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Cigarro “companheiro”: o tabagismo feminino


em uma abordagem crítica de gênero

Cigarette as “companion”: a critical gender


approach to women’s smoking

Márcia Terezinha Trotta Borges 1


Regina Helena Simões-Barbosa 2

Abstract Introdução

1 Hospital Universitário This article presents the main results of a study “Me dói mais [a morte do filho] que a fome que
Clementino Fraga Filho,
Universidade Federal do Rio
that examined the symbolic and material mean- eu passei na infância... . [O cigarro] é pra ficar
de Janeiro, Rio de Janeiro, ings of women’s smoking, adopting a critical and bem mais forte, porque a gente não é tão forte... .
Brasil. qualitative gender approach. Semi-structured O cigarro passava a sensação.... me sentia muito
2 Instituto de Estudos em

Saúde Coletiva, Universidade interviews were held with 14 women smokers forte... .” (depoimento de uma entrevistada ao
Federal do Rio de Janeiro, in different stages of the smoking cessation pro- expressar, em lágrimas, a dor pelo filho assassi-
Rio de Janeiro, Brasil.
cess. The research locus was a tobacco treatment nado).
Correspondência program located in a public hospital in Rio de “... É uma carência, é uma luta muito solitária
M. T. T. Borges Janeiro, Brazil. The findings showed how deeply que a mulher tem... . E o cigarro é o apoio” (depoi-
Núcleo de Estudos e
smoking is interwoven in these women’s social mento de uma entrevistada com câncer, sem ter
Tratamento do Tabagismo,
Instituto de Doenças do and gender trajectories, playing a decisive sup- com quem dividir o medo da morte).
Tórax, Hospital Universitário port role when they have to deal with various Os depoimentos acima, extraídos da pesqui-
Clementino Fraga Filho,
Universidade Federal do
difficulties in life. The cigarette as a “compan- sa que será aqui apresentada, indicam o quanto
Rio de Janeiro. ion” emerged as the main empirical category, as o tema “tabagismo feminino” é complexo, abar-
Av. Professor Rodolpho something always available to quell anxiety and cando da fragilidade e solidão femininas à garra
Rocco 255, 3 o andar, Prédio
do Hospital Universitário
loneliness, as well as a source of pleasure and re- e coragem de tantas mulheres que, apesar das
Clementino Fraga Filho, laxation. The critical gender approach evidenced inúmeras adversidades com que se defrontam
Cidade Universitária, how women’s reproductive and productive work nas labutas cotidianas, encontram forças para
Rio de Janeiro, RJ
21941-913, Brasil.
overload reinforces their tobacco dependency. In enfrentar e superar as muitas dificuldades do
marciatrotta@iesc.ufrj.br health care, in order to attain women smokers’ viver.
marciatrotta@gmail.com adherence to the arduous cessation process, it is Frente a uma sociedade que continua a exi-
crucial to consider the complex relations between gir que as mulheres sejam verdadeiros “Atlas” – o
social and gender dimensions when cigarettes Deus da mitologia grega que carrega o mundo
are viewed as a “companion”. nas costas 1 – , o cigarro torna-se, como esta pes-
quisa pretende revelar, um importante apoio no
Smoking; Smoking Cessation; Women enfrentamento dos embates da vida, cobrando,
porém, um alto preço pelo amparo e prazer pro-
porcionados.
Os dados desta pesquisa mostram a necessi-
dade de se identificar questões relevantes para os

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O TABAGISMO FEMININO EM UMA ABORDAGEM CRÍTICA DE GÊNERO 2835

profissionais de saúde no campo do tabagismo, grama de cessação em um hospital público do


enfatizando a urgência de se ampliar o conheci- Rio de Janeiro, Brasil 5.
mento e a assistência à saúde por meio de maior
interlocução entre diferentes saberes. O debate
interdisciplinar é, portanto, imprescindível para Referencial teórico-metodológico
o avanço das práticas assistenciais em saúde, em
especial aquelas relacionadas ao tabagismo. Para a análise do “fumar feminino”, partimos do
Algumas premissas do campo da Saúde Co- paradigma conceitual das Ciências Sociais e Hu-
letiva fundamentam este trabalho que, por inter- manas, adotando, particularmente, um conceito
médio do aporte das Ciências Sociais e Huma- crítico de gênero. Ao considerar como dimensões
nas, pretende enriquecer a compreensão do “ta- constituintes do universo humano a subjetivi-
bagismo feminino”. O ponto de partida ancora-se dade, a representação simbólica e os significa-
em uma crítica ao chamado modelo biomédico dos atribuídos pelos sujeitos ao fenômeno em
que, baseado em uma concepção mecanicista de análise, e entendendo que estas dimensões estão
corpo, reduzido à sua dimensão biológica indivi- dialeticamente relacionadas às condições sociais
dual, desconsidera as outras dimensões da vida mais amplas, este referencial permite a supera-
humana e, assim, reduz a assistência à saúde a ção da abordagem restrita ao risco epidemioló-
uma intervenção orgânica, individual, racional gico, conferindo à análise maior abrangência, in-
e objetiva 1,2,3. Nesse modelo, ainda hegemôni- tegralidade e contextualização. Pretende, assim,
co, a busca por sinais e sintomas visando a uma subsidiar as possíveis (e desejáveis) transforma-
intervenção “técnica” relega a um segundo pla- ções das práticas assistenciais, rumo a uma as-
no os determinantes sócio-culturais, políticos e sistência integral à saúde, tal como proposto, há
subjetivos que perpassam os processos saúde e décadas, pelo movimento de mulheres 3,6.
doença, o que inclui, como é aqui postulado, a O conceito de gênero transversal, tal como
dimensão de gênero. aqui postulado, considera que a dimensão de
As atuais estratégias assistenciais para o en- gênero está entrelaçada às de classe social e ra-
frentamento do tabagismo, divulgadas por meio ça/etnia 5,6,7,8,9,10,11. Conceitualmente, insere a
de consensos e políticas governamentais, por dimensão de gênero no interior das outras rela-
vezes desconsideram, reduzem ou simplificam ções sociais e, dialeticamente, reconhece as desi-
as complexas dimensões da vida humana. Esca- gualdades sociais dentro das relações de gênero,
pam a esse modelo, de forma fugaz, tanto a sub- não se descolando das condições materiais de
jetividade dos sujeitos implicados quanto as de- existência que circundam e condicionam as pos-
terminações sócio-econômicas e culturais que sibilidades de escolha e autodeterminação dos
perpassam as singularidades humanas, incluso indivíduos, homens e mulheres. No presente tra-
as contradições de gênero. Assim, propomos balho, esse referencial busca relacionar o fumar
aqui que, enquanto profissionais de saúde, seja feminino às condições objetivas e subjetivas das
no campo da teoria ou da prática profissional, mulheres na (desigual) sociedade brasileira, con-
devemos questionar e repensar nossos olhares e siderando-se a dialética entre as esferas produti-
posturas se pretendemos, ao invés de, simples- va e reprodutiva.
mente, “retirar o cigarro”, efetivamente apoiar Metodologicamente, a abordagem qualita-
os tabagistas, homens e mulheres, no esforço tiva adotada visou a captar e compreender as
para se libertarem de uma severa dependência vivências subjetivas, simbólicas e concretas dos
que acarreta tão graves implicações à vida e à sujeitos da pesquisa, além de fortalecer, episte-
saúde. mologicamente, uma concepção de ciência an-
Em se tratando de mulheres tabagistas, o pre- corada no diálogo e na possibilidade de cons-
sente trabalho parte de um campo de conheci- trução compartilhada do conhecimento 12,13. O
mento teórico e empírico ainda inexplorado, sem tratamento dos dados foi realizado usando-se a
referências de estudos que utilizem a abordagem abordagem hermenêutico-dialética, buscando-
de gênero. Em artigo anterior 4, empreendemos se captar, no discurso dos(as) sujeitos(as) da pes-
uma leitura sociológica crítica sobre as tendên- quisa, o movimento dialético da sociedade em
cias epidemiológicas do tabagismo que confir- suas expressões materiais e simbólicas, objetivas
maram o quanto as determinações de gênero es- e subjetivas. Para o referencial hermenêutico-
tão (também) entrelaçadas a este problema. dialético, a fala, o depoimento, a narrativa são
No presente estudo, apresentamos os resul- resultantes de um processo social e de um pro-
tados de uma pesquisa realizada em 2006 que cesso de conhecimento, cada qual com significa-
investigou, por meio de abordagem qualitativa, do específico, porém, articulados entre si 14,15.
as marcas de gênero no “fumar feminino” em O instrumento de coleta dos dados foi a en-
mulheres tabagistas que freqüentavam um pro- trevista semi-estruturada; por meio dela, bus-

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cou-se captar as dimensões das experiências de Histórias de vida: iniciando uma


vida, sentimentos, crenças, valores e atitudes reflexão de gênero
das entrevistadas, além das singularidades em
meio às diversidades culturais e sociais 16. Os Tendo por objetivo apreender as formas como
temas abordados foram as trajetórias de gênero o fumar feminino está imbricado nas trajetórias
entrelaçadas às histórias sócio-familiares, as ex- constitutivas da identidade de gênero, as entre-
periências com o tabaco, a compreensão sobre vistadas foram convidadas a trazer à cena da en-
os significados do “fumar feminino” e, por fim, a trevista suas histórias de vida e seus contextos
avaliação do programa de saúde oferecido. sócio-familiares. É importante destacar que a
O lócus do estudo foi um programa de cessa- pesquisa abordou mulheres maduras, com vidas
ção do tabagismo de um hospital público federal relativamente estabilizadas e uma capacidade de
situado no Município do Rio de Janeiro, Brasil. reflexão crítica facilitada pela maturidade.
Foram realizadas 14 entrevistas, com duração
média de uma hora e meia cada. O universo es- Infância e juventude: a dura luta
tudado abarcou mulheres em diferentes etapas pela sobrevivência
de tratamento, com vistas a incorporar a diversi-
dade de situações e momentos deste processo. As histórias narradas revelaram um cenário de
A pesquisa foi submetida ao Comitê de Éti- infância e adolescência marcado por privações
ca em Pesquisa do referido hospital e a adesão materiais, chegando, em alguns casos extremos,
ao estudo foi efetivada pelo Termo de Consenti- à dolorosa experiência da fome. Para 9 entre-
mento Livre e Esclarecido, elaborado conforme o vistadas, a situação familiar agravou-se após o
capítulo IV da Resolução nº. 196/96 do Conselho abandono ou falecimento paterno. O depoimen-
Nacional de Saúde. to de Vilma ilustra bem essas condições adver-
sas: “... quando eu completei 12 anos, o meu pai
sofreu um acidente... aí, mamãe não tinha como
Uma breve apresentação dar comida pra gente... e eu me lembro que ela foi
das entrevistadas na escola e tirou a gente pra trabalhar... . Eu fui
ser babá... parei de estudar e chorei muito, porque
A maioria delas (11) encontrava-se entre os 41 e eu tinha o maior prazer de ir pro colégio, mesmo
60 anos de idade; duas tinham menos de 40 anos de chinelo de dedo... eu não me importava, sabe...
e apenas uma mais de 60 anos. foi muito sacrificado, a gente acordava de manhã,
Metade das entrevistadas possuía baixa esco- não tinha nem o que comer”.
laridade. Porém, como esse programa também A maioria das narrativas apontou, em geral,
é procurado por profissionais do hospital, três para um processo de fragmentação sócio-fami-
entrevistadas tinham nível superior completo. liar que se iniciava na ausência da figura paterna,
Quanto à idade de iniciação no tabagismo, levando suas mães a assumirem o papel de pro-
três delas começaram a fumar entre 5 e 10 anos; vedoras e constituindo, assim, as “famílias che-
nove, entre 11 e 15; e duas, entre 16 e 19 anos. fiadas por mulheres”, comprovadamente as mais
Surpreendeu constatar que a maioria (9) expe- empobrecidas 9,6,17,18.
rimentou os primeiros cigarros em casa, acen- As brincadeiras de infância foram, para mui-
dendo-os para familiares próximos. As demais tas delas, substituídas pelo drama do trabalho
iniciaram na adolescência, com colegas de escola infantil, que interrompia precocemente a esco-
ou trabalho. Quanto ao tempo de tabagismo ati- larização: “Eu comecei a trabalhar, praticamen-
vo, quatro entrevistadas têm entre 25 e 30 anos, e te... eu não tinha nem 8 anos ainda... eu carreguei
dez mais de 30 anos. muita pedra [em obra], assim, nas latinhas de
Quanto ao tempo de abstinência na ocasião cinco [litros] de tinta, pra comprar um açúcar, um
da entrevista, duas entrevistadas ainda fuma- pão... a gente não tinha água encanada naquela
vam, sete se encontravam em abstinência – entre época, pegava água pros outros... . Os meus ami-
2 e 6 meses – e quatro há mais de um ano. guinhos, era tudo criança igual eu... a gente ia no
Sobre os motivos para a cessação, a preocu- poço junto buscar água... a gente não tinha tempo
pação com a saúde foi a principal razão alegada, pra conversa” (Vilma).
já que a maioria (10) apresentava problemas de Muitas relataram diversos tipos de violência,
saúde potencializados pelo uso do cigarro. Des- inclusive sexual, além da questão do alcoolismo
sas, apenas três foram orientadas por um médico de familiares:
a procurar ajuda, o que sugere uma grave lacuna “Quando ela [a tia] teve o último neném, a
no atendimento à saúde da população. mamãe me mandou pra casa dela pra tomar con-
ta dos filhos... . Justamente, no dia do nascimento
do filho dela, foi quando... eh... eu [risos nervosos]

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eu fui... é... estuprada... é ... no quarto dos filhos, Em casa, ele ia sair, ia jogar bola, ele ia assistir tele-
pelo marido dela... . Quando a bomba estourou visão, ele ia ler um livro, mas jamais fazer alguma
[quando souberam do fato], ... a vítima foi ele... . coisa” (Claudia).
Eu fui a vilã, fui eu que seduziu...” (Juliana). Mesmo admitindo o desemprego como uma
“Meu pai, ele estava no quarto deitado, assim, situação que fragiliza o provedor masculino,
mas a correia dobrada já, correia de couro cru que muitas julgam que os homens não investem na
ele tinha... ele me pegou pelo braço, já foi me pe- própria escolarização e não se empenham para
gando [batendo], mas foi uma coça que eu achei obter ou manter um emprego, mesmo quando se
exagero do meu pai... eu urinei o quarto todinho, trata de buscar provisões para a família:
de tanto que eu apanhei... meu corpo ficou todo “Eu acho que se [o homem] correr atrás, se
cheio de vergão” (Vilma, que apanhou por fazer procurar, acho que encontra alguma coisa pra fa-
desenhos com giz na parede externa da cozinha). zer, como a gente [mulher] encontra uma faxina...
“Ele [o pai] foi me buscar na escola dizendo não tem que ver [escolher] o serviço, tem que en-
que quem estudava à noite era... [sussurro] ‘pu- carar...” (Rafaela).
ta’... vagabunda!! [disse ele]” (Vilma, aos 17 anos, “Não, eles preferem se dedicar à bebida, ou de
quando trabalhava de dia e foi proibida de estu- repente, arrumar umas 10 mulheres pra amante,
dar à noite). pra suprir... eu não sei [o quê]...” (Juliana).
A capacidade de resistência frente a tantas “Aí, eles [homens] vão deixando muita coisa
adversidades foi por elas atribuída, especialmen- passar... muita coisa pra trás... aí, a gente vai to-
te, à maternidade, pelo desejo de proporciona- mando a frente... porque eles ainda tão naquela
rem aos filhos uma vida melhor. coisa do barzinho com os amigos... e enquanto
Esses cenários explicitam como as identida- eles tão no barzinho com os amigos, as mulheres
des de gênero vão sendo forjadas nas experiên- tão indo pra escola, entendeu? Enquanto eles tão
cias de classe e de raça/etnia. As situações de po- namorando 10, você tá fazendo outra coisa, tá se
breza, que freqüentemente geram desagregação especializando, tá arrumando outra atividade...”
familiar e violência, marcaram profundamente (Renata).
essas mulheres. Ao constituírem seus núcleos fa- Porém, nenhum depoimento sinalizou qual-
miliares, buscaram superar as limitações e cons- quer referência crítica a uma sociedade injusta
trangimentos colocados pelas inúmeras adver- e desigual e/ou aos processos que vêm gerando
sidades. As formas como se percebem enquanto extenso desemprego, precarização do trabalho,
gênero irá elucidar melhor essas questões. inclusive o feminino, entre outras conseqüências
que afetam, de forma dramática, as condições
Vale a pena ser mulher? As representações de subsistência de homens e mulheres da classe
de gênero trabalhadora.
Por outro lado, as entrevistadas identificaram
Sobre uma imaginária e lúdica possibilidade de numerosos atributos femininos “positivos”, ge-
poderem escolher entre a condição masculina e ralmente relacionados à condição materna. Por
feminina, caso pudessem renascer, as entrevista- serem “mães”, as mulheres se tornam verdadeiras
das expuseram as contradições de gênero como “guerreiras”:
as percebem. Apesar de ter havido uma escolha “A mulher... ela é mais sensível, ela capta os
eqüitativa entre o desejo de ser mulher (6) e de problemas, ela vê o mundo de uma forma diferen-
ser homem (6), emergiu uma representação emi- te do homem... ela não olha só a parte externa do
nentemente negativa sobre o masculino, caracte- problema, principalmente por ser mãe” (Juliana).
rizando os homens como seres egoístas, que não Porém, alguns depoimentos problematiza-
compartilham as tarefas no lar e o cuidado com ram a “liberdade” supostamente conquistada
os filhos, como ilustrado pelos depoimentos: pelas mulheres ao custo de uma sobrecarga de
“À noite, ele [marido] sempre gostou de sair atribuições:
com os colegas, de tomar chope, chegava em casa “As [mulheres] ‘um pouco menos pobres’ caí-
tarde da noite, ainda levava colega... . Às vezes, eu ram numa roubada, porque esse negócio de quei-
tava deitada, [ele] me chamava, eu levantava pra mar sutiã: ‘ah, vamos pra rua... temos que traba-
ver alguma coisa [servi-los]” (Mariana). lhar, trabalhar, trabalhar’, acarretou a dupla... e
“Eu escolheria ser homem porque homem não até a tripla jornada... . No meu caso... seriam cinco
tem tanto peso nas costas pra carregar igual a gen- jornadas [risos]. E isso ainda é muito comum...”
te, mulher... . Porque tudo recai sobre a responsa- (Gabriela).
bilidade da mulher: é filho, é casa, é empregada, é “A mulher continua trabalhando do mesmo
obrigações... tudo” ( Letícia). jeito, a mulher trabalha [fora de casa], vai pra ca-
“Não havia divisão [de tarefas]... . A respon- sa, limpa, cozinha, lava, passa, tudo do mesmo
sabilidade dele [marido] era com o trabalho dele. jeito” (Daniela).

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Portanto, concomitante à crítica sobre a ex- seus amigos’... [e eu] ‘papai, pára de ser cara de
ploração do trabalho feminino, subsiste uma re- pau! Você me fazia...’ [acender cigarros] [risos]”.
presentação do feminino ideologicamente “na- O depoimento de Juliana aponta o quanto o
turalizada” na maternidade, explicando e justifi- cigarro também pode estar associado a identifi-
cando a super exploração do trabalho feminino, cações afetivas positivas: “Eu amo a minha tia... .
produtivo e reprodutivo. Essa ideologia, a nosso E a gente tava sempre se abraçando, né... e eu
ver, obscurece a compreensão das inter-relações sentia [o cheiro do cigarro na boca]. Porque na
entre a condição de gênero e o sistema capitalis- minha infância eu não tive carinho... sabe que
ta, que explora a maioria da população trabalha- eu não tinha percebido isso? Cara, eu não tinha
dora, homens e mulheres 9,10,19,20,21. percebido isso! Puxa, ela me deu carinho!... [eu
É nesse contexto social mais amplo que ire- acendia o cigarro] e levava pra ela...”.
mos interpretar os significados do cigarro para Quando a dependência sorrateiramente se
essas mulheres. instala, surgem as estratégias para mantê-la.
“Roubava dela [da tia], do meu avô... e ... vixe!
Aí, quando eu vi, eu já tava fumando toda hora,
O “fumar” na visão das entrevistadas todo dia!” (Juliana).
“Agora você vê, né, se precisasse [de dinheiro]
Ao explorarmos a trajetória do tabagismo em su- pra uma comida, não tinha... eu sempre pegava
as vidas, as entrevistadas resgataram as formas da minha tia [risos], do meu avô... e pegava um
como o cigarro se introduziu em seus cotidianos, dinheirinho de mamãe... . Ia pra escola a pé [pra
dando especial ênfase aos momentos de gesta- poder comprar cigarro]” (Juliana).
ção e de criação dos filhos, indicando as questões “Eu roubava cigarro deles... roubava porque
ideológicas de gênero aí imbricadas, tal como a não trabalhava...” (Rafaela).
expectativa social da “boa mãe”, entre outras. Até recentemente, as mulheres eram expos-
tas como símbolos de pureza e ingenuidade,
Motivos da experimentação: vivenciando incompatíveis com o uso de bebida alcoólica e
precocemente as contradições de gênero de cigarro, sendo estes hábitos restritos aos ho-
mens. Em uma leitura crítica de gênero, pode-se
Ao aprofundarmos a discussão sobre a idade de supor que as entrevistadas vivenciaram alguns
início da experimentação, captou-se um fato que conflitos que perpassam a feminilidade, tradu-
desfaz o mito de que o início do fumar ocorre, ge- zidos por mensagens contraditórias, tais como
ralmente, na juventude e com os pares. A maioria ser feminina, dependente e frágil, e poder adotar
das entrevistadas que declarou, nas fichas de ins- um hábito masculino, associado à força e inde-
crição do programa, que havia começado a fu- pendência 22.
mar com amigos, pôde perceber, nas entrevistas,
que o início, propriamente dito, ocorreu em suas A difícil vida de mulher: o cigarro no
casas, acendendo cigarros para parentes que vi- enfrentamento das contradições
viam sob o mesmo teto. Supomos que esse “es- de gênero
quecimento” ocorra pelo fato das entrevistadas
não considerarem como iniciação ao tabagismo A grande maioria das entrevistadas relatou utili-
as experimentações com familiares que são mo- zar o cigarro como forma de obter alívio quando
delos de comportamento e afeto, tais como pais, em contato com determinados sentimentos, tais
avós, irmãos ou tias. como ansiedade, raiva, impotência, solidão ou
A maioria delas (10), pela facilidade de acesso rejeição.
ao cigarro dentro da própria casa, começou a fu- “Quando eu me sentia muito rejeitada... isso
mar entre 5 e 13 anos de idade, sendo este dado me dava vontade de fumar...” (Gabriela).
alarmante, já que, quanto mais precoce o início “Aliviar a irritação, aliviar a ansiedade, ali-
do fumar maior a probabilidade de se desen- viar a impotência pra resolver alguma coisa... eu
volver determinadas doenças e transtornos psí- acho que ele [cigarro] teve presente em tudo que
quicos na vida adulta. Abaixo, o depoimento de eu fiz... me irritava brigar, me irritava botar aqui-
Gabriela que, muito jovem, iniciou o fumo com o lo que eu tava sentindo pra fora... eu fumava...
pai, aos 5 anos de idade: “Com 5 anos eu comecei fechava a minha boca com o cigarro e aquilo pas-
a acender o cigarro do meu pai... . Papai não pedia sava” (Renata).
a ela [mãe] pra acender porque sabia que ela não “...[fumava] toda vez que me aborrecia [refe-
gostava... . Então, ele sentava: ‘ah, pega um cigarro rindo-se a apanhar do pai e irmãos]...” (Vilma).
pra mim, acende lá no fogão’ ... Quando meu pai Outras justificativas também foram apon-
descobriu que eu fumava... descobriu... quando tadas, muitas associadas a situações de rotina
ele aceitou, disse assim: ‘aprendeu a fumar com relacionadas ao gênero, tais como a sobrecar-

