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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

TEORIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS I


2º Semestre de 2018
Disciplina Obrigatória
Destinada: alunos de Filosofia
Código: FLF0462
Pré-requisito: FLF0113 e FLF0114
Prof. Dr. Vladimir Pinheiro Safatle
Carga horária: 120h
Créditos: 06 (04 aula e 02 trabalho)
Número máximo de alunos por turma: 100

Título : Jacques Derrida: em direção à desconstrução

I - OBJETIVO

Trata-se de introduzir a experiência intelectual de Jacques Derrida a


partir de uma análise do processo de formação dos principais conceitos e
operadores de sua filosofia. Começaremos com a leitura de seus primeiros
textos, marcados por uma confrontação sistemática com a fenomenologia, em
especial através da obra de Edmund Husserl. A partir daí, veremos como
Derrida determinou a peculiaridade de sua posição no cenário intelectual
francês da segunda metade do século XX graças a uma dupla recusa referente
tanto ao estruturalismo quanto à fenomenologia. Esta dupla recusa será nossa
porta de entrada para a leitura de sua obra principal, “Da gramatologia”, assim
como para nosso esforço de sistematização da temática da desconstrução. Tal
sistematização permitirá o estabelecimento de algumas conseqüências
maiores do pensamento da desconstrução no interior do debate filosófico dos
últimos 40 anos.
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FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

II – CONTEÚDO

- O lugar de Derrida no interior do cenário intelectual francês da segunda


metade do século XX. Um caminho construído a partir da crítica simultânea da
fenomenologia e do estruturalismo.
- A temática da crítica da metafísica da presença como operador de relação à
história da filosofia. O fono-logocentrismo da razão ocidental.
- O projeto de uma gramatologia e a reconstrução do potencial crítico do
conceito de diferença.
- Freud e a escritura psíquica ou O que pode significar uma escritura não mais
submetida à expressão de um sujeito? A importância da relação entre filosofia
e psicanálise na experiência intelectual de Derrida.
- A desconstrução e seus descontentes. Sobre um certo modo de colocar em
evidência a textualidade da prática filosófica. Em direção à problematização
das relações entre filosofia e literatura.
- A guinada ética nos escritos tardios de Derrida. Promessas e desafios de
uma política da desconstrução.

III – MÉTODO UTILIZADO

Aula expositiva

IV – CRITÉRIO DE AVALIAÇÃO

A combinar
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DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA

V - BIBLIOGRAFIA

AGAMBEN, Giorgio; Estado de exceção, São Paulo: Boitempo, 2005


CAVELL, Stanley; Philosophical passages: Wittgenstein, Emerson, Austin,
Derrida, Londres: Blackweel, 1995
BENNINGTON, Geoffrey, Jacques Derrida, Paris: Seuil, 2008
BERNSTEIN, Jay; The fate of art: aesthetic alienation to Kant from Adorno and
Derrida, Pennsylvania State University Press, 1992
CHRITCHLEY, Simon; Ethics-politic-subjectivity: Derrida, Levinas and
contemporary French thought, Londres: Verso, 2009
DAVIDSON, Arnold e MITCHEL, W; The late Derrida, University of Chicago
Press, 2007
DE MAN, Paul; Aesthetic ideology, University of Minnesota Press, 1996
___ ; Blindness and insight, University of Minnesota Press, 1983
DERRIDA, Jacques; La dissemination, Paris : Seuil, 1972
___ ; L’écriture et différence, Paris : Seuil, 1967
___ ; Force de loi, Paris : Galilee, 2005
___ ; Glass, Paris : Galilee, 1974
___ ; De la gramatologie, Paris : Minuit, 1967
___ ; Marges de la philosophie, Paris : Minuit, 1972
___ ; Politiques de l’ amitié, Paris : Galilee, 1994
___ ; Positions, Paris : Minuit, 1972
___ ; Le probleme de la génèse dans la philosophie de Husserl, Paris : PUF,
1992
___ ; Resistances de la psychanalyse, Paris : Galilee, 1996
___ ; La verite en peinture, Paris : Flammarion, 1978
___ ; La voix et le phénomène, Paris : PUF, 1967
DESCOMBES, Vincent ; Le même et l’autre : quarante-cinc ans de philosophie
française, Paris : Minuit, 1979
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DEWS, Peter; Logic of disintegration: post-structuralism and the claims of


critical theory, Londres : Verso, 1989
___ ; The limits of disenchantment: essays on contemporary european
philosophy, Londres: Verso, 1995
HABERMAS, Jurgen; O discurso filosófico da modernidade, Lisboa: Dom
Quixote, 1990
LABARTHE, Philippe-Lacoue e NANCY, Jean-Luc (org.); Les fins de l’homme
à partir du travail de Jacques Derrida, Paris : Seuil, 1978
LACAN, Jacques; Ecrits, Paris: Seuil, 1966
LÉVI-STRAUSS, Claude ; Antropologia estrutural I, São Paulo: Tempo
Brasileiro, 1986
MENKE, Christoph; The Sovereignty of Art - Aesthetic Negativity in Adorno and
Derrida, MIT Press, 1988
NORRIS, Christopher; Derrida, Harvard University Press, 1988
PRADO Jr., Bento; A retórica de Rousseau, São Paulo : Cosac e Naif, 2008
ROGOZINSKI, Jacob; Faire part – cryptes de Derrida, Paris : Leo Scheer, 2005
RORTY, Richard; Contingence, irony and solidarity, Cambridge University
Press, 1989
___ ; Essays on Heidegger and others, Cambridge University Press, 1991
SAUSSURE, Ferdinand ; Cours de linguistique générale, Paris : Payot, 1990
SEARLE, John; Pour réiterer les differences : réponses à Jacques Derrida,
Paris : L’éclat, 1992
SLOTERDJIK, Peter; Derrida: ein Äegypter. Frankfurt: Suhrkamp, 2007
Jacques Derrida
Aula 1

“Jacques Derrida, o intelectual francês, nascido na Argélia, que se tornou um dos


filósofos mais celebrados e notoriamente difíceis do final do século XX, morreu
sexta-feira em hospital parisiense. Ele tinha 74 anos (...) O Sr. Derrida ficou
conhecido como o pai da desconstrução, o método de análise que afirma que todo
escrito é pleno de confusão e contradição, assim como afirma que a intenção do
autor não poderia superar contradições inerentes à própria linguagem, privando
assim os textos – seja literatura, seja história da filosofia – de conteúdo de verdade,
sentido absoluto e permanência. Tal conceito foi eventualmente aplicado à toda
gama das artes e ciências sociais, incluindo lingüística, antropologia, ciência
política e mesmo arquitetura (...) Críticos literários quebraram textos em
passagens e frases isoladas a fim de encontrar sentidos escondidos. Defensores do
feminismo, dos direitos dos homossexuais e de causas do terceiro mundo
abraçaram o método de Derrida como instrumento para revelar os preconceitos e
inconsistências de Platão, Aristóteles, Shakespeare, Freud e outros ícones
“brancos masculinos” da cultura ocidental. Arquitetos e designers podiam afirmar
terem assumido pontos de vista “desconstrucionistas” ao abandonar simetrias
tradicionais e criar espaços ziguezagueantes, às vezes inquietantes (...). Por volta
do final do século XX, desconstrução tornou-se uma palavra-chave do discurso
intelectual, assim como existencialismo e estruturalismo – duas outras filosofias
escorregadias que entraram na moda vindas da França pós-Segunda Guerra. O sr.
Derrida e seus seguidores não estavam dispostos – alguns dizem que eles eram
incapazes – de definir “desconstrução” com alguma precisão. Por isto, ela ficou
incompreendida ou interpretada infinitamente de maneira contraditória. Típico
das explicações opacas dadas pelo sr. Derrida a respeito de sua filosofia foi o paper
apresentado na Cardozo School of Law, em Nova York, que começa:
“Desnecessário dizer, mais uma vez, que a desconstrução, se há algo como isso,
encontra seu lugar como experiência do impossível” (...) Vários leitores acham
sua prosa empolada e desconcertante, mesmo que os aficionados a achem
iluminadora. Uma única sentença podia durar três páginas, e uma nota de rodapé
podia ser ainda maior. Ás vezes, seus livros eram escritos em estilo
“desconstruídos”. Por exemplo, “Glas’ (1974) oferece comentários do filósofo
alemão Georg Wilhelm Frierich Hegel e do romancista francês Jean Genet em
colunas paralelas nas páginas do livro; no meio há uma terceira coluna ocasional
com comentários sobre as idéias dos dois (...) “O problema em ler o sr. Derrida é
que há muita transpiração para pouca inspiração” escreveu o The economist em
1992, quando a Cambridge University concedeu ao filósofo um título honorário
depois de uma dura discussão, na faculdade, entre seus defensores e seus
críticos”1.

Estes são trechos de um obituário publicado pelo jornal The New York Times, logo
após o falecimento de Derrida, em 2004. Se resolvi começar por ele um curso de
introdução à experiência intelectual de Jacques Derrida, é, primeiro, para lembrar a vocês
como toda verdadeira instauração filosófica é medida pelo desconforto e pela violência
que ela é capaz de causar. Pois esse simpático obituário sintetiza, de maneira violenta e

1
KANDELL, Jonathan, In: New York Times, 10/10/2004
polêmica, todo o desconforto que nossa época sentiu diante do filósofo francês. Ele diz,
de maneira intelectualmente mais ingênua e tosca, o que boa parte do meio acadêmico
ainda pensa a respeito de Jacques Derrida. Filósofo que teria inventado um “método de
análise” que não é um, pois não passaria de uma estratégia relativista visando quebrar a
ordem das razões de um texto, ignorar contextos de produção, fazendo assim todo e
qualquer texto dizer aquilo que ele decididamente não disse. Regime de leitura que
esconde, na verdade, uma operação mistificadora que se serviria de um estilo “empolado
e desconcertante” apenas como estratégia diversionista de um “niilismo” estilizado.
Regime responsável por um nivelamento perigoso da diferença genérica entre filosofia e
literatura, entre reflexão conceitual e metáfora poética. Jürgen Habermas, por exemplo,
dirá que o programa de Derrida não seria mais do que a tentativa de “estetização da
linguagem, que é resgatada através da dupla negação do sentido próprio do discurso
normal e poético”2. O que significa dizer que Derrida seria incapaz de compreender a
diferença de sentido entre um texto filosófico em suas expectativas descritivas de verdade
e validade e um texto literário em suas exigências de expressão estética.
Por fim, last but not least, Derrida teria cometido o pecado maior de ignorar o
regime de clareza geométrica própria à natureza argumentativa da escrita conceitual.
Como se para falar sobre alguns objetos fosse necessário torcer a estilística filosófica até
que ela fique no limite do reconhecível, até que ela adquira a monstruosidade destas frases
de três páginas e notas cancerígenas que parecem querer tomar de assalto o texto
principal. Este pecado de atentado contra a clareza chegará a ser chamado por alguns de
“terrorismo”. Lembremos, a este respeito, do que diz o filósofo norte-americano John
Searle:

“Com Derrida, como ele é tão obscuro, você dificilmente pode interpretá-lo mal.
Cada vez que você diz: “Ele disse tal e tal”. Ele sempre diz: “Você não entendeu
nada”. Mas se você tenta imaginar a interpretação correta, não será tão fácil. Uma
vez disse isto a Foucault, que era ainda mais hostil a Derrida do que eu, e ele disse
que Derrida praticava o método do ‘obscurantismo terrorista’. Como estávamos
falando em francês, perguntei: “O que você quer exatamente dizer com isto?”. Ele
disse: “Derrida escreve de maneira tão obscura que você não pode definir sobre o
que ele está falando, esta é a parte obscurantista; e quando você o critica, ele
sempre pode dizer: ‘Você não entendeu nada, você é um idiota’. Esta é a parte
terrorista3.

Não deixa de ser desprovido de interesse lembrar que este tipo de argumento (“seu
uso da linguagem é tal, ele é tão distante do senso comum, que não se sabe do que ele
está falando”) não é exatamente novo. Se vocês quiserem, poderíamos fazer aqui uma
pequena “genealogia do obscurantismo terrorista” em filosofia. Começaríamos, por
exemplo, com Hegel, o mesmo Hegel que não temerá em dizer, por exemplo:

Não é difícil perceber que a maneira de expor um princípio, de defendê-lo com


argumentos, de refutar também com argumentos o princípio oposto, não é a forma
na qual a verdade pode se manifestar. A verdade é o movimento dela mesma nela
mesma, enquanto que este método é o conhecimento exterior à matéria. É por isto
que ele é particular à matemática e devemos deixá-lo à matemática4.

2
HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, Lisboa: Dom Quixote, p. 194
3
SEARLE, John; Realities principle : na interview with John Searle, In:
http://www.reason.com/news/show/27599.html
4
HEGEL, Fenomenologia do espírito - prefácio
Pensando nisto, Adorno chegou a sintetizar bem a vertigem que se sente diante da
linguagem hegeliana, com suas “frases de três páginas”: “Hegel é sem dúvida o único
dentre os grandes filósofos que, em alguns momentos, não sabemos e não podemos
decidir sobre o que ele fala exatamente, o único a respeito de quem a própria possibilidade
de tal decisão não é assegurada”5.
Mas poderíamos aqui lembrar também de Heidegger, que ouviu do Círculo
positivista lógico de Viena o mesmo tipo de acusação que Searle endereçava a Derrida:
“suas proposições eram simplesmente desprovidas de sentido”. Quando ele diz: “o nada
nadifica”, “o espaço espaça” ele não quer dizer nada. “Terrorista” porque, em suas mãos,
o solo seguro das certezas da linguagem ordinária se dissolve. Mas, não seria esta a
obrigação de toda verdadeira filosofia? Nos retirar o solo seguro das certezas da
linguagem ordinária. Como dirá alguém para quem estas questões de estilo e escrita eram
da maior importância: “A filosofia do senso comum [e vocês compreenderão mais a frente
porque devemos falar do senso comum e de suas exigências de clareza como uma
“filosofia’] quer que pensemos como pensamos. A questão da filosofia é outra: - por que
pensamento assim? – Mais precisamente: - por que já não podemos pensar exatamente
assim?”6.
Esta é talvez uma boa questão inicial para abordar a experiência intelectual de
Jacques Derrida: a natureza da discursividade própria à filosofia, do regime de escrita que
realmente lhe convém, não seria uma questão filosófica da mais alta grandeza? Se
colocarmos a questão “Como os filósofos escrevem?” talvez ficaremos impressionados
com a profunda dispersão estilística que faz com que cada experiência filosófica
fundamental venha necessariamente acompanhada de uma instauração discursiva
singular. Como se cada experiência filosófica fundamental sempre repetisse a proposição:
“Não é mais possível escrever como até agora se escreveu”. Montaigne e os Ensaios,
Descartes e a perspectiva experimental da primeira pessoa nas Meditações, Hegel e a
escrita de experiências que vão dissolvendo as certezas gramaticais elementares da
consciência na Fenomenologia, Nietzsche e o perspectivismo herdado dos moralistas
franceses. Todos eles dizem, à sua maneira: “Não é mais possível escrever como até agora
se escreveu”. É necessário passar a uma instauração discursiva. A primeira condição para
ler Derrida talvez seja então partir desta proposição e, assim, colocar a questão: “Por que,
para Derrida, não é mais possível escrever como até agora se escreveu?”.

Margens

Procuro me conservar no limite do discurso filosófico. Digo limite, e não morte,


pois não acredito em absoluto nisto que se nomeia atualmente de “a morte da
filosofia” (nem acredito na morte do que quer que seja, do livro, do homem ou
deus; até porque, como se sabe, o morto conserva uma eficácia bem específica).
Limite, pois, a partir do qual a filosofia tornou-se possível, definiu-se como
episteme, funcionando no interior de um sistema de restrições fundamentais, de
oposições conceituais fora das quais ela torna-se impraticável (...) ‘Desconstruir’
a filosofia seria assim pensar a genealogia estruturada de seus conceitos da
maneira a mais fiel, a mais interior, mas ao mesmo tempo desde um certo exterior
inqualificável para ela, inominável, determinar o que essa história pôde dissimular

5
ADORNO, Drei Studien über Hegel, GS 5, p. 326
6
PRADO Jr. Bento ; Alguns ensaios, São Paulo : Paz e Terra, 2000.
ou proibir, fazendo-se história exatamente através dessa repressão, de uma certa
forma, interessada7.

Eis proposições bastante claras para um autor com fama de obscuro. O que diz
afinal Derrida? Primeiro, que a própria discursividade filosófica, seu estilo, seu modo de
expor e definir problemas, sua textualidade não é construída através de uma gramática
neutra e desinflacionada do ponto de vista metafísico. Enquanto discurso, a filosofia é
uma episteme e depende de uma episteme. O termo, tal como Derrida o utiliza, vem de
Michel Foucault, em especial de seu livro As palavras e as coisas. Ele indica a idéia de
que os múltiplos discursos que se entrelaçam em uma dada época histórica estão todos
submetidos a uma mesma matriz comum de racionalidade, a uma mesma episteme. Ou
seja, episteme deve ser aqui entendida como conjunto de regras e sistemas que organizam
o campo de experiências possíveis e de possibilidades de saberes. A partir disto, Foucault
procurava demonstrar como os saberes positivos de uma época configuram-se a partir da
definição de regimes gerais de ordenamento com suas relações de diferença e de
identidade. Isto lhe permitia dizer que: “a filosofia não é nem historicamente nem
logicamente fundadora de conhecimento, mas existem condições e regras de formação do
saber aos quais o discurso filosófico encontra-se submetido a cada época, como toda
forma de discurso com pretensões racionais”. Pois haveria uma espécie de “inconsciente
do saber que tem suas próprias formas e regras específicas” 8.
O que diz então Derrida? Ele diz querer fazer filosofia no limite do discurso
filosófico, colocando-se à margem do que funda a episteme da qual a filosofia como
discurso é tributária. Mas aqui uma pergunta deve ser imediatamente posta? Haveria
afinal uma episteme, uma matriz comum do logos a respeito da qual a filosofia como
discurso seria tributária? Notemos quão estranha é esta pergunta. Pois trata-se de dizer
que haveria algo de fundamental, um certo projeto a unificar vários momentos da filosofia
(e vemos como, afinal, Derrida lê filósofos tão diferentes como Platão, Husserl, Hegel,
Heidegger mostrando a mesma dificuldade em escapar de um projeto que muitas vezes
está prestes a se quebrar, que acaba por abrir outros possíveis, mas que, graças a uma
astúcia de múltiplas faces, retoma a palavra final). Qual é este projeto que Derrida nomeia
(e ainda não sabemos nada sobre esse nome, o que ele pode bem significar, qual a
estrutura de parentesco que ele sustenta com outros modelos de crítica) de “metafísica da
presença”? Que regime de discursividade é este fundado em um conjunto de pressupostos,
de exclusões e de tensões cujo nome correto, ao menos segundo Derrida, seria “metafísica
da presença”? Quais são seus verdadeiros pressupostos, ou ainda, o que deve acontecer à
história da filosofia para que ela possa aparecer como a história da hegemonia de uma
metafísica da presença? Tais questões serão respondidas no decorrer deste curso.
Mas, por enquanto, lembremos como essas perguntas chamam outras com as quais
também teremos que nos confrontar constantemente. Pois o que pode significar fazer a
crítica desta discursividade, desta metafísica que se confundiria com a própria instauração
da filosofia como lugar que pensa as expectativas de validade presentes na multiplicidade
dos saberes e práticas ou, se quisermos, que se confundiria com o que normalmente
entendemos por “razão”? “Poder-se-á, em todo rigor, marcar um lugar não-filosófico, um
lugar de exterioridade ou de alteridade a partir do qual se pode ainda tratar da filosofia?
Esse lugar não terá sido sempre, previamente, ocupado pela filosofia?”. Até porque: “A
exterioridade, a alteridade, são conceitos que, por si só, nunca surpreenderam o discurso
filosófico”9. Proposição decisiva, pois, desde ao menos a História da Loucura, de

7
DERRIDA, Jacques; Positions, Paris : Seuil, 1972, pp. 14-15
8
FOUCAULT, Dits e écrits, p. 1152
9
DERRIDA, Jacques; Margens da filosofia, Campinas : Papirus, 1991, p. 14
Foucault, uma problemática não cessava de se inscrever no interior do debate filosófico
francês : se quisermos fazer uma crítica da razão, mostrando todos estes pontos nos quais
ela configura seu Outro (a loucura, o irracional, a infância, etc.), de nada adianta deixar o
Outro falar, pois ele falará mimetizando nossa língua. Não é possível deixar a loucura
falar, dirá o próprio Derrida em ‘Cogito e história da loucura”, porque o reconhecimento
de sua alteridade é modo de sua inscrição no interior da minha gramática. E não há
gramática neutra do ponto de vista de suas implicações metafísicas. Como dirá
Nietzsche, em uma colocação da maior importância para nossa compreensão do que
estava realmente em jogo neste momento do pensamento filosófico francês: “Temo não
nos desvencilharmos de Deus enquanto continuarmos a acreditar na gramática” 10.
Se vocês me permitem, diria temer não compreendermos Derrida enquanto não
meditarmos de maneira demorada esta frase. Pois voltemos um pouco atrás e
recoloquemos mais uma vez a questão: “Poder-se-á, em todo rigor, marcar um lugar não-
filosófico, um lugar de exterioridade ou de alteridade a partir do qual se pode ainda tratar
da filosofia?”. Alguns dariam de ombros para tal questão e diriam: “Claro, o lugar não-
filosófico a partir do qual se pode tratar da filosofia (e, talvez também, tratar a filosofia,
no sentido clínico de alguém que trata de doenças e ilusões) é a linguagem pré-filosófica
do senso comum com suas certezas imediatas. O senso comum sadio nos fornece uma
linguagem desinflacionada do ponto de vista metafísico, linguagem presente no mundo
cotidiano da vida, linguagem que todos nós aceitaríamos sem reservas.
Este é talvez um dos pontos fundamentais que aproximam o que convencionamos
chamar de crítica pós-estruturalista da razão (e insistiria neste aspecto, há uma crítica
da razão que aproxima autores como Derrida, Deleuze e Foucault, mesmo que ela seja
conjugada de maneira diferente, a partir de referências filosóficas distintas e com
resultados não homogêneos). Pois todos eles dirão, juntamente com Nietzsche, que nossa
linguagem pré-filosófica naturaliza categorias filosóficas como unidade, substância,
duração, causa, realidade, ser e, principalmente, sujeito (e veremos, em outras aulas, de
onde vem esta centralidade do conceito de “sujeito”) devido simplesmente à sua
gramática. Deleuze compreendeu isto de maneira exemplar ao falar da relação entre
filosofia e “imagem do pensamento”. Neste contexto, “imagem” significa o que
determina o regime de visibilidade do pensamento, aquilo que o pensamento é capaz de
ver, de dispor e determinar, um pouco como determinamos e diferenciamos coisas no
espaço. Esta condição de visibilidade do pensar está ligada aos pressupostos implícitos
que colocam o pensamento em uma boa direção “natural”. Isto significa elevar as
relações entre linguagem filosófica e linguagem pré-filosófica à condição de problema
filosófico maior. Pois é a linguagem pré-filosófica, esta linguagem “ordinária” própria ao
senso comum, que forneceria ao pensar filosófico seu conjunto tácito de pressuposições
não problematizadas. Neste sentido, a crítica à imagem do pensar é, no fundo, avaliação
crítica das relações entre filosofia e senso comum. Isto fica claro em afirmações como:

Os postulados em filosofia não são proposições a respeito das quais o filósofo nos
pede que aceitemos, mas ao contrário temas de proposições que continuam
implícitas e que são ouvidas de maneira pré-filosófica. Neste sentido, o
pensamento conceitual filosófico tem por pressuposto implícito uma Imagem do
pensamento, pré-filosófica e natural, tomada do elemento puro do senso comum11.

No fundo, Deleuze quer insistir que o bom senso e o senso comum são imagens
ortodoxas do pensamento e, neste sentido, carregadas de implicações metafísicas e
10
NIETZSCHE, Friedrich; Crepúsculo dos ídolos, “A razão na filosofia”, § 5
11
DELEUZE, Différence et répétition, Paris : Seuil, 1969, p. 172
morais. É exatamente devido a perspectivas como estas que Derrida insistirá não ser mais
possível escrever como até então se escreveu:

Seria simultaneamente necessário, por meio de análise conceituais rigorosas,


filosoficamente intratáveis, e pela inscrição de marcas que não pertencem já ao
espaço filosófico, nem mesmo à vizinhança do seu outro, deslocar o
enquadramento, pela filosofia, dos seus próprios tipos. Escrever de outro modo12.

Mas que tipo de escrita é esta ou, ao menos, que tipo de escrita ela quer ser?
Voltemos a esta explicação fundamental: “‘Desconstruir’ a filosofia seria pensar a
genealogia estruturada de seus conceitos da maneira a mais fiel, a mais interior, mas ao
mesmo tempo desde um certo exterior inqualificável para ela, inominável, determinar o
que essa história pôde dissimular ou proibir, fazendo-se história exatamente através dessa
repressão, de uma certa forma, interessada”. Desconstruir a gramática que suporta a
filosofia como discurso equivaleria a operar uma certa genealogia. O termo nietzscheano
indicava este modo de se perguntar sobre a gênese do que estamos dispostos a contar
como incondicional e universalmente válido. Qual a gênese do que aparece como
pressuposto para nossa forma de pensar? Gênese que nos leva a uma história dissimulada,
reprimida que não é outra que a história da razão e de nossos modos de racionalização.
No entanto, podemos dizer (e este dizer é apenas inicial, ele será corrigido, mas
devemos partir dele) que a desconstrução é uma genealogia. Uma forma muito peculiar
de genealogia. Sua peculiaridade vem da compreensão que tem Jacques Derrida a respeito
do que é um texto filosófico.

O que é um texto filosófico?

Talvez uma das melhores maneiras de começar a compreender o que é afinal a


desconstrução passe pelo retorno a seu solo de origem. Enquanto prática de leitura que
nasceu da confrontação com textos da tradição filosófica (Husserl, Heidegger, Rousseau,
Hegel, Nietzsche) e apenas posteriormente com textos das ciências humanas (linguística,
antropologia, psicanálise) e da literatura, ela, na verdade, era uma recusa do modo
dominante de leitura de textos filosóficos na vida universitária francesa dos anos 50 e 60,
modo cujos nomes de Martial Guéroult e Victor Goldschmidt sintetizaram
admiravelmente bem.
De fato, contrariamente a uma perspectiva hegemônica no meio francês de então,
que via a filosofia como prática de análise interna da sistematicidade de textos que
compõem a tradição do pensamento filosófico através da construção de “ordens de
razões” claramente pressupostas pelo filósofo, para Derrida, ler um texto filosófico era
principalmente forçar a sistematicidade do discurso filosófico a deparar-se continuamente
com seus limites e misturar-se com aquilo que lhe era aparentemente estranho. Forçagem
que impediria a filosofia de se transformar em um comentário infinito de seus próprios
textos e sem relação a exterioridade alguma. Comentário infinito que nos levaria
necessariamente a esta prática de análise que ignora a relevância filosófica dos espaços
em branco, dos não-ditos, das resistências e das elisões necessárias à instauração de todo
discurso fundador.
Todos vocês sabem do que trata aqui. Creio que esta é uma questão de suma
importância porque vocês estão no interior de um processo de aprendizagem de leitura.
Vocês aprenderão técnicas fundamentais para todo e qualquer processo filosófico de

12
DERRIDA, Margens da filosofia, op. cit. p. 27
leitura de textos da tradição : saber identificar o tempo lógico que nos ensina a reconstituir
a ordem das razões internas a um sistema filosófico, pensar duas vezes antes de separar
as teses de uma obra dos movimentos internos que as produziram, compreender como o
método se encontra em ato no próprio movimento estrutural do pensamento filosófico,
entre outros. Trata-se de um ensinamento fundamental para a constituição daquilo que
chamamos de “rigor interpretativo” que respeita a autonomia do texto filosófico enquanto
sistema de proposições e não se apressa em impor o tempo do leitor ao autor. Rigor que
nos lembra como o ato de “compreender” está sempre subordinado ao exercício de
“explicar”. Mas ele não define o campo geral dos modos filosóficos de leitura. Ele define,
isto sim, procedimentos constitutivos da formação de todo e qualquer pesquisador em
filosofia. Ele é o início irredutível de todo fazer filosófico mas, por mais que isto possa
parecer óbvio, o fazer filosófico vai além do seu início.
Lembremos, por exemplo, do que diz Kant a respeito de seu modo de leitura dos
textos filosóficos : “Não raro acontece, tanto na conversa corrente como em escritos,
compreender-se um autor, pelo confronto dos pensamentos que expressou sobre seu
objeto, melhor do que ele mesmo se entendeu, isto porque não determinou
suficientemente o seu conceito e, assim, por vezes, falou ou até pensou contra sua própria
intenção”13. Este comentário aparentemente inocente é a exposição de todo um programa
de leitura que, aparentemente, não está totalmente de acordo com as regras do rigor
interpretativo. Afinal, Kant reconhece que sua leitura é, digamos, sintomal. Ele irá
procurar aqueles pontos da superfície do texto nos quais a letra não condiz com o espírito,
nos quais o autor estranhamente pensou contra sua própria intenção. Ou se quisermos
utilizar uma formulação que agradaria Derrida, pontos nos quais o texto pensou contra a
intenção de seu autor. Mas o que significa admitir um pensamento que se descola de sua
própria intenção e que deixa traços deste descolamento nos textos que produz? Podemos
dizer que significa, principalmente, estar atento às regiões textuais nas quais o projeto do
sistema filosófico é traído pelo encadeamento implacável do conceito que insiste em abrir
novas direções. Estar atento as estas estruturas que atravessam a consciência do texto e
que deixam marcas nos caminhos trilhados pela escrita. Ao menos neste ponto, é difícil
estar de acordo com Goldschmidt, para quem : “as asserções de um sistema não podem
ter por causas, tanto próximas quanto imaginárias, senão conhecidas do filósofo e
alegadas por ele”14.
A história da filosofia, ao contrário, mostra que é sim possível pensar a partir
daquilo que o autor produz sem o saber, ou sem o reconhecer. Sabemos todos, e Derrida
em primeiro lugar, que o estabelecimento de regras de prática de leitura é a base de todo
e qualquer aprendizado em filosofia. Mas em um dado momento de sua história, a
filosofia (ou, ao menos, uma parte dela) começou a desconfiar sistematicamente de suas
práticas. Pois, ao menos no caso de Derrida, tratava-se de afirmar que um texto, e
fundamentalmente o texto filosófico, é sempre uma operação tensa de negociação. Como
se um verdadeiro texto filosófico fosse sempre e necessariamente um campo de linhas
divergentes de força, como se sua redação fosse sempre a história de certos abandonos,
restrições e surpresas. Como se todo filósofo, ao escrever, colocasse em marcha um
sistema de conceitos, uma maquinação conceitual que ele apenas no limite é capaz de
controlar. Porque no interior do texto trabalha algo que não é apenas o querer dizer do
autor, a não ser que liberemos este querer dizer da noção de “intencionalidade
consciente”, de “causas conhecidas do filósofo” e de todos estes dispositivos que ainda
remetem a figura-autor às temáticas herdadas de uma filosofia da consciência. Isto talvez
nos explique porque lá onde normalmente vemos apenas “erro de leitura”, “distorção de
13
KANT, Crítica da razão pura, A 314
14
GOLDSMITH, Tempo lógico e tempo histórico na interpretação dos sistemas filosóficos, p. 141
perspectiva” ou “redução do texto a um mero pretexto”, Derrida verá um momento
fundamental de todo fazer filosófico. Pois talvez não exista fazer filosófico sem certos
deslocamentos, sem torções e reconfigurações.
Neste ponto, começamos a nos aproximar do que Derrida entende por
desconstrução. Desconstruir não consiste em criticar um texto comparando-o com o que
ele foi incapaz de apreender, apontando suas falhas e limitações a partir de uma
perspectiva que seja exterior ao próprio texto. A aposta de Derrida é muito mais arriscada,
e por isto mesma mais interessante. Trata-se de comparar um texto com ele mesmo,
mostrar como, nele, trabalham questões que um autor mobiliza sem saber (já que ele é
muito mais um suporte do que um agente destas questões), mostrar como, neste sentido,
a exterioridade do texto, aquilo com o qual o texto será confrontado, já está inscrita no
próprio texto. Costuma-se repetir muito este logon tão associado a Derrida, “não há nada
fora do texto”. Diz-se isto como se Derrida afirmasse alguma espécie de profissão de fé
relativista onde toda exigência de objetividade seria sumamente desqualificada. Veremos
como este não é o caso. Talvez seja o caso de dizer que afirmar a inexistência de uma
exterioridade ao texto significa, ao mesmo tempo, ver todo texto como algo a mais do que
os escritos de uma página de papel. “Texto” é aqui o nome de um sistema de coordenadas
que articula múltiplas produções de saberes e práticas a partir de um regime
particularmente instável de ordenamento (e precisaremos entender de onde vem tal
instabilidade, porque tais sistemas não são fundados em um fundamento que permitiria a
clarificação de tais práticas e saberes). E mesmo os escritos de uma página de papel,
quando pensados como textos, nunca são homogêneos. Exemplo disto é o que Derrida
diz de Saussure:

Mais do que qualquer outro texto, o de Saussure não é homogêneo. De fato, eu


analisei um estrato “logocêntrico” e “fonocêntrico” dele (que não havia sido
apreendido e cuja eficácia é considerável), mas para mostrar ao mesmo tempo que
ele constituía uma contradição no projeto científico de Saussure, tal como ele é
legível e que eu levei em conta15.

Estrutura do curso

A fim de analisar de maneira sistemática essas e outras questões que compõem o


fundamento da experiência intelectual de Derrida, proponho um curso que visa discutir
alguns textos fundamentais. Neste curso, centraremos nossas leituras em três livros que
compõem a base da filosofia de Derrida. Três livros lançados no mesmo ano (1967) e que
marcaram o aparecimento do projeto derrideano. São eles: A voz e o fenômeno, Da
gramatologia e Escritura e diferença. Além destes textos, trabalharemos também um
texto sobre a crítica ao humanismo editado em 1972, Os fins do homem e um conjunto de
conferências que apareceu em 1994 com o título Força de Lei : o fundamento místico da
autoridade, além de Voyous: dois ensaios sobre a razão.
Começaremos pois a partir da leitura de um textos do livro Escritura e diferença
intitulado A estrutura, o signo e o jogo no discurso das ciências humanas. Trata-se de
uma porta de entrada que nos permitirá compreendermos a natureza da relação entre
Derrida e este movimento que aparecia como hegemônico no interior das discussões sobre
as ciências humanas na França dos anos 60, a saber, o estruturalismo. A experiência
intelectual de Derrida foi marcada por uma dupla recusa em relação às duas correntes
hegemônicas do pensamento francês de então: o estruturalismo e a fenomenologia. No

15
DERRIDA, Jacques; Positions, Paris: Seuil, 1972, p. 71
que diz respeito ao estruturalismo, a posição de Derrida sempre consistiu em denunciar o
que seria sua dependência em relação a uma certa metafísica visível nas noções
linguísticas de signo, significante e sistema (inspirado na fonologia). Denúncia que o
permite mobilizar as temáticas da desconstrução contra a antropologia de Lévi-Strauss, a
linguística de Saussure e Jakobson, a psicanálise de Lacan e mesmo aspectos maiores da
filosofia de Foucault. Começaremos discutindo alguns aspectos fundamentais do
estruturalismo. Por isto, pediria a leitura de três textos fundamentais: A estrutura dos
mitos e A análise estrutural em lingüística e antropologia, de Claude Lévi-Strauss, e o
capítulo “Princípios gerais”, do Curso de lingüística geral, de Ferdinand de Saussure.
O segundo texto a ser trabalhado é o pequeno livro A voz e o fenômeno. Através
de uma leitura cuidadosa e inovadora de aspectos do problema da relação entre
linguagem, significação e consciência em Husserl, Derrida se pergunta: “A necessidade
fenomenológica, o rigor e a sutileza da análise husserliana, as exigências às quais ela
responde e às quais nós devemos respeitar, não dissimulariam um pressuposto
metafísico?”. Uma metafísica no coração da fenomenologia? “Trata-se pois de ver, a
partir do exemplo privilegiado do conceito de signo, anunciar-se a crítica fenomenológica
da metafísica como momento no interior da segurança metafísica. Mais: trata-se de
começar a verificar que o recurso à crítica fenomenológica faz parte do próprio projeto
metafísico, em sua realização histórica e na pureza restaurada de sua origem” 16. Veremos
como esta maneira de expor a metafísica presente na teoria husserliana da linguagem
permitirá duas operações : a constituição da temática da metafísica da presença
(dispositivo maior de articulação do pensamento de Derrida à história da filosofia) e a
surpreendente produção de um campo comum de crítica que abarca tanto fenomenologia
como estruturalismo. Para tanto, eu pediria a leitura suplementar um texto de Husserl;
Origem da geometria (traduzido e extensamente comentado pelo próprio Derrida).
O terceiro texto vem também de Escritura e diferença. Trata-se de Freud e a cena
da escritura. Como vocês verão, este é um texto decisivo na constituição de noções
centrais na filosofia de Derrida, como: escritura, traço, a crítica da origem e a crítica à
concepção moderna de sujeito. A leitura derrideana de Freud será constante e profícua.
Contrariamente à sua leitura de Lacan, que será sempre crítica devido, principalmente, à
teoria do sujeito deste último. Gostaria de discutir aqui dois pontos: primeiro, como um
projeto filosófico recorre às temáticas psicanalíticas a fim de constituir um campo
conceitual a ser mobilizado no interior de um projeto de crítica da razão? O que significa
este recurso à exterioridade da filosofia? Segundo: em que o próprio projeto da
desconstrução depende de uma certa absorção da prática psicanalítica. Para o comentário
deste texto, pediria a leitura de Notas sobre o bloco mágico e o capítulo VII de A
intepretação dos sonhos, de Freud.
O comentário destes três textos permitirá compreendermos os modos de
articulação do pensamento de Derrida com o estruturalismo, a fenomenologia e a
psicanálise. A partir daí, poderemos abordar de maneira sistemática este que talvez seja
o livro mais importante de Derrida: Da gramatologia. Gostaria de dedicar ao menos
quatro aulas para este livro, para a elucidação de seu projeto, de seu métodos de relação
com a história da filosofia e de suas dificuldades. Veremos porque ele era visto por
Derrida como o anúncio do fim de uma era patrocinada pelo desenvolvimento de certos
setores das chamadas ciências humanas. Desenvolvimento a respeito do qual a filosofia
deveria ser capaz de pensar. Fim tão claramente enunciado em frases como:

16
DERRIDA, La voix e le phénomène, Paris : PUF, p. 3
“a unidade de tudo o que se deixa visar atualmente através dos conceitos mais
diversos da ciência e da escritura é, a princípio, mais ou menos secretamente mas
sempre, determinada por uma época histórico-metafísica a respeito da qual
entrevemos seu término. (...) O futuro só pode ser antecipado na forma do perigo
absoluto. Ele é o que rompe absolutamente com a normalidade constituída e só
pode anunciar-se, apresentar-se, sob a forma da monstruosidade. Para este mundo
por vir e para aquilo que, nele, teria feito tremer os valores do signo, da palavra e
da escritura, para aquilo que aqui conduz nosso futuro anterior, não há ainda
epígrafe” 17.

Por que seríamos contemporâneos de uma época histórico-metafísica próxima de


seu término? Que época seria esta, que história esta leitura derrideana pressupõe? E, além
disto e acima de tudo, o que vem após o término de uma época? Gostaria de ler Da
gramatologia tendo tais questões em mente. Para tanto, peço ainda as leituras do Ensaio
sobre a origem das línguas, de Rousseau, e o capítulo “Introdução”, do Curso de
lingüística geral.
Por fim, vamos ler dois textos mais recentes. Estes dois textos adiantam alguns
aspectos importantes do que poderíamos chamar de “as conseqüências politicas da
desconstrução”. O primeiro é Os fins do homem, um capítulo de Margens da filosofia
(1972). Um texto que expõe claramente os meandros da crítica derrideana ao humanismo.
Ele deve ser lido conjuntamente com Carta sobre o humanismo, de Martin Heidegger, já
que ele é, em larga medida, um comentário das posições heideggerianas. O segundo é
Força de Lei, um texto a meu ver fundamental para a compreensão do interesse que a
desconstrução pode ter para a discussão de noções como validade, autoridade e poder.
Ele deve ser seguido da leitura de outros dois textos: Crítica da violência, de Walter
Benjamin e Estado de exceção, de Giorgio Agamben.
Antes então de terminar a aula de hoje, eu gostaria de dizer duas ou três palavras
mais pessoais a respeito do que me levou a apresentar para vocês um curso sobre Jacques
Derrida. Creio ser obrigado a dizer tais palavras porque aqueles que conhecem o que faço
sabem que alguém que escreveu livros sobre Lacan e a dialética não parece ser a pessoa
mais indicada para falar sobre a filosofia de Derrida. Todos meus interesses maiores são
por autores contra os quais Derrida claramente se contrapõe, como Hegel, Lacan, embora
ele reconheça um campo aberto de aproximações com outro autor que trabalho, Theodor
Adorno. Mas, se decidi oferecer este curso sobre Derrida é porque tive um professor que
um dia me ensinou que só começamos realmente a pensar quando perdemos o medo de
nos confrontar com autores que parecem nossos antípodas. Este professor era um
profundo leitor de Sartre que, devido exatamente a esta crença, decidiu escrever uma tese
sobre o aparente antípoda de seu autor: Henri Bergson. Foi ele quem me mostrou, pela
primeira vez, o interesse que pode existir na filosofia de Derrida e, a cada dia que passa,
tenho certeza de que sua própria filosofia em muitos pontos se encontrava, graças a
caminhos absolutamente próprios, com dispositivos maiores do pensamento de Derrida.
Por isto, que este curso seja uma certa maneira de prestar uma pequena homenagem não
apenas a ele, mas à forma de fazer filosofia que ele próprio representou. Um fazer filosofia
que é, acima de tudo, o ato de pensar contra si mesmo. Se vocês me permitem, é isto que
gostaria de fazer durante este semestre, é isto que gostaria de fazer junto com vocês.

17
DERRIDA, De la grammatologie, Paris: Seuil, 1967, p.14
Jacques Derrida
Aula 2

Na aula de hoje, gostaria de fazer uma apresentação geral do estruturalismo. Ela nos servirá
para compreendermos as discussões que Derrida procura desenvolver em A estrutura, o signo
e o jogo no discurso das ciências humanas e em momentos centrais de Da gramatologia.
Raros foram os momentos históricos que viram configurar uma experiência
intelectual como aquela que se colocou sob a égide do estruturalismo. Experiência que
realizou, à sua maneira, um verdadeiro “programa crítico interdisciplinar” nascido da
articulação cerrada entre antropologia, psicanálise, lingüística, crítica literária e reflexão
filosófica. Programa que, de uma certa forma, aliava sob protocolos comuns nomes como
Claude Lévi-Strauss, Jacques Lacan, Louis Althusser, Roland Barthes, Michel Foucault,
Roman Jakobson, entre outros.
Digamos, inicialmente, que analisar com calma o estruturalismo e seus projetos,
significa deparar-se com uma tentativa singular de procurar redefinir por completo o
parâmetro de racionalidade e os métodos das chamadas ciências humanas. Tentativa com
conseqüências filosóficas absolutamente evidentes. Tal redefinição partiu da defesa da
lingüística como “ciência ideal” que deveria guiar a reconfiguração do campo das ciências
humanas. Notemos, por exemplo, o tom ditirâmbico que anima a seguinte afirmação de Lévi-
Strauss :

No conjunto das ciências sociais ao qual pertence indiscutivelmente, a lingüística


ocupa, entretanto, um lugar excepcional; ela não é uma ciência social como as outras,
mas a que, de há muito, realizou os maiores progressos: a única, sem dúvida, que pode
reivindicar o nome de ciência e que chegou, ao mesmo tempo, a formular um método
positivo e a conhecer a natureza dos fatos submetidos à sua análise 1.

Este primado da lingüística implicava em um duplo efeito. Primeiro, como vemos na


afirmação de Lévi-Strauss, tratava-se de uma questão de método. A lingüística estrutural
inspirada por Saussure, e implementada por nomes como Jakobson (sem esquecermos de
todo o Círculo lingüístico de Praga: Troubetzkoy, Vachek entre outros), Greimas e Hjelmslev
havia realizado um amplo processo de formalização de seu objeto, o fato lingüístico, através
da compreensão da linguagem como sistema diferencial-opositivo de unidades elementares
(fonemas). Não se tratava de uma matematização no sentido próprio àquela implementada
no campo das ciências físicas, ou seja, redução dos objetos a uma unidade comum de medida
que permite a implementação de processos de quantificação e comparação. Tratava-se de
uma formalização estrutural, ou seja, sistematização de “elementos que se especificam
reciprocamente em relações”2 e que não tem nenhuma realidade intrínseca para além deste
campo de relações. Lembremos, por exemplo, da relação estabelecida por Saussure entre a
linguagem e o jogo de xadrez. Tratava-se de demonstrar como o valor de cada elemento era
determinado através do estabelecimento de um conjunto de regras e de sistemas de

1
LÉVI-STRAUSS, Antropologia estrutural, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 45. Ou ainda, como nos diz
Granger : “A tentativa de transformar o acontecimento vivido em objeto abstrato, essencialmente definido por
suas correlações a outros objetos em um sistema formal, parece ter sido levada ao extremo pela lingüística
estrutural e apresenta-se como uma verdadeira provocação aos olhos dos hábitos do conhecimento científico”
(GRANGER, Pensée formelle et sciences de l´homme, p. 74)
2
DELEUZE, Em que se pode reconhecer o estruturalismo?, p. 280
permutação : “O valor respectivo das peças depende da sua posição no tabuleiro, do mesmo
modo que na língua cada termo tem seu valor pela oposição aos outros termos” 3. Fato que
levava Saussure a afirmar, de maneira canônica, que, na ciência da linguagem:

Os objetos que ela tem diante de si são desprovidos de realidade em si, ou a parte dos
outros objetos a considerar. Eles não tem absolutamente nenhum substratum de
existência fora de suas diferenças ou das diferenças de toda forma que o espírito
encontra um meio de atribuir à diferença fundamental4.

Por outro lado, a estrutura não é dada de maneira imanente no campo fenomenal. Ao
contrário, ela determina de maneira transcendente este campo e seus atores, que agem de
maneira inconsciente. Ao falar, os sujeito não têm consciência da estrutura fonemática que
determina seus usos da língua, da mesma maneira que, ao operar escolhas matrimoniais, os
sujeitos não têm consciência dos sistemas de parentesco que determinam tais escolhas. Este
caráter inconsciente da estrutura será um dado fundamental para a objetividade do
pensamento estruturalista, assim como para o seu anti-humanismo. Para um pensamento
estruturalista estrito os sujeito não falam, eles são falados pela linguagem. De onde se segue
a afirmação clássica de Lévi-Strauss: “Não pretendemos mostrar como os homens pensam
nos mitos, mas como os mitos se pensam nos homens, e à sua revelia. E. como sugerimos,
talvez convenha ir ainda mais longe, abstraindo todo sujeito para considerar que, de um certo
modo, os mitos se pensam entre si”5.
Mas se o primeiro efeito do primado da lingüística era esta reconfiguração da
racionalidade das ciências humanas através do programa de formalização estrutural, o
segundo efeito estava na compreensão de que o verdadeiro objeto das ciências humanas não
era o homem, mas as estruturas que o determinam. Michel Foucault compreendeu isto
claramente ao afirmar que: “Há ciências humanas não em todo lugar onde é questão do
homem, mas em todo lugar onde analisamos, na dimensão própria do inconsciente, as
normas, regras, conjuntos significantes que desvelam à consciências as condições de suas
formas e de suas condutas”6.
Tal recompreensão do objeto das ciências humanas implicava, necessariamente em
uma teoria da sociedade que transformava a linguagem no fato social central, já que todos
os fatos sociais : trocas matrimoniais, processos de determinação de valor de mercadorias,
articulação do ordenamento jurídico, seriam todos estruturados como uma linguagem. Assim
como a filosofia anglo-saxã do início do século XX defrontou-se com uma certa guinada
lingüística que reorientou os problemas ontológicos para o campo da análise da linguagem,
as ciências humanas francesas da segunda metade do século XX reconstruíram seu objeto e
seu campo ao usar a análise da linguagem como método e parâmetro. Podemos ver
claramente tal estratégia em ação na seguinte afirmação de Lévi-Strauss :

No estudo dos problemas de parentesco (e sem dúvida também no estudo de outros


problemas), o sociólogo se vê numa situação formalmente semelhante à do lingüista
fonólogo: como os fonemas, os termos de parentesco são elementos de significação;

3
SAUSSURE, Curso de lingüística geral, p. 104
4
idem, Essais de linguistique générale, p. 65
5
LÉVI-STRAUSS, o cru e o cozido, p. 31
6
FOUCAULT, Les mots et les choses, Paris : Seuil, 1966, p. 376
como eles só adquirem esta significação sob a condição de se integrarem em sistemas;
os ´sistemas de parentesco´, como os ´sistemas fonológicos´, são elaborados pelo
espírito no estágio do pensamento inconsciente; enfim a recorrência, em regiões
afastadas do mundo e em sociedades profundamente diferentes, de formas de
parentesco, regras de casamento, atitudes identicamente prescritas, entre certos tipos
de parentes etc. faz crer que, em ambos os casos, os fenômenos observáveis resultam
do jogo de leis gerais, mas ocultas7.

Esta recompreensão dos fatos sociais como fatos estruturados como uma linguagem
permitirá, por exemplo, o re-enquadramento do campo da política e da crítica da ideologia
no interior de um campo de análise do discurso (lembremos de Foucault com sua noção de
“práticas discursivas”, de Lacan com sua teoria do vínculo social a partir de uma tipologia
de discursos e de Derrida com seus procedimentos de desconstrução como substituto dos
protocolos de crítica da ideologia). Mas devemos aproveitar este momento para levar a cabo
uma apresentação, mesmo que panorâmica, de alguns pressupostos maiores do
estruturalismo. Três aspectos são centrais no estruturalismo: a noção de ordem estrutural
como elemento transcendental de determinação do sentido, o caráter inconsciente de tal
ordem e, por conseqüência, a noção determinista do sujeito como suporte da estrutura.

Saussure e o problema do signo

Tomemos, inicialmente, algumas elaborações de Saussure. O nome de Saussure está


fundamentalmente vinculado ao impulso de construção de um método, que se pretendia
objetivo, de abordagem dos processos de determinação do fato lingüístico. As raízes de tal
impulso sistematizado devem ser procuradas ainda na idade clássica, mais especificadamente
no século XVII. Exemplo maior aqui são a Logique de Port Royal (1662) e Grammaire
generale et raisonnée (1664), todos os dois de Antoine Arnault, embora o primeiro seja em
colaboração com Pierre Nicole. Através da idéia de uma “gramática geral” não se tratava
simplesmente da aplicação de uma certa lógica à teoria da linguagem. Tratava-se de tomar o
discurso como objeto de crítica a fim de analisar a “instauração profunda de uma ordem” 8,
como diria Foucault. Ordem que Derrida chamará de “estruturalidade da estrutura”. Notemos
que não se trata de tomar a língua como objeto de análise, mas o discurso entendido como
seqüência de signos verbais. De onde se segue o caráter prescritivo e normativo desta
gramática geral.
Os estudos da linguagem ganharam outro impulso inovador no final do século XVIII
com o advento da filologia, que renovará os estudos vinculados à hermenêutica ao tentar
compreender a função gramatical das palavras através das modificações temporais às quais
elas estariam submetidas. Mas a verdadeira raiz da lingüística moderna deve ser procurada
um pouco mais a frente, no início do século XIX graças, principalmente, a Franz Bopp e
Jacob Grimm.
Os estudos de Bopp sobre o sânscrito e os de Grimm sobre a gramática alemã
permitiram o advento de uma espécie de filologia comparativa ou gramática comparada. Este
passo foi decisivo para a sistematização dos estudos lingüísticos. Como nos lembra Saussure,
Bopp, ao analisar o grego e o latim a partir do sânscrito como fonte comum: “compreendeu

7
LÉVI-STRAUSS, Antropologia estrutural, op. cit. p. 48
8
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 97
que as relações entre línguas afins podiam tornar-se matéria duma ciência autônoma.
Esclarecer uma língua por meio de outra, explicar as formas duma pelas formas de outra, eis
o que não fora feito até então”9. No entanto, teria faltado à gramática comparada uma
verdadeira teoria geral da linguagem que fornecesse não apenas um método positivo de
análise dos fatos lingüísticos, mas que determinasse a natureza do seu objeto de estudos. Daí
porque Saussure pode afirmar: “a Gramática comparada jamais se perguntou a que levavam
as comparações que fazia, o que significavam as analogias que descobria” 10. Na verdade, é o
estabelecimento desta teoria geral da linguagem, teoria que não é teoria de nenhuma língua
particular, que será o objeto do esforço conceitual saussureano. Daí porque Saussure pode
enunciar, como tarefa da lingüística: “fazer a história das famílias de línguas e reconstituir,
na medida do possível, as línguas-mães de cada família; procurar as forças que estão em jogo,
de modo permanente e universal, em todas as línguas e deduzir as leis gerais às quais se
possam referir todos os fundamentos particulares da história e delimitar-se e definir-se a si
própria”11.
Vale a pena atentar-se principalmente para o segundo ponto: estabelecer leis gerais,
permanentes, universais e incondicionadas que determinariam os fatos lingüísticos. Pois se
tratava, na verdade, de determinar as condições a priori para a existência de fatos lingüísticos.
Um questionamento transcendental a respeito da linguagem como elemento de estruturação
do pensamento se insinuava aqui. Tal questionamento deveria dar conta, entre outras coisas,
da maneira com que a linguagem estrutura o pensável e como ela se relaciona com a
referência do pensamento. Mas, como nos lembra Granger:

Seria inexato caracterizar este encaminhamento preliminar como simples abstração.


A estrutura lingüística aqui visada não é apenas um abstrato em relação ao fato da
linguagem; ela é aquilo que, na ausência de termo melhor, chamaremos com Husserl
de essência, ou seja, um esboço transcendental de objeto, para além de toda ontologia.
Transcendental aqui não conserva nenhuma significação propriamente idealista, na
medida em que não se trata de exposição de uma condição imutável de conhecimento
de objeto fundada na natureza de um eu abstrato (...) A palavra transcendental
justifica-se precisamente porque o esboço não se reduz a um empobrecimento do
vivido por abstração. Não importa qual seja seu estatuto genérico, o esboço constitui
o guia de um conhecimento conceitual possibilitando as contribuições de uma
experiência controlada e o desenvolvimento de uma combinatória.12

Por outro lado, Saussure era um defensor claro da arbitrariedade do signo, ou seja, de
uma certo convencionalismo que afirmava a autonomia do signo em relação à toda
determinação prévia da referência. Analisemos este problema com calma pois ele será de
suma importância para Derrida.
Podemos adentrar nos princípio da lingüística saussureana através da discussão a
respeito do problema da referência. Isto nos levará a compreensão da estrutura do signo
saussureano : unidade elementar de significação na língua. Em vários aspectos, a definição

9
SAUSSURE, Curso de lingüística geral, p. 8
10
idem, p. 10
11
idem, p. 13
12
GRANGER, Pensée formelle et sciences de l´homme, p. 76
saussureana de signo é particular. Segundo ele: “o signo lingüístico não une uma coisa e uma
palavra, mas um conceito e uma imagem acústica” 13.
Tal afirmação é prenhe de conseqüências. Trata-se de desconsiderar o problema da
referência, ou seja, da relação entre nome e coisa, como um problema lingüístico central. Se
o signo é a união de um conceito e de uma “imagem acústica” que, neste contexto, é a
representação psíquica de um som, então devemos nos perguntar sobre qual o dispositivo que
poderá responder pela relação entre o conceito e a referência. No entanto, de uma certa forma,
um dos eixos do trabalho de Saussure consiste em procurar esvaziar tal questão. Isto implica,
é claro, em uma teoria não-correspondencial da linguagem que, em última análise, articula
uma teoria convencionalista da linguagem que insiste no fato de que: “todo meio de
expressão aceito em uma sociedade repousa em princípio em um hábito coletivo ou, o que
vem a dar na mesma, em convenção”14.
Devemos pois analisar este ponto com mais calma. O signo é pois a união entre um
conceito e uma imagem acústica. Conceito é exatamente o que Saussure chama de
“significado” (a dimensão do inteligível) e imagem acústica recebe a denominação de
“significante” (a dimensão do sensível). Esta articulação entre significante e significado não
nos diz nada a respeito do mundo tal como ele seria independentemente da nossa linguagem.
“Em lingüística, os dados naturais não têm nenhum valor” 15, dirá claramente Saussure. Um
lingüista estruturalista, Jean-Claude Milner, percebeu que isto nos levaria a uma tese, de
moldes kantianos, segundo a qual: “a ligação que articula as coisas enquanto coisas não pode
ter nada em comum com a ligação que as articula enquanto faces de um signo. Nenhuma
causa relevante para a primeira pode operar sobre a segunda” 16. De fato, encontramos tal
perspectiva em afirmações de Saussure como: “O que é afinal uma entidade gramatical? Nós
precedemos exatamente como um geômetra que gostaria de demonstrar as propriedades do
círculo e da elipse sem ter dito o que ele designa por círculo e elipse”17.
É neste ponto que Saussure insiste no princípio fundamental a respeito do signo: sua
arbitrariedade. Mas, a princípio, através do problema da arbitrariedade do signo, Saussure
pareceria estar indicando um problema interno à língua, e não um problema externo à mesma.
Pois em momento algum ele afirma que o signo é arbitrário na sua relação com a referência,
mas que a relação entre significado e significante é arbitrária: “o significante é imotivado,
isto é, arbitrário em relação ao significado, com o qual não tem nenhum laço natural na
realidade”18. Tanto b-ö-f quanto o-k-s representam o mesmo conceito (significado), o que
indicaria o caráter arbitrário da relação. E sendo absolutamente arbitrária, a língua perderia
um dos motores de seu processo de mudança, pois não há razão alguma para preferir boef ou
Ochs: “Justamente porque o signo é arbitrário, não conhece outra lei senão a da tradição” 19.
No entanto, como sabemos, em filosofia, expulsar um problema pela porta da frente
não nos garante que ele não irá retornar pela porta dos fundos. De fato, Saussure procura a
todo momento esvaziar o problema da relação entre linguagem e referência. No entanto, ela
acaba voltando nesta discussão a respeito do arbitrário do signo. Pois, afirmar que a relação
significado/significante é arbitrária nos leva necessariamente a afirmar que a relação

13
SAUSSURE, Curso de lingüística geral, p. 80
14
idem, p. 82
15
idem, p. 93
16
MILNER, L´amour de la langue, p. 58
17
SAUSSURE, Écrits de linguistique générale, Paris: Gallimard, 2002, p. 51
18
SAUSSURE, Curso, p. 81
19
idem, p. 88
signo/referência é arbitrária. Os significantes são arbitrários porque eles se referem ao mesmo
conceito. Mas o conceito sempre sustenta-se em uma expectativa de denotação da
referência20. Não falamos apenas algo, queremos sempre falar sobre algo. Eles são arbitrários
porque se referem à mesma realidade linguística. Ou seja, não é possível abstrair o problema
do arbitrário de uma perspectiva externalista. Tudo se passa como se pudéssemos identificar
a existência de uma espécie natural (natural kind) a fim de afirmar que ela pode ser
representada tanto por b-ö-f, por o-k-s ou por qualquer som.
A noção de arbitrário pressupõe a possibilidade de uma comparação entre os
conteúdos de representações mentais e objetos, propriedade e relações existentes em um
mundo que seria largamente independente de nosso discurso. Entramos aqui no famoso
paradoxo presente na questão profissional posta pelo ceticismo, tal qual ela foi formulada
por Richard Rorty: “Como sabemos nós que tudo aquilo o que é mental representa algo que
não é mental ? Como sabemos nós se aquilo que o Olho da Mente vê é um espelho (ainda
que distorcido - um vidro encantado) ou um véu ?”21.
De qualquer forma, a questão central aqui é: a arbitrariedade do signo indica, no
fundo, uma arbitrariedade na relação entre linguagem e referência, facilmente legível no
interior de uma teoria convencionalista da linguagem. Isto, Jean Claude Milner compreendeu
claramente ao afirmar, sobre Saussure: “O arbitrário recobre, de maneira extremamente
ajustada, uma questão que não será posta : o que é o signo quando ele não é o signo ? o que
é a língua antes de ser a língua ? – ou seja, a questão que exprimimos corriqueiramente em
termos de origem. Dizer que o signo é arbitrário, é pôr a tese primitiva : há língua"22.
Na verdade, Saussure procurava esvaziar a questão a respeito da referência e da
designação, ou seja, a questão da exterioridade da linguagem. Mas esvaziar o problema da
referência nos leva necessariamente a explicar como as significações são produzidas, para
além de uma confrontação entre linguagem e referência. E é aqui que entrava a noção central
de “sistema”, já que será a organização da língua como um sistema fechado (Saussure falará
da língua como sistema arbitrário de signos) que responderá pelo processo de produção de
significações. A significação não é resultado da confrontação entre palavra e coisa, mas é o
resultado de uma articulação posicional-opositiva dos signos entre si, como em um sistema
fechado. É da noção saussureana de “sistema” que nascerá o conceito de “estrutura”: “ A
língua é um sistema do qual todas as partes podem e devem ser consideradas em sua
solidariedade sincrônica”23. Sendo que sincronia quer dizer aqui aquilo que nos dá a
configuração de um estado mais ou menos estável da língua (diacronia como a percepção
histórica dos processos de modificação dos elementos que compõem a língua).
Dizer que a língua organiza-se como um sistema significa insistir que devemos
compreende-la a partir do seu interior, ou seja, a partir de suas leis estruturais de
funcionamento. “Cumpre pois partir da totalidade solidária para obter, por análise, os
elementos que encerra”24. O modelo desta totalidade foi fornecido a Saussure pelo modo de
organização dos fonemas no interior da língua: unidades elementares que não tem nenhuma
realidade para além de suas relações no interior de um sistema. Era tal analogia que permitia
a Saussure afirmar: “Na língua, só existem diferenças. E mais ainda: uma diferença supõe

20
Neste sentido, a diferença entre sensível e intelegível no signo sustenta-se em uma idealidade não-posta do
sentido.
21
RORTY, Richard; A filosofia e o espelho da natureza, pag. 46..
22
MILNER, L'amour de la langue, Paris: Seuil, 1978, p. 59
23
SAUSSURE, idem, p. 102
24
SAUSSURE, idem, p. 132
em geral termos positivos entre os quais ela se estabelece, mas na língua há apenas diferenças
sem termos positivos”25.
Esta noção da linguagem como sistema fechado cujos processos de determinação de
valor não obedece nenhuma visada externalista, pois organizados a partir de regras internas
que têm posição transcendental, podia ser melhor compreendida através da metáfora do jogo.
A noção da linguagem como jogo, noção central para a filosofia do século XX (Wittgenstein
principalmente), deve aqui ser levada a sério. Pois o jogo é instauração de um espaço no qual
todos os acontecimentos são produzidos e significados sem referência à exterioridade do que
não se submete às regras de organização do seu espaço. De uma certa maneira, os jogos
produzem acontecimentos a partir das regras que compõem a estrutura. Saussure tenta levar
tal situação ao extremo ao afirmar que a linguagem é como um jogo de xadrez que é jogado
por jogadores inconscientes; como se, de uma certa forma, fossem as regras que jogassem o
jogo, e não os sujeitos. Derrida compreendeu claramente as conseqüências desta perspectiva
ao afirmar:

Há pois duas interpretações da interpretação, da estrutura, do signo e do jogo. Uma


procura decifrar, sonha decifrar uma origem que escapa ao jogo e à ordem do signo,
e vive a necessidade de interpretação como um exílio [trata-se de perguntar : o que há
fora do jogo?]. A outra, que não está mais voltada à origem, afirma o jogo e tenta
passar para além do homem e do humanismo, o nome do homem sendo o nome deste
ser que, através da história da metafísica ou da onto-teologia, sonhou a presença
plena, o fundamento assegurador, a origem e o fim do jogo26.

Ou seja, a primeira vê o “jogo de linguagem” como aquilo que oblitera uma


exterioridade na qual se leria a verdadeira matriz do sentido (a confrontação realista com a
referência, as determinações sócio-econômicas da linguagem, a história etc.). A outra
insistiria na irredutibilidade arbitrária do jogo, na impossibilidade de fazer apelo a uma
referência exterior que poderia fundamentar o jogo. É neste segundo via que encontramos
Claude Lévi-Strauss.

Lévi-Strauss e o kantismo sem sujeito transcendental

Nome fundamental para a transformação da lingüística estrutural em padrão de


racionalidade das ciências humanas, Lévi-Strauss procurava implementar um programa de
reorientação do parâmetro de racionalidade das ciências humanas através de um esforço de
formalização do fato social em chave estrutural. Seguindo uma trilha aberta por Durkheim,
Lévi-Strauss determinava a estrutura como o verdadeiro fato social. Lembremos do que
Durkheim diz a respeito do fato social:

“Quando desempenho meus deveres de irmão, de esposo, de cidadão, quando me


desincumbo de encargos que contraí, pratico deveres que estão definidos fora de mim
e de meus atos, no direito e nos costumes. Mesmo estando de acordo com sentimentos
que me são próprios, sentido-lhes interiormente a realidade, esta não deixa de ser
objetiva; pois não fui eu quem os criou, mas recebi-os através da educação (...)

25
SAUSSURE, idem, p. 139
26
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 427
estamos, pois, diante de uma ordem de fatos que apresenta caracteres muito especiais:
consistem em maneiras de agir, de pensar e de sentir exteriores ao indivíduo, dotadas
de um poder de coerção em virtude do qual se lhe impõem” 27.

Ou seja, trata-se de compreender que não é o campo fenomênico da ação dos indivíduos que
realmente interessa, mas a determinação desta estrutura prévia que coage os sujeitos, a partir
do exterior, a agir de certa forma e a assumir certos lugares na vida social. Estrutura que
totaliza e unifica a multiplicidade de fatos dispersos na vida social. No caso de Lévi-Strauss,
esta estrutura social que não era composta exatamente por um conjunto positivo de regras,
mas por relações diferenciais e opositivas que determinam possibilidades de combinatória e
interditos de transposição, tal como as relações que organizariam os fonemas.
Por sua vez, Lévi-Strauss insistia também no caráter inconsciente da estrutura. Isto
era o resultado da posição, sintetizada por Merleau-Ponty, a respeito de Lévi-Strauss: “A
função simbólica antecede o dado” 28. Ou seja, ela não se conforma aos dados naturais, ao
contrário, ela estabelece previamente o campo possível de experiências no interior do qual a
própria noção se disponibilizará. Daí porque Lévi-Strauss poderá afirmar: “os símbolos são
mais reais do que aquilo que simbolizam”29. Notamos assim que a anterioridade da estrutura
em relação ao dado é uma anterioridade que indica uma força formadora, força formadora
que pode ser esclarecida se compreendermos a natureza transcendental da estrutura na sua
função de determinar previamente a configuração do campo de experiências possíveis.
Proposição que parte da determinação da função simbólica como função transcendental de
constituição dos objetos de toda experiência possível para afirmar que o universo simbólico
engendra um estado naturalizado de coisas. Desta forma, o convencionalismo da teoria
saussureana da linguagem acabava por validar, em Lévi-Strauss uma “teoria criacionista do
símbolo”. Para Lévi-Strauss, isto significava que a função simbólica determinava até mesmo
as coordenadas da experiência que os sujeito têm de si mesmos e de seus próprios corpos.
Como lembrará Lacan: “A função simbólica constitui um universo no interior do qual tudo
o que é humano tem de ordenar-se”30. De uma certa forma, os sujeito “são agidos” pela
estrutura. Era isto que Derrida tinha em mente ao afirmar que há uma maneira de pensar o
jogo como dispositivo fechado cujas regras determinam a configuração do campo de
acontecimentos possíveis.que nos leva para além de todo humanismo, ou seja, para além do
homem como referência positiva da presença do sentido. E era isto que nos explicava porque
Paul Ricoeur forneceu esta definição absolutamente precisa do estruturalismo: “kantismo
sem sujeito transcendental”. Afirmação que, longe de incomodar Lévi-Strauss, levou-lhe a
dizer:

Reconheço perfeitamente esse aspecto de nossa tentativa nas palavras de Paul


Ricoeur, quando a qualifica, com razão, de “kantismo sem sujeito transcendental”.
Mas tal restrição, longe de nos parecer sinal de uma lacuna, se nos apresente como a
consequências inevitável, no plano filosófico, da escolha que fizemos em uma
perspectiva etnográfica. Como nos pusemos em busca das condições para que
sistemas de verdades se tornem mutuamente convertíveis, podendo, pois, ser

27
DURKHEIM, O que é fato social?, p. 48
28
MERLEAU-PONTY, signos, p. 133
29
LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss, p. 29
30
LACAN, Jacques; Seminário II, p. 44
simultamente admissíveis por vários sujeitos, o conjunto dessas condições adquire o
caráter de objeto dotado de uma realidade própria, e independente de todo e qualquer
sujeito31.

Um exemplo do método estruturalista de Lévi-Strauss em operação está presente em


um texto célebre intitulado: “A estrutura dos mitos”. Este texto parte da seguinte constatação:

Se o conteúdo do mito é inteiramente contingente, como compreender que, de um


canto a outro da terra, os mitos se pareçam tanto? É somente com a condição de tomar
consciência desta antinomia fundamental, que provém da natureza do mito, que se
pode esperar resolvê-la. Com efeito, esta contradição se parece com aquela que
descobriram os primeiros filósofos que se interessaram pela linguagem, e, para que a
lingüística pudesse constituir-se como ciência, foi necessário primeiro resolver esse
problema32.

Ou seja, para que os mitos ganhem legibilidade não devemos partir da análise individual dos
mitos em suas contingências inumeráveis. Devemos estabelecer primeiramente um esforço
de abstração que permita selecionar as regularidades que aparecem na extensão dos mitos
geograficamente e temporalmente dispersos. Este estabelecimento de regularidades como
condição para a compreensão da significação leva a antropologia a caminhar juntamente com
a lingüística e a abandonar toda idéia de arquétipo para a compreensão das formações míticas.
Pois se trata de insistir que a significação não é imanente a cada representação, mas é
dependente das relações das representações entre si. As regularidades não são de símbolos,
mas de significantes.
Assim, da mesma forma que a lingüística procura compreender o processo de
determinação do valor lingüístico através da reconstrução dos modos de relação entre
unidades diferenciais elementares (fonemas), o estudo dos mitos deverá partir desta
determinação de unidades elementares. A elas, Lévi-Strauss fornece o nome de mitemas.
Estes mitemas são “feixes de relações” 33 que determinam os modos de atribuição de um
predicado a um sujeito, o que nada mais é do que derivação da noção de Lévi-Strauss do mito
como um “modelo lógico para a resolução de uma contradição” (resolução de contradições
que significa aqui posição de relações). É por ser um conjunto de mitemas que:

O lugar do mito, na escala dos modos de expressão lingüística, é oposto ao da poesia,


não importando o que se tenha dito para aproximá-los. A poesia é uma forma de
linguagem sumamente difícil de ser traduzida para uma linguagem estrangeira, e
qualquer tradução acarreta múltiplas deformações. Ao contrário, o valor do mito
como mito persiste, a despeito da pior tradução34.

A tradutibilidade integral dos mitos é resultado da possibilidade de sua decomposição


integral em unidades elementares. Vemos então, no decorrer do texto, Lévi-Strauss operar
uma decomposição dos mitos em seus mitemas, partindo do mito de Édipo. Cada mitema

31
LÉVI-STRAUSS, Claude; O cru e o conzido, São Paulo: Cosac e Naif, 2004, p. 30
32
idem, p. 239
33
idem, p. 245
34
idem, p. 242
indica um conjunto de modos de relação (“Cadmo procura sua irmã Europa, raptada por
Zeus”, “Édipo mata seu pai Laio”, “Etéocles mata seu irmão Polinices”) que, por sua vez,
podem ser agrupados em conjuntos mais extensos (“relações de parentesco superestimadas”,
“relações de parentesco subestimadas”). Desta forma, duas grandes relações ganham
visibilidade: aquelas vinculadas às relações de parentesco e aquelas vinculadas a autoctonia.
Lévi-Strauss aplica o processo de decomposição a outros mitos até alcançar uma
formalização que permite reconstituir a totalidade de relações fornecidas pelo mito:
“Aplicando sistematicamente este método de análise estrutural, chega-se a ordenar todas as
variantes conhecidas de um mito em uma série, formando uma espécie de grupo de
permutações, onde as variantes situadas em ambas as extremidades da série oferecem, uma
em relação a outra, uma estrutura simétrica, mas inversa”35. Lévi-Strauss chega assim a uma
correlação geral que afirma: a superestimação do parentesco consangüíneo está para a
subestimação deste da mesma forma que o esforço para escapar à autoctonia está para a
impossibilidade de conseguí-lo. Isto nos permite seguir a idéia de que: “a explicação
estruturalista parece remeter sempre à constituição de totalidades, que revelam relações
complexas, e que reduzem a simples aparência à dispersão dos elementos, ou à simplicidade
inicial de suas relações”36.
De fato, algo desta redução da multiplicidade a determinações estruturais gerais é a
chave de compreensão de um projeto como As palavras e as coisas com suas análises de
epistemes. Não é por outra razão que esse texto começa com a descrição, fornecida por Jorge
Luis Borges, a respeito de uma certa enciclopédia chinesa na qual está escrito que: "os
animais dividem-se em : a) pertencentes ao Imperador, b) embalsamados, c) enjaulados, d)
leitões, e) sereias, f) fