precisar de você.
- De mim? - admirou-se Micaela.
E fixou Molly duramente. Que iria aquela teimosa pedir-lhe?
- Não olhar a mim tão severamente, querida Micaela, John partir... eu não o
tirar a você e ter em si confiança, visto dizer-lhe em que ponto estamos...
- Mas que espera de mim? - perguntou, já calma.
- Saber... quem ser a outra... John não querer dizer a mim o seu nome... todas
as perguntas ser inúteis. Você deve saber. Eu vir pedir para você dizer a mim
o que sabe.
- Que vantagem tem em conhecer o seu nome?
- Para oferecer a ela, visto que não o ama, uma compensação. Se é pobre, eu
dar a ela uma fortuna, para que ela repila, já, o oferecimento de John.
- A Molly é prática! - disse Micaela, levantando-se, agitada.
- Business! Eu defender minhas probabilidades.
- Mas quer assim tanto a John? É tão extraordinário!
- Porque você julgar ser uma extravagância e excentricidade. Mas se disser
sinceridade, compreenderia.
Molly calou-se, baixando um pouco a cabeça; depois suspirou:
- Eu ser sincera e nada mais.
Micaela viu brilhar-lhe lágrimas nos olhos e sentiu-se comovida.
- Molly! É melhor do que eu!
- Não, eu amar, isto explica tudo!... Você não poder compreender, querida.
- Sim, compreendo-a - murmurou a filha de Jourdan-Ferrières - e creio que será
para John uma grande felicidade encontrá-la... se a outra não tiver
coragem ...
- Dizer seu nome, Micaela?
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XXIX.
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- Essa agora! Espero que tudo isto não passe de suposições... Tenho-te
desculpado muitas fantasias e satisfeito, tanto quanto possível, todos os teus
caprichos; mas se alguma vez tiveres a desgraça de amares um rapaz sem
fortuna, fixa bem, nunca o aceitarei por genro.
- Ninguém pode mandar nos meus sentimentos; posso amar involuntariamente.
- Meu Deus!... Sim, ama à tua vontade... nisso ninguém pode mandar. Mas não
penses em casar com um tal partido.
- Papá! - protestou Micaela.
- Minha filha! - interveio a senhora Jourdan-Ferrières - teu pai expressa-se
mal. Quer dizer que o amor é uma coisa e o casamento é outra.
- Na verdade, esta garota faz-me dizer coisas impróprias - disse ele, já um
tanto carrancudo.
- É melhor falar claro para eu entender, paizinho... O pai diz que o
casamento...
- É um acto importante... mais importante do que a compra de um casaco ou de
uma propriedade. E, para estas compras secundárias, procura-se o mais belo e
rico, segundo o dinheiro que se quer gastar... O dinheiro, como vês, minha
filha, é a segurança da qualidade e solidez.
- Talvez, mas um casamento sem amor, apesar das qualidades que lhe atribui,
dá-me a impressão de um casaco forte, mas que me ficará mal.
- Micaela! Que querem dizer todas estas perguntas? Espero que não nos
apresentes algum noivo ridículo.
- Não se trata disso, mas Molly Burke dizia, esta manhã, que a fortuna de seu
pai lhe permitia casar com um homem a quem amasse, mesmo que não tivesse um
franco. Ora eu pensei que tu me concederias as mesmas vantagens.
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- Molly Burke é uma pateta, que cairá facilmente nas unhas de um caçador de
dotes. E só despertará quando o marido lhe tiver devorado os milhões.
- Nem sempre se dá esse caso!
- Quase sempre. É a história do costume.
- Ao menos, saberá o que é o amor.
- É uma iguaria que não enche o estômago.
- Enfim, meu pai, supõe que quero fazer o mesmo que Molly, e que te apresento
um rapaz bem educado, de boa família, mas sem fortuna?
- Prefiro não o supor.
- Não é isso! Responde claro, para eu saber o que hei-de pensar.
- Queres saber? Pois bem! Não tenhas dúvidas. Disse há pouco que nunca te
daria o meu consentimento. Acrescento, para boa compreensão do bonito senhor
que escolheres, que não te darei um franco para dote. Podes barafustar. Tanto
pior para ti...
- Foi exactamente o que pensei, quando falei hoje com Molly.
- Cortava-te os víveres, e teu marido tinha que trabalhar para te sustentar.
- Em resumo, meu pai, para teres a certeza de que meu marido não vivia à tua
custa, deixar-me-ias morrer de fome!
- Tu assim o querias.
- Dou-me por prevenida, se alguma vez quiser deixar falar o coração.
- Sim, e não o esqueças, se por acaso vieste sondar os meus sentimentos.
- Falei com Molly Burke, meu pai, e julgo-a felicíssima por ser Americana!
- Mais tarde me dirás.
- Ora! Se, procurando ser feliz, arriscasse alguns milhões e os perdesse, como
tu dizes, seu pai é bastante rico para suportar essa perda, por consideração
pela felicidade da filha.
E Micaela, um pouco excitada com esta longa e aborrecida palestra, saiu da
sala.
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XXX
Eram dez horas quando Micaela, um pouco grave, mas com aspecto decidido,
bateu à porta dos aposentos de John. Por lacónico telegrama que lhe dirigira
de Londres, tinha a certeza de que ele regressaria nessa noite.
Antes de partir, o jovem Russo despedira-se definitivamente da família
Jourdan-Ferrières. Micaela sabia, portanto, que ele não voltaria ao palácio. E
não tendo, previamente, marcado nenhum encontro, vinha pessoalmente dar-lhe as
explicações prometidas.
Abriu-lhe a porta uma senhora bastante nova.
- O senhor Isborsky? - perguntou Micaela.
- Não está.
Desenhou-se no rosto de Micaela uma tal decepção que a mulher acrescentou:
- Talvez não se demore.
- Chegou esta manhã, de Londres, não é verdade?
- Sim, minha senhora.
- E não lhe deu nenhum recado, caso o procurassem?
- Não.
- Também não telefonou, esta manhã? Eu esperava uma comunicação.
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Micaela chegou até ao limiar da sala que a mulher indicara como sendo o quarto
de John. E, pensativa, examinou o aposento onde decorria a vida íntima do
jovem Russo. Era simples, sem luxo, mas extremamente confortável e
meticulosamente cuidado.
Tudo lhe pareceu claro e irrepreensível como toda a pessoa de John. A mesma
orientação de correcta elegância, que presidia à escolha de fatos, presidira à
direcção do arranjo desses dois aposentos.
Micaela evocou, passeando entre as quatro paredes, a altiva e calma figura de
Sacha, e sentiu uma tranquila satisfação; vivendo junto desse homem, no seu
lar, uma mulher nunca se sentiria infeliz.
Fazia estas reflexões quando ouviu o ruído metálico de uma chave na fechadura.
Voltou-se, e viu John no vestíbulo, que, não reparando nela, dependurava o
chapéu num cabide.
O rosto, um pouco contraído e magro, demonstrava vaga melancolia.
- Nada de novo? Não há correio? A mulher respondeu:
- Veio uma senhora.,. Mademoiselle Micaela...
John voltou-se bruscamente e viu-a.
- Micaela! - disse ele, com voz perturbada - Micaela, veio!
E correu para ela, transfigurado, olhando-a, sem saber se lhe trazia a
felicidade ou lágrimas, mas tão feliz por a sentir ali que não sabia como
exprimir-lhe
a sua alegria.
- Vim, porque não tínhamos marcado encontro, e prometi que à sua volta
falaríamos.
John percebeu-lhe qualquer coisa estranha na voz terna, e examinou-a com
penetrante olhar.
- O que lhe aconteceu, Micaela? A que é devida essa palidez e febre que lhe
adivinho?
- Tive pena... bem o sabe! Tudo contribuiu para me martirizar, há três dias...
E, com melancólico sorriso, acrescentou:
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- Se John tivesse chegado ontem, não poderia ter vindo vê-lo; chorei tanto que
estava irreconhecível.
- E qual a razão dessas lágrimas? - perguntou o rapaz, tristemente - Se o meu
amor a importuna, nunca mais me ouvirá falar nele. Devia ter-me afastado sem o
dar a conhecer. Porque tive essa fraqueza que tanto mal lhe causa?
Fê-la sentar a um canto do divã, rodeando-a de macias almofadas; sentou-se a
seu lado, conservando entre as suas a mão de Micaela.
- Engana-se, Sacha - disse Micaela, suavemente, apertando-lhe os dedos - Não
foi por causa da sua confissão que eu chorei.
John estremeceu e olhou-a comovido.
- Minha Micaela - balbuciou, com o coração palpitante de esperança.
- Daqui a pouco saberá tudo. Fale-me primeiramente da sua viagem. Está
contente?
- Muito contente.
- Dê-me pormenores - insistiu ela - Viu o príncipe Beloslavsky?
- Sim, e procedeu gentilmente para comigo. Mandou arranjar de novo um pavilhão
situado a um canto do parque da sua Casa de Saúde. Não é muito grande, mas tem
dois belos aposentos e uma cozinha, em baixo, dois grandes quartos e casa de
banho no primeiro andar. É uma deliciosa vivenda, enterrada em verdura, que,
tendo saída directa para um boulevard, fica completamente independente da
porta hospitalar. Das janelas traseiras vê-se o parque, mas como ali só
passeiam os convalescentes, a vista não entristece. Em resumo, habitarei a
cento e cinquenta metros das primeiras instalações do estabelecimento, o que
equivale a dizer que estarei sempre perto de casa.
- E no hospital?
- Tenho duas horas de consulta, de manhã. Durante o resto do tempo dirigirei
os restantes serviços.
- Ficará muito ocupado...
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- Quem dera estar assim toda a vida! Não pensar em nada... esquecer tudo...
Três dias de luta tinham-na abatido completamente. Era apenas uma rapariguinha
infeliz, que aspirava ao repouso, à felicidade.
John compreendeu que, naquele momento, ela já não era a mesma. Não vinha para
ele altiva, orgulhosa como sempre a conhecera, mas frágil, despedaçada, sob
uma fatalidade que lha entregava consciente. Sentiu inquietação e ao mesmo
tempo piedade.
Suavemente, puxou-a para si.
- Micaela querida. Conte-me tudo. Que lhe fizeram?
- Meu pai não quer, compreende? Nunca consentirá - repetiu, como se esta
notícia contivesse todas as catástrofes reunidas.
- Falou-lhe em mim?
- Não disse o seu nome. Quis saber se aceitaria o meu casamento com um homem
bem educado, de boa família, mas com modesta situação.
- E então?
- Só aceitará um pretendente que tenha uma fortuna igual à dele.
John esboçou um movimento de revolta. Sempre essa questão de dinheiro se
erguia diante de si.
- Porque não me conhece. Enviar-lhe-ei um dos meus amigos, que falará por mim.
Quando souber...
- Não, Sacha, não creia tal. Recusou há poucos meses o príncipe d'Iseo, que
pertence à família real do Tirol, mas cuja fortuna é muito modesta. Meu pai só
conhece uma nobreza: o dinheiro! E sacrificar-me-ia a este ídolo.
John apertou os punhos.
- Então nada há a fazer? - perguntou.
Sentia-se enraivecer. Pensar que um obstáculo se levantara entre os seus
desejos e os separava, enlouquecia-o.
Apertou-a mais contra si, como se receasse que lha roubassem.
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- Amo-a, querida Micaela. Não quero perdê-la; diga-me que também não quer que
nos separem,.. Se falou a seu pai é porque aceitava a ideia de ser minha
mulher... Não é possível... agora... não posso perdê-la.
- Mas não compreende, Sacha, que sou completamente pobre... - disse
tristemente.
- Pobre? - repetiu o rapaz, sem realmente compreender, olhando-a como se ela
lhe anunciasse qualquer coisa fabulosa.
- Sim. Meu pai não cederá nunca. Previu tudo... se casar comigo, não terei
absolutamente nada... nem mesmo posso esperar nada do futuro... percebe?
- Deserda-a? - interrogou.
- Sim, totalmente.
- E essa pobreza mete-lhe medo?
- Não é de mim que se trata... Há... Molly!
- Mas que tem Molly com isto? - perguntou John, espantado.
- A Americana ofereceu-lhe casamento, e é rica; com ela conhecerá todas as
satisfações que uma grande fortuna proporciona.
- Mas não gosto dela! Então, minha querida, não compliquemos a questão: é a si
que eu amo; é a si que eu quero, só a si!
- Mesmo pobre?
- Sim, absolutamente sem nada. Que importância julga, então, que eu ligo a
essa questão de fortuna, que se possui hoje e amanhã se perde... Já sei o que
isso é.
- E nunca terá pena?...
- Nunca. Diga-me, querida Micaela: acha que um pouco de dinheiro, a mais ou a
menos, pode contar no amor que sinto por si?
E beijou apaixonadamente aquela fronte pálida. Era o primeiro beijo que ousara
dar-lhe e cuja doçura saboreava religiosamente.
Depois, com voz grave, traduziu as reflexões que as palavras de Micaela lhe
tinham feito surgir no cérebro.
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- Há outra coisa que me parece mais importante do que essa questão material: a
recusa de seu pai. Tenho acaso o direito de a impedir à revolta? De lhe pedir
que passe sobre a vontade paterna? Não será presunção da minha parte julgar
que o meu amor a compensará do bem-estar que vai perder? Não terá pena, um
dia, dessa vida brilhante de que a privei? Eis o problema, o único problema
que me aparece para resolver.
- Então, oiça, Sacha - disse Micaela, profundamente grave -, Eu tive mais
tempo ainda do que o Sacha para examinar o assunto e tomar uma decisão. Se o
pensamento de que vou para si, completamente pobre e sem esperança de melhor
sorte, não o detém; se tem a certeza de que nunca terá pena de Molly nem dos
seus milhões, estou pronta a partir consigo para Inglaterra... Parece que o
casamento ali é livre: casar-nos-emos o mais cedo possível. Visto que não
tenho a menor indulgência a esperar de meu pai, tomo as minhas precauções
contra o seu tirânico despotismo. Só o preveniremos depois de casados, e
quando ele nada puder contra nós.
- Não sei como agradecer-lhe, Micaela querida, a sua absoluta prova de
confiança...
A rapariga interrompeu-o, com doçura:
- Diga prova de amor, Sacha, porque pode-se ter confiança num homem e não o
amar. Ora, eu amo-o... não o sabia, não queria sabê-lo, mas há muito tempo que
o amo e é dono do meu coração.
Louco de alegria, John abraçou-a ternamente. Beijava-lhe as mãos, os cabelos,
os olhos... Era tão feliz que não sabia expressá-lo em palavras.
Micaela! A sua pequena Micaela, por tanto tempo inacessível, aceitava unir a
sua mão à dele! Viera! Amava-o! Seria sua mulher...
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- Como estou contente - exclamou Micaela, transfigurada - Não tenho que corar
dessa fraqueza da minha pobre mãe e, quando nos casarmos, Sacha, teremos
perante Deus e nós próprios o consentimento do meu verdadeiro pai.
John não respondeu. Examinava o assunto sob o ponto de vista exposto pela
noiva.
- De resto - acrescentou Micaela, com certo rancor na voz -, estou disposta a
revelar tudo ao senhor Jourdan-Ferrières depois de nos casarmos.
Mas John protestou logo:
- Não, Micaela, nunca aceitaria que praticasse esse acto. Seria uma maldade
inútil que satisfaria apenas a sua vingança. O homem que a educou, protegeu e
criou desde que nasceu, é o seu verdadeiro pai. Tem direito a todo o seu
reconhecimento e respeito. Fazer-lhe uma tal revelação equivaleria a uma
cobardia sem justificação. Julga-a sua filha. Tem por si sentimentos paternais
e uma confiança terna na recordação daquela que foi sua mulher. Prometa-me que
nunca pensará em tal.
Micaela sorriu.
- É melhor do que eu, Sacha... Verdade seja que não sabe como meu pai foi
duro comigo, há poucos dias.
- Que importa! A convicção de fazer a sua felicidade é indiscutível, porque é
ditada pelo desejo de a ver feliz!
- Engana-se!
- Mas é sincero no seu erro. E, depois, Micaela, penso... se um filho meu
viesse, um dia, dizer-me semelhante coisa...
- Sobre isso não há nada a recear - exclamou, encostando-se a John -, Juro-
lhe, Sacha, que o adorarei e lhe serei sempre fiel.
- Tenho absoluta confiança em si, Micaela adorada - respondeu John, beijando-
lhe as mãos.
De repente, vendo-lhe um belo solitário no dedo anelar, tirou-lho.
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- Sim, tem razão - concordou Micaela, muito perturbada - Deve perdoar-me, meu
Sacha, se não manifesto entusiasmo... É que, apesar do que me disse, a
lembrança que conservo desse desgraçado incomoda-me bastante para poder
acreditar no seu ressurgimento. Mas tem razão. O seu lugar é junto de nós,
hoje. Evocará em mim a lembrança da minha pobre mãezinha, e parecer-me-á que
ela está ali para nos abençoar.
- Vou telefonar a João Bernier, para aguardar a nossa chegada.
Quando, minutos depois, John deixou o telefone, Micaela correu para ele.
- Sacha, reconheço, mais uma vez, que é melhor do que eu... O meu detestável
orgulho teria medo de ser humilhado pela presença de João Bernier.
- Um tal sentimento é indigno de si, minha Micaela. De resto, não terá de que
se aborrecer; disse-lhe que esse homem era meu amigo, e pode fiar-se em mim;
não dou esse título a toda a gente.
Vinte minutos depois, um táxi deixava-os à porta de uma casa de boa aparência.
Devido às afirmações do noivo, o coração de Micaela batia fortemente. A sua
emoção era um misto de alegria e ansiedade. De alegria, porque, apesar do seu
orgulho, pensava que era seu pai, o seu verdadeiro pai, a quem ia encontrar...