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ga advinda do acúmulo de trabalho, produtivo Representações positivas do fumar: o cigarro


e reprodutivo e, correlatamente, as cobranças e “companheiro” e como “fonte de prazer”
conflitos conjugais que geram grande estresse e
desgaste, entre outras que induzem as mulheres Dentre os atributos mais mencionados sobre o
a buscar o suporte do cigarro: significado do fumar, surgiram duas categorias
“Serviço, agitação de serviço, cobranças, tra- que, embora familiares aos que atuam neste
balho... acaba ficando sobrecarregada, e é o que campo, estiveram presentes de forma muito sig-
acontece comigo até hoje...” (Claudia). nificativa nos depoimentos: o cigarro compa-
“Aí, veio o estresse, depois de casada, filho e nheiro e fonte de prazer.
tudo [trabalho na rua e em casa], aí que fumava O cigarro “companheiro” é associado ao en-
mais ainda...” (Letícia). frentamento de situações relacionadas às con-
“Quando eu me aborrecia muito, ficava ner- tradições entre mundo público e familiar, aos
vosa, situações, assim, de estresse, de nervosismo, (raros) momentos de encontro consigo própria,
ou muito trabalho... . Era cozinha, era filho, era ao alívio dos sentimentos “negativos” e, por fim,
roupa, era lavar, era passar, era casa pra limpar... como compensação da solidão:
então, aquilo me dava mais vontade de fumar...” “Então, eu costumava dizer que o cigarro era
(Letícia). meu companheiro, eu já não me sentia solitária.
Alguns relatos mostraram situações de mui- Eu tinha um amigo, que era meu cigarro, enten-
to sofrimento, que expõem a violência social em deu? Então, eu ficava... passava noites acordada.
suas várias facetas. Porém, as mulheres, em sua E eu sempre tive esse negócio de escrever, de tudo
solidão, recorrem ao suporte proporcionado pe- eu escrevia. Então, eu passava a noite acorda-
lo ato de fumar. O caso de Rafaela, que passou da, era eu, o lápis e um cigarro” (Mariana; grifo
por uma grande dor ao perder um filho assas- nosso).
sinado, ilustra essa situação: “Ah, era mais soli- “Se eu tava nervosa, se vinham lembranças
dão... quando eu pensava muito nele [no filho], que eu não queria lembrar [referindo-se ao abuso
quando eu pensava muito nos meus pais, quando, sexual que sofreu], o cigarro era meu amigo, meu
às vezes, precisava e não tinha ninguém pra me companheiro, era assim que eu me sentia, né?”
orientar, pra mim falar...[fumava]”. Sem acesso a (Daniela; grifo nosso).
nenhum atendimento especializado em um mo- “Ah, ele [o cigarro] fazia [companhia] e mui-
mento como esse, ela lançava mão do cigarro en- to! Quando eu me sentia triste [com a morte do
quanto um suporte barato, de fácil acesso e que filho], eu pegava o cigarro, ficava pensando e ali
proporcionava alívio, mesmo que momentâneo, vai fumando, fumando, fumando... aí, passava,
para tantos sentimentos dolorosos. pronto...” (Rafaela).
Juliana, portadora de um câncer, também “Atualmente, eu achava que [com o cigarro]
verbaliza o que significa não ter com quem divi- tava com alguém, acompanhada com alguém,
dir suas preocupações, tendo de enfrentar, soli- nunca tava sozinha... . Tanto é que eu sinto falta
tariamente, o medo da morte: “Eu acho que essa dele [do cigarro] quando eu tô sozinha. À noite,
carência, né? Essa coisa de tá carregando o mundo aquele silêncio [em casa], eu sinto mais falta [do
nas costas, tá carregando os problemas de família cigarro]” (Luzia).
nas costas, eu tô muito cansada... eu creio que seja É também “companheiro” no enfrentamento
esse o meu apoio [o cigarro]... . Não tenho com de situações de estresse, no trabalho ou em casa:
quem conversar, eu não tenho onde descarregar... “Minha primeira reunião [de trabalho], ca-
eu não tenho ninguém mesmo pra falar dos pro- ramba, a mão tremendo... botou o cigarro [na
blemas... eu fumo quando tô triste, eu fumo quan- boca], a mão parou de tremer imediatamente
do tô alegre... quando tô tensa, entendeu? Não tem [risos]... e até me acostumar com a nova situa-
[jeito]... é automático...”. ção – que sempre custa, né? – [fumou muito]”
Outros depoimentos, no mesmo sentido, re- (Renata).
lacionaram o cigarro a um suporte para os mo- “Eu passei a fumar muito mais depois que eu
mentos de intenso e solitário sofrimento: casei... eu fumava 2 [maços], dependendo do mês
“Foi quando eu descobri que meu filho é so- do aborrecimento, sabe [risos], eu já fumei até 3
ropositivo... foi muito difícil... muito difícil...” maços de cigarro por dia” (Vilma).
(Isabela). “E eu acho que, [como] conseqüência disso
“Quando eu pensava, assim, nas dificuldades [problemas no casamento], eu me agarro ao meu
[que passava na vida], nas cachaças do cara [ma- amor, que é o cigarro” (Juliana).
rido], aí, eu ia fumar mesmo, não queria saber O cigarro é, assim, evocado de forma ambí-
não...” (Vilma). gua, dicotômica, contraditória: simultaneamen-
te, dá (prazer) e tira (a vida), é amigo (apoio) e
inimigo (mata). O marketing de venda utiliza

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mensagens antagônicas, alardeando a liberdade cinzeiro ficar aqui e o cigarrinho do lado, e fumar...
de escolha para fumar, quando, na verdade, as aí, ali foi aumentando o vício, né?” (Daniela).
pessoas se tornam prisioneiras do tabaco; as- “Às vezes, eu ficava, assim, quase subindo pe-
sociam o cigarro a esportes radicais, quando se las paredes [com muitas atribuições de trabalho,
sabe que as atividades físicas são incompatíveis casa, filhos], era eu acender o cigarro, parece que
com o fumo; falam de beleza e riqueza, quando aquilo me acalmava, relaxava...” (Letícia).
a aparência envelhece e o dinheiro escoa entre Portanto, mais do que simplesmente apoio
remédios e cirurgias que poderiam ser evitadas; em situações difíceis, fumar também se trans-
além, naturalmente, dos incalculáveis gastos forma em fonte de prazer, sendo, muitas vezes,
com a compra do produto. Abaixo, as percep- a única possível neste momento de “transição
ções de algumas entrevistadas sobre essas am- de gênero”, em que as mulheres “...não somente
bigüidades: ‘ajudam’ como também começam a ser responsa-
“Pois eu te digo que ele [o cigarro] é o melhor bilizadas, e a se considerarem responsáveis, pela
e o pior amigo que você tem. Porque ele é o me- provisão de renda, mesmo (ou, principalmente)
lhor, porque ele tá com você quando você tá triste, tendo filhos menores” 9 (p. 105).
quando você tá alegre, quando você tem insônia, Se entendemos, como Bordo 23, que algumas
quando você tá agitada, quando você tá calma, ele “patologias” podem expressar uma forma de pro-
tá ali do seu lado, ao alcance da sua mão... . Ele é o testo, expondo, por meio da doença e do corpo, o
pior porque ele te mata, mas ele causa um prazer que não pode ser dito usando-se a voz coletiva,
muito grande... . Na verdade, eu sinto muita fal- política, pergunta-se: o quanto o cigarro, usado
ta.... fiquei 5 meses sem fumar, 5 meses sentindo como escape para as contradições da vida, pode
falta diariamente... é assim, num momento que contribuir para “calar” a voz das mulheres neste
eu não agüento mais, eu pego o cigarro, mas até aí, momento histórico 4?
eu já mordi minha sombra...” (Gabriela). Como visto, o tema tabagismo é uma ques-
“Ele [o cigarro] é meu amigo, mas eu odeio tão complexa e perpassada pelas contradições
ele... eu odeio o cigarro, eu odeio a fumaça do de gênero contemporâneas. Pudemos captar,
cigarro, eu odeio tragar, mas eu não consigo me por intermédio desta pesquisa, como e o quan-
libertar... ele é meu amigo, sim, ele é meu ‘amigo to o tabagismo aprofundou suas raízes na vida
traíra’... é um amigo que não pode se confiar... ele é das mulheres e o quão complexo e pertinente às
meu amigo, mas tá me matando...” (Juliana). relações sociais é o ato de cessação, o que nos
O cigarro significado como “fonte de prazer” sinaliza para a importância de se adotar aborda-
emerge associado a um quase-ritual, realizado gens interdisciplinares, tanto na pesquisa e na
nos raros momentos em que se descansa dos in- assistência às mulheres tabagistas, quanto no
contáveis e incessantes “deveres” e solicitações campo das estratégias de prevenção e promoção
das demandas da casa, do trabalho, dos filhos da saúde.
e de outros familiares, criando momentos ínti-
mos de reflexão e paz, a sós consigo mesmas, em
contextos de vida com poucas oportunidades de Considerações finais
privacidade, relaxamento e intimidade:
“É que eu passei a ter muitas atribuições [após A pesquisa evidenciou aspectos importantes
a separação] e eu pensava assim, que eu, na verda- do fumar feminino e que, a nosso ver, merecem
de, eu não fazia nada, assim, não ia a um cinema, ser considerados pelos que atuam no campo da
não ia a um teatro... ia sim, mas pra levar o meu saúde, sejam formuladores, gestores e/ou os pro-
filho pra uma peça infantil... então, o cigarro era fissionais de saúde que atendem diretamente a
uma coisa que eu gostava... . Era um prazer que eu população usuária do SUS. Entre outras ques-
tinha” (Claudia). tões, os dados revelaram o quanto uma compre-
“Tinha os filhos, que eu acho que toda mulher ensão mais abrangente do tabagismo feminino
normal, entre aspas, tem prazer [com os filhos]. demanda um paradigma de conhecimento que
De resto, eu acho que era trabalhar... que eu me supere a visão fragmentada do ser humano, o
sentia bem trabalhando. Acho que, depois da mi- que abre novas perspectivas para se assistir, de
nha separação... eu acho que o prazer mesmo que forma integral, as necessidades mais amplas de
eu levava, eu canalizava pro cigarro” (Renata). vida e saúde das mulheres, tal como preconizado
“[Prazer?] o cigarro... é só o cigarro e os meus pelo Programa de Assistência Integral à Saúde da
filhos...” (Letícia). Mulher 3.
“Aquela batalha diária ... [o cigarro] era o meu No campo da assistência à saúde das mu-
companheiro, eu chegava em casa e, para dormir, lheres tabagistas, o enfoque crítico de gênero
para descansar, fumava antes de dormir... aquele adotado pôde revelar o quanto a sobrecarga de
momento meu, era sentar para ver televisão e o trabalho, reprodutivo e produtivo, as incessan-

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 24(12):2834-2842, dez, 2008


O TABAGISMO FEMININO EM UMA ABORDAGEM CRÍTICA DE GÊNERO 2841

tes demandas sócio-familiares e as contradições mulheres, particularmente no tabagismo femini-


que as mulheres estão vivendo e enfrentando na no, os determinantes sociais, culturais e políticos
sociedade contemporânea podem potencializar dos processos saúde/doença, neles incluídos a
o fumar feminino. Tal como apontado pelas per- dimensão de gênero. Como milhares de mulhe-
sonagens desta pesquisa, a associação do cigar- res, em seus movimentos de luta, já alertam há
ro a um “companheiro”, que as ajuda a supor- quase um século, se a condição feminina não é
tar o enorme peso que sobre seus ombros vem “destino biológico”, é passível, por meio da ação
recaindo, não pode ser desconsiderada quando política coletiva, de ser transformada. Portanto, a
se deseja alcançar sucesso na abordagem para a produção de conhecimentos que assumam uma
cessação, assim como para se conquistar a ade- posição crítica sobre essa sociedade injusta e
são ao difícil percurso da superação de tão grave opressora torna-se importante ferramenta para
dependência. subsidiar uma ação transformadora voltada para
Assim, como já declaramos anteriormente 4, a construção de uma sociedade baseada na justi-
reafirmamos aqui a necessidade de considerar- ça social, em seu sentido amplo.
mos, na pesquisa e na assistência à saúde das

Resumo Colaboradores

O artigo apresenta os principais resultados de uma M. T. T. Borges participou da concepção, elaboração e


pesquisa que investigou, sob a ótica crítica e de gênero revisão do artigo. R. H. Simões-Barbosa colaborou na
e da abordagem qualitativa, os significados simbóli- redação, edição e revisão do artigo.
cos e concretos do fumar feminino. Foram realizadas
14 entrevistas semi-estruturadas com mulheres taba-
gistas em diversas etapas do processo de cessação. O
lócus da pesquisa foi um programa de tratamento do
tabagismo em um hospital público do Rio de Janeiro,
Brasil. Os resultados evidenciaram o quanto o cigarro
esteve imbricado em suas trajetórias sociais e de gê-
nero, desempenhando importante papel de apoio no
enfrentamento das inúmeras dificuldades de sobrevi-
vência. Emergiu, como categoria empírica central, o
“cigarro companheiro”, sempre disponível para apla-
car a ansiedade e a solidão, além de também ser fonte
de prazer e relaxamento. O enfoque crítico de gênero
evidenciou o quanto a sobrecarga de trabalho, repro-
dutivo e produtivo, potencializa o fumar feminino. Na
assistência à saúde, para se conquistar a adesão das
mulheres tabagistas ao difícil percurso da cessação,
deve-se levar em conta os complexos entrelaçamentos
entre as dimensões sociais e de gênero no estabeleci-
mento da associação do cigarro a um “companheiro”.

Tabagismo; Abandono do Hábito de Fumar; Mulheres

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 24(12):2834-2842, dez, 2008


2842 Borges MTT, Simões-Barbosa RH

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Recebido em 09/Nov/2007
Versão final reapresentada em 05/Mar/2008
Aprovado em 24/Abr/2008

Cad. Saúde Pública, Rio de Janeiro, 24(12):2834-2842, dez, 2008

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