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CIRCO SOMBRIO

contos, terror e psicopatia

Ariel Yoshida
Sumário:

ARREPENDIMENTO

TRILHA DE SANGUE

AMORES DESCARTÁVEIS

FILHA MALDITA

CHICLETE

CIRCO SOMBRIO

DARK WEB

TIROTEIO NA ESTAÇÃO DE TREM

NÚBIA KHALED

INOCÊNCIA VIOLADA

PROLE

PAIXÃO MÉDICA

PÉS DESCOBERTOS

MERCADORIA FRÁGIL

NA CADEIRA DA DENTISTA

IRRESISTÍVEL CORPO INERTE

SABOR INDIGESTO

UM PEDIDO DE SOCORRO

UM CIDADÃO PRESTES A PULAR DO VIADUTO

PARALISIA DO SONO
Arrependimento
Vinha sendo outra noite igual a qualquer noite dos últimos 8 anos da vida de Elias: catando
os sacos plásticos cheios de lixos e arremessando-os no caminhão preparado para triturar tais
porcarias.
Aquele automóvel deixando cheiro fétido por onde passa deixou de ser-lhe algo
perturbador. Após tanto tempo no ofício, havia se acostumado.
A rotina era um odor de dejetos e macarrão azedo misturado às bazófias com as quais os
colegas de trabalho se distraíam.
Competiam para ver quem fazia o mais longo arremesso, competiam para ver quem
segurava mais unidades de uma vez; variavam as competições. Variavam quanto ao tema das
conversas reflexivas e das piadas. “Qual dessas casas deve deixar-nos mais papel higiênico?”,
“quanto resquício de fezes foi triturado essa semana?”.
Elias conhecia vários cantos da cidade; quase todos os bairros da região. Eram ruas
diferenciadas, cada uma com sua peculiaridade, seu destaque. Em umas sobravam residências
humildes, tão precárias; em outras a visão era mais adorável, o que se via denotava maior
conforto.
Vinha sendo outra noite igual a qualquer noite dos últimos 8 anos da vida de Elias, o
mesmo trajeto de tantas outras ocasiões. “Olha ali, colega”, ele zomba, rompendo um pouco do
silêncio, “estamos chegando perto da casa que você ama tanto”. Os outros dois companheiros
riem - o quarteto, pendurado na traseira do caminhão, se aproximava do ponto de partida. Certa
vez, o tal colega pegara um saco preto de lixo daquela calçada e em seguida todo seu conteúdo
caiu no chão através de um rasgo imenso. “Bastardos do inferno!”, fora um dos gritos revoltados.
A turma riu bastante dele naquela ocasião. O episódio ficou marcado, mais pela reação
exagerada do azarado do que pela sujeira desagradável.
“Cale a boca”, responde-lhe esse parceiro lixeiro, em tom bem humorado, saltando em
direção aos alvos.
Os outros três também saltam.
Elias corre de casa em casa acumulando uma quantia significativa de volume e retorna em
direção à grande cesta. Marca seus pontos imaginários. E volta às calçadas recolhendo mais
lixos. Naquela rua falta passar por cinco casas.
Em poucos segundos ele conclui a tarefa. Retornando ao caminhão, faz novo arremesso e
em seguida volta a se pendurar no veículo.
Ele encosta a cabeça no ferro de apoio e fica observando o trio ainda correndo para lá e
para cá.
“Tem dia que estamos tão falantes, mas tem dias que estamos um tanto quanto sem
assunto. O peso de viver às vezes cai sobre nossos ombros...”, ele começaria a devanear, mas de
repente um som inesperado deixa-o atento.
“Fantasiei isso?”, ele se questiona, franzindo a testa e inclinando a cabeça para frente,
como se isso aguçasse sua audição.
Então ele ouve novamente.
Elias olha para os lados, sem compreender, mas então sua ficha cai frações de segundos
depois e ele olha para dentro do caminhão, para os lixos que arremessou ali dentro na última
rodada.
Agora àquele som estridente se junta o barulho da máquina trituradora sendo acionada.
Elias fica paralisado, tremendo. Antes que possa esboçar alguma reação, todo o lixo é
sugado por aquela maquinaria mortal.
Então o choro de bebê subitamente cessa.
Trilha de sangue
Ofegante, ela corria mais rápido do que jamais imaginaria poder. Corria mancando. Sequer
notava a própria respiração. Sequer notava que preenchia os pulmões e esvaziava-os
bruscamente. E seus pés inchados e sangrando passavam despercebidos.
Era-lhe o pior pôr-do-sol possível.
Estava descalça, correndo em solo rochoso. Repetidas vezes havia pisado em uma pedra
pontiaguda, rasgando milímetros de sua sola. Por mais de meio quilômetro deixara marcas de
sangue. E a fuga parecia não ter fim. Estava em prantos, com a visão embaçada pelas lágrimas.
Gritava já sem perceber, automatizada. Estava em estado primitivo de sobrevivência. A tênue
linha de esperança que restava obrigava seu cérebro a ignorar as pernas cansadas, os rasgos nos
braços e barriga – causados pelas facadas -, para continuar o percurso. A desorientação advinda
do desespero fazia-se cada vez maior. Batimentos cardíacos desenfreados deixando o coração
prestes a explodir. Em uma situação cotidiana, sabia bem, não teria tanta resistência física assim.
A noção de tempo e espaço estavam perdidas, mas imaginava seu agressor cada vez mais
perto - aquele homem de ombros largos, altíssimo, pesado. O medo crescia. A angústia lhe fazia
lembrar as agressões sofridas há pouco. A bruta mão áspera contra seu rosto. O punho fechado
quebrando-lhe os dentes; a bota masculina de couro golpeando seu estômago. A lâmina rasgando
sua carne.
Mariana tentara se defender. “Podia ter feito mais?”, questionava-se inconscientemente,
cobrando-se por não ter dado um contragolpe certeiro e salvador. Flashs da violência sofrida
passavam em sua mente.
Sentia ele se aproximando e o imaginava violentamente segurando-lhe pelo braço outra
vez. Então gritava, gritava, rasgando a garganta. Clamava por socorro mesmo sabendo que
ninguém ouviria; estavam afastados da cidade. O horizonte era desenhado por árvores,
montanhas e mais árvores. A trilha aparentemente perfeita para aventureiros.
Ela estava desesperada. E, em meio ao desespero, tropeçou, caindo de cara e sujando o
rosto de terra úmida.
Após a queda todas as dores até então ignoradas vieram à tona. Percebeu-se fragilizada.
Restava-lhe rastejar. Seus antebraços viraram meio de locomoção.
A cada movimento que fazia para frente, sentia-se sufocada, mergulhada num pesadelo.
Como pudera a vida mudar assim tão bruscamente o roteiro? Há poucas horas estava feliz,
vivendo empolgada, realizando um antigo sonho de rodar país a fora apenas com as vestes do
corpo, itens de acampamento e poucos utensílios na mochila. Em seu cronograma de mochileira
ainda havia tanto destino a se experimentar. Tinha ainda três semanas de férias. Pensava nisso
tudo e em todo resto ao mesmo tempo, sem refletir profundamente. Arrependia-se de ter
selecionado justamente aquele lugar para acampar. A previsão era apenas de banhar-se no
belíssimo lago, apreciar a vista, armar uma barraca, nutrir-se com um dos suprimentos trazidos,
descansar para o próximo dia. Como poderia prever que daquelas calmas águas emergiria
alguém? Um lunático? Um serial killer? Não sabia a melhor forma de definir aquele ser. Ela
estivera se preparando para entrar na piscina natural, mal tinha terminado de tirar tênis e meias
quando o susto ocorrera: O tapete cristalino de repente estourando e de dentro saindo a figura
masculina hábil em mergulhos furtivos. Ela ficou petrificada de medo com aquela situação.
“Perdão, senhor, não tinha notado a presença de outra pessoa por aqui”, ela dissera, dando passos
para trás, no intento de se mandar daquele cenário. Ele nada respondeu, apenas sorriu e
continuou emergindo. Angustiada com a revelada nudez do indesejado desconhecido que agora
caminhava em sua direção, alcançou os calçados e ligeiramente agachou, pegou-os com as mãos,
sem parar. Acelerou os passos. Numa olhada que deu para trás, viu o indivíduo se vestindo,
desapressado, mas sem tirar os olhos dela – esse detalhe a perturbou. Mais adiante constataria
que estava sendo seguida. Sofreria o primeiro ataque logo depois. Deveria ter feito o quê?
Poderia ter escapado desse pesadelo? Para tê-la alcançado, ele deve conhecer bem as redondezas.
Eram pensamentos avulsos, um filme rodando em velocidade triplicada, lamentações e
arrependimentos.
Ali seria seu fim? De vestes imundas, largada numa floresta, sendo opção no cardápio dos
animais? Como alguém encontraria seu corpo posteriormente? Negava-se a aceitar tal morte.
Os ombros não demoraram a ficar roxos; folhas caídas grudavam em seus membros e
deslizavam sobre o sangue que jorrava das feridas abertas. A força que fazia para continuar
fugindo, feito um desajustado réptil sem patas, provocava maior distensão dos músculos outrora
cortados pelo seu carrasco e eles iam rasgando cada vez mais.
Seus neurotransmissores estavam desistindo da luta, a adrenalina baixava, o corpo cedia. A
movimentação ficava cada vez mais lenta e dolorosa. O sangue escorria pelos braços, lágrimas
escorriam pela face, numa mesma grande proporção, em torturante sincronia.
Assim como seu sistema nervoso central, ela também desistiu. Liberou os braços da
penosa tarefa, deixou-os abertos e afundou o corpo. Permaneceu deitada de barriga no solo.
Não fossem sua respiração pesada, seu pranto, e a intermitente cantoria de pássaros
aleatórios, tudo estaria em absoluto silêncio.
“Será que se eu incansavelmente implorar por ajuda terei o socorro de alguma criatura
divina?”, ela se questiona, sentindo-se abandonada.
Ela fecha os olhos e implora a Deus para que este a ajude.
Balbucia umas frases aprendidas na juventude e acrescenta uma súplica autoral. Junto à
oração há sangria.
A dor e o silêncio.
Constata um absoluto silêncio ao redor.
A oração funcionou?
“Será que ele ainda está me perseguindo? Não ouço passos”, alimenta-se de esperança.
“Talvez ele esteja longe o bastante para eu conseguir me esconder, mas não consigo me mexer,
não tenho mais forças”.
Aceitaria mesmo a morte?
“Não”, ela exclama a sentença em meio a mais lágrimas, “não quero morrer, não, não...”.
Ela repete mil vezes a negação. “Não irei morrer neste lugar”.
“Há ainda tanto a se viver”.
“Irei sair desse inferno completamente diferente. Valorizarei cada riso, cada instante, cada
sopro”.
Com os olhos semicerrados, aproxima os braços do corpo, dobra-os a fim de rastejar outra
vez usando os cotovelos.
Cada movimento amplia a sensação dolorosa, mas ela persiste. Locomove-se por metros. E
mais metros. Quer se aproximar de uma enorme rocha. “Encolhida ali atrás não serei
encontrada”.
Rasteja mais um pouco, cada vez com menos sangue dentro de si. Mal suporta manter as
pálpebras abertas.
A pressão baixa, os sentidos indo embora...
Os sentidos indo embora...
Indo embora...
Antes que sua mente se desligue por completo e para sempre, ela desperta, sob a luz do
dia.
Até seus olhos se acostumarem com a mudança na iluminação ambiente, várias piscadas
são dadas. Então ela consegue fixá-los abertos e vê a própria mão coberta por formigas. No
intento de chacoalhá-la para afastar os insetos, uma dor aguda se faz presente. “Os cortes...”.
Então a mente relembra-a de tudo. Aquele pavor não foi um pesadelo. “Ao menos estou viva”,
comemora e seus lábios desenham um sorriso.
Ela consegue juntar forças para girar o corpo. Ao fazê-lo, vê-se frente a frente com um par
de botas masculinas de couro.
- Bom dia, minha bela caça.
Nesse instante ela se arrependeu das orações feitas para que não morresse.
- Parabéns, viu? – a voz rouca diz, rindo - Você tem sido a presa mais resistente que já vi.
Ela permanece imóvel, com uma das faces sob o solo, e vê o homem levantando um dos
pés. Segundos depois sente uma pressão na mandíbula. Ele pisando nela.
O peso é insuportável. Resta-lhe estrebuchar, tentando se livrar daquilo que a esmaga. Mas
é em vão. Os dois braços se agitam convulsivamente. As pernas se sacodem e chutam o vazio. O
som do osso maxilar quebrando é tão insuportável quanto a dor.
O corpo dela começa a tremer enquanto baba sangue.
Ele levanta o pé e inclina o calcanhar para baixo. Dá uma pisada com toda a força que
possui. Isso faz o queixo dela se deslocar.
Ela chora feito neném à mercê da violência; frágil, impotente.
Ele repete o movimento e a esmaga com outro golpe direto na bochecha.
Repetição. Dentes despencam.
Uma quarta pisada acontece. Mais fraturas.
Com o rosto já completamente destruído, ela ainda chora.
Ele se agacha, tira um canivete do bolso e abre um buraco na papada dela. Enfia os dedos
na cavidade criada, fazendo da mandíbula de Mariana uma espécie de alça. Ergue-se e começa a
caminhar, arrastando a bagagem ensanguentada.
Mariana, neste momento arrependida de um dia ter nascido, já não se importa com o que
acontecerá a seu cadáver posteriormente. Já não se importa com nada. A cada passo que seu
carrasco dá, sente as articulações maxilares quebrando mais e mais. A cada passo ouve um novo
estalo. Crac. A mandíbula mole. Tormento insuportável.
Dessa vez ela implora para que Deus a faça morrer logo.
Amores descartáveis
Finalmente ela desperta.
Estamos juntos há 4 intensos meses. Relacionamento duradouro até demais. Acima de
minha média. Geralmente eu enjoo com algumas semanas a menos.
Nesse fim de semana viemos a um motel bem conhecido por mim - local onde dou um
ponto final aos amores. O proprietário é um grande cúmplice; louvável psicopata. Esconder os
corpos é tarefa fácil. Alguns cadáveres são deixados num terreno baldio para os cachorros
fazerem a festa; outros são usados para tráfico de órgãos. A gente tenta variar o máximo
possível.
Começa-se amando tanto, sorrindo só por chegar perto, beijando esfomeadamente; daí
surge o marasmo. Ciclo normal. Eu sou um romântico que reconhece a mortalidade do amor.
Aproveito ao máximo e não faço esforço para evitar um rompimento. Quando o coração pulsa
fraco, é hora da despedida. Simples, sem mistério.
- Bom dia, minha princesa – sorrio -. Dormiu bastante! – digo, sentado à beira da cama de
frente para ela.
O olhar dela demonstra felicidade e ela esboça um movimento de abrir a boca para
retribuir meu carinho, porém não consegue, daí começa a perceber que costurei seus lábios.
Percebe também que seus braços estão estendidos acima da cabeça e os pulsos amarrados na
cabeceira da cama – a corda é a mesma que usamos ontem numa saborosa sessão
sadomasoquista. Os pés, semelhantemente imobilizados.
A princípio ela imagina estar sonhando, tendo um pesadelo do qual num piscar de olhos se
libertará. Sei bem como se sentem nesse momento. No começo há uma incredulidade. Teimam
contra os fatos, recusam a aceitar que estão à mercê de mim. Ela fecha os olhos e força-os, como
se assim fosse acordar.
- Meu amor, sinto te informar – faço-lhe cafuné -, mas você já está acordada.
Vejo espanto e tristeza na face dela e fico excitado.
Amá-la foi proveitoso por um tempo, agora o que resta de divertido é fazer dela uma
criatura apavorada.
Trêmula, trêmula, chacoalhando-se, crente que poderá se livrar.
Não fosse a linha que mantém sua boca fechada, os berros estariam me infernizando. O
som de pavor que emitem quando condicionadas a tal costura chega a ser hilário.
Está seminua, do jeito que dormiu.
Ela teria aproveitado mais caso soubesse que aquela nossa noite seria sua despedida da