A discussão que tivera com Jourdan-Ferrieres aproximava-a, instintivamente, do
outro. O receio, a ansiedade, por se recordar da figura do desgraçado, em
Menilmontant...
E Micaela tinha um medo atroz de que a sua nova felicidade de noiva
entristecesse com essa má recordação.
À porta dessa casa, um homem de uns sessenta anos parecia esperar. Alto,
magro, bem barbeado, vestido de escuro, tinha uma distinção que em nada se
parecia com o ser sórdido e desprezível que tempos atrás conhecera. Micaela
notou a sua extrema distinção antes mesmo de saber ser aquele o homem a quem
vinham procurar.
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Com espanto, viu Sacha dirigir-se para ele, de mão estendida, ao passo que o
rosto do desconhecido se iluminou mostrando um prazer verdadeiro.
- Meu querido Alexandre!
- Meu amigo!
Depois de apertarem efusivamente as mãos, o jovem Russo indicou a sua
companheira:
- Permita-me que lhe apresente Micaela, a minha noiva... O meu amigo, João
Bernier.
O homem denunciou um espanto e logo satisfação.
- Meu amigo, que grande prazer me dá! Primeiro, pela boa notícia que ainda
mais consolidará a afeição que lhe tenho... depois, a alegria que sinto com
esta visita... esta aproximação!...
A voz do velho era menos firme ao pronunciar esta última frase, e a comoção
que Micaela adivinhava empolgou-a.
Embaraçada, mas instintivamente afectuosa, dirigiu-se para ele, estendendo-lhe
as mãos.
- Como sou feliz em a ver - disse o pintor, agarrando-lhas -, Quer dar-me um
beijo, minha filha?
- Com toda a alma!
João Bernier apertou-a nos braços e retribuiu-lhe o beijo. Micaela sentia-se
tão comovida que as lágrimas saltaram-lhe dos lindos olhos.
Por momentos, Bernier e Micaela olharam-se com fervor.
- Meu pai! - murmurou ela, perturbada.
E esta palavra, nos seus lábios, pareceu-lhe infinitamente doce. Era a
primeira vez que o tratava assim. Nunca, falando dele, usara desse título;
mesmo em pensamento, nunca relacionara esse nome com João Bernier.
E, de repente, brotara por si próprio, sem reserva, sem reflexão, e sentia uma
grande felicidade por tê-lo pronunciado.
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Micaela viera. Antes que terminasse a manhã seria sua mulher... sua para
sempre. E a impressão de felicidade que sentia era tão viva que teve como que
um deslumbramento.
Pálido de alegria, com o coração a bater de comoção, beijou-lhe os dedos, e
apresentou-a à senhora que o acompanhava.
- A minha noiva, Micaela Jourdan-Ferrières... a baronesa Colensky, cuja
encantadora filha encontrou na recepção do príncipe Bodnitzki.
Como Micaela procurasse recordar-se, John precisou :
- Uma rapariga muito loira, chamada Lena... de Lenotchka.
Micaela recordou-se então e, corando, curvou-se intimidada perante a baronesa
Colensky. Lembrara-se, de repente, que o general Razine lhe dissera que era
filha do grão-duque Georgy.
- A baronesa quis acompanhar-nos, minha querida Micaela - explicou o noivo -,
Era uma grande amiga de minha mãe, e é-me grato pensar que, neste dia, estará
a meu lado, para representar a mãe que me falta.
- Uma amiga de tua mãe, dizes tu, Sacha? Podias ter mais respeito pelos laços
de sangue que nos ligam. Tua mãe era minha prima, e se tenho tanta afeição por
ti, Alexandre Yourievitch, é porque me considero a tua mais próxima parenta, e
devo tentar substituir os que te faltam.
- Sou muito seu amigo, Olga Youriévna, bem o sabe, e por isso lhe supliquei
que dispensasse à minha querida Micaela um pouco da indulgente afeição que tem
por mim. Todas as provas de estima que lhe der, me causarão enorme prazer.
- Também a mim - protestou Micaela, beijando-a - Sinto-me verdadeiramente
reconhecida, baronesa Colensky, por ter querido substituir, hoje, todos os
nossos parentes ausentes.
A baronesa beijou, por sua vez, Micaela.
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- Acho-a encantadora e, como em breve será minha prima, espero que este título
criará entre nós uma grande confiança e mútua afeição.
E, voltando-se para John, acrescentou:
- Sacha, a tua noiva é encantadora, e sinto já por ela grande estima.
- Como lhe agradeço! E, se o permite, vamos andando.
Tornava-se impaciente!
Muito trémula, Micaela subiu para o automóvel, onde a baronesa já se
instalara.
Recordava as suas palavras: a mãe de Sacha era prima de uma autêntica grã-
duquesa! Reflectiu, de si para si, como John era discreto sobre o seu passado,
levando a sua modéstia a nunca falar nele.
Em poucos minutos, o automóvel chegou ao termo do seu caminho. Micaela viu um
grande parque verdejante e, enquanto o noivo se afastava para um lado, com
dois amigos que o esperavam, apresentou à baronesa João Bernier, que as
ajudara a descer do carro.
Com ele e com a baronesa, Micaela, muito comovida, tomou a mesma direcção do
noivo. Pensava naquele singular acaso que a fazia dirigir-se para o esposo da
sua escolha, entre um homem que representava a sua mãe, e uma mulher que
representava a de Sacha. Era como se uma dupla bênção maternal pairasse sobre
ambos, nesse casamento secreto, no qual, para serem um do outro, renunciavam
às vantagens a que podiam aspirar.
Micaela evocou o vestido branco, a longa fila de convidados, o brilho de um
grande casamento, em Saint-Pierre-de-Chaillot, e sorriu ao seu vestido escuro
e às pessoas que a acompanhavam. Não sentia a menor pena desse luxo que teria
junto de Jourdan-Ferrières, e sabia que Sacha também não sentia tristeza pela
mirabolante situação que Molly lhe oferecia.
Ambos, de mão dada, caminhavam para o futuro, para o amor. A capelinha ficava
no fundo do parque, cheio de sol.
O noivo e as duas testemunhas esperavam Micaela.
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Tiveram que voltar à realidade e ocuparem-se um pouco dos seus convidados,
que, de parte, sorriam com indulgência.
Os noivos dirigiram-se para eles, de mãos dadas.
- Tenho a maior satisfação em felicitar Vossa Alteza - disse o general Razine
a Micaela, lembrando-lhe que já lhe fora concedido o favor de lhe apresentar
sua mulher e filhas.
- Permita-me Vossa Alteza que lhe apresente os meus cumprimentos - disse a
outra testemunha de Sacha, inclinando-se.
Micaela corou, muito perturbada, por este título que lisonjeava, sem mesmo o
querer, o orgulho feminino.
Como estava orgulhosa, agora, por ter casado com o seu motorista!
E com que alegria comunicaria dali a algum tempo, a Jourdan-Ferrières, o
casamento contraído, e sem querer... sorria, ao pensar na inveja de Molly e na
das outras amigas.
Por fim, despediram-se de todos. Micaela beijou a baronesa Colensky, que a
tratou por priminha, e dirigiu-se para João Bernier, que, discretamente, se
conservava um pouco à parte. Teve para ele palavras afectuosas e sinceras, que
deram bastante alegria ao pobre isolado. Prometeu que lhe escreveria de
Inglaterra, logo que estivessem definitivamente instalados.
Depois, encontraram-se sós, no carro que os levava, e conheceram então os
beijos frementes e as loucas palavras de todos os apaixonados.
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Micaela levantou a cabeça, alucinada, trémula. Não era aquela a sua história?
Com os olhos esgazeados, procurava ler, de antemão, as palavras que iam sair
da boca daquele que estava falando. Todos lhe prestavam atenção e estavam
suspensos da narrativa do convidado.
Este, muito orgulhoso por ver o interesse que inspirava, bebeu um golo de
champanhe e continuou:
- Um destes hábeis maraus, mais audacioso que outros, conseguiu introduzir-se
em casa de um rico industrial do Este. Admitiram-no como motorista e, hábil
comediante, subjugou a filha da casa a tal ponto que conseguiu persuadi-la a
casar com ele...
- Um motorista!
- Sim, fez-lhe perder, absolutamente, o bom-senso. O mais chistoso da história
é que a cena do casamento foi admiravelmente representado pelos cúmplices!...
outra comédia! Um representou o papel de pope; um outro, o de grão-duque; foi
admirável. O motorista transformou-se em príncipe, e a nossa apaixonada
convenceu-se de que casara realmente com um príncipe russo.
Um grande grito de Micaela cortou a conversa ao brilhante cavaqueador.
Levantou-se, desfigurada, irreconhecível.
- Não, não... Sacha!... É um horror...
O seu grito terminou em estertor. Abriu os braços e caiu, como massa inerte,
sobre a mesa.
Houve, entre os convidados, um movimento de estupefacção. Estavam todos tão
empolgados com o escândalo que lhes contavam que ninguém notara a crescente
agitação de Micaela. O seu grito causou uma espécie de pânico entre os
convidados, os quais, na maior parte, se levantaram e, instintivamente,
deixaram os seus lugares.
Os criados precipitaram-se para Micaela e conduziram-na para a sala próxima.
Com a sua presença de espírito, Jourdan-Ferrières, rodeado de toda a gente,
afirmava que Micaela nunca estivera doente e que aquilo devia ser apenas uma
indisposição passageira. Mas a testa enrugada do pai, apesar da vontade que
tinha de se mostrar sorridente, a ausência da mãe, que seguira a doente, tudo
contribuiu para tornar aborrecido o final da refeição.
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- Sim... pois mentiu!
- Mentiu!
E olharam-se, aterrados.
- Onde poderia ela ir?
- Todas as suposições são permitidas.
- Eis ao que chegámos... Jourdan-Ferrières conservou-se calado por muito
tempo. O seu cérebro trabalhava. De repente, notou:
- Lembras-te da cena que ela me fez a propósito de um pretendente sem fortuna?
A senhora Jourdan-Ferrières ficou pensativa.
- Foi desde esse dia que ela se tornou sorumbática - observou, lentamente.
Esta observação, que ouvia pela primeira vez, foi intolerável para o infeliz
pai. Deu um murro no braço do fauteuil em que estava sentado.
- Oxalá que nenhum miserável abuse da sua candura! - exclamou, enfurecido -,
Matá-lo-ia como a um cão!
- Então, sossega. Gritar e barafustar não serve de nada. Há dias, devíamos ter
sido mais diplomatas, e deixar Micaela desenvolver a sua ideia... Saberíamos
ao certo o que essa garota tem na cabeça. Visto que vinha para nós com toda a
confiança, deveríamos tê-la escutado!
- Queres dizer que a culpa foi minha? - retorquiu o milionário, carrancudo,
levantando-se.
- Não, meu amigo. Peço-te apenas que sossegues e não te precipites, visto que
não sabemos nada. É extraordinário que tu, que tens um sangue-frio tão grande
para os negócios, não saibas dominar-te num assunto familiar.
- É que este fere-me em cheio!
- Tens razão, mas, neste momento, só é necessário uma coisa: salvar Micaela!
Depois, quando houver ocasião, tratar-lhe-emos do coração... ou veremos se
podemos fazer a sua felicidade como ela deseja...
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- Isso nunca!
- Vamos, não digas tolices. Se eu conhecesse aquele cuja presença pode curar
Micaela, iria pessoalmente buscá-lo. E estou certa de que, no fundo, também
aprovarias.
O marido não respondeu. Estava desesperado.
- Por agora - repetiu a senhora Jourdan-Ferrières, com firmeza -, curemos a
nossa filha e velemos pela sua reputação.
Deteve-se e, mais ansiosamente, continuou:
- Sim! - suspirou - Tomemos o maior cuidado em que o menor dos nossos actos
não recaia sobre ela.., visto nada sabermos.
Jourdan-Ferrières curvou a cabeça. Sua mulher tinha razão. Mas, no íntimo
daquela alma batalhadora a tempestade rugia, e as suas forças hostis
procuravam, já, como, sem tocar na filha, poderia atingir todos quantos se lhe
tinham aproximado até ali, e revia-os, na sua mente, à procura de algum a quem
Micaela pudesse amar contra a vontade do pai...
XXXIII.
Havia muito tempo que Alexandre Isborsky esperava Micaela. Dissera-lhe
que iria ter com ele às nove horas da manhã. Eram dez horas e meia e ainda não
chegara!
Sentia surda inquietação, que não sabia explicar. Imaginava todas as causas
susceptíveis de terem impedido Micaela de vir.
Não teria partido seu pai? A madrasta estaria doente? Ou, tendo perdido o
comboio, teriam surpreendido a filha preparando a fuga?
Depois imaginou o pior. Ter-se-ia dado algum acidente, da Avenida Marceau à
Avenida de Ternes? A Praça d'Étoile era tão difícil de atravessar!... O pai,
doente, talvez morto? Aquele homem era tão sanguíneo!
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- Nem ela nem os pais estão visíveis - respondeu o servo, com voz ríspida - Não
recebem visitas.
- Deveras?
Um estremecimento colérico perturbou-lhe a voz.
- Sim - retorquiu o criado, com importância - São ordens.
Antes que o porteiro pudesse prever o gesto do príncipe, este empurrou o
portão e afastou o imponente servidor. Em dois saltos subiu a escadaria e
chegou à porta do escritório de Jourdan-Ferrières, que sacudiu, mas estava
fechada e não pôde abrir. Correu para a entrada principal da habitação.
Esta curta volta permitira ao porteiro retomar o sangue-frio e chegar ali ao
mesmo tempo que Sacha.
- Então, John, seja razoável. Faz com que me ponham na rua. Vá-se embora.
Alexandre Isborsky não o ouvia e, como o porteiro o agarrasse, retesou os
músculos e levantou-o com incrível força.
Hesitou um segundo; depois, como se naquele momento não tivesse consciência,
nem pudesse dominar-se, atirou com ele, que foi cair a alguns metros.
O caminho estava livre, e já corria para a escada quando se abriu uma porta e
Jourdan-Ferrières apareceu.
- Que significa este barulho? É o senhor! Onde vai?
A voz autoritária era tão firme que John teve de parar e morder os lábios até
fazer sangue, para se dominar.
- Onde vai? - repetiu o milionário, violentamente.
- Saber notícias de mademoiselle. Está doente?
- E que tem com isso?
- Mademoiselle foi sempre muito boa para mim.
- De mais, creio eu.
- Pois bem! Quer conceder-me alguns minutos?!
- Nada tenho que lhe ouvir! E, se não sair imediatamente, mando-o pôr fora.
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O coração de Sacha deu um pulo. Num relâmpago, encarou a situação. Não obteria
nada de Jourdan-Ferrières... A escada estava livre, a casa sem criados e...
Micaela era sua mulher, outorgara-lhe direitos que nenhuma vontade humana
podia postergar. Portanto, para a frente...
E correu com tal tensão de nervos, em frente de Jourdan-Ferrières, como o
faria um galgo em corrida fantástica. Subiu a quatro e quatro os degraus da
escada. Atrás dele ouviu a voz do dono da casa, ao telefone; reclamava auxílio
da polícia para expulsar da sua casa um energúmeno, um antigo motorista, capaz
de se entregar aos piores excessos.
Sacha encolheu os ombros. Aquele homem era estúpido. Se houvesse escândalo,
não percebia que tudo recairia sobre Micaela, mesmo que o seu nome não fosse
pronunciado?
E dirigia-se agora para os aposentos daquela que considerava sua mulher, mas a
senhora Jourdan-Ferrières apareceu diante dele.
Estremeceu ao vê-lo, mas, instintivamente, abriu os braços em cruz, para o
impedir de avançar.
John, para não desrespeitar uma senhora, parou.
- Micaela? - perguntou, com voz rouca.
- Em nome do céu, fale baixo - implorou ela - A menor comoção pode matá-la.
- Quero vê-la - disse, moderando a voz - Não me impeça de a ver.
- Não. Seja razoável, meu amigo. O médico não quer lá ninguém.
E, com toda a calma, maternalmente, como se tivesse compreendido os
sentimentos que o guiavam, acrescentou:
- Se tem algum interesse por esta pobre rapariga, retire-se sem fazer barulho.
O doutor quer o máximo sossego. Nem eu nem o pai podemos vê-la.
- Mas o que tem Micaela? - insistiu Sacha" com angústia.
- Uma congestão cerebral - respondeu a mulher do milionário, porque sentia que
não havia outro meio de conseguir qualquer coisa daquele homem, se não dando-
lhe as informações verdadeiras que pedia.
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- Não me engana?
- Juro-lhe que digo a verdade...
Entretanto, Jourdan-Ferrières, tendo desligado o telefone, subia ao primeiro
andar.
- Vá-se embora - disse a mãe, suplicante - Que não haja altercação entre os
dois, tão perto deste quarto. Seja generoso com minha filha, não a mate, e
retire-se, peço-lhe.
Alexandre Isborsky baixou a cabeça. Travava-se nele um combate. Não o
enganaria essa gente? Devia partir sem ver Micaela?
Mas Jourdan-Ferrières já estava junto dele. Recuou, como se esse homem lhe
inspirasse repulsa.
- Não me toque - disse John, altivamente, mas em voz baixa - Retiro-me pelas
súplicas desta senhora, e pensando noutra que afirma estar doente.
E olhou para o pai de Micaela com um olhar de uma firmeza terrível:
- Não se põe na rua um homem que se apresenta lealmente. Asseguro-lhe que
teria sido preferível uma explicação... mas hei-de voltar, e nesse dia
garanto-lhe que há-de ouvir-me!
O milionário não respondeu. A calma do rapaz dominara-o. Que podia haver entre
Micaela e o Russo? E, pela primeira vez, em face da impressão de força e
beleza que dele emanava, perguntou a si mesmo por que estúpida cegueira
colocara semelhante homem junto da filha.
- Esta criatura nunca foi motorista - disse a sua mulher, enquanto Sacha se
afastava - Caí como um papalvo. Mas quem me diria que ele teria a audácia de
subir até ao quarto de Micaela, sem me pedir licença?
A senhora Jourdan-Ferrières moveu a cabeça com indulgência. Pálido sorriso lhe
entreabriu os lábios.
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- Foste demasiado apressado, meu amigo. Este homem ter-te-ia fornecido todas
as explicações possíveis, se o acolhesses com calma...
- Agora, a culpa é minha...
- Meu Deus! Não há nada perdido, ninguém é culpado. Mas, se queres saber, se
pretendes descobrir tudo, quando a luz se apresentar não a apagues.
- A tua luz não é fácil de manejar. John quase matou o porteiro...
Mas ela interrompeu-o:
- Ouve, estão a tocar, são os agentes da polícia que reclamaste... Vai recebê-
los. Se queres um bom conselho, evita falar em John... É desnecessário
comprometer a tua filha!
Sacha ainda não tinha saído. Estava indeciso, na escadaria. Devia realmente
partir? Nunca acharia outra ocasião de se aproximar de Micaela; o esforço que
lhe permitira penetrar no palácio talvez não desse, outra vez, resultado.
Ao mesmo tempo, estava desesperado com a sua inútil manifestação. Que
obtivera? Comprometer Micaela e despertar a atenção do pai. Que suspeitas
cairiam agora sobre ela?
Com o desejo ardente de a ter junto de si ou de saber por que motivo ela não
tinha ido ter com ele, tinha sido atrozmente estúpido. Acusava-se de ter
perdido o sangue-frio. Quando fazia estas reflexões, viu dois agentes da
polícia que chegavam ao portão. O porteiro mandou-os entrar.
Examinando rapidamente a situação, compreendeu que não devia acrescentar-lhe o
escândalo. A sua prisão, ou, pelo menos, uma visita obrigatória ao
comissariado, não lhe daria a menor vantagem, só serviria para complicar as
coisas.
Mas o porteiro indicava-o já aos dois agentes e Jourdan-Ferrières aparecia à
porta.
Alexandre Isborsky compreendeu que não podia retirar-se sossegadamente, e era
bastante altivo para fugir à polícia. Pálido de furor por o encontrar ali, o
pai de Micaela ia apontá-lo à polícia com gesto vingador. O olhar altivamente
irónico de Sacha, o sorriso de desafio que descerrava os seus lábios
orgulhosos, mais o irritavam, mas, lembrando-se da recomendação de sua mulher,
deixou cair o braço.
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- Compreendido.
O príncipe subiu a Avenida em direcção à Praça Étoile. Por fraco que fosse o
último resultado obtido, um pouco de esperança entrava na sua alma.
Se o porteiro lhe indicasse as duas moradas, não duvidava que o médico
consentisse em lhe dar notícias da doente. Por outro lado, pela religiosa e
pela intervenção da comunidade, esperava poder entrar em comunicação com
Micaela.
Uma hora depois, durante a qual não cessara de andar para acalmar a agitação e
enervamento da espera, o porteiro entregava-lhe as direcções combinadas.
Contente com a quantia que tão generosamente lhe davam, Vicente, num bom
impulso, forneceu, também, algumas informações preciosas.
"Foi no meio do jantar, quando se falava num escândalo da sociedade, revelado
por alguns jornais, que mademoiselle Micaela se levantara, espantada, soltando
um grande grito. Levada imediatamente para o seu quarto, delirara toda a
noite... Fora proibida a entrada de qualquer pessoa, até aos pais. Apenas,
junto dela, autorizada pelo médico, ficou velando uma religiosa ... Tudo
estava às escuras e silencioso, no seu quarto... tratavam-na com gelo, visto
que, durante a noite, fora preciso arranjá-lo, custasse o que custasse ...
Enfim, o médico que tinham chamado, à noite, voltou depois de madrugada e de
manhã".
Em todos estes pormenores, Sacha só via uma coisa: era que, de facto, Micaela
estava doente!
Por que razão a isolava a família? Era o que ele não podia perceber. Seria
contra ele que se tomavam tais precauções de isolamento? Devia concluir-se que
o pai já estava ao corrente de muitas coisas?
Para esclarecer um pouco o assunto, entrou num Café, procurou novamente
telefonar para o palácio de Jourdan-Ferrières. Disseram-lhe a mesma coisa: Não
respondem.
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- Com muito pesar meu, não posso substituir o pai neste assunto; é ele quem
deve dar notícias da filha...
- Mesmo abusando da sua situação privilegiada, junto dela... Micaela é maior.
- É delicado ser juiz em tal causa... No interesse da família que me confiou
um dos seus para tratar, julgo-me obrigado a um silêncio absoluto. Acho que,
para todos, é o mais razoável e digno.
O príncipe Isborsky encolheu os ombros. Todas aquelas palavras não o
impressionaram. Micaela era o seu bem, coisa sua, sua mulher, enfim! Estava
doente e, segundo diziam, gravemente; e recusavam-lhe a possibilidade de a
tratar... Não queriam mesmo permitir-lhe que soubesse qual era a sua doença.
E sentiu-se enlouquecer, ao dizer estas palavras cruéis, para fazer tombar os
escrúpulos do médico:
- Mademoiselle Jourdan-Ferrières foi atingida por qualquer doença vergonhosa,
para que se esconda tão cuidadosamente o seu mal?
O outro deu um pulo.
- Exagera, meu caro colega!
- Sei lá! Ontem esteve comigo, cheia de saúde e risonha. Duas horas depois de
me ter deixado era vítima, à mesa, de uma terrível crise. Que sei eu! Porque a
afastam de todos? Que resultado pensam obter, permitindo todas as suposições?
- Esteve ontem com ela? - repetiu o médico, admirado.
- Estive.
- Então, não é por conta de outrem que vem pedir informações?
- Não. É para mim - declarou John, perdendo toda a prudência e incapaz de
ocultar a verdade, em semelhante momento -, Esta doença inesperada aterra-
me,.. Que taras querem ocultar?... Ou, sob pretexto de doença, não estará
sequestrada?... O que farão sofrer à minha Micaela, quando estou aqui,
ignorante e impotente...
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Um soluço cortou-lhe a voz. O homem forte e correcto que sempre fora não podia
dominar mais a atroz inquietação que o martirizava. Além de uma chávena de
chocolate, ao pequeno almoço, nada mais tomara, e a sua resistência estava
aniquilada. Sem dar por isso, naquele momento, era todo nervos e desânimo.
Com a cabeça entre as mãos, conservava-se enterrado na poltrona, onde o velho
doutor o mandara sentar.
No rosto deste, que o não perdia de vista, lia-se uma grande perplexidade. Há
comoções e fraquezas que os homens desculpam entre si.
- Não "sequestraram" mademoiselle Jourdan-Ferrières - disse por fim, com
firmeza -, Eu não seria cúmplice de tal acto...
John levantou a cabeça.
- Então, está realmente doente?... Não é nem nervosismo, nem epilepsia? Então
o que é?
Houve um momento de silêncio, durante o qual o médico reflectia.
- Uma congestão cerebral - pronunciou, por fim, gravemente.
E, pesando bem as palavras, continuou:
- Forma inquietadora e estranha... febre intensa, fraqueza comatosa, delírio
contínuo... Haverá hemorragia? Vigio e, receando o pior, emprego todos os
meios preventivos. Fui eu quem exigiu esse silêncio absoluto em volta dela.
Visto que é médico, deve reconhecer que era meu dever, neste caso; tenho a
impressão de que o menor choque a mataria... Farei tudo para a salvar, mesmo
que calque os direitos da família... ou os do coração.
Calou-se, olhou longamente para o rapaz, e depois perguntou:
- É o noivo?
- Estamos ligados indissoluvelmente - disse Sacha, com firmeza.
- Amor contrariado pela família? - insistiu o médico, que notara a ambiguidade
da resposta.
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- Amor ignorado, mas nada pode agora quebrá-lo! Por momentos, os dois homens
olharam-se e compreenderam-se.
- E diz que ontem nada fazia prever semelhante crise?
- Absolutamente nada! Deixou-me, cheia de saúde e risonha, às sete horas da
tarde... um pouco aborrecida, talvez, pelo jantar de cerimónia a que tinha de
assistir.
O médico reflectia:
- Em duas horas podem passar-se muitas coisas - notou, a meia voz - Somente
sei o que me disseram. No fim do jantar, levantou-se, deu um grito e caiu
desmaiada. Nada, aparentemente, parece justificar a doença.
Calou-se, fez um gesto vago, e depois observou:
- Despediram todo o pessoal e não compreendi porquê, a menos que não seja por
medida de precaução contra si, que poderia ter inteligência na praça.
E, com autoridade, concluiu:
- Trato-a, sem me preocupar com as coisas que poderiam ter-lhe abalado a
saúde. Farei quanto puder para a salvar.
- E esse estado durará muito tempo?
- Receio-o bem... provavelmente, algumas semanas!
E, olhando-o fixamente, acrescentou:
- O senhor é médico; sabe o que estas palavras querem dizer, nada lhe
ocultei... É preciso saber esperar.
Levantou-se.
- Falei-lhe como homem e como colega, segundo a minha consciência me ordenou.
Queira esquecer quem o informou.
- Juro-lhe e agradeço-lhe...
- Não me agradeça; foi apenas um acto de humanidade perante o seu desespero...
E, sempre impassível, mesmo glacial, indicou a porta ao visitante.
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XXXV.
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- É provável que esse motorista, se era ele, não se informasse por sua
conta... trata-se, certamente, doutra pessoa!
- Então, é preciso conhecer esse outro.
- Talvez o acaso no-lo indique - disse ela, com aparente resignação.
Mas, no fundo, desconfiava das tolices do marido. Teria realmente sabido tirar
do médico todas as informações desejadas?
Havia dezoito anos que casara com o milionário e não ignorava o seu génio
arrebatado e intransigente. Por qualquer insignificância arquitectava
tempestades e transformava-se em déspota. Sabendo como no' fundo era bom e
generoso, havia muito que tomara o partido de proceder como entendia.
Era a melhor maneira de não levantar mal-entendidos entre eles, porque o
milionário, por uma singular forma do seu carácter, nunca se zangava perante
uma realidade. Quando qualquer coisa em que não tinha sido ouvido resultava
mal, exprimia apenas o pesar de não ter sido consultado. E empregava toda a
boa vontade para lhe atenuar os maus resultados.
O acordo era perfeito entre marido e mulher.
Foi por todas estas razões que a senhora Jourdan-Ferrières interrogou
pessoalmente o médico, confessando-lhe que o fazia às escondidas do marido.
- Doutor... esse rapaz de quem falou é um motorista, não é?
- Um motorista? Não, minha senhora. É um colega meu.
- O quê? Um médico! - exclamou, assombrada.
- Sim - confirmou ele - Um médico de origem russa, mas que estudou em França.
- Russo, sim, mas é motorista.
- Ora essa!... Trata-se do príncipe Isborsky.
O espanto da senhora Jourdan-Ferrières chegou ao auge.
- Então não sei, não vejo... Se tem a certeza de que ele procedia por conta
própria...
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- Saiu de Paris?
- Assim mo disse.
E como a senhora Jourdan-Ferrieres ficasse aterrada, o médico insinuou:
- Espero, contudo, que possuindo um nome e uma posição bastante distinta, o
príncipe Isborsky não desaparecesse sem deixar vestígios. É natural que o
possa encontrar.
A mulher do milionário informou-se, discretamente, entre as pessoas com quem
Micaela se dava, mas nada conseguiu descobrir.
E adquiriu a certeza absoluta de que, se o nome de Alexandre Isborsky era
conhecido na Faculdade de Medicina, era totalmente ignorado dos seus amigos e
conhecidos. De resto, os acontecimentos precipitaram-se, não permitindo por
mais tempo as suas buscas em Paris.
XXXVI.
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Ora entre esses anéis, cheios de brilhantes, um anel de prata, que lhe parecia
modesto e de valor, insignificante, despertou a atenção da religiosa.
Era a aliança que o príncipe Isborsky enfiara no dedo de Micaela... um anel
semelhante àquele que a religiosa usava desde o dia em que pronunciara os seus
votos como esposa do Senhor.
E, na simplicidade do seu coração, compreendeu que essa aliança simbólica, mas
pouco decorativa, só podia estar misturada com as deslumbrantes jóias de
Micaela por representar para ela qualquer recordação
preciosa.
Visto que a febre declinava, a irmã pensou em pôr no dedo da doente o anel que
talvez nunca devesse ter deixado o seu lugar.
Primeiro, colocou-o no anelar esquerdo de Micaela; depois, lembrando-se que
lho notara na outra mão, tirou-o e enfiou-lho no anelar direito. O gesto de
tirar e pôr o anel, como na cerimónia do seu casamento, na igreja russa,
despertaria na doente o subconsciente que dormitava? Abriu os olhos, e a
religiosa, cheia de alegria, viu neles um clarão de fugitiva comoção.
Conservou-se ainda durante bastante tempo imóvel, mas como a religiosa,
notando o dedo emagrecido, se dispunha a tirar o anel para se não perder,
Micaela dobrou o dedo, impedindo assim que lho tirassem.
E, a seguir, a irmã de caridade, maravilhada como perante uma ressurreição,
viu a doente abrir os olhos, passeá-los vagamente em redor do quarto e,
levantando lentamente a mão pálida, diáfana, cheia de grossos veios azulados,
fixar o olhar no dedo onde estava o círculo de metal.
- Sacha! - murmurou, com voz muito clara.
O braço recaiu-lhe logo, fatigado pelo esforço.
Depois, adormeceu.
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De resto, havia uma coisa que depunha contra Sacha. Bem quisera repelir essa
ideia, para não sobrecarregar o homem a quem amava, mas os factos lá estavam
terrivelmente inquietantes. Esse senhor de Brésmesnil, que ele afirmava ser o
velho pintor, e que se parecia tão pouco com o João Bernier da miserável
mansarda.
Esse era um facto incontestável. Micaela dera mais de sessenta mil francos, e
havia muitas probabilidades de que o desgraçado velho ainda continuasse em
Menilmontant... apesar do falso notário, dos falsos papéis e da pensão.
Havia mais duas maletas, levadas para casa de Sacha, cheias de coisas
preciosas, como jóias de sua mãe, as suas, o famoso colar de pérolas, todos os
presentes e lembranças que recebera, o que representava bastante valor.
Sacha, evidentemente, não lhe dissera que as levasse, mas achara natural que o
fizesse... e isso também devia fazer parte das possibilidades calculadas!
Nesse círculo atroz de suposições, todas deveras aflitivas, o seu pensamento
lúcido molestava-a incessantemente.
XXXVII.
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- Minha irmã, disse-me que estava disposta a auxiliar-me. Pois bem! Está na
sua mão fazer cessar uma inquietação que me atormenta.
- O que é preciso fazer?
- Ir procurar um joalheiro desta cidade e pedir-lhe que venha a esta casa,
para avaliar uma jóia... dizendo-lhe que se lhe pagará o seu trabalho.
- Se é apenas isso que a pode tranquilizar...
- Sim, só isso... Mas queria que escolhesse a ocasião em que meus pais
estivessem ausentes, para o trazer. Fatigar-me-ia enormemente ter que lhes dar
explicações.
A religiosa hesitou... Devia prestar-se àquele desejo? Mas a sua doente estava
tão fraca, tão deprimida, que não seria uma crueldade recusar-lhe o seu
primeiro pedido?... Tanto mais que Jourdan-Ferrières fizera-lhe prometer que
não lhe recusaria coisa alguma...
Então, a humilde serva de Deus prometeu a Micaela agir como ela desejava. E,
nessa tarde, pôde dar-lhe a satisfação de lhe trazer o joalheiro.
A irmã disse a Micaela que lho tinham indicado como sendo uma pessoa da maior
confiança.
- Incomodei-o para lhe pedir um conselho... ou antes, uma avaliação. Abusei,
talvez, do seu precioso tempo, mas perdoará, estou certa, o capricho de uma
doente, que não podia ir a sua casa e tinha pressa...
Sorria tão meigamente e era tão jovem que o homem ficou encantado com tanta
graça.
- Estou às suas ordens, mademoiselle. Disponha de mim.
- Há dois meses que estou de cama e as minhas jóias ficaram em Paris. Restam-
me apenas estes dois anéis e uma aliança. Quer dizer-me quanto valem?
Primeiro, entregou-lhe a aliança, e a religiosa leu-lhe no rosto tal
ansiedade, que, instintivamente, se dirigiu para ela, pronta a socorrê-la,
caso fosse necessário.
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O seu bem-amado Sacha não podia ser acusado de ambicioso, visto que lhe
colocara no dedo uma fortuna!
Evocava a cena e a simplicidade com que ele lhe entregara o anel... nem sequer
dizendo a menor palavra acerca do seu valor.
E corou subitamente, lembrando-se da mesquinhez com que sublinhara o valor do
seu solitário.
John amava-a tanto, era tão indulgente com ela, que apenas, em resposta à sua
miserável observação, respondera:
"Não é tudo tão belo e verdadeiro entre nós?"
Frase maravilhosa, que mal notara, e agora lhe parecia mágica e benéfica como
um talismã.
Pelo único poder de um anel, de pedras verdadeiras, e por uma frase que lhe
penetrara na alma, encontrava novamente Sacha, o bem-amado, o esposo
adorado...
E, puerilmente, como uma criança beija a sua boneca depois de um grande
desgosto, Micaela, esquecendo aqueles que estavam junto de si, cobriu de
loucos beijos o anel e a aliança.
A religiosa, um pouco confusa perante esta exuberância da sua doente, voltou a
cabeça, embaraçada, mas o velho joalheiro sorria, cheio de indulgência.
Micaela estava ainda muito fraca e tantas comoções, mesmo muito agradáveis,
tinham-na despedaçado de fadiga. Exausta, deixou-se cair sobre os almofadões,
com o rosto pálido, velando-se-lhe os olhos com súbita fraqueza.
O joalheiro retirou-se discretamente. A religiosa hesitou um segundo entre a
doente e o homem que saía.
A primeira podia esperar os seus cuidados mais uns momentos. E, como as três
semanas de delírio de Micaela lhe tinham dito muita coisa, decidiu-se a segui-
lo.
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- Pedia-lhe que guardasse segredo da sua visita à minha doente - disse ela,
chegando junto do joalheiro.
- Com a melhor vontade, minha Irmã. Ninguém tem nada que ver com isso.
- E queria pedir-lhe também para não falar nas confidências... nos nomes que
mademoiselle pronunciou.
Como percebesse o espanto do joalheiro, corou, acrescentando rapidamente:
- Tenho notado... parece-me que o pai não aprovava... enfim, o noivo foi posto
de parte.
- Pobres apaixonados!
- Sim, a minha doente esteve a morrer.
O joalheiro meneou a cabeça; a experiência que tinha dos frequentadores de
Trouville fazia-lhe adivinhar muitas coisas.
- O senhor Jourdan-Ferrières é fabulosamente rico e julgo que a revolução
russa deve ter empobrecido consideravelmente o príncipe!
- Talvez - concordou a enfermeira.
- Esteja descansada, Irmã: nada direi. De resto, são coisas que não me
interessam. Vá tratar da sua doentinha, e creia que já me esqueci de que vim a
esta casa.
Cumprimentou-a e afastou-se. A religiosa, ainda confusa, mas muito satisfeita,
voltou para junto de Micaela.
XXXVIII.
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E foi por isso que, sentindo dezenas de vezes o desejo de escrever a Sacha
para o sossegar e afirmar-lhe a sua ternura, o não fez. Não sabendo a sua
direcção em Londres, poderia ter feito chegar-lhe a carta por intermédio de
João Bernier, ou pelo casal russo que morava com ele, na casa de Paris.
Mas, sempre que sentia esse desejo imperioso de se corresponder com o seu bem-
amado, Micaela repelia a tentação, com um secreto receio que não podia
dominar.
Sacha amava-a, era sincero, e ela tinha confiança no seu amor, mas nada
provara que, em volta dele, amigos menos escrupulosos, dos quais podia talvez
ser inconsciente cúmplice, não se movessem.
A incompreensível atitude de Jourdan-Ferrières, desviando toda a gente do seu
convívio, dava-lhe sérias apreensões. A enfermeira afirmara-lhe que fora o
médico quem exigira absoluto sossego, e a resolução do pai era natural. Mas
Micaela não se conformava. Porque tinham despedido o pessoal? Porque tinham
afastado Landine, que lhe era tão dedicada? E, enfim, porque tinham posto fora
Sacha, quando viera saber notícias?
Interrogada sobre estes factos, a senhora Jourdan-Ferrières, não querendo
confessar a Micaela as malévolas suposições do pai, desviara prudentemente as
perguntas. E essa atitude circunspecta só servira para aumentar o seu mal-
estar. Então, preparando-se em segredo para ir ter com Sacha, queria, primeiro
que tudo, fazer em Paris umas investigações.
Mas, para partir, precisava de dinheiro, e actualmente não o tinha. Um dia em
que o pai se mostrara particularmente amável com ela - trouxera-lhe flores,
guloseimas, um bonito relógio de pulso... não se deve animar os
convalescentes? - Micaela aproveitou o ensejo para lhe fazer um pedido.
- As minhas malas estão em Paris, paizinho, e não tenho nada que vestir.
- Vamos mandá-las buscar.
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Mas este tinha a sua ideia e, brincando com o livro de cheques, parecia
prometer-lhe uma recompensa se ela falasse.
Micaela, que não esperava a pergunta do pai, corou bruscamente. Mas não
hesitou:
- Que tem o nome de John com a minha lealdade?
- Queria saber por que razão teve esse rapaz a audácia de vir pedir-me
notícias tuas.
- Devias ter-lhe perguntado.
- Sabes que levou a inconsciência até querer penetrar no teu quarto?
- Dá-me grande prazer saber isso - respondeu Micaela, com pálido sorriso -,
Aborreceu-me, por vezes, com a sua infinita correcção.
- Parece não quereres perceber a pergunta que te fiz, Micaela... e pedi que
respondesses lealmente.
- Lealmente? Essa palavra na tua boca, dirigindo-se a mim, não me agrada, meu
pai. Notei muitas vezes que usavas dela com os teus concorrentes, para
servires os teus interesses. Quando lhes pedias que respondessem lealmente,
sobre qualquer assunto financeiro, em geral, não era para bem deles que
falavas...
- Micaela! - gritou Jourdan-Ferrières, levantando-se bruscamente - Parece que
me faltas ao respeito.
- Pelo contrário; julgo prestar homenagem à tua habilidade de financeiro e de
fabricante, que soube fazer brotar do nada uma fortuna imensa... Mas deixa-me
que, em família, desconfie das respostas que tiver de dar-te lealmente...
- Quer dizer que não queres responder? - replicou o pai, enervado.
- Enganas-te, não recuso; permite-me, porém, que devolva a pergunta: dize-me
lealmente, papá, por que razão, a propósito do dinheiro que te peço, fazes
intervir o nome do meu antigo motorista? Então, meu pai, concretiza lealmente
o teu pensamento.
Trémula, com as faces coradas pela febre, olhava para o pai, com um olhar
desvairado.
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Não pôde acabar. A senhora Jourdan-Ferrières pegara-lhe num braço e arrastava-
o para fora do quarto.
- Espera, espera - disse - Não sou nenhum selvagem.
Rabiscou um cheque e entregou-o.
- Aqui tens dois mil francos; isto representa algumas chávenas de chá.
- Visto que estás com a mão na massa, dá-me também qualquer coisa - reclamou a
esposa do milionário -, Perdi, ontem, ao bacará, bastante dinheiro.
- Quanto? - perguntou ele, sem pestanejar, e quase feliz por mostrar à filha
que continuava a poder assinar cheques valiosos.
- Muito, o mais possível! Preciso de pagar o que perdi, e recomeçar esta
noite.
- Chegam-te cinquenta mil francos?
- Por hoje, sim, mas não garanto que amanhã não precise de mais.
- Vocês arruinam-me! - disse o milionário, sorrindo. E, voltando-se para a
filha, deu-lhe uma palmadinha na cara:
- Vamos, cura-te depressa, pequena, para despejares os armazéns.
E ria, feliz, pela partida que julgava ter pregado a Micaela, não reparando na
sua palidez.
A diferença que o pai marcara entre a madrasta e a enteada ferira o orgulho
desta. Não repelira as carícias do milionário, mas, estendendo o cheque de
dois mil francos à religiosa, disse com o seu aspecto cansado:
- Aceite, minha irmã, e mande isto à comunidade, para os orfãozinhos. Quero
agradecer àqueles que oraram por mim, durante a minha doença. Não é muito, mas
é dado de todo o coração.
E, fechando os olhos, pareceu dispor-se a dormir.
Espantado, o pai olhou para a convalescente, que estava muito pálida. Na
penumbra do aposento, as suas faces cavadas, os olhos rodeados de um círculo
roxo, fechados, davam-lhe a aparência de um cadáver.
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- É tudo quanto há de mais natural que te ajude, visto que ainda estás muito
fraca, filha... Que queria eu dizer-te mais? Sim, é a respeito do cheque: bem
sabes que não perdi nada ao jogo, e que não preciso desse dinheiro. Mas,
quando vi o procedimento de teu pai, irritei-me... Às vezes, não percebe as
nossas necessidades...
- Quando quer, é bom. Mas agora, comigo, nem sempre quer.
- Ouve, minha querida Micaela, não te assustes com aqueles repentes. No fundo,
é um bom pai, e adora-te! Toma, guarda o cheque, é para ti...
- Mas... não quero privar-te dele, mãe... - protestou Micaela, comovida.
- Precisas desse dinheiro, meu amor... Com teu pai é inútil pedir...
aconselhar ou reprovar! É melhor colocá-lo em face dos factos consumados; e,
então, tudo caminha por si mesmo... Mas eu sou sua mulher, o meu dever é
sustentar a sua autoridade paterna, e não poderei ajudar-te sempre... Guarda,
guarda esse dinheiro, minha filha, e... faz dele o que entenderes. Tenho
confiança em ti!
Micaela olhava para a madrasta, sensibilizada.
- Mãe, como hei-de agradecer-te! Como és boa!
- Também fui rapariga e amei loucamente teu pai; se tivessem querido separar-
nos, creio... sim, creio que teria ido ter com ele! Somos algumas vezes,
obrigadas a construir, por nossa própria mão, a nossa felicidade. Enfim, por
agora, sossega e trata de ti... mas seja o que for que te aconteça na vida,
lembra-te que sou sinceramente tua amiga e que podes contar com a minha
afeição.
Beijou ternamente a enteada e durante uns segundos as suas lágrimas
confundiram-se. E como Micaela quisesse falar, a madrasta colocou-lhe um dedo
sobre os lábios.
- Silêncio, minha querida filha. Não fales... nada mais temos a dizer! Até
amanhã, e dorme bem!
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"Meu pai
"Quando leres esta carta, já estarei longe. Não te inquietes a meu respeito,
nem mandes procurar-me; sou maior e reflecti muito antes de agir. Nada me
faria agora mudar de resolução. Sigo o meu destino. Penso conseguir que a
minha enfermeira me acompanhe: cuidados e respeitos não me faltarão pelo
caminho. Se a doença que me reteve presa por tanto tempo perturbasse a minha
vida, a ponto de que as coisas favoráveis se me tornassem hostis, nem mesmo
assim voltaria para casa. Prefiro trabalhar e ganhar a minha vida, a casar com
um homem de quem não goste e a quem escolhesse para te ser agradável, ou para
que pusesses o teu cofre à minha disposição.
"Não me queiras mal por não te obedecer. Dizendo-me o que tinha a esperar de
ti, deste-me a liberdade de escolher... e prefiro renunciar às vantagens da
tua fortuna. A minha querida mãe não era rica quando morreu. Nada tenho, pois,
a esperar além do que me proporcione o meu trabalho e o do marido que escolhi.
"Se os acontecimentos me forem benéficos, tornar-me-ás a ver um dia, visto que
não precisarei de auxílio; se não, esperarei que a sorte mude e me sorria...
Todo o meu desejo é não te obrigar a fazer o que não queres. E não te zangues
comigo, paizinho, porque não é para te contrariar que não te obedeço; tu
querias que eu fosse, a teu lado, fabulosamente rica, e eu só desejo uma
coisa: ser feliz.
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O Destino quis, contra minha vontade, que eu amasse um homem bem educado, mas
pobre! E todos os meus desejos não podem mudar este estado de coisas...
Sujeito-me a uma fatalidade que não quis nem procurei, e à qual obedeço, visto
não estar em meu poder resistir-lhe.
"Até um dia, meu pai. Partilha com minha madrasta, que foi para mim uma
verdadeira mãe, todos os meus sinceros beijos, e crê no respeito da tua filha
muito amiga
Micaela
O milionário, que voltava de Cabourg, onde passara o dia com sua mulher e
alguns amigos, teve de ler várias vezes a carta, para compreender que a filha
saira da sua casa. Foi para ele um golpe muito rude, visto que a carta de
Micaela o colocava em face de um facto consumado, não lhe permitindo discutir
ou fazer concessões.
Sem dizer palavra, entregou a carta a sua mulher e, depois dela a ler,
vociferou:
- Que me dizes da força de vontade dessa pequena? Nada pôde fazer-lhe mudar as
ideias... e agora já não há dúvidas de que tinha os seus projectos quando me
interrogou a propósito de Molly Burke.
- É possível.
- A doença retardou, apenas, a sua execução.
- A não ser que precipitasse os acontecimentos.
- Como assim?
- Nota, meu amigo... que Micaela parece não ir muito segura do que vai
encontrar à chegada. Emite a ideia de que as coisas favoráveis podem tornar-se
hostis...
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- Com os diabos! Tens razão! A pobre garota corre, talvez, para uma decepção!
E releu a carta da fugitiva, analisando bem cada palavra.
- Não é um cântico de vitória que a minha pequena me dirige! - murmurou,
comovido - É quase a carta de uma desesperada, impelida pela fatalidade.
- Não se abandona assim a família, sem pensar - notou a madrasta, subitamente
agitada.
- Mas, enfim - gritou o milionário, com indignação - ela bem sabe que não está
só no Mundo e que pode contar comigo, apesar de tudo!
- Desgraçadamente, disseste-lhe o contrário...
- Então, então... não me apoquentes. Todos os pais procederiam como eu... e
isso não impede que os filhos contem com eles.
- Evidentemente, tens razão. Esperemos os acontecimentos.
- O quê? Esperar?
- Não podemos fazer mais nada.
- Essa agora! Vou tentar, imediatamente, encontrar a minha filha.
- Para a trazeres, à força, para casa? Já te preveniu que não voltaria.
- Não se trata de a trazer. É preciso arranjar as coisas. O homem com quem
ela partiu tem de a desposar, se realmente não é indigno disso.
- É justamente o que me inquieta. Micaela foi ter com ele. Encontrá-lo-á? E
em que disposição? A sua doença interrompeu o idílio, e esse homem não parece
tê-la procurado aqui.
- Julgas então que não ama Micaela?
- Ou, pelo menos, que as medidas radicais que tomaste para a isolar dele o
tenham desanimado.
- Dize, antes, que ao saber que eu não tomava parte na combinação, arrefeceu!
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- A menor complicação, a mais pequena demora, pode esgotar uma bolsa. Sinto-me
horrorizado só em pensar que a minha pobre Micaela pode conhecer os horrores
da fome...
Esta suposição tirava toda a energia ao milionário.
Aquele homem, que hoje gastava à larga, esquecia o tempo em que uma nota de
cem francos lhe durava para muitos dias.
- Se é a questão do dinheiro que te aflige, telefona já ao porteiro da Avenida
Marceau e dá-lhe ordem para que Micaela tenha dinheiro à sua disposição, se
for ao palácio.
- É, realmente, uma boa ideia. Mas vou fazer melhor. Vou eu mesmo levá-lo a
Paris. Estarei lá em poucas horas.
A mulher não conseguiu fazê-lo desistir da viagem.
- Não corro atrás de Micaela - repetiu -, Mas, se puder ajudá-la, assim o
farei. A pequena não tem experiência alguma da vida, ignora que os mais
sinceros apaixonados têm estômago como os outros mortais.
Febrilmente, o milionário mandou prevenir o motorista, e deu ordem para lhe
prepararem a maleta.
Logo que ele partiu, a senhora Jourdan-Ferrières correu ao telefone e pediu
ligação para casa do doutor Rimbert. Ele saira, e a pobre senhora teve de
esperar muito tempo primeiro que conseguisse falar-lhe.
Esperava-a uma decepção: o príncipe Isborsky não dera sinal de vida desde
aquele dia em que procurara o médico.
Ao acaso ligou para a comunidade das religiosas enfermeiras, da qual dependia
a irmã que tratava de Micaela.
Soube que a Superiora daquela casa indeferira o seu pedido; os regulamentos da
Ordem não permitiam às Irmãs sair de França, e mademoiselle Jourdan-Ferrières
prevenira que ia para Inglaterra.
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A não ser esta informação, que realmente indicava a partida de Micaela para o
estrangeiro, a mulher do milionário nada descobriu que lhe permitisse um
resultado satisfatório.
Jourdan-Ferrières, pelo seu lado, em vão tentou encontrar a filha. Esta não
aparecera na Avenida Marceau, nem visitara nenhuma amiga.
Muito desanimado, voltou a Deauville, para junto de sua mulher, depois de ter
encarregado um detective de procurar a filha.
Apenas restava, pois, aos pais, aguardar os acontecimentos. Micaela prometera
dar-lhes notícias; era impossível que lhes não escrevesse, mesmo se a sorte
lhe fosse adversa.
XL.
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Numa visita que fez também à baronesa Colensky, soube que esta, graças à
amabilidade das religiosas, conseguira comunicar a seu primo notícias da
doente.
A certeza de que Sacha nunca se desinteressara da sua sorte deu a Micaela
absoluta confiança no futuro. E a sua fé numa próxima felicidade era tal, que,
antes de embarcar em Diepa, não pôde resistir ao desejo de tranquilizar a
madrasta, escrevendo-lhe um bilhete apenas com as seguintes palavras:
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Motorista, médico ou príncipe, não sabia ao certo o que supor! Durante semanas
procurara todas as ocasiões de se informar sobre os Russos exilados em Paris e
descobrira infortúnios, os quais, por serem principescos, não eram menos
complexos.
E o belo e enigmático rosto de John prestava-se, nesse sentido, a todas as
suposições.
XLI.
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Quinze dias depois, Micaela escrevia a seu pai, já então mais sossegado, as
seguintes linhas:
Micaela"
Depois de ler esta carta, o milionário ficou louco de alegria. Sua filha era
princesa! Micaela sabia fazer as coisas!
Muito exaltado, dirigiu-se aos aposentos da esposa:
- Micaela escreveu-me! E não és capaz de imaginar a novidade que me dá! Vá,
tenta adivinhar o título do marido?
A boa senhora sorriu. Esteve quase a pronunciar o nome do príncipe Isborsky,
que lhe acudia aos lábios, mas lia-se tal contentamento no rosto do marido que
não quis roubar-lhe o prazer de ser ele a dizê-lo.
291
FIM
Data da Digitalização