vida? Quanto tempo a família demorará para notar sua ausência? Por quanto tempo o luto lhes
abaterá? Sempre penso nessas bobagens e acabo rindo. E rio mais ainda ao pensar em como é
fácil mudar de identidade.
Há dias eu já tinha decretado a mim mesmo que hoje seria o término.
O que deixa tudo mais divertido é que ela sequer suspeitava de algo. Olhava-me tão
apaixonada. Entregava-se a mim como se fôssemos a mais bela junção carnal. Fazia planos para
futuras datas festivas.
Até ontem, antes de seu repouso, fui recíproco. Gozáramos intensamente. Após o êxtase
servi-lhe uma dose de vinho misturado com rohypnol. Provocadores de uma inércia pesada,
facilitando-me com a posterior aplicação da pomada anestésica em seus lábios sem risco de
acordá-la. Desse jeito uma agulha não basta para a vítima despertar.
Ser a última paixão delas é satisfatório. É minha coleção particular. São meus troféus; sou-
lhes o último amor, o último gozo.
Trêmula, trêmula, agitada. Não se cansou ainda.
- Você quer que eu te enforque, te sufoque ou corte tua garganta, amor?
Agita-se mais ainda e tenta se afastar de minha mão que acaricia seus cabelos. Inclina a
cabeça para o lado, mas para sua infelicidade é em vão. Adoro fazer carícia em minhas cadelas
amedrontadas. O cabelo dela é lindo. Ajeito uns fios que estão bagunçados.
- Não ouvi, amor. Qual morte você prefere? Oi? Não estou ouvindo...
Em meio aos murmúrios, o som do ódio e o ato de desespero. Ela faz força para abrir a
boca. Eu começo a gargalhar.
Os lábios começam a se afastar e gotas de sangue respingam.
Ela respira fundo, como se tomasse coragem para fazer algo doloroso e força a mandíbula
para baixo.
- Socorro! – ela grita.
Aquela voz me irrita.
- Cale a boca - calmamente ordeno.
A desobediente continua gritando.
Uma camareira do motel, carregando seus materiais de limpeza, abre a porta do quarto e
entra.
- Me ajude, por favor – a frase é embargada e as sílabas não são pronunciadas
corretamente, pois ela evita de encostar os lábios feridos um no outro –, socorro!
- Ela está parecendo uma fanha, não? – comento, olhando para a funcionária e dando
risada.
- Igual a todas as outras – ela responde.
Filha maldita
Trouxe minha filha para visitar o túmulo de sua avó.
A garota sempre me questionou sobre meus pais. Questionava tanto que nalgumas
ocasiões conseguia me irritar. “Se você soubesse como os dois foram desgraçados comigo, não
se importaria com tais seres”, às vezes era a resposta que eu queria dar.
Meu pai é sinônimo de ausência. Eu nasci e o canalha já estava longe. Nunca sequer vi
foto do crápula. Maior desgraça que o abandono, creio que não exista. Esse é o ato mais covarde
de um homem a uma criaturazinha indefesa. “Ele nos abandonou. Esqueça-o e cale a boca”, era
assim que minha mãe encerrava o imbróglio. E caso eu insistisse no assunto, levava palmadas.
Foram as agressões que sofri durante minha infância. Na maior parte do tempo eu simplesmente
era deixada de canto. Eu recebia alimentação, cuidados básicos, e só. Amor, nunca senti. Ela me
olhava com repulsa. Nunca entendi o motivo e por uma época culpei-me. “Devo ter feito algo de
errado para minha mãe não gostar de mim”, martirizava-me, encolhida no canto do quarto,
soluçando.
Minha progenitora se jogou na frente de um carro há quase uma década. A velha
simplesmente surtou. Abandonou-me, sua única cria. Não herdei bens materiais. Deixou-me de
legado só o desprezo cravado em minha alma. Deveras egoísta. Deveria ter se desculpado
comigo antes de ceifar a própria vida. Nunca ouvi um pedido de perdão. “Eu te tratava feito
merda, perdoe-me”, seria o mínimo.
Convivendo com minhas amigas de escola passei a invejá-las, pois recebiam amor materno
– e algumas, de brinde, o paterno. Fui criada feito um pet que recebe ração uma vez por dia e um
ligeiro cafuné semanal. O significado de carinho só conheci fora de casa.
No momento de seu suicídio eu já era adulta, trabalhava e conseguia pagar meus boletos.
Não houve espaço para luto em meu coração. Por mera formalidade estive presente no enterro
daquela que me deu à luz.
“Leve a garota ao cemitério, mostre a jazida, diga que a velha está num tranquilo repouso
eterno ao lado de Deus, blábláblá e pronto, esse assunto estará encerrado”, sugeriu meu marido
noites atrás. Acabei concordando e repetindo tais palavras à nossa preciosa na manhã seguinte.
Então cá estamos, no lar dos mortos.
- Eu queria tanto ver como era a vovó – diz minha pequena, olhando para o horizonte.
- Eu sei, há 9 anos você me atazana com isso – digo, brincando -, mas não há registro
nenhum, infelizmente. Ela odiava câmeras.
Não celebrava momento nenhum, completamente ranzinza e amargurada.
- Quando eu era bebê eu também pedia fotos dela? – a pergunta é feita numa fofura
inenarrável.
- Não, boba, mas você fala tanto disso – abraço-a com ternura.
Mais uns passos e finalmente chegamos em frente ao específico mármore.
Nunca fiz visitas, só estive aqui no dia do enterro. Vi-a sendo enterrada e enterrei-a de
minhas memórias. Certamente os flagelos são perpétuos, não posso simplesmente apagá-los.
Enterrei-a de minhas memórias? Caio em contradição. Reviro os olhos.
- O que foi, mamãe? – a pequena pergunta, ao me notar bufando.
Digo que nada.
Durante os últimos anos tentei evitar novas memórias, novos pensamentos a respeito de
tudo que sofri. Por isso evitava o assunto “vó” com minha filha. Algo desnecessário.
Leio a lápide em voz alta. Há apenas o nome e as datas. Sem demais prolixidades.
Ficamos de pé em silêncio. O tédio começa a pesar em mim.
- Pronto, filha? Satisfeita? Saciou a curiosidade? – digo lhe afagando - Chega de falar em
vó agora, está bem? Vamos para casa.
Ao que minha filha não responde nada, viro o rosto para olhá-la. Ela está fixada olhando
em direção à lápide e sorrindo. O sorriso parece congelado.
- Ei, lindinha.
Ela permanece estática.
- Alô.
Nenhuma reação.
Os dentes à mostra começam a me irritar.
- Filha?
A irritação se torna perturbação. Olho em direção a onde está direcionado o olhar dela.
Vejo apenas o túmulo. Tudo continua igual. Retorno a ela:
- Filha, vamos para casa, ok.
Seguro sua mãozinha e dou um passo voltando pelo caminho trilhado há pouco. Mas ao
dar mais uma passada, sinto o peso de um corpo que permaneceu imóvel.
- Filha – repreendo – vamos para casa. Vou ter que te puxar? Por favor, hein? – reviro-me,
novamente - deixe de teimosia.
E novamente me sinto como se estivesse puxando uma corda cuja outra extremidade
estivesse fincada ao chão.
Começo a ficar irritada. Fecho os olhos, inclino a cabeça para o alto e passo as duas mãos
na testa.
Tento me acalmar:
“Por algum motivo qualquer, a garota está empolgada em ter vindo ao cemitério ver a avó.
Agora está de gracinha comigo. Calma. Calma”, aconselho-me internamente.
Em meio aos pensamentos, ouço, como se fosse um sussurro, uma voz rouca, bem
distante, ao mesmo tempo em que bem próxima de meus ouvidos: “ouvi você me chamando,
maldita”.
Abro os olhos num sobressalto e giro o corpo.
- Filha – agacho-me à sua frente – você falou alguma coisa?
- Mãe, sai da minha frente, poxa. Deixa eu admirar a vovó. Ela é tão linda, não acha?
Suspiro. Um frio na espinha me impede de olhar para trás. Chacoalho a garota:
- Filha. Pare de bobeira. Vamos para casa.
Somente agora ela fecha a boca e esconde a dentição branca.
Lentamente, movimenta a cabeça e me encara:
- Por isso ela te odiava. Você é muito chata, sabia?
- Agora chega de palhaçada – levanto, banhada em muitas emoções – vamos embora.
Ao dar as costas e tentar seguir adiante, sinto uma força em meu braço. Um aperto, uma
ardência. Num impulso, solto a pequenina mão. Afinal, foi um surto, um nervo, um músculo
reagindo, ou que diabos foi o que senti? A voz de minha filha me faz esquecer esse detalhe
estranho:
- Desculpa, vovó. A mãe é uma boba.
Vejo minha filha caminhando para frente, em direção à lápide.
Atônita, fico observando.
A garota abre os braços e abraça o vácuo.
Depois vem até mim, sorrindo, e oferece a mãozinha:
- Ela disse que podemos ir agora, disse que vai me visitar de noite.
Continuo imóvel, petrificada às írises pueris.
- Disse que sempre te odiou, disse que havia se cansado da vida nociva, disse que se jogou
na frente do carro de propósito, disse que olhava para você e lembrava do desconhecido que a
violou, disse que...
Dou-lhe um tapa na boca.
Ela leva um susto, encolhe-se cabisbaixa e começa a chorar.
- Mãe? – aquele tom de mágoa dilacera meu coração.
Chego perto, envolvo-a num abraço e fico com remorso, comovida, sem saber o que foi
real ou não.
Devo ter delirado.
Dou uma risada nervosa, seguro o rostinho de minha filha e peço perdão.
Sem dizer mais nada, seguimos para o carro.
Entramos em silêncios e permanecemos assim após eu ligar o motor e pisar no acelerador.
No meio do percurso ela me chama lá do banco traseiro.
- Sim, filha... – fico feliz por ouvir sua voz novamente.
- Quase me esqueci. É para avisar ao papai que ele está equivocado.
Franzo a testa, olhando-a pelo retrovisor:
- Por que, filha?
E ela volta a ficar calada, olhando pela janela.
Chiclete
Lúcia se diverte com os vídeos que publicam na internet.
É seu hábito diário assisti-los após o almoço.
A refeição é sempre preparatória para algum doce.
Lúcia pega um chiclete acima da cômoda e começa a mascar.
Deita-se no sofá.
Em meio aos vídeos bem humorados aparece um feito com traquinagem. Durante a piada,
o influencer dá um susto no telespectador.
Lúcia, pega de surpresa, dá uma tremida. O aparelho móvel escorrega e começa uma
queda livre rumo a seu nariz. Ela tenta pegá-lo no ar, mas seu movimento veloz só serve para
amortecer o baque.
Nisso, engole sem perceber.
A goma mascada não é absorvida, mas se enrola na garganta.
Lúcia engasga e tosse.
O corpo se ergue automaticamente e ela se põe sentada.
Percebendo que sua via respiratória continua obstruída, entra em pânico.
Abaixa a cabeça e força mais tossidas.
Faz tanta força que sente as cavidades de sua traqueia raspando.
Lúcia coloca as duas mãos sobre o diafragma e começa a pressionar.
Não surte efeito.
Então ela começa a esmurrar a barriga, o abdômen, o tronco, na esperança de que a
pressão causada pelo impacto empurre a massa grudenta para fora.
Ineficiente.
Sente o sangue subindo à cabeça, sente-se ficando roxa.
Fica de pé e joga o corpo para os lados. Ergue os braços para cima. Começa a pular sem
saber o que está fazendo, apenas torcendo para que uma frenética movimentação solucione o
incidente.
Ela lança o corpo contra a pia, enche um copo com água da torneira e ingere o líquido.
Regurgita violentamente. Mas a goma de mascar continua enrolada em sua garganta.
Resta-lhe usar o dedo médio para tocar no chiclete a fim de fazê-lo descer. Quanto mais o
dedo fica nos arredores da laringe, mais ânsia sente.
Tira a mão e dessa vez enfia o indicador junto, e mais fundo. Fica revirando os olhos de
náusea, tentando pinçar o item que entope suas vias respiratórias.
Consegue puxá-lo, mas nota que ele está com a maior parte ainda grudada na garganta.
Desesperada, quase sem ar, busca uma colher na gaveta da pia.
Insere o talher o máximo que consegue e raspa o tubo de deglutição.
Começa espasmar enquanto vomita o recém digerido almoço.
As pernas perdem força e ela tropeça, caindo de joelhos. Está com os punhos fechados,
ainda segurando firme a colher quase inteira dentro da boca. Os dedos dobrados raspam nos
dentes.
Após outro espasmo ela perde o equilíbrio e cai de frente no chão.
A ponta do cabo da colher colide com o piso e ela entra por completo, arranhando as
amígdalas e indo parar no esôfago.
Circo sombrio
- Daqui pra frente a coisa só piora. Pense bem se vai querer continuar. Preste atenção no
que estou falando. Passe uma hora lendo reportagens do cotidiano. Ao nosso redor há assédio,
necrofilia, violência infantil, suicídio e derivados. Na casa do vizinho pode ocorrer algo brutal
todo dia. Nesse exato momento tem alguém sendo mutilado em algum lugar. Não temos controle
nenhum sobre nada. Ouvir falar dessas coisas te causa gatilhos? Então é melhor parar, é melhor
não seguir adiante. Vá para debaixo da cama e fique por lá. Por enquanto foi tudo leve para você.
Tá me entendendo, cacete? – coloco as mãos na cintura e observo meu neto.
“Restam-lhe poucos meses de vida”, ouvi do doutor há um tempo. Não espalhei a notícia.
Somente eu estava ciente de minha putrefação. Com 50 anos sendo carregados nos ombros, não
queria sentir a misericórdia de ninguém. Ser-me-ia humilhante. Minha doença se agravara de
forma irremediável e ponto final. Não haveria cura, milagre ou pensamento positivo que alterasse
o cenário. Meio século é bastante? Eu deveria estar grato por ter alcançado essa idade? Meio
século de perda de tempo. Meio século para quê?
Resolvi viver tudo o que não havia vivido até então. Quase tudo.
Mandei o patrão à merda; ri enquanto assinava a rescisão contratual. Minha real vontade
era esfaquear o filho da puta. Eu teria ficado em júbilo se pudesse apunhalá-lo centenas de vezes.
Por qual motivo ele teve sorte ao invés de mim? Nasci pobre pra caralho, ele ficou
economicamente tranquilo assim que veio ao mundo. Sei bem a respeito da história de vida do
paspalho. Servi-lhe por dez anos. Após tanto tempo sendo porteiro eu merecia ganhar um
prêmio. Ganhei foi merda nenhuma. Antes desse último emprego já fui frentista, caixa de
supermercado. Nada que valorizem. Charles Manson foi muito mais valorizado do que qualquer
funcionário de posto de gasolina. Uns cometem atrocidades e ganham notoriedade e fã-clube. O
que é atroz, afinal? Algo subjetivo? Para alguns assassinar significa a glória eterna.
Quando jovem eu sonhava com tanta coisa. “Quero meu nome exaltado”, eu pensava,
imaginando-me jogador de futebol. Por que Deus deu tanta habilidade para meia dúzia de
arrombados e tanta mediocridade física para outros? Alguns paspalhos ganham a vida correndo
na olímpiada. Que enorme talento! Inveja minha? Talvez. Ou somente frustração mesmo. Joguei
o jogo da vida errado ou só fui azarado? Quantos bilhões de azarados há por aí! A alguns o maior
esforço nunca será o suficiente. Há alguns cujo o conforto de uma vida bem sucedida será
possível somente na imaginação. Mandei à merda o último patrão que tive.
Passei a frequentar prostíbulos. Eu que nunca havia gastado um centavo com puta! Traí
minha mulher de todas as formas possíveis – a fidelidade vinha durando por mais de 30 anos de
casamento. Inventei as mais tolas justificativas para permanecer fora de casa aos fins de semana.
“Passei a frequentar uma igreja no centro da cidade”, “vou ao bingo”, “de repente tornei-me
cinéfilo, todo domingo tenho vontade de assistir algo naquela tela imensa” e etc. Saí com
meretrizes de todos os formatos possíveis. Gordas, magricelas, beiçudas, gostosas, zoadas, altas,
magras e até mesmo uma anã. Gostei da experiência. Metade do dinheiro que eu tinha
acumulado foi-se embora em menos de um semestre. Também tive encontros sexuais com
travestis. Experimentei de tudo um pouco. Tomei viagra pela primeira vez na vida para
potencializar minhas aventuras. Ingeri a pílula pela segunda vez, pela terceira, e várias mais. Não
temi ataque cardíaco, assim como não temi pegar doenças venéreas. Transei com quem se vendia
em esquina e com qualquer porcaria que se oferecia em botecos. Fiz de meu desgastado corpo
um templo da luxúria.
Submeti-me ao sadomasoquismo. Bati, apanhei, assisti a um casal de pirados se ferindo.
Fiz cadastro em todas espécies de sites e aplicativos para relacionamento. Falei as maiores
barbaridades para desconhecidas, sem culpa nenhuma. Mandei foto de meu pênis para mulheres
atraentes que eu encontrava na internet. Encontrei um casal experiente em sex tapes. Interessei-
me pela ideia de compartilhar gravações de meus atos carnais. Copulei com meia dúzia de
mulheres acostumadas ao mundo explícito. Acabei, inclusive, por filmar escondido um sexo com
minha esposa e divulguei-o em um site que movimenta a indústria pornográfica. Os comentários
tratando-nos como objetos me excitou. Acabei publicando o vídeo também no Twitter. Ela ainda
não ficou sabendo. Iria morrer de vergonha e ódio. Dane-se.
Experimentei todo tipo de droga que pude encontrar. Ayahuasca foi a maior das loucuras.
Se eu não tivesse voltado à essa dimensão não teria lamentado.
Meti-me em becos e falei com trombadinhas. Comprei maconha em vielas, das mãos de
moleques sujos e cujo linguajar era repleto de gírias incompreensíveis. Cocaína me animava. Daí
cocaína passou a anteceder algumas idas aos mercados sexuais.
Fui em baladas de todo gênero. Olhavam-me torto. “O que esse velho fodido está fazendo
por aqui?”. Olhavam-me como se eu fosse um doente mental perdido. Dancei como nunca havia
dançado antes. Dancei sem me importar com ninguém. Afinal eu sabia que estava sentenciado à
morte. E aí me senti otário por nunca ter dançado tão eufórico antes. Senti-me mais otário ainda
em minha posterior constatação: “ao nascer já estamos sentenciados à morte”. Mas foi-me
preciso um diagnóstico médico enfatizar isso.
Variei minha agenda. Fui à Parada Gay, à Marcha para Jesus, ao candomblé, em igreja
evangélica, em palestras motivacionais, em workshops de diversos temas, em manifestações
políticas. Xinguei um político na manifestação de seus opositores, depois elogiei-o em uma
manifestação de seus apoiadores. Era só fingir concordar com o que concordam que me tratavam
bem. Fiz contas falsas em redes sociais, em uma eu xingava todo mundo, em outra eu fazia o
oposto. Incorporei diversas personalidades. Aí percebi quão divertido é não ser só um.
Nesse meu período de abdicação da moral eu já não me importava com nada e ninguém.
Menti para todos que conheci. Para cada pessoa eu contava uma história que me convinha. Qual
o sentido em dizer-lhes verdades sobre minha biografia? Não há quem se importe, afinal. Somos
só distrações uns aos outros. As putas diziam me amar, pois agradar o cliente é sempre bom ao
vendedor. As putas fazem semelhante aos vendedores de cursos, aos vendedores ambulantes que
abordam para vender cookies, aos vendedores de roupas. Fingem se importar conosco. Somos
todos umas putas, afinal? Vivemos nos prostituindo, fingindo nos importar. Prostituímo-nos com
o que temos à disposição. Eu me vendia sendo porteiro. Minha utilidade era ficar plantado
naquela merda de condomínio. Um terço da minha vida foi trabalhando. Servindo aos outros.
Fazendo o necessário para poder me alimentar. O que vivi para mim? Um gozo que dá prazer
durante alguns segundos e depois se torna irrelevante? Essa é a lógica da vida? A maldição me
soa natural, pois se não existissem trabalhos eu teria que passar um terço de minha vida caçando
alimento. Seria um trabalho de qualquer jeito. O que mudou dos australopithecus até agora?
Somente os cenários? Somos animais amaldiçoados com a consciência.
Gastei meu dinheiro com os produtos mais caros. Massageadores, videogames e televisão
de última geração. O pessoal de casa estranhou, mas não reclamou. Inventei uma história sobre
premiação por eficiência. Não sei como acreditaram. Acreditaram? Forçaram-se a acreditar, pois
crer era-lhes agradável. Como eu ganharia alguma premiação por eficiência sendo porteiro? Dei
o mais empolgante bom-dia aos moradores?
Após tantas meretrizes, massagens e jogatinas 4K em 60 polegadas, a grana foi chegando
ao fim. Eu não me preocupava mais com dinheiro. Eu poderia fazer um empréstimo
irresponsável. A morte bateria em minha porta antes da cobrança.
De segunda a sexta eu vivia mil vidas diferentes e a família achava que eu continuava na
mesma monotonia de sempre.
Constatei que é tudo apenas distração. Todo prazer é só um distrativo que em algum
momento acaba e perde efeito. Felicidade é falácia, uma cena passageira. Depois de um
momento feliz todos retornam ao estágio de se sentir vazio. Sempre faltará alguma coisa. Há
horror maior do que pensar sobre isso? Horror maior apenas a contagem regressiva. A contagem
regressiva para todas essas lembranças felizes se tornarem pó. Felicidade não se acumula. Somos
nós umas distrações de deuses sádicos?
Aproveitei e também fui sádico. Ateei fogo em um morador de rua que dormia feito um
anjinho abandonado pelo onipresente criador. Os jornais nem tomaram conhecimento do fato. Se
ficaram sabendo ignoraram por completo. O ocorrido não apareceu nem no rodapé dos jornais.
Uns morrem e brilham tanto, outros morrem e passam batido. Como será que funciona a régua
com que medem a importância dos falecidos? Já vi tanto pobre anônimo ganhando comoção
nacional. Basta a mídia focar num morto que ele se torna importante. Milhares de outros que se
fodem nunca são citados pelo âncora do trágico programa de TV. Uma pena que o mendigo que
matei não foi destaque midiático, eu teria adorado brilhar um pouco. Eu já estava pouco me
importando em ser preso. Em minha condição de fatal apodrecimento interno qualquer
acontecimento é irrelevante.
O episódio fez florescer em mim um desejo de ter fama antes de morrer e cheguei a
fantasiar isso por alguns dias. Não importaria o motivo pelo qual a fama viria, contanto que
houvesse manchetes me eternizando. “Ainda terei essa oportunidade? Permanecerei no
ostracismo?”, foi o pensamento que invadiu minha mente nalgumas noites.
Estou morrendo e não há remédio.
Receber uma sentença de morte me fizera questionar minha utilidade. Questionamento
ainda em aberto.
Sempre tentei trilhar uma existência sob ética e moral. Hoje me arrependo disso. De que
me adiantou tanta rédea? Pelos cálculos médicos meu suspiro derradeiro ocorrerá nos próximos
dias.
Agora estou diante de meu oposto. Estou olhando para um ser tão jovem, tão cheio de
expectativas.
- Pois é, moleque. Ou você se acostuma com a vida ou vai viver chorando – digo.
Antes de partir dessa vida para a interrogação inevitável, decidi vir dar uma passada na
casa de meu filho. Agora ele está no mercado com a esposa. “Sejam bonzinhos com o vovô,
garotos”, ele dissera a suas duas crias. Eu não havia planejado ficar sozinho com a dupla, mas a
ocasião me pareceu oportuna. O mais velho, adolescente chato, já me perturbou falando sobre
seus ídolos de internet. O mais novo, descansa tranquilo no berço. Um neném lindo.
Sempre que vejo bebês, lamento por eles. O tempo os condenará. A tranquilidade de
existir dura tão pouco. Quando passamos a ter consciência das coisas é que mergulhamos em
perturbação. Coitado desse meu netinho. O outro já é jovem, já tem hormônios estúpidos, já é
fantoche de celebridade, já se tornou fútil.
Pouco depois de ficarmos sozinhos perguntei-lhe o que achava da vida. Pergunta complexa
demais para um jovem. A resposta dele foi previsível. “O que você espera do futuro?”, fiz outra
pergunta. Ele respondeu olhando para o celular, dizendo que quer ser um influencer digital rico.
“Boa sorte”, respondi, “seja empenhado. Espero que dê certo. Mas acelere os passos, senão
você morre antes de obter tal conquista”. Eu quis soar ríspido. Foi um conselho sincero, apesar
da rispidez.
“Credo. Nossa”, ele arregalou os olhos. “Você falando assim me dá gatilho”.
“Gatilho?”, indaguei.
“Sim. Que coisa horrível de se falar. Aí eu fico pensando nisso. Fico ansioso, pensando
nessas palavras. Aí não é uma coisa boa, entende? Não é agradável ouvir isso aí”.
Respirei, impaciente:
“- Daqui pra frente a coisa só piora. Pense bem se vai querer continuar...”, e dei-lhe um
sermão.
- Meu Deus! O que deu em você? Está aí falando coisas sem sentido.
- Sem sentido? Se com 14, 15, 16 ou sei lá quantos anos... Quantos?
Aguardo ele ceifar a incerteza.
– Ah! 14, ótimo. Se com 14 anos você está sofrendo ao ouvir verdades da vida, daqui pra
frente você está perdido. Todo dia ocorrerá uma desgraça, alguém será assassinado, os jornais
mostrarão acidentes, doenças irão aparecer dentro de você ou de pessoas que você ama. Sem
sentido é nossa existência. Nada será útil, no fim das contas. A gente só passa os dias se
distraindo. Nossa existência é mera distração. Existe algo mais aterrorizador do que pensar na
vida? E o futuro? O futuro pode ser pior do que o presente. Imagina você fazendo um projeto de
vida, aí de repente um presidente psicopata aciona um míssil nuclear? Um vagabundo te assalta e
atira? Um retardado te esfaqueia num bar? Essa sociedade é selvagem, isso aqui é um circo
sombrio. Imagina se no futuro a eletricidade sofre um pane global? O que você faria? Imagina se
amanhã você faz um exame de rotina e descobre uma doença que vai te matar e não há nada que
possa ser feito? Você iria surtar, não iria?
Ele fica com olhos marejados, desvia o olhar e se curva mirando o aparelho móvel.
Começo a gargalhar, dele e de mim.
Ao jovem emocionado o monólogo de um velho revoltado com o destino. Quanta asneira.
Levanto-me e vou até o berço. Que criaturazinha linda.
Nunca tive muito contato com meus netos. Cidades diferentes. O clichê de sempre. A
parentada se vendo somente em feriados.
Inclino e pego o anjinho no colo. O inconsciente no qual ele ainda está submergido é a
melhor época. Um estado vegetativo sem dor, sem angústia.
Vou caminhando para a varanda.
Não fui um avô de forte conexão com os descendentes, mas olhando para esse ser
tranquilo e sereno, sofro por ele. Qual pesadelo o futuro lhe traria?
Arrasto a porta de vidro para o lado e entro no espaço arejado.
Dou uma olhadela para o horizonte.
Aqui do sétimo andar a vista é privilegiada.
Dou dois passos curtos e chego ao parapeito.
Não tiro mais os olhos do pequenino.
- Vô? – ouço a voz do jovem lá de dentro.
Não olho para trás.
Meu netinho mexe a boca, a chupeta cai ao lado do rosto.
Ele abre os olhinhos e admiro o universo que há neles. Universo de paz. Beijo-lhe a testa.
Estendo os braços para frente.
- Vô!? – o jovem lá de dentro grita – o que está fazendo?
E solto.
Dark Web
De tanto um colega de serviço comentar a respeito da Dark Web, Juliano enfim ficou com
uma curiosidade irresistível:
- Apresenta esse negócio pra mim, na prática. Quero acessar - diz, durante o horário de
almoço.
Juliano estava naquele emprego há quase um semestre. Balconista numa rede de fast food.
De todo plantel, havia consolidado amizade com dois seres. Um muito papeava sobre mulheres,
festas e shows sertanejos; o outro era mais de tecnologia, realidade virtual, cibernética. A maior
fixação deste era a Dark Web. Fazia comentários a respeito quase que diariamente. “Deep Web é
o portal maligno da internet disponível para o grande público. Mas poucos conhecem o
verdadeiro inferno da rede, a Dark Web”. “Sabe tal jogador de futebol que vocês dois idolatram?
Tem conteúdo dele na Dark Web estuprando uma garota de 8 anos”. “Acho engraçado vocês dois
discutindo sobre religião. Se entrarem na Dark Web irão ver a maioria dos ícones religiosos que
tanto admiram fazendo sacrifícios ao demônio”.
Juliano e o outro pediam provas, mas recebiam negativas como resposta. “Não posso
mostrar nenhum conteúdo para ninguém. É a regra de lá. Quem quiser ver, precisa aceitar os
riscos e entrar por si só. O máximo que posso fazer é ensinar como se faz para ter acesso”.
Sempre essa explicação. Então os dois zombavam: “Essa tal de Dark Web é papo furado. Você
fica querendo tirar onda com nossa cara. Não cansa desse assunto não?”.
Certa vez Juliano chegou triunfante para bater o ponto. “É tudo balela do cara. Ontem eu
estava sem nada para fazer e pesquisei sobre a Dark Web no Google. Não deveria ser difícil
acessar o negócio? Pois bem. Num dos resultados apareceu o site the-dark-web.com. É esse?”.
“Nesse aí o máximo que você consegue é um vírus. Isso aí faz parte da surface web. Para entrar
na parte mais profunda da rede é preciso bem mais empenho”, o outro ria.
Em outra oportunidade, Juliano insistiu na pesquisa individual. Chegava outra vez ao local
de trabalho mantendo um semblante de triunfo. “Pesquisei novamente esse negócio de Dark
Web. Dessa vez deu certo. Encontrei um guia ensinando passo a passo. Falaram que a Dark Web
faz parte da Deep Web, viu? Baixei um navegador chamado Tor. É só isso? Que bobagem. Eu
pesquisei umas coisas lá e parecia que eu estava pesquisando normalmente. Não vi diferença
nenhuma”. O outro permaneceu atento, ouviu tudo e no fim apenas riu. “Instalou algum
software? Usou VPN? Usou Hidden Wikis?”. Juliano deu de ombros, “fiz nada disso. Que
chatice”. O terceiro, o mulherengo festeiro, coçava os cabelos e sentenciava: “Cêis dois são é
dois malucos”. “Juliano, me ouça. Quando você tiver acesso real à Dark Web, você verá cenas
que não gostaria. Irá se deparar com maldades. Você encontrará resultados indigestos. Entenda
uma coisa, sozinho você não vai acessar nada e, caso milagrosamente obtenha acesso por conta
própria, apenas fazendo aulinhas por aí, a probabilidade de se foder é enorme”. “Se você sabe
que verei cenas que não quero ver, por que fica instigando esse assunto?”. O trio gargalhara com
o tom indignado na voz de Juliano.
- Tem certeza que quer entrar?
- Tenho sim, apresenta essa Dark Web aí pra mim – responde Juliano.
- Tudo que eu já comentei a respeito é verdade. Tenha consciência disso.
- Porra, meu. Eu duvido de um monte de coisa que você já disse. Mas se a intenção era me
atiçar curiosidade, deu certo. Me deixa ver logo essas barbaridades. Como faço?
Então combinam de ir ao apartamento de Juliano após o expediente.
Todas as explicações são dadas. Passo a passo é feito.
- Agora – diz o especialista no assunto -, basta clicar ali. Depois do clique você estará
completamente imerso no lado mais profano da internet. Um ambiente onde você pode acabar
cruzando o caminho de um traficante, um serial killer, um pedófilo. Dependendo de onde você ir,
algum psicopata pode te mandar mensagem. Você que se responsabilize, hein?
Juliano força um bocejo para demonstrar despreocupação:
- Então, vamos lá.
E clica.
O monitor do notebook se torna todo preto, com apenas uma aba na parte superior, onde é
possível digitar.
- Agora, meu amigo, vou para minha casa. Divirta-se.
Despedem-se e, no vão da porta, com o outro já de costas, indo embora, Juliano chama:
- Ei. Antes que vá, deixa eu só perguntar uma coisa. Aquele papo sobre o jogador de
futebol estuprando uma garotinha, é verdade?
- Olha, Juliano – o outro comenta, esperando o elevador -, as histórias que contei são todas
verídicas, e são coisas leves. – sorri e o apito de chegada é emitido. Dá um aceno – cuidado -, um
passo à frente; desaparece.
Com sede de saciar a curiosidade, tranca a porta e acelerado retorna ao quarto.
Diante do monitor e da Dark Web diante de si, não sabe nem por onde começar.
Põe a mão no queixo e fica olhando para a tela escurecida.
Tecla o nome do esportista que tanto gosta. “Será que ele realmente estuprou a garota?”,
pensa.
Então sente um choque.
Aparece uma listagem de resultados encontrados. Cada um mostrando um frame diferente,
e em cada imagem o atleta está com uma criança diferente.
Arregala os olhos e, ainda incrédulo, clica num dos resultados. Precisa conferir se sua
investigação tem fundamentos. E verifica que sim. Os vídeos são legítimos. Passa de um por um,
clicando e logo pausando para não sentir o enjoo aumentar. São vídeos feitos com câmeras
variadas, antigas e atuais. Resoluções diversas. “Não tem como ser montagem”, conclui. Há
imagens do jogador mais jovem. Há imagens recentes. “Essa tatuagem no ombro ele fez... esse
ano...”, espanta-se, depois de ter dado play no sétimo vídeo.
Indignado com aquilo joga-se para trás na poltrona. Fecha os olhos e cobre o rosto com as
mãos. Tal jogador aparece todo dia na mídia. Ganhou campeonatos e recebeu ovações. A mídia
não sabe disso? Como não? Como tal assunto nunca ganhou visibilidade? São cúmplices?
Respira algumas vezes.
Uma lembrança invade sua mente. Há algumas semanas ouviu um comentário após
entregar uma bandeja a um cliente. “Caramba, essa garota é idêntica a uma que vi lá na Dark
Web. Era um vídeo de uns médicos fazendo sexo com uma paciente em coma”. Seria possível
existir tanta monstruosidade? Na ocasião Juliano apenas franzira a testa e fizera cara de nojo.
Ajeita-se e começa a digitar. “Médico fazendo sexo com paciente em coma”.
Não aparece um resultado, aparecem centenas. Milhares? É uma lista gigante com
comentários, fotos e gravações.
Cai-lhe um mal-estar. A cabeça começa a doer. Ele se vê forçado a assistir meia dúzia do
material, para comprovação. Em um dos vídeos são dois homens ao redor da pobre inerte
acamada, eles serram seus braços enquanto um terceiro, entre suas pernas, lhe penetra. Serram
até os membros não serem mais parte do corpo dela. Então erguem eles como se fossem troféus.
O outro permanece com a penetração.
Juliano decide assistir até o final para ver onde aquilo irá parar. São mais de trinta minutos
de um show bizarro e brutal. Passam a lâmina no pescoço da infeliz. Arremessam a cabeça dela à
lata de lixo. Colocam a cadáver sentada. Um deles retorna com uma broca. Um furo é feito de
cima a baixo. Com outra ferramenta alargam o buraco. Aplaudem-se. Deitam-na novamente.
Usam o orifício gerado para transar. Juliano não consegue parar de assistir aquilo tamanha é sua
perplexidade.
Vai à cozinha tomar um gole de água. Olha pela janela. Vê a movimentação urbana de
sempre. O céu está começando a escurecer. A vida de todos prossegue como sempre. Vê os
carros passando, a silhueta dos vizinhos nas janelas. “Como pode tudo aquilo ser real? Como
podem tais indivíduos estarem por aí? Entre nós?”, balança a cabeça.
Volta ao notebook.
Estranha uma nova janela. É um chat que foi aberto. Mandaram-lhe mensagem. “Busca
algum órgão?”, estão lhe perguntando. Questiona-se se aquilo é real ou se é bazófia dalgum
doente. Responde com cinco interrogações consecutivas. “Órgão, porra. O que precisar, tenho
aqui”.
Aquilo deixa-o inquieto. “Órgãos?”, arqueia a sobrancelha.
Para evitar complicações, clica no X e encerra a conversa.
“Órgãos?”, coça o queixo.
Digita o substantivo e pesquisa. Aparecem infinitos tópicos diferentes. Órgãos públicos,
órgãos políticos, órgãos humanos...
Juliano vai navegando nesta terceira opção e encontra uma infinita miscelânea relacionada
com o termo. Há um extenso mercado negro com tudo à disposição. Há uma extensa exposição
fotográfica de corações, cérebros, estômagos, humanos dissecados e carcaças de animais. Após
alguns cliques chega em vídeos de humanos sendo picotados enquanto agonizam. Depois ele
assiste a vídeos de canibalismo. No meio de uma floresta um grupo mastiga carne de crianças;
em outro vídeo, canibais devoram adultos em um sítio e depois saltam na piscina junto à carne
que restou das vítimas; no próximo, enfermeiros degolam velhos... aparentemente... em um...
asilo. Em outra filmagem, ambientada num vilarejo, mascarados assistem um cadeirante ser
devorado por garotas trajadas de branco; depois todos dão as mãos e entoam um cântico
sinistro...
Estivera tão entretido com a carnificina que se esqueceu do horário da janta.
Repreende-se e vai se alimentar.
Após limpar o prato volta animado à escrivaninha. Coloca os fones de ouvido.
Pesquisa diretamente sobre canibalismo.
Há uma filmagem feita em frente de uma igreja, com um grupo fazendo ciranda ao retor de
uma fogueira enquanto uma dupla arde em chamas. Os gritos desesperados ecoam diretamente
para dentro de seus ouvidos. “Gritos de dor” é sua pesquisa seguinte.
Juliano tem uma sensação diferente usando aquele potencializador sonoro. Tudo se torna
mais tenebroso, mais real ainda. Ele se espanta ao notar que a sensação lhe tem sido um tanto
quanto prazerosa. Então larga tudo aquilo e vai tomar uma ducha. Ao fechar o chuveiro sente-se
exausto. Não parou de pensar em todas as imagens às quais foi telespectador durante a noite
toda.
Joga-se na cama e adormece rapidamente.
Ao chegar na lanchonete às 10h00, sente-se estranho. Evita comentar sobre a experiência
na Dark Web. Faz comentários vagos quando perguntado a respeito. “Depois que você foi
embora lá do apartamento eu só olhei por cima e logo desliguei o note e fui fazer outras coisas”,
mente. O outro emite um olhar desconfiado. “Sério mesmo. Eu só estava curioso”. “Tem que
limpar os rastros de navegação, como eu tinha te falado”. “Eu fiz isso, está tudo em ordem”.
E chegou a hora do almoço.
Tirando seu incomodo quanto ao assunto de Dark Web, o dia vinha sendo normal como
qualquer outro. Sentia-se desconfortável para revelar tudo o que assistiu, para revelar a angústia
que lhe acometeu, o excitamento que acabou sentindo. Não diria a ninguém que estava ansioso
para chegar em casa e distrair-se testemunhando mais morticínio. Tão ansioso que por um
momento esqueceu que era sexta-feira, dia de happy hour com a dupla.
Almoçam e voltam ao ofício.
Horas mais tarde, o trio no bar. Divertem-se. Falam sobre o de sempre. Dissertam sobre
uma música ou outra, flertam com algumas garotas da mesa ao lado, analisam as evoluções
tecnológicas.
Um comentário despretensioso pega Juliano de surpresa. “Sabemos muito bem sobre o
benefício da tecnologia, mas temos que sempre vigiar e nunca esquecer a webcam descoberta. Ir
pro espaço sideral é uma maravilha...”
- Como é?
- Ir pro espaço sideral é uma maravilha...
- Não, não. Antes disso. Sobre a webcam...
- Ué, você nunca ouviu falar que qualquer webcam está ao alcance de qualquer hacker
malicioso? Qualquer tarado pode ficar se masturbando assistindo você pela webcam.
- Sim, eu sei disso...
Nesse momento, Juliano relembra o dia anterior. Sente um calafrio.
- E na Dark Web? Quando a pessoa está lá dentro conseguem acessar a webcam também?
O outro tomava suco no momento e quase engasgou.
- Oras – diz, após tossir e limpar a garganta -, aí é óbvio que acessam. Lá, que é um
ambiente repleto de psicopata perverso, é fundamental que o usuário cubra a webcam.
- Ah, sim, claro – Juliano tenta manter um olhar neutro de desdém.
- Ei... – o rosto de seu interlocutor fica tenso -, ontem... você não deixou a webcam
descoberta, né? Não te alertei porque isso é uma obviedade... qualquer um sabe disso. Você não
daria uma mancada dessas, certo?
Juliano tenta soar despreocupado:
- Você tá doido? Acha que eu ia deixar os caras admirando minha beleza assim de graça?
Jamais.
O outro não ri.
- Isso seria o de menos. Gravam você e jogam o vídeo lá na Dark Web para qualquer um
ver. O vídeo aparece lá com teus dados completos. Basta a webcam ligada que descolam teu IP
rapidinho. Ainda mais se houver alguma interação em chat com alguém que tenha más intenções.
Aí fodeu. Se quiserem te rastreiam na hora. GPS, meu amigo. Rastreiam fácil. Entrar na Dark
Web é o mesmo que permitir que aplicativos “acessem sua localização”. Todo cuidado é pouco.
Juliano força um riso e muda de assunto.
Mas aquele detalhe martela em sua cabeça até a porção de batatas fritas terminar. E
continua martelando depois disso.
Despedem-se e cada um segue seu rumo.
Entrando no apartamento, sem nem mesmo se trocar, ele abre o notebook e pesquisa o
próprio nome na aba de pesquisa. Aparecem diversos resultados para Juliano da Silva. Seleciona
um aleatório e clica. São diversos trechos de matérias falando sobre um corpo vilipendiado.
Volta à janela anterior. Mantendo a aleatoriedade, dá outro clique. Aparece um vídeo de zoofilia.
“Aparentemente um outro Juliano da Silva tinha fetiche em cachorros. Ou ainda tem”, pensa,
sentindo asco. Estende a mão, pega na parte superior da tela do notebook, no intento de fechá-lo.
Então subitamente uma ideia vem à sua mente. Ele reescreve seu nome completo outra vez e na
frente coloca o número de seu CPF.
Aparece um único resultado. A legenda diz “transmissão ao vivo de um assassinato”.
Ele permanece imóvel, encarando o notebook. Olha para os lados. Sente medo. “Que
bobagem”, diz a si mesmo e fica ereto e clica para ver o que aparece.
Aparece a imagem dele próprio.
Então ele sente-se frágil e sem reação.
Fica estático.
Assiste a si mesmo.
Encara-se.
Ergue os olhos em direção à webcam. A projeção de sua imagem repete o movimento com
dois segundos de atraso.
Sem pensar duas vezes, pega o celular do bolso. A cada número teclado, dá uma olhada
para o monitor. Do outro lado da linha uma voz atende:
- Polícia militar, emergência.
Ao que Juliano responde “alô”, vê um vulto passando atrás de si, na transmissão, e
sumindo. Consome-se em pavor. Teme mexer-se e ser atacado. Sente-se diante de um predador.
- Preciso de ajuda... – ele diz, olhando para o monitor e descendo até o chat.
“Essa noite vai ser animada”. “Olha esse bastardo, todo tremendo de medo”. “Mate
lentamente, por favor”. “Pago 10 mil dólares pelos dois rins desse merdinha”. “Se arrancar as
duas orelhas enquanto ele tá vivo, deposito 5 mil reais”. “Dê-nos vilipêndio de cadáver, por
gentileza!”. Centenas de comentários sobem pelo chat. E Juliano nota que não são comentários
apenas em português, mas sim em vários idiomas.
- Qual o endereço e qual a ocorrência, senhor? – a voz da atendente no viva-voz soa
distante. Juliano mal a ouve, petrificado com a transmissão e os comentários. Petrificado com a
silhueta que vê atrás de si na transmissão. Silhueta essa que a cada vez vem ganhando mais
forma. Uma forma humana segurando um saco plástico...
- Alô? – diz a atendente – senhor, qual o endereço? Que barulho foi esse, senhor? Preciso
de mais informações. Senhor?
- Rua Cervantes da Costa, número 252, centro.
A resposta não é dada por Juliano.
Tiroteio na estação de trem
Não foi difícil encontrar um noiado e comprar uma arma. Em 30 segundos ele me deu
todas as instruções e eu fiquei apto para manusear o objeto letal.
Há três semanas minha esposa foi assediada pelo seu anestesista.
O caso tomou proporções nacionais. O vídeo repercutiu em todos os cantos.
A endoscopia era para averiguar o grau da gastrite. A endoscopia foi uma oportunidade
para o anestesista perverso saciar seu fetiche com a paciente desacordada.
A enfermeira flagrou o assédio e gravou escondida.
Qual o sentido dessa porra de vida?
Minha esposa cresceu traumatizada com o corpo, pois fora molestada pelo tio enquanto era
criança. Ao ficar ciente do que ocorrera naquela clínica, a dor do trauma retornou. Nos dias
seguintes ela não saiu da cama, afogada em tristeza. Na última quinta ingeriu uma dose absurda
de remédios. Encontrei-a morta ao voltar do serviço.
Qual o sentido dessa porra de vida?
O estuprador ganhou milhares de seguidores na rede social e está com três advogados do
seu lado.
Acompanhar os noticiários tem me causado náuseas.
Dizem que se os seus defensores forem de qualidade, ele pode pegar só 10 anos de cadeia
e em cela individual. “Se lá dentro ele tiver boa conduta, a pena pode cair pela metade”, me
disseram.
Qual o sentido dessa porra de vida?
Hoje, segunda-feira.
Acabei de atirar em uma pessoa dentro da lotada estação de trem. O burburinho da
multidão estarrecida me fez ter vontade de rir. Qual o sentido dessa porra de vida? Todos
esperavam apenas mais um domingo qualquer. Não sabem de onde viera o estampido. Atirei de
modo discreto, no meio das costas de um aleatório que passava na minha frente. Encararam-se,
perplexos. Qual o sentido dessa porra de vida? Começaram a se atropelar.
Empurram-se, buscando passagem.
Tiro a arma debaixo da blusa e atiro na nuca da mulher confusa em minha frente.
Então identificam o autor dos disparos.
Os passageiros ao meu redor começam a se afastar.
Gritam, gritam, correm pela própria sobrevivência. Começo a rir. Qual o sentido dessa
porra de vida?
Aponto para corpos aleatórios e descarrego o gatilho.
Núbia Khaled
Essa rede, esse luar, essa atmosfera. Está tudo numa sintonia que exala perfeição.
Posso dizer que minha vida entrou nos eixos. Finalmente estou em paz. A mudança foi
brusca. A mudança demorou para acontecer, mas quando aconteceu mudou todas as perspectivas
que havia em meu desorientado ser.
Finalmente posso dizer que estou tendo uma benéfica vida amorosa.
Depois de um relacionamento conturbadíssimo, em mim havia se instaurado um trauma de
laços românticos. Foram oito anos preso em um casamento perturbador. Dizem que eu era um
homem tão infeliz ao lado de Núbia Khaled, que quando me encontravam na rua sentiam como
se estivessem diante de um cadáver – infeliz, desanimado, cabisbaixo e com ombros curvados. O
tempo faz tudo virar gracejo. Hoje dou risada lembrando como fui tolo em me sujeitar a ficar à
mercê de uma louca. Ciumenta, possessiva, obsessiva, prepotente, mentirosa e até mesmo
violenta: essa fora a metade da minha laranja.
Eu ouviria meus amigos dizendo que agora sou outra pessoa. “Tua namorada atual é um
anjo, te renovou”. Mas não dirão nada, pois acabei longe de todos e não conhecem Lilith. Núbia
me sufocava de tal maneira que com o passar do tempo as pessoas se afastaram de mim.
Aconteceu de pouco em pouco. Indiretas, conflitos, brigas generalizadas.
Não me era permitido sair com ninguém, conhecer ninguém. “Quem é aquela pessoa?”, era
o inquérito. “Tenho ciúmes de você, meu amor, pois tenho medo de te perder”, eram as palavras
daquela criatura possessiva. Na época, eu gostava de ouvir aquilo. Aparentava intensidade.
Envolvi-me muito cedo, isso pode ter sido o maior erro. Muita inocência havia em mim.
Entreguei meu ser por completo e de um jeito desvairado, imprudente. Foi um amor que acabou
virando dependência e quando me dei conta já estava aprisionado.
Fiquei órfão ainda na juventude. Provavelmente me faltava uma conexão com alguém. A
única pessoa a me oferecer esse elo sólido foi ela.
Conhecíamo-nos desde criança.
Na adolescência foi uma loucura. Não nos desgrudávamos em momento nenhum. Depois
do primeiro beijo a possessão se tornou mais extrema ainda.
Se eu passasse algumas horas ausente sem lhe dar um telefonema, ela aparecia na porta de
casa se queixando.
Residíamos próximos. Eu, após perder os pais, com meus tios.
Por causa das cobranças que eu recebia, passei a cobrar bastante também. Assim foi sendo
até virarmos dois parasitas.
Antes do casamento ocorreram brigas e dúvidas. Pedi para que refletisse um pouco e
cobrasse mesmo. Prometeu-me que sim. Mas bastaram algumas semanas após a promessa feita
em cima do altar sagrado que percebi ter caído numa mentira.
Em poucos anos dentro daquele relacionamento eu já tinha perdido o controle sobre minha
vida. Vivia para satisfazer-lhe as vontades. Era-me satisfatório agradar-lhe independentemente se
eu fosse sair com feridas internas.
Aquela relação foi como uma eternidade infernal.
Afasto as lembranças de Núbia.
A rede balançando. Admiro o céu estrelado.
Hoje em dia estou tão mudado. Voltei a sentir alegria por estar vivo. Voltei a sorrir e a
viajar. Estamos passando uma semana na praia. Só eu e Lilith. Nossa primeira experiência longe
do centro urbano. Já planejamos tantos outros pontos turísticos. “Teremos a vida toda pela
frente”, dizemos um ao outro.
Ela é uma garota incrível. Inteligente, carismática, carinhosa e safada. Nossa química é
sensacional. Eu tinha chegado num ponto da vida em que duvidava que essa sensação fosse
possível. Eu já tinha desistido de ser realmente amado, como vê-se nas raras histórias felizes.
Núbia costumara dizer que me amaria para sempre, e isso fazia minha percepção sobre o amor
ser a pior possível. Se, naquele inferno, eu estava sendo amado, que diabos seria não ser amado?
Ainda bem que esta mulher se foi. Pode até soar cruel, mas sinto gratidão ao universo por ter
feito um caminhão aleatório esmagar aquele automóvel e não deixar sobrevivente. Se não fosse
esse ocorrido, provavelmente eu estaria submisso à doida até hoje. Chegara num ponto em que
passei a tomar as palavras dela como verdade absoluta e achava que sem ela eu não conseguiria
viver. Ela penetrava tais coisas em meu cérebro. “Sem mim você não vive. Você é um pobre
coitado, um derrotado. Só eu para te amar. E eu te amo para sempre. Você me pertence. Meu
homem magnífico”. Núbia tinha um discurso perturbado e isso perturbava minha mente. A
amada atual me resgatou.
Núbia Khaled... Quando penso em meu passado, não há como desconectá-la dele. Quando
penso no presente eu sempre o comparo com o passado no qual Núbia estava comigo. Quando
penso no futuro imagino-o sendo melhor do que foi a vida que tive ao lado de Núbia. Como
esquecê-la? O que foi vivido ao lado dela me parece maldição eterna. Há como me livrar? Não
vejo que seja possível esquecer um passado tão perturbador. Aí sinto um calafrio na espinha,
lembrando as vezes em que presenciei-a fazendo rituais estranhos.
Balanço a cabeça para evitar recordações mais detalhadas. Tento apenas pensar em Lilith.
Nosso namoro começou de modo ligeiro. Bastou apenas um encontro e estávamos
decididos. Apaixonados, viveríamos tal paixão até vê-la transbordar ou simplesmente secar. A
química foi legal e o desejo foi recíproco. Seríamos um casal intenso. E estamos sendo. Em seis
semanas eu sinto como se tivesse compensado noventa e sete meses.
Hoje foi mais um dia especial, como são todos aqueles em que estamos juntos. Passeamos
na areia, mergulhamos a tarde inteira, fizemos muito sexo e por fim jantamos em um restaurante
pomposo. Agora ela está no andar de cima, dormindo feito um anjo. Estava cansadinha. Eu, sem
sono, beijei-lhe o rosto e vim passar um tempo na rede. A lua está exalando sua beleza, alguns
grilos dão sinal de vida. Isso tudo parece onírico. Dou uma respirada profunda, enchendo o
pulmão, inalando o ar puro desse local gracioso, me sentindo alegre.
Tenho um enorme quintal ao meu redor. Há um lindo canteiro de flores ao lado da entrada
principal; há duas amoreiras entre a rede na qual balanço. Alguns metros mais adiante está a
entrada dessa bela casinha de madeira.
Entra-se pela sala-de-estar que ao mesmo tempo é cozinha. Há um fogão em um canto e
um sofá no outro. De um lado do estofado fica uma portinhola que leva ao banheiro e
adjacentemente fica uma escada que leva ao piso superior. Lá são dois quartos e a varanda.
Nenhuma outra casa mais compacta tinha uma aparência tão aconchegante quanto essa. O valor
mais caro se tornou insignificante perto de tamanha satisfação.
A luz do primeiro quarto - o cômodo rente à balaustrada, onde há pouco mais de uma hora
eu estava acariciando minha donzela - se acende. Minha doce amada criatura despertou de seu
sono.
Dou mais uma olhada para a lua e sorrio. Está tudo perfeito. Minha atenção é então tomada
por um par de passarinhos atravessando o céu. Estão tão longe, vejo apenas as silhuetas. E
desaparecem.
Noto que, nesse meio tempo, o primeiro andar se iluminou. Lilith desceu. Imagino que ou
vai beliscar algo na geladeira, ou vai ao banheiro, ou virá se deitar comigo.
Consigo ouvir rangendo a maçaneta enferrujada da portinhola do banheiro. A casa tem
toques modernos inseridos em sua essência arcaica.
Lilith é a mulher mais linda desse mundo. Não canso de beijar-lhe. Vou logo entrar e
esperá-la na cama. O luar já foi devidamente apreciado. Espreguiço-me e me levanto.
Entro, tranco a porta e apago a luz do quintal. No instante seguinte chego ao andar de cima
e me esparramo sobre a cama. Tenho quase trinta anos e me sinto um garoto apaixonado. Minha
loira é dois anos mais jovem. Ela me rejuvenesceu.
Enquanto ela não sai do banheiro dou uma conferida no celular. Nenhuma mensagem
importante. Pego na estante duas peças de tecnologia Bluetooth e coloco-as nos ouvidos. Entro
no Spotify, seleciono uma playlist chamada “khld8 nb8” e se inicia a primeira música. Foi sob
essa trilha sonora que tivemos as relações sexuais mais agressivas e prazerosas... eu e Núbia
Khaled.
Ela me ensinou a ter prazeres peculiares. Fez-me amar enforcá-la até que seus olhos
lacrimejassem. Ela gostava de dor. Ela implorava por dor. Não era um simples sadomasoquismo,
era algo bem além. Ela se cortava e me obrigava a beber o sangue...
Tudo aconteceu de modo gradativo, claro, e somente após o padre sentenciar “até que a
morte os separe”. No começo ela tinha gostos comuns. Seus fetiches macabros foram sendo
revelados aos poucos. E eu estava imerso naquilo. Eu sentia medo e prazer ao mesmo tempo. A
fetichização foi rolando naturalmente até ela me pedir para ser comida no cemitério. Foi a
primeira vez em que realmente titubeei. A titubeação logo passou e na noite seguinte gozávamos
em meio aos mortos. Se tivesse acabado aí, não seria algo tão anormal assim, pois já li muitos
relatos parecidos. Mas Núbia sempre inovava e dava um passo a mais. Repetimos o fato outras
vezes e ela sempre acrescentava uma novidade. Era uma vela acesa. Era um incenso. Era ela
urinando sobre um túmulo e depois se encostando nele e ficando empinada para mim...
Nessa época eu já começava a me algemar emocionalmente nela. Longe de mim estava
perceber o erro.
Houve o episódio no cemitério.
De pouco em pouco ela começou a ser sádica comigo.
Passei a usar coleira dentro de casa.
Certa vez ela fez cortes nos pulsos e derramou o líquido em minha boca, enquanto eu
ficava ajoelhado feito cachorro com a língua para fora.
Aquilo que tínhamos não era BDSM, era bem além, era pura perversão animalesca.
Minha mente já não estava sob meus domínios, mas sob as vontades perturbadas dela.
Eu era obediente. Eu compactuava com a humilhação.
E concomitantemente o ciúme atingia níveis absurdos.
Ao flagrar-me olhando para alguém por um mísero segundo sequer, ela me repreendia. Eu
fazia o mesmo. A reação dela a minhas repreensões possessivas era rir debochadamente.
Éramos de uma intensidade doentia.
“Você sempre será meu. Você sabe disso, não sabe?”.
Todo dia tal frase invade minhas lembranças e me excita.
Felizmente o caminhão branco me libertou. Um carro desgovernado foi para baixo dele,
fazendo-o perder o controle e ir para a pista onde Núbia estava. Penso nisso e dou uma longa
puxada no ar. Se o acidente não tivesse acontecido, eu estaria até hoje sob os domínios dela...
Ela está morta em carne, mas a presença dela ainda me atormenta.
Sinto um calafrio. Relembro de seus rituais. Eu saía do banho e encontrava ela nua no
centro da cama ao redor de velas, proferindo frases ininteligíveis. Ao notar minha presença ela
sorria e abria as pernas.
Somente quando a segunda canção começa é que me dou conta de que Lilith já está há um
bom tempo lá embaixo. Antes que eu cogite que ela esteja passando mal, seja lá por sua gastrite
ou por qualquer outra coisa, a porta do banheiro range, a luz do andar inferior é apagada.
E de repente não acontece mais nada.
Tiro os fones:
- Amor?
Lilith não me responde. Não ouço seus passos. Ela saiu do banheiro e simplesmente
congelou?
Arqueio a sobrancelha.
- Amor? – chamo mais alto – você está bem?
Não obtendo respostas, saio da cama e dou alguns passos em direção à escada.
Pego no balaústre, pronto para começar a descida. Desço o primeiro degrau, então ouço
um barulho vindo aqui do segundo andar.
A porta do outro quarto é aberta.
- Amor? - Lilith resmungando no vão da porta, com cara de sono - Acordei agora com
você me chamando. O que foi?
Eu olho novamente para o andar de baixo.
Só há escuridão.
Inocência violada
Uma amiga minha cometeu suicídio semana passada, na véspera de seu vigésimo segundo
aniversário. No velório o luto comovia a todos. Seus pais recebiam abraços e condolências.
Deixou uma carta de despedida em minha gaveta. Encontrei-a um dia depois, por acaso.
Conteúdo indigesto, fui pega de surpresa: Lamentava não conseguir superar o trauma de ter sido
abusada sexualmente aos 9 anos.
Sentia-se culpada por não conseguir sentir amor, apenas desconfiança. Faltava-lhe um
pedaço: a inocência que tiraram. A vida lhe vinha sendo um acúmulo de sofrimentos. “Minha
mãe e meus irmãos duvidaram de mim. Se eles não acreditaram, quem acreditaria?”.
“Cresci infeliz e sem refúgio”. “Eu sorria nas fotos tentando esconder a dor”. Via-se
deslocada no mundo. Citava monstros. “Eu via maldade em todo olhar”. Sentia-se suja. Temia
dormir no escuro. “Temia que meu pai entrasse no quarto”.
Prole
Koestler estava em sua chácara com a família. Ele, a esposa e seu amado filho de 11 anos.
“Será um fim de semana maravilhoso”, ele prometera ao pequeno.
Finalmente sorriam novamente.
Há quase um ano o casal estivera traumatizado; insones, inquietos, preocupadíssimos com
a violência social. Tal preocupação - tão forte que de fato era uma fobia -, começara logo após à
brutal agressão sofrida enquanto saíam de um bar. Tranquilamente caminhavam em uma rua
escura do centro da cidade, rua essa de fraquíssima iluminação amarelada. Sobrados das mais
variadas cores, todas as janelas fechadas e protegidas com grades. Arthur, o primogênito, ficara
em casa. De companhia aos apaixonados estava Carol, ainda dentro da barriga de Lucy. Gestação
de 6 meses. Lucy caminhava aninhada no marido, que lhe fazia cafuné. Ambos sorriam, falavam
bobagens, emitiam comentários positivos sobre as refeições comidas há pouco. Poucos carros
passavam por ali, e um deles freou bruscamente ao lado dos dois. Um homem encapuzado salta
do automóvel apontando uma faca. Koestler sente um impulso dizendo-lhe para confrontar o
agressor, ao mesmo tempo em que metade de seu cérebro diz para se sujeitarem ao assalto,
ficarem passivos e comportados. Lucy encara-o, assustada, tremendo. Só pelos olhares trocados
os dois firmam um acordo tácito de passividade. Querem apenas voltar para casa sem maiores
problemas. O sujeito armado, apontando a lâmina para a grávida, pega os aparelhos celulares e
depois passa a mão nas pernas dela. Koestler engole seco e morde os lábios para se conter e não
pular em cima daquele criminoso. Os dois continuam parados, cabisbaixos. O sujeito de capuz
arremessa os itens coletados dentro do automóvel e ri. Volta-se para Lucy e encosta a ponta da
faca em seu umbigo. Começa a apalpar os seios dela enquanto encara Koestler. Num súbito,
movimenta o braço para trás, tomando impulso, e desfere o golpe causador do aborto.
Há meses o casal estivera traumatizado; o casamento por um fio.
Teria sido aquela noite uma maldição?
Após aquela violência gratuita, o sujeito encapuzado deu as costas e entrou no carro que
partiu em seguida. Koestler entrava em vertigem. Seu mundo girava enquanto Lucy caía de
joelhos, com o vestido rosa agora com um terrível detalhe vermelho.
“Foi um milagre a mãe também não ter morrido”, diria o doutor.
“Milagre seria eu ter sido assassinado no lugar do meu filho”, martirizava-se Koestler,
sentindo culpa, rancor; sentia ódio de Deus. Foram meses de fúria.
O mesmo se sucedeu com Lucy, da cama do hospital.
Não conseguiram parar a fim de ter um diálogo desde o dia em que Lucy recebera alta.
Após quaisquer trocas de palavras o tom das vozes aumentava e uma briga era iniciada. Os dois
se sufocavam em culpa e ao mesmo tempo transferiam tal sentimento um ao outro.
Evitavam trocar olhares pois ao se fitarem relembravam com mais força do episódio.
Em dado momento precisaram deixar Arthur na casa de parentes, pois estavam prestes a
surtar. Reconheciam que estavam no limite. Temiam enlouquecer e ferir o filho que restara.
Somente fora de casa conseguiam fugir da realidade, fingir que a vida era outra. Tornaram-
se histriônicos com seus respectivos colegas de trabalho e amigos. Forçavam risos, forçavam
qualquer emoção para combater o luto destrutivo – e sabiam que o combate duraria poucos
segundos. Ambos cometeram adultérios. Viveram vidas paralelas.
Tal dia Lucy veio a ingerir um pote inteiro de remédio. Haviam discutido com troca de
empurrões e fortes tapas; ambos saturados; Koestler se dirigiu ao banheiro. Ao sair de toalha, viu
Lucy chorando recostada no canto da sala e a seu lado o pequeno recipiente aberto e vazio. Sem
pensar duas vezes ele foi em direção da esposa, ajoelhou-se e abriu sua boca, enfiando os dedos
médio e anelar fundo em sua garganta. Ela vomitou sem forças para virar o rosto e o jorro fétido
banhou Koestler. Ele não se incomodou, manteve-se estático, segurando-a pelos cabelos até que
finalizasse a expurgação. Abraçaram-se apertado. Durante o abraço ela arranhou suas costas.
Afastaram os rostos a fim de se encarar. Trocaram um sorriso e começaram a se beijar
fervorosamente. Não demorou muito e estavam despidos. Devoraram-se de modo feroz e se
jogaram no chão, exaustos. Naquela noite dormiram direito pela primeira vez desde que
testemunharam o filho ser morto.
No dia seguinte, uma quinta, acordaram diferentes. Optaram por não ir trabalhar. Passaram
horas conversando, chorando. “Não podemos correr o risco de perder Arthur também”,
concluíram, enfim. Repetiram a frase inúmeras vezes. Repetiram-na enquanto um cortava o
corpo do outro, enquanto derramavam cera de vela quente na língua um do outro, enquanto
faziam sexo.
Na sexta foram até a casa onde Arthur estava hospedado. Mostraram-se mudados, felizes,
renovados. Convenceram a todos, inclusive o garoto, que sentia enorme saudade dos pais.
Então agora Koestler estava em sua chácara com a família. Ele, a esposa e seu amado
filho.
Os três aproveitaram o dia fazendo caminhadas e um piquenique. Brincaram com os
bichos. Lucy acariciava a cabeça do garoto a todo instante. “Você é o nosso grande amor”, ela
dizia e repetia. Koestler meneava a cabeça, enfatizando a sentença.
Ao cair da noite, Koestler ensinou o filho a acender fogueira.
“Janta quase pronta, mocinhos!”, surgiu a suave voz de Lucy lá de dentro.
Pai e filho deixam as lenhas sob chamas e entram, indo à cozinha.
Sentados à mesa, lado a lado. Koestler pega a faca, coloca uma das mãos acima da madeira
e começa a brincar de golpear entre os dedos abertos. Aquilo prende a atenção de Arthur e sua
expressão de atencioso é visível.
- Tem coragem, filho? – a pergunta é feita num tom que soa carinhoso.
Após uma titubeada, o garoto coloca a mão direita sobre a mesa e sussurra:
- Se a mãe ver ela vai brigar.
E é respondido com outro sussurro:
- Não vai não.
Os dois riem como dois cúmplices e então Koestler repete entre os espaços curtos das
curtas falanges da pequenina mão os mesmos movimentos que fazia em si próprio antes.
Ele começa a golpear devagar e percebe uma certa angústia e temor no filho. Cinco
facadas numa direção e depois mais cinco retornando. A cada vez aumenta a velocidade. Sua
respiração fica pesada, seu olhar petrificado. Sua expressão assusta Arthur mais do que o balé da
lâmina rente à sua carne.
- Pai?
E o pai ignora e continua mais rápido.
- Pai? Para, por favor. Estou com medo.
Sendo ignorado pela segunda vez, o garoto cerra os olhos e puxa a mão, iniciando um
choro abatido em seguida.
Koestler dá um último golpe e finca a faca no imóvel.
O semblante dele é de fúria, mas de repente muda para um sorriso amigável.
- Filho? – ele começa a fazer cafuné em Arthur – o que é isso? Deixe de bobeira.
O menino fica envergonhado e pede desculpas.
- Eu vou te desculpar – diz de modo ríspido - se você não for um medroso.
Os dois se encaram.
Com medo de ser um vexame e decepcionar o pai, o garoto faz sua vontade e novamente
deixa a palma da mão exposta sobre a madeira.
Num súbito, Koestler segura o objeto cortante pelo cabo, movimenta o braço para cima,
tomando impulso, mira no metacarpo do garoto e crava a lâmina com toda a força.
O berro é agudo, Arthur rasga a garganta. Nunca imaginara ser possível sentir tanta dor.
Em instantes, Lucy aparece no vão da porta carregando uma travessa de macarrão.
O garoto, em prantos, de costas para ela, mas notando sua presença, pede socorro:
- Mãe, tá doendo muito.
Koestler mantém um olhar de seriedade que vai e vem em direção aos dois.
- Arthur... – a mãe começa a dizer -, é para o seu bem. Koestler – ela adota um tom de
reprimenda – que teatrinho besta foi esse? Eu já estava – ela dá dois passos e fica ao lado do
filho – ficando entediada – pega a mão livre do garoto e segura-a ao lado da outra, a ferida, e
perfura-a com outra faca que trouxera consigo no bolso.
Arthur esperneia. Chacoalha-se na cadeira e derrama lágrimas desoladas.
- Não iremos correr o risco de te perder também – ela puxa o cumprido garfo de duas
pontas da massa recém cozida e enfia-o na garganta do filho -, não se preocupe, você estará junto
a seu irmão em um lugar melhor.
Koestler, que permanece sentado, diz:
- Nós te amamos, filho. Isso é para o seu bem.
Lucy senta no colo do marido. O casal se aninha e encara o filho ensanguentado
estrebuchando. Empalidecendo. Aguardam até o ambiente ficar em completo silêncio.
Beijam-se fervorosamente.
Paixão médica
Hoje é o dia de minha aposentadoria. Daqui umas horas irei resolver as questões
burocráticas. Por enquanto estou em casa, descansando e refletindo, enquanto a água do chá
esquenta na caneca.
Dos últimos quase cinquenta anos, passei ao menos vinte sob um jaleco. Foram tantos
plantões já feitos. Relembro, saudosista.
Por minhas mãos passaram figuras comuns e peculiares, criaturas comuns e extravagantes.
Tanta idiossincrasia se tornava rotina. Não demorei muito a me acostumar.
Vieram a mim pacientes debilitados, seres desesperados, exageros e ofensas gratuitas. Mas
também fui agraciado com encontros amistosos.
Todos os consultórios médicos são um espetáculo de democracia. Aparece de quase tudo.
Gente bem vestida, gente imunda, gente belíssima, gente asquerosa. Só não me aparecia gente
rica, pois durante a vida toda trabalhei em hospital público.
A profissão tem lá seus desgastes, mas no fim tudo vale a pena.
Servi a um propósito mui digno.
Dissipei tantos temores de pessoas danificadas.
A viúva que sempre se queixava de palpitações no peito; a garotinha simpática que tinha
asma e mesmo assim não deixava de sorrir; um jovem rapaz que sofria com gastrite crônica.
Eram umas graças. Esses três foram os mais marcantes que atendi na década de 80. Atraíram-me
de um modo que se destacaram perante os outros. Ainda mantenho uma cópia de seus
prontuários no armário de casa.
Também tive meus encontros marcantes nos anos 90. O garotinho que chegou a mim todo
ralado, acompanhado da mãe, foi o mais especial. Tão dócil, tristonho e berrante. Havia caído de
cima da árvore. Dei-lhe meus cuidados. A pele era tão macia...
Antigamente era tudo melhor. A sociedade adoeceu aos poucos. Hoje em dia andam muito
desconfiados de tudo, andam fazendo denúncias desnecessárias só para obter destaque em meio à
multidão.
Felizmente pude aproveitar minha profissão antes da internet se espalhar pelos continentes.
Era tudo tão gostoso. Eu molestava aqueles seres sem receio nenhum. A viúva das palpitações
era emocionalmente debilitada. As carícias que eu fazia em seus fartos seios eram justificadas
como exame. O mesmo servia para a garotinha com asma – a mãe era tão inocente. A barriga
daquele jovem vítima de distúrbios digestivos era apetitosa. Para minha sorte o retorno dele era
mensal. Eu receitava qualquer placebo ineficaz e ia prolongando os reencontros. A cada consulta
eu descia mais a mão. “Como a enfermidade não está sendo eliminada mesmo com o uso de
medicamentos, preciso te fazer exames mais completos”. Passei a tocá-lo nas regiões íntimas.
As crianças sempre foram os alvos mais fáceis, mas muitos adultos também me deram
prazer. “Talvez você não queira ser examinado, aí não posso fazer nada”, era o que eu sempre
dizia para fazê-los se submeter a mim. A definição moderna para essa artimanha é “psicologia
reversa”. Funcionava tão bem naquele tempo.
Sobrava-lhes falta de informação, restava-lhes crer.
Será que se lembram de mim?
Foram meus casos amorosos. Ainda estão vivos em minha memória.
Meus proibidos casos amorosos. A sensação de ser ilícito era puro êxtase. Todo abuso que
eu cometia recompensava meu miserável salário.
Tenho saudades daquele tempo.
Felizmente minha memória é excelente.
Lembro-me tão bem daqueles corpos à mercê de mim.
“Doutor, isso é realmente necessário?”. Esses eram os que mais me davam tesão.
Dificultavam meu trabalho, dificultavam meu prazer. Eu atuava brilhantemente. Por dentro me
transbordava excitação, por fora o olhar transmitia seriedade.
“Irei te tocar aqui, está bem?”, “preciso que deite de lado”, “essa massagem vai amenizar
os sintomas”. “Que bebê lindo”, eu era simpático com os pais, “nesse caso geralmente é alguma
infecção nas regiões íntimas”. Saudade de pronunciar tais frases.
Preservarei todas essas minhas paixões em minha memória. Afinal, são minhas
masturbações diárias.
Levanto-me do sofá e vou à cozinha. Desligo o fogão, coloco um sachê de hortelã na
xícara e viro a água quente lá dentro.
Dou uma passada no quarto. Separo uns prontuários. Esfrego-os entre as pernas.
Relembrar alguns episódios sempre me excita. Abaixo o zíper. Desço a mão livre. Enquanto o
chá esfria irei me deliciar.
Pés descobertos
Depois daquela noite em que meus pés estavam para fora da coberta e de repente senti eles
sendo agarrados por duas mãos gosmentas e geladas, nunca mais consegui dormir sem cobri-los.
Mercadoria frágil
Estou chorando enquanto aguardo meu primeiro cliente. Jamais pensei que o destino me
traria essa situação. Viúva, desempregada, sem família por perto. Meu coração bate desenfreado,
as mãos tremem, a dor me consome. Meu filho está na creche. Um inocente garoto que vê na
mãe uma figura heroica, vencedora e feliz. Meu único amor, a única razão de permanecer viva. O
desespero me consome quando me imagino fracassando totalmente com ele. Só por estar na
berlinda em que estou, já não sou o exemplo que gostaria, porém a situação poderia piorar. Seria
inadmissível não conseguir colocar comida na mesa. Eu nunca me perdoaria por deixar meu filho
passar fome ou não ter onde morar.
Tudo se esquece, menos a dor causada pela fome.
O aluguel está atrasado; os armários, quase vazios. A casa é pequena. Uma sala-cozinha,
sofá de dois lugares, um quarto, dois colchões de solteiro e banheiro. Bairro pobre. Deixei tudo
claro ao homem que logo chegará. Ele, grosseiramente, disse não se importar com o estado do
ambiente “só me importo com corpos”.
Tudo se esquece, menos a dor causada pela fome.
Meu sonho de infância era ser bailarina. Dançar em frente a câmeras, conquistar o mundo
com meus passos delicadamente harmoniosos. Nunca sequer entrei em escola de dança. Hipótese
jamais levada em consideração por meus pais. Tínhamos pouco contato, os dois passavam o dia
trabalhando fora de casa. Infelizmente, sou filha única. Apesar do desdém com que meus
progenitores tratavam de meu sonho, enquanto criança tentei passos assistindo às moças
sincronizadas na TV. Nessa época eu sorria e acreditava em uma vida melhor. Criança é mesmo
algo cheio de coragem: encara o futuro com bons olhos. Saudade de ser criança e viver um
mundo mágico. Minha realidade atual é sombria e não tenho perspectivas de melhora. Vivo um
grande ponto de interrogação, sem saber quando tudo mudará. Algo algum dia mudará? Para
alguns só existe sonho na imaginação. Estou fadada a viver um pesadelo eterno? Nasci em
miséria, cresci em miséria, pari na miséria.
A vida era menos pesarosa ao lado de meu companheiro. Um ajudava o outro e tínhamos
um pouco de tranquilidade. Arroz, ovo e fígado de boi era nosso prato diário. Tínhamos pouco,
mas tínhamos nossa companhia e conseguíamos experimentar um pouco de felicidade.
O destino o fez estar naquela lanchonete justamente no dia em que houve um tiroteio.
De repente era só eu e meu neném.
Ontem não conseguimos jantar.
Há dois meses não consigo juntar dinheiro para o aluguel.
Meu garoto não merece passar fome...
Hoje cedo eu cogitei uma alternativa horrível e estou me culpando até agora. Por alguns
segundos aquela proposta me soou razoável... Chacoalhei a cabeça no instante seguinte e fui ao
vaso sanitário vomitar.
Essa não é a vida que eu tinha planejado, mas é o que restou. Foram tantas escolhas
erradas assim? Ou apenas um sadismo divino? Penso que o criador olha para minha situação e dá
gargalhadas sombrias. Vejo no noticiário tanta maldade impune. Não há coerência na justiça.
Criminoso não passa fome, mas o estômago do meu neném ronca vazio.
Só não vendi meu celular ainda pois tem sido através dele que consigo pedir doações. E a
partir de hoje ele será minha fonte de clientes.
Anseio pela famosa luz no fim do túnel e que ela surja antes de meu filho crescer e
suspeitar de como sobrevivíamos.
Espero soterrar o mais breve possível esse episódio que nem começou direito. Começará,
em alguns minutos. Não sei quando terminará. Não sei quantos atendimentos terei que fazer para
quitar minhas dívidas e alimentar meu pequenino. Sei somente que terei de encarar seres
asquerosos.
Sinto náuseas.
Preciso que falem bem de mim para os amigos.
Não posso recusar clientes, por mais podres que sejam suas palavras, por mais imundas
que sejam suas ofertas adicionais... Que Deus me ajude e eu sempre possa recusar imundícies
doentias. Espero nunca precisar aceitar certas propostas... Espero sozinha ser o suficiente para
trazer alimento ao meu neném.
Estou prestes a ter um ataque cardíaco. O corpo está paralisado sobre o sofá. Não conheço
direito o homem, não sei onde mora, não sei de sua índole, não sei como sente prazer, tampouco
sei como irá me tratar. Não tenho doenças e espero que ele também não, por mais que eu já tenha
dito que só trabalho se o cliente usar preservativo. Ele nem suspeita de que iniciará minha vida
na prostituição, tentei transmitir um ar de experiência.
Começo a ter medo dele se recusar a usar camisinha. O que eu poderia fazer? Estarei
sozinha com um desconhecido. Sou louca. Insana. Começo a indagar possibilidades não
indagadas antes por causa da adrenalina. A ideia de vender o corpo vem se estruturando em mim
a tempos, mas foi hoje de manhã, num ato impulsivo, que me decidi e marquei o atendimento.
Ele, um recente seguidor meu em rede social. Desde o primeiro dia dava likes em todas minhas
fotos. Hoje fez a proposta financeira...
Ouço o motor de um carro estacionando em frente de casa.
Levanto-me. Em um gole só, tomo um copo de água. Meus lábios estão secos. Venderei
meu corpo. Prosseguem-se os segundos derradeiros: Caminho, de olhos marejados, em direção à
porta. Uso os pulsos para afastar as lágrimas.
- Boa tarde – digo, sorrindo.
Ele mantém um ar de neutralidade, estica o pescoço e olha por sobre meus ombros:
- Está sozinha?
Permaneço calada.
Sinto-me como se prestes a entrar em uma onda vertiginosa.
O cenário ao meu redor gira.
Não consigo pronunciar nenhuma palavra.
- E então? – diz, me pondo de lado e passando para dentro - Já combinamos os valores.
Vai querer quanto, 150 ou 50?
Respondo-o com a voz embargada:
- Hoje quero só os 50 reais mesmo – respiro, trêmula - Será só eu. Levei-o para a creche.
Na cadeira da dentista

Beatriz foi prontamente atendida pela dentista poucos minutos depois que se apresentou à
recepção.
- Boa tarde, tudo bem? Vamos lá? – disse a sorridente moça de jaleco branco, indicando
uma porta à esquerda no corredor.
Beatriz nunca fora fã de consultas odontológicas, mas sempre mantivera o hábito de fazer
limpeza uma vez por semestre.
Odiara profundamente todas as vezes em que precisara fazer obturações.
Já estava deitada sobre a cadeira do consultório quando a profissional solicitou que abrisse
bem a boca, “por gentileza”, e com o espelho bucal conferiu sua dentição.
- Bem – diz, se recompondo -, você está com cáries. Quase tártaros. Precisamos fazer uma
limpeza profunda dessa vez. Limpeza e canal.
A informação não foi bem absorvida pela paciente, que fez uma careta e perguntou se não
tinha escapatória. A outra balançou a cabeça, respondendo que não. E acrescentou:
- Fique tranquila, aplicarei anestesia. Não doerá nada.
A contragosto, Beatriz cedeu.
Primeiro, veio um indolor jato de bicabornato.
Depois evitou encarar a agulha que se aproximava de sua gengiva.
A picada causou incômodo. Logo veio o alívio. Beatriz se manteve olhando para o teto.
- Tranquilo, né? Vamos lá – a dentista ergueu o obturador.
O som do motorzinho deixou Beatriz desconfortável. Fechou os olhos, forçando os
músculos, e esperou.
Sentiu o aparelho encostar em seu último dente inferior. O som do atrito daquilo contra
seus ossos da boca causou arrepios.
- Doeu? – perguntou a dentista, alguns segundos depois, afastando o equipamento.
Beatriz disse que não.
- Vou continuar nesse dente. Preciso ir um pouco mais fundo. Se doer, levante a mão, está
bem?
E novamente aquela máquina lhe perturbando. Imaginava a cena de uma cavidade sendo
aberta no centro de seu dente. Começou a sentir dor. Resistiu, na expectativa de que aquilo
acabasse de uma vez. Era como se a anestesia tivesse sido ineficaz. Podia sentir como se um
metal cortante fosse perfurando um caminho no meio do osso. Levantou a mão. A dentista não
parou, “não deve ter notado”. Beatriz ergue o braço o máximo que pode, mas é ignorada. Então
leva um susto ao notar que a dentista aparentemente começou a fazer força. Beatriz arregala os
olhos e começa a balbuciar. De repente a moça de jaleco salta da cadeira e está de pé, forçando o
tronco para baixo, deixando a mão pesada. Pesada. Beatriz tenta afastá-la com um empurrão, mas
não surte efeito. O aparelho pontiagudo destrói seu dente e ela sente como se levasse um choque
de 2 mil volts – uma dor latejante – e chacoalha o corpo. O obturador escava caminho no dente
até chegar à gengiva. Beatriz vê sangue jorrando da boca, o gosto lhe causa repulsa. Ela empurra
a dentista, mas esta não se afasta. A dentista faz mais força, a dor aumenta de modo torturante.
Então Beatriz sente sua gengiva ser perfurada. Engasga-se com sangue. Empurra a dentista outra
vez. Esta segura-lhe na cadeira pela cabeça e continua destruindo tudo abaixo de onde antes
havia uma saudável raiz de um molar. Os olhos de Beatriz começam a produzir lágrimas.
Então a dentista se afasta. Seu jaleco está repleto de sangue da paciente.
Beatriz. Paciente dela há tanto tempo. Beatriz está zonza. Toda a dor a deixou imobilizada.
Beatriz não compreende mais nada. “Que porra é essa?”, se questiona, levando as mãos à boca,
como se isso fosse amenizar o estrago doloroso. Sente suas palmas encharcadas com o líquido
vermelho. Deixa-as em frente ao rosto e observa a vermelhidão. Beatriz, zonzeando. Em outra
circunstância se cogitasse tal ocorrido imaginar-se-ia chutando a dentista, avançando sobre ela e
se defendendo agilmente, mas sentia-se frágil, surpreendida, espantada. Vira os olhos para a
autora da tortura e vê tranquilidade. “Por que isso?”, pergunta, desnorteada. Não obtém resposta.
Percebe um sorriso por trás da máscara e ouve, como se tudo corresse normalmente:
- Está tudo bem, querida?
Beatriz fica incrédula. “Que porra é essa?”. Está zonza. A dor interfere em sua capacidade
de raciocínio.
- Aconteceu alguma coisa? Doeu?
A naturalidade da moça causa espanto.
Em meio à incredulidade, sente-se confusa. “Interpretei errado? Exagerei?”, pensa. Há
tanto sangue em sua boca.
- Podemos continuar? Preciso passar um creme para amenizar a inflamação.
Beatriz não compreende mais nada. Sairia dali e iria à polícia? Diria o quê? “A dentista me
feriu”? No mínimo, ririam. Seria taxada de louca. Afinal estaria sendo louca mesmo? Em meio
ao sentimento de susto e ao desnorteamento, ela balança a cabeça condescendentemente.
A dentista demonstra felicidade:
- Acalmou? Vamos lá. Anestesia, viu?
E aproxima a agulha novamente. Aplica-a abaixo do molar inferior do lado contrário.
A picada incomoda novamente.
Segundos angustiantes. A angústia não termina. “Ela não vai tirar a agulha?”, pergunta-se,
internamente. E a dentista não tira a agulha.
Beatriz respira fundo, sentindo um pavor crescente conforme aquela agulha se mantém
inteira dentro da gengiva.
Beatriz resmunga, tentando chamar a atenção da dentista.
Beatriz pigarreia.
A dentista não esboça nenhuma reação, apenas mantém-se firme segurando a agulha lá
dentro.
Beatriz pigarreia outra vez.
No local da aplicação começa uma dor aguda. A dor aguda começa a florescer e se
espalhar.
Beatriz geme, pigarreia, murmura.
- O que foi, querida?
Enfim uma reação. Mas uma reação inesperada. A voz teve uma entonação hostil.
A florescente dor espalhada por toda a região bucal.
Beatriz não sabe o que fazer. Sente dor. Apenas sabe que está sentindo dor. Sabe apenas
que está assustada. Deveria ter ido embora após o primeiro susto. A dor. A agulha em sua
gengiva. A dor. “Que porra é essa?”. Beatriz geme, murmura, pigarreia, resmunga.
- Quer que eu tire? – a voz hostil novamente.
Sem mover nem língua nem o maxilar, Beatriz consegue balbuciar um “sim”.
O que Beatriz sentiu a seguir foi a dentista puxando a seringa, mas não para fora, para o
lado. Como se fosse uma alavanca, rasgando o tecido.
E a agulha quebra. Metade fica para dentro da gengiva.
A dor, o desconforto, o desespero. Esses conceitos se repetem no cérebro apavorado de
Beatriz e ela grita, babando sangue, sentindo a parte interna da bochecha encostar no que sobrou
da agulha.
Enfraquecida, tenta se levantar e cospe no chão. A dona do consultório a puxa pelo
colarinho, fazendo-a deitar novamente, e liga o obturador.
- Abra a boca – ordena, apertando o maxilar para baixo, forçando que ela obedeça.
Dessa vez perfura apontando diretamente para os dentes incisivos superiores. Faz pressão
para frente. Quebram-se. As fatias ósseas descem pela garganta.
Com as duas mãos, fecha a boca de Beatriz e a impede de respirar.
Beatriz já está morta quando a polícia chega e encontra seu corpo. Não pôde ver a dentista
ser presa, tampouco tomar conhecimento de que a notícia da brutalidade repercutiu
nacionalmente.
Beatriz já está morta quando a dentista ganha fama nacional e a história do assassinato é
reproduzida em um filme.
Quinze anos depois, a dentista sai da prisão e vira palestrante.
Ao término de toda palestra, esbanja um lindo sorriso.
Irresistível corpo inerte
Descobri um prazer sem querer. De repente aquele corpo estava vulnerável diante de mim
e não senti nojo, senti atração. Foi uma força maior do que poderia controlar. Soou como uma
revelação, uma descoberta, uma nova trilha aonde rumar.
Estávamos em meu apartamento quando ela começou a se sentir zonza. Daí ao desmaio
foram poucos minutos. Seu corpo se desmantelou de encontro ao branquíssimo piso polido. A
parte lateral da cabeça se chocou contra o aço das pernas da cadeira. O baque. Senti o estalido. E
sucedeu-se um assombroso silêncio. Franzi as sobrancelhas, afastando a embriaguez. Chamei-a
pelo nome incontáveis vezes. Sem obter resposta, me aproximei, ajoelhando-me ao lado daquele
corpo inebriante. Antes, contudo, percebi que sua saia acabara subindo mais do que enquanto
estava respirando, deixando as deliciosas coxas brancas à mostra. Toquei-lhe os ombros, chamei
mais algumas vezes. Nada. Coloquei os dedos na frente das narinas delicadas. Não senti ar
algum. Estava morta.
Minutos atrás, prosávamos sobre diversos assuntos. Era uma amizade que me fazia bem e
perdurava por anos. Sempre houve em mim algum desejo implícito, afinal de contas, qual
homem resistiria àquela cidadã de corpo fartíssimo? Em meus pensamentos noturnos, havia tido
diversas relações sexuais com ela. Satisfazia-me sozinho. No dia seguinte eu estava em
condições de voltar a bancar o amigo santo, sem levantar suspeitas. Ela me via como irmão;
como irmão, perto dela, eu agia. Em uma fração de segundos, ela levantara do sofá para buscar
mais vinho no balcão. Pisou em falso, deslizou, não sei. Não sei também como ela conseguia
andar com um tamanco desses. “Talentos femininos para crescer”, eu brincava. Causa mortis:
escorregou.
O que era de se esperar passou em minha mente. “Ligar para a emergência”. “Mas ela já
está morta”, pensei. Entrei em acordo comigo mesmo de que ela poderia esperar. Enquanto isso,
ainda de joelhos ao lado dela, percorri meus olhos pelo seu corpo. Estava ali minha oportunidade
de ver lugares sempre inacessíveis. Cogitar a hipótese era o bastante para que meu sangue
fervesse. Deslizei minha mão pelas costas mortas. Senti uma liberdade nunca sentida antes. Eu
estava no controle de tudo. Alcancei as coxas, ergui mais a saia, expondo as curvas e a calcinha
de renda vermelha. Passei os minutos seguintes experimentando o inesperado. Lambi cada
centímetro daquele corpo sem vida.
Toquei os céus.
Não penetrei por completo, pois não sou otário, eu poderia me complicar. Fiz apenas o
suficiente para satisfazer a vontade que sempre tive daquela cretina.
Muito apreço concretizado havia por parte da família dela por mim. Prontamente
acreditaram em minhas palavras. “Foi um acidente trágico”.
Depois liguei para os agentes públicos que viriam tomar posse daquele corpo excitante.
Passei anos sendo-lhe um bom amigo e nunca havia tido o deleite de vislumbrar sua nudez,
bastou que morresse e aqueles homens teriam tal prazer. Tratar-se-ia de algo muito injusto. O
merecedor era eu. Espero que não tenham feito tudo que fiz.
Depois daquele dia inusitado praticar sexo convencional nunca me causou mais tanto
prazer. Precisei estudar muito para conseguir ser aprovado no concurso público e fazer meu
salário provir de autópsias.
Felizmente no local onde consegui a vaga, a maioria compartilha do mesmo prazer que eu.
Não sou o único auxiliar que se apaixona por cadáveres.
Encobrimos nossos atos.
Somos bons colegas de serviço.
Uma vez um palermo tentou denunciar nosso esquema. Ele foi executado dias depois e
acabou sendo vilipendiado por nós todos.
Denúncias não adiantam. Não serei demitido nunca. Seria um escândalo para a prefeitura.
Manchariam sua reputação. O prefeito nunca mais teria votos. Não é do interesse de nenhum
poderoso acabar com esse esquema. Muitos deles aparecem aqui às escondidas para aliviar as
tensões da vida política. E os jornais estão muito ocupados fingindo uma preocupação para com
os vivos. Tem um apresentador de televisão que costuma fazer-nos uma visita ao menos uma vez
por mês. Tem também muito artista que vem aqui foder com cadáveres. Sempre rio ao vê-los
horas depois atuando na novela. E não são só eles. Cadáver é um deleite para tanta pessoa
influente da mídia, a população sequer desconfia. Denúncias desse nível não adiantam e quando
aparentam surtir algum efeito é apenas um teatro que não passa de cortina de fumaça.
Aqueles corpos tão bem preservados durante a vida, chegam a mim e são violados.
Dia desses fizemos a autopsia da esposa do pastor. Se ela só teve um homem durante a
vida, após a morte teve três de uma vez. Por pura maldade, fizemos questão de frequentar o culto
seguinte. Vê-lo homenagear a morta nos causou um êxtase. Ele nunca vai saber do segredo que
temos com sua falecida esposa. “Minhas condolências”, eu lhe disse, após sua oração final.
Ninguém sabe quem somos. Isso me excita.
A mãe do garotinho fatalmente acidentado na escola pega ônibus comigo todo dia e sequer
imagina qual a minha profissão.
Passo por pessoas na rua e imagino-as mortas, à mercê do meu prazer.
Ninguém pode se defender de mim. As vítimas não podem gritar.
A morte não é o fim do pesadelo.
Naquela sala vazia, sou só eu e os cadáveres. Ali, eu tenho o controle. Ninguém se
preocupa em fazer vigilância para defuntos.
Quem morrer e passar por mim, não precisa se preocupar. Cuidarei com muito carinho.
Sabor indigesto
No aleatório sonho, está comendo churrasco.
Engole uma quantia pequena, depois engole outra. Nem mastiga. Só engole.
Então o churrasqueiro lhe oferece mais carne. Um volume muito maior no espeto. Sem
titubear, ele abocanha tudo de uma vez.
Aquele exagero bovino não desce.
Estufa as bochechas.
Pressente-se engasgando.
Então deixa o espetinho entre os lábios e começa a cuspir o alimento.
Quando toda carne retorna ao espeto, ele pensa em afastá-lo do rosto. A cena congela
nesse instante.
Então ele acorda, assustado.
Só consegue ver um cabinho para fora da boca.
Puxa aquilo para fora.
Uma ânsia de vomito cresce nele conforme a ratazana vai saindo.
Um pedido de socorro
Aconteceu três vezes.
Na primeira ocorrência, foi uma desagradável surpresa. Causou-me espanto. Depois de
anos de relacionamento, uma agressão. Chorei inconsolada. Ele alegou estar bêbado, estava triste
por causa do serviço, sentia-se sufocado. Esforcei-me para compreender. Perdoei. A segunda vez
ocorreu meses depois, com ele totalmente sóbrio. Ameacei largá-lo, ele implorou perdão.
Declarou-se amorosamente como nunca havia feito antes. Eu não quis destruir meu castelo,
tampouco rasgar as vestes de princesa, e concordei em deixar o episódio para trás. A terceira vez,
ontem, causou minha revolta. Fui à delegacia e colhi desdém. O delegado mal olhara para mim.
“Por que não denunciou anteriormente?”, perguntara, dando de ombros. Quando terminei de
explicar a situação, ele pediu que eu fizesse um B.O. e voltasse em caso de reincidência. Fiquei
desacreditada. “Olha aqui querida, acusações como essa são feitas centenas de vezes por dia. Na
maioria dos casos é mentira. Outras vezes a gente manda um oficial até a casa do casal e na hora
de efetuar a prisão a companheira desfaz a acusação e beija a boca do suposto agressor.
Perdemos nosso tempo à toa. A senhora só me apresenta uma mancha roxa na coxa. Até onde sei
isso pode ter sido um tombo ou até mesmo um tapa durante o ato conjugal. Perdoe-me, mas, por
enquanto, estou de mãos atadas”, ele disse, antes de menear a cabeça e desviar o olhar,
gentilmente me mandando ir para o quinto dos infernos. Agora meu marido está tentando
arrombar a porta e me ameaçando de morte. Já liguei para a polícia. Passaram-se 10 minutos e
sequer ouvi sirenes. Minhas pernas estão trêmulas, seguro um canivete entre as mãos e
permaneço encostada na parede adjacente à porta. Pisco os olhos várias vezes tentando acordar
do pesadelo, mas o monstro é real. “Eu te mato! Como você tem a audácia de ir à delegacia me
acusar de violência? Só te dei amor até hoje, sua cretina ingrata! Deveria ter apanhado mais para
deixar de ser mentirosa. Abre essa porta, eu só quero conversar!”, ele dá quatro socos contra a
madeira, fazendo a barreira que nos separa estremecer, “eu te amo, não faça isso comigo!”. Não
sei por quanto tempo aquela estrutura frágil levará até ceder. Desconfio que, de qualquer forma,
não terei coragem de usar a lâmina contra a carne dele. Fico à mercê do tempo. Sento e faço
minhas preces.
Felizmente alguma divindade me atende e ouço um carro da polícia chegando. Os murros
cessam. Os policiais tocam a campainha. Levanto-me, devagar. Antes de alcançar a maçaneta da
porta, ouço um rangido distante. Meu marido recebera os policiais. “Pois não, oficiais?”.
“Recebemos um chamado, sua companheira disse que você estava tentando matá-la”. Saio do
quarto e começo descer as escadas. “É uma pena que ela esteja tendo surtos psicóticos. Estou
tentando ajudar da maneira como posso e continuarei ao lado dela, independentemente de
qualquer coisa”. Ouvir aquilo me deixa consternada.
- Policiais, me socorram! -, chego à sala. - Ontem fui para a delegacia denunciá-lo por
agressão. Ele dormira fora, tive a oportunidade. Acordei hoje com ele me xingando. Tranquei-me
no quarto e ele me ameaçou.
Somos conduzidos ao delegado.
Faço um novo boletim de ocorrência.
Olham-me com desdém, percebo.
Vejo o agressor cochichando com a autoridade máxima do local. Trocam olhares
amistosos. Parecem até cúmplices...
Desvio o olhar antes que me percebam observando-os.
Após a papelada ser anexada numa pasta:
- Pronto, tudo certo. Qualquer coisa basta voltar aqui e prestar uma nova queixa.
- Como assim?
- Iremos investigar o caso, não se preocupe.
Permaneço encarando o indivíduo do outro lado da mesa, imóvel, incrédula e calada.
- Agora – ele diz –, se me dá licença... – e acena indicando que devo me retirar.
Sinto-me desolada e percebo a inutilidade de insistir no pedido de ajuda.
O demônio me aguarda, sorridente, no corredor ao lado.
- Pronto, minha querida? – o deboche me enoja.
Prossigo, em silêncio.
Ele cola em mim e sussurra:
- Hoje você vai aprender o que é agressão de verdade.
Sinto tudo rodopiando ao meu redor, o sangue se esvaindo de meu cérebro, minha
consciência se anuviando, tudo escurecendo; minhas pernas trêmulas. Uma efêmera síncope.
Sento-me no banco mais próximo e me recomponho.
- Querida? O que foi? Vamos embora logo.
Evitaria olhá-lo, mas o maldito se coloca à minha frente.
Fixo-me em seu olhar de psicopata, de quem agride e depois sorri.
A psicopatia que há nesse homem nunca me foi tão clara como nesse instante.
Sou dominada por uma sensação de terror. Percebo que não conheço de verdade quem é
meu marido. Percebo que estou com medo do que pode acontecer comigo quando chegarmos em
casa.
Ele coloca a mão em meu rosto e faz carinho:
- Vamos para casa, meu amor.
Sua voz em tom de ameaça não condiz com o gesto.
Olho para os lados, buscando algum refúgio, mas todos ignoram meu semblante
amedrontado e continuam normalmente focados em suas rotinas.
Levanto-me e seguimos à saída.
No meio do percurso vejo uma policial. Sem pensar muito, desvencilho-me do asqueroso
abraço dele e vou até a mulher.
- Socorro – digo, ao me aproximar – me ajude. Meu marido é violento e está me
ameaçando.
Ela me olha, compadecida, e depois olha para ele, vindo atrás de mim.
O sorriso que vejo nascer no rosto da figura feminina me espanta:
- Vossa excelência, muitíssima boa tarde – ela estende-lhe a mão, me obrigando a dar um
passo para o lado.
- Boa tarde – cumprimentam-se – já vou pedindo desculpas pelo transtorno, minha esposa
surtou hoje e cá estamos lhes tomando um precioso tempo.
- Ah, claro, os rapazes estavam comentando. Não se preocupe.
Trocam mais meia dúzia de palavras. Não consigo distingui-las. Estou zonza. O mundo
volta a escurecer. Apoio-o nela para evitar uma queda.
Ela olha para mim, me afastando sem muita delicadeza, e diz:
- Melhoras, viu?
Sigo de modo automático. Não vejo mais nada até chegarmos no carro. Ando zonza. Jogo
meu corpo no banco do passageiro. O que me resta?
O carro sai do estacionamento da delegacia.
Permaneço calada, olhando pelo vidro lateral.
A voz dele:
- Você é trouxa. De novo tentando se livrar de mim? Você é minha.
Apenas ignoro.
Estou destinada a isso mesmo?
A paisagem é bela.
Eu só queria que minha vida fosse outra. Por que eu tive que ser condenada a essa minha
existência cruel?
Chegamos na avenida.
Tanta gente passa por nós, ninguém pode me socorrer?
Estamos voltando para casa, para a realidade abominável que não suporto mais.
Onde posso fazer um pedido de socorro?
Ele continua falando.
A voz asquerosa me dá nojo. Ele é repulsivo. Não presto atenção em suas palavras.
E ele continua falando.
A paisagem fora desse carro é realmente bela. Eu só queria outra vida.
Chegamos na avenida.
Ele gosta de acelerar.
Continuo com o olhar perdido. Vejo uma placa. Aqui a velocidade máxima é 60km/h.
Ele pisa no acelerador e começa a ultrapassar um caminhão.
Quer saber? Foda-se. Quero morrer e levá-lo junto.
Num impulso, jogo meu corpo para cima do volante e viro ele em direção ao enorme
veículo branco de carga.
Buzinas, derrapagens. Minha consciência apaga.
Abro os olhos.
Vejo-me numa cama de hospital. Percorro os olhos pelo avental, pela coberta que me
cobre dos ombros para baixo. Viro a cabeça para o lado e levo um susto ao ver o homem que me
atormenta.
- Até que enfim acordou, vagabunda.
Sinto outro impulso, o de fugir. Mas não consigo movimentar minhas pernas. Não sinto
elas.
Percebendo minha tentativa de movimentação, ele puxa o tecido de algodão para cima e
me deparo com dois tocos de coxa sem o resto dos membros.
- Acho que teu plano mirabolante deu errado – a voz dele me aterroriza tanto quanto
constatar que não tenho mais pernas.
Começo a gritar.
Ele continua:
- Você destruiu meu carro e quase me fez fraturar uma costela...
Ouve-se passos no corredor lá fora e ele subitamente fica quieto. Aparece uma enfermeira.
Peço socorro.
- Calma, mocinha – ela senta-se do meu lado -. Eu sei que é difícil. Mas olhe pelo lado
positivo, você está viva. Depois de um acidente daquele!
- Ele é um psicopata violento! – grito, chorando.
A enfermeira olha para ele, ele faz um olhar triste:
- Será que ela voltará ao normal, senhora?
- É questão de tempo até ela se adaptar – ela se levanta – vou buscar um calmante para
fazê-la dormir.
- Não! – grito – Não me deixe com ele. Eu quero morrer!
Ela olha para mim, com piedade. O olhar dela vai para onde deveria haver duas pernas.
Acelera os passos e sai do quarto.
O agressor se aproxima:
- Você ainda não entendeu que é minha? Você me pertence. Não vejo a hora de voltarmos
para casa. Agora será ainda mais divertido do que antes, meu amor.
Ele se inclina para beijar minha boca.
Tento dar um tapa para afastá-lo, um empurrão.
Só então percebo que também não tenho mais braços.
Um cidadão prestes a pular do viaduto
Subi na mureta de um viaduto só para chamar a atenção. Vim somente na intenção de
fingir.
Minha vida está um caos, isso é verdade, mas não subi aqui com intenção de colocar o
pulo em prática. Almejei apenas uma oportunidade provinda de comoção. Minha falecida esposa
contara, certa vez, a respeito de um homem que, após tentar se matar, recebera um cargo em uma
empresa comovida com sua história. Lançara até um livro depois. Ou seja, melhorou de vida
após tentar tirá-la. Se não fosse isso, ele ainda estaria vivendo um lamaçal. “Olhem para mim,
vejam um ser desesperado. Deem-me uma chance”, era a mensagem que eu gostaria de passar. A
resposta que eu gostaria de receber seria proporcional a isso.
Ontem, antes de dormir, comecei a pensar a respeito desse meu plano. “Ameaço me jogar.
Com o decorrer do tempo, os transeuntes vão me notar ali. Em poucos minutos a avenida estará
repleta de gente. Os jornalistas da televisão irão aparecer. Ficarei famoso. Virarei celebridade em
rede nacional. Terei seguidores preocupados comigo. Terei audiência. Terei dinheiro para pagar
o aluguel. Meus problemas dão uma amenizada depois disso. A humanidade me dará amor.
Jamais irei me suicidar. É somente um oportunismo. Nunca descobrirão, e caso descobrissem
não poderiam julgar, pois não teriam sentido o desespero que sinto. Cada um sobrevive como dá.
Não vejo alternativa senão isso”.
Na avenida juntou-se um bocado de gente. Um gritou ao outro: “olha ali, um cidadão
prestes a pular do viaduto!”. “Eba!”, comemorou o interlocutor.
Metros abaixo de mim há gente de todo tipo. Idosos, jovens, mulheres e homens. Estão
todos rindo. Parece uma confraternização. “Pula logo daí, preciso ir assistir minha novela”,
gracejam. “Cada dia o ser humano está mais dramático, povo fraco, raça tola. Vergonha! Quer
morrer, morra logo, infeliz! Ingrato!”, grita um cadeirante. Um jovem está apontando o celular
em minha direção, dando gargalhada. Carros passam atrás de mim e os motoristas buzinam e
gritam pela janela: “seu babaca, só quer chamar a atenção!”.
Fico indignado e encho os pulmões:
- Ei! Eu estou falando sério. Vou pular!
Minha voz ecoa.
- Então pula logo, animal – diz uma mulher.
- Quero ver se pula mesmo – diz um homem.
Mais jovens estão me filmando agora.
Uns tiram selfie me usando como plano de fundo.
Começo a pensar a respeito da vida. Uma lágrima cai pelo meu rosto. O problema de um
ser humano é distração a quem testemunha. Ninguém se importa com ninguém. Uma tragédia
ocorrida com algum desconhecido vira piada na mesa de jantar de terceiros.
Ergo uma perna. Os espectadores vibram como em uma partida de futebol.
Legião de bastardos.
Simulo que vou me jogar. Lanço o tronco para frente. Isso causa mais vibrações.
Malditos abutres.
Desço a perna, ficando de pé novamente.
Vaiam.
Olho atentamente para cada um deles, sentindo nojo.
Vou dar meia volta e ir para casa, para bem longe desse circo.
Lentamente vou sentando. Encaro-os uma última vez, antes de pular para o lado da
passarela.
- Ei – ouço uma voz vindo em minha direção.
Viro o rosto para a avenida, para averiguar quem é.
O rapaz passa correndo por mim e me empurra.
Não consigo me equilibrar.
Queda livre.
É tão agoniante não sentir nada abaixo dos pés.
Ouço vibrarem e baterem palmas.
Não ouço mais nada além disso e do meu grito.
Meu corpo rodopia no ar e encaro o asfalto crescendo.
Caindo com o corpo na horizontal, estendo as mãos para frente, como se isso fosse
amortecer a queda. Bobagem! O impacto no chão destrói os carpos; os dois braços vão para trás
além do que as articulações permitiriam; cotovelos fraturados, ombros deslocados.
O resto do corpo sente o baque.
Sinto as costelas se quebrando ao meio.
Meu tórax afunda.
Sinto o pulmão perfurado por um fragmento ósseo.
Resta-me permanecer caído, espasmódico.
- E não é que o infeliz pulou mesmo? – alguém comenta rindo.
Não ouço mais nada depois disso.
Paralisia do sono

Tenho medo de dormir. Não deito tranquilo há meses.


Ao me aconchegar nas cobertas e recostar a cabeça no travesseiro, lembro-me de todas as
vezes em que recebi a visita do demônio em meus sonhos. Então meu coração forte palpita e a
cabeça começa a doer. É-me perturbação rotineira.
Mudo de posição. Mudo de posição. E mais uma vez. Giro o corpo para o lado. Dobro as
pernas. Coloco uma almofada entre as coxas. Respiro fundo. Mudo de posição. Jogo a almofada
para fora da cama, estico as pernas, quase alcançando a beirada. Fico de barriga para baixo.
Braços retos tronco abaixo; braços dobrados embaixo do travesseiro. Cabeça para a direita;
cabeça para a esquerda. E o sono finge que vem, mas de fato não chega. Perco minutos sagrados
nesse mexe e remexe. Repito tudo de novo. Dou uma bufada, agoniado. Viro o corpo, barriga
para cima. Abro os olhos. Vejo uma criatura me encarando. Criatura demoníaca. Ela se
aproxima, deixa seu rosto deformado rente ao meu. Tento me esquivar, mas não consigo mover
nenhum membro. A criatura me prende pelos pulsos. Sua boca aberta baba sangue na minha
cara. Entre aqueles lábios pútridos reparo que se esboça um sorriso. Tento gritar, mas não
consigo. Tento me mexer, mas me sinto paralisado. Tento fugir, mas o monstro me segura com
uma força surreal. E então ele começa a urrar para mim, fazendo seu bafo infernal de enxofre
entrar em minhas narinas e também queimar minha pele. Sinto os átomos vibrando, sinto dor,
sinto-me derretendo. Meu coração prestes a estourar. Meus olhos se remexem, bailam de modo
epiléptico; já não tenho mais controle sobre eles. O terrível urro continua me perturbando, em
um volume cada vez mais alto, alto, alto, tão exagerado. Meu tímpano vibra perante o barulho
ensurdecedor. Sinto meus ouvidos melados com secreções nojentas; eles começam a sangrar.
Minhas tripas começam a ser expelidas pelos orifícios auditivos. A dor é descomunal.
Acordo, arfando. Pela luz entrando pelas frestas da janela percebe-se já nascido o sol.
Tem sido essa merda toda noite.
Quando minha respiração volta ao normal, salto da cama e vivo a rotina. Higiene, carinho
no pet, alimentação, vestuário, carinho no pet, garagem, avenida, serviço, socialização, o retorno
ao lar. Cadê meu cachorro? Ele sempre me recebe à porta, latindo e lambendo meu tornozelo.
- Marley?
Procuro acuradamente pela sala e não há sinal do cãozinho. Vou à cozinha e me
surpreendo ao vê-lo choramingando encostado na parede.
- O que houve, Marley? – pergunto, me aproximando.
Agacho-me e pego ele no colo.
Ao erguê-lo, vejo sua barriga rasgada e suas tripas caem sobre mim.
Levo um susto e caio para trás. Bato a nuca no chão e permaneço imóvel, com as írises
rodopiando junto ao ventilador. Não consigo me mexer. Bem ao meu lado, Marley continua
chorando. Eu gostaria muito de tentar acalmá-lo, mas não tenho controle de meu corpo. Ele
continua chorando, continua chorando. Com muito esforço consigo mexer a cabeça para o lado e
observo o animalzinho ferido. Os rasgos brutais em sua pele me repelem e desvio o olhar. Sobre
mim vejo um palhaço gargalhando freneticamente e segurando uma dúzia de balões. Ele abaixa-
os em minha direção e em seguida eles estouram, revelando um gancho. Dando mais gargalhadas
histriônicas, ajoelha-se lentamente, ergue aquela lâmina e simplesmente desfere um golpe. O
gancho entra em meu tórax e vai rasgando até chegar ao umbigo.
O volume do riso estridente aumenta. Aumenta.
O palhaço olha fixamente para mim. O riso estridente.
Ele puxa o gancho e sinto meu estômago saindo junto...
Acordo, assustado.
- Amor?
Permaneço sentado na cama, trêmulo.
- Amor? O que houve? Pesadelo?
Direciono o olhar para minha esposa.
- Sim – puxo o ar e expiro -. E dos cruéis – puxo o ar e expiro -. Esse foi um horror. Tive
um pesadelo. Daí achei que tinha acordado, mas ainda estava sonhando.
- Que absurdo, amor... – sonolenta a voz dela.
Eu queria continuar e descrever todos os detalhes, mas seu olhar de cansaço me comove. O
rosto dela sempre tão doce, até mesmo submerso em sono.
Então volto a deitar e me aninho junto a ela.
“Essa mulher tem sido uma maravilha em minha vida”, penso.
Enfim posso respirar em paz.
Faço-lhe cafuné. Fico observando-a. Cada detalhe de seu rosto é tão encantador. Percorro
o olhar de seus cabelos a seu queixo, admirando. Então me aproximo e dou um selinho
demorado. Ela retribui. O estalinho amoroso de lábios se separando. Dou outro beijo. E mais
outro. Ela sorri; olhinhos ainda fechados. Beijo de novo, com mais calor. Começo a querer
devorá-la. Mordisco seu lábio inferior. É um código íntimo que ela conhece bem. Mordo
novamente e dessa vez dou uma puxada.
Ela empurra meu corpo e sobe em cima de mim.
Aperto-lhe pela cintura.
Subo as mãos para afastar os cabelos da frente de seu rosto. Quero olhar em seus olhos.
Quando afasto aquela longa cortina morena, o rosto que vejo não é mais o mesmo, mas
sim um rosto pálido, cortado, sujo de lama, feito um cadáver recém tirado da cova. A criatura
horripilante ri e se curva para trás. Curva-se tanto que a barriga rasga no meio e da ruptura salta
uma enorme barata em minha direção. As mandíbulas pontiagudas do inseto trituram minha pele.
Tento gritar, mas não consigo. Tento me mexer, mas me sinto paralisado. Não consigo agarrar o
devorador e arremessá-lo para longe. Não consigo fazer nada a não ser sofrer, sentir dores
agudas... abro a boca tentando gritar, mas som nenhum é produzido. Tento novamente.
Baratinhas aproveitam-se da abertura e entram. Faço mais força, ignorando-as descendo pela
minha goela, como se gritando eu fosse aliviar a dor e a aflição. O esforço surte efeito.
Consigo gritar.
Então acordo.
Ouço latidos.
Marley vem correndo e sobe na cama.
Carinho no pet.
Salto da cama e vivo a rotina. Higiene, carinho no pet, alimentação, vestuário, carinho no
pet, garagem, avenida, serviço, mensagem à esposa, socialização, o retorno ao lar. Antes que eu
dê o segundo passo porta adentro, aparece Marley. Ele sempre me recebe à porta, latindo e
lambendo meu tornozelo. A esposa na sala assistindo filme. Um beijo e umas frases trocadas.
Higiene, carinho no pet, selinho na amada, alimentação; nós dois na cama. Falamos besteiras,
rimos, brevemente relatamos o ciclo circadiano. Relembro os pesadelos. Descrevo-os. Ela acha
graça; eu fico desconfortável. Conforme narrei cena por cena, meu estômago se embrulhou.
- O que foi? Que cara é essa? – ela questiona, tenra.
- É que foi bizarro – reparo numa teia de aranha que há numa hélice do ventilador -
Detesto quando tenho esses negócios.
Ela coloca a mão no meu rosto e delicadamente o vira, me fazendo encará-la. Faz um
biquinho e espera o beijo. Em seguida passa a mão no meu cabelo.
- Já passou. Você não vai mais ter esses pesadelos. Caso ocorra, vamos procurar um
médico. Será que é estresse?
- Sei lá – volto a olhar para cima, para a obra da tecelã aracnídea -, está tudo normal – dou
de ombros.
Impera um silêncio saudável por alguns segundos e eu entro num devaneio absoluto:
- E se – penso em voz alta – algum dia eu não consigo acordar?
Ela continua fazendo cafuné, mas não perde tempo respondendo minha maluquice.
E eu prossigo:
- Uma vez ouvi dizer que quando a gente morre tudo se torna um pesadelo eterno. Nosso
cérebro dá um pane. Até ele parar de funcionar por completo, mil imagens são geradas na nossa
mente. É perturbação atrás de perturbação – e teremos a sensação de estar vivendo tudo aquilo.
Estaremos mortos sem saber. Destino de dor. Isso seria o inferno, não seria? Um amaldiçoado
ciclo perpétuo. Há quem diga que a própria existência é isso aí.
Espero um pouco, para ver se ela faz alguma observação, mas não. Apenas continua o
aconchegante carinho em minha cabeça. Então concluo:
- Qual o sentido, né? Eu tenho é medo de morrer e o além for pior do que aqui. O órgão
sagrado que habita dentro do crânio só apaga? Dizem que a morte é um sono eterno. O foda é se
nesse sono eterno houver pesadelos e a dor parecer real.
Dou uma pausa.
Os dedos dela continuam me fazendo cafuné, mas ela já deve estar quase completamente
adormecida, pois não diz nada.
Viro o rosto para admirá-la.
Não vejo ninguém. Franzo a testa.
Os dedos continuam indo e vindo pelos meus cabelos. Intrigado e curioso, pego e puxo. Aí
vejo que não eram dedos, eram patas de uma aranha maior que meu palmo. Levo um susto e a
solto. Imediatamente ela lança teias que prendem meus braços e pernas. Não consigo me mexer.
Penso em dar um grito e ela tapa minha boca com o material colante.
Imobilizado, me resta encará-la. Esbugalho os olhos, apavorado, enquanto ela subitamente
se torna gigante, de proporções iguais à cama. Encara-me e se aproxima expondo os dentes
ameaçadores. Começo a ser devorado. Seus dentes pontiagudos se cravam no meu rosto e
esmigalham os ossos.
Sinto uma dor dilacerante. Meu coração prestes a estourar. Meus olhos se remexem,
bailam de modo epiléptico; já não tenho mais controle sobre eles.
A aranha ergue as duas patas dianteiras e as aponta em direção a meus olhos. A última
cena que vejo é ela dando o golpe brutal... depois disso apenas fico sentindo as perfurações no
crânio. Infelizmente não morro. Sinto as patas dela girando nas cavidades dos globos oculares.
Gira e pressiona. Eu quero morrer para a dor ir embora. Não morro. Estou paralisado. Percebo
estar sonhando. Tudo se mostra confuso, mas sei que estou dormindo. Não consigo abrir os
olhos, não consigo de fato despertar, não consigo me mexer. E ainda estou no sonho, sentindo a
dor. A dor é cada vez mais intensa e sinto que se não conseguir sair logo dessa amaldiçoada
projeção mental eu morrerei de verdade. As patas continuam perfurando. É um pesadelo... a dor
é real. Faço esforço para abrir os olhos. Meu coração quase explodindo...
Acordo, desesperado, suando.
Pela luz entrando pelas frestas da janela percebe-se já nascido o sol.
Tem sido essa merda toda noite. Perturbações e mais perturbações.
Por isso tenho medo de dormir.
Não deito tranquilo há meses.
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Ariel Yoshida é um pseudônimo; escritor paulista, formado em Psicologia; autor também
de “Sociedade Apocalíptica: crônicas, humor e tragédia” e “Perspectivas Opostas: contos e
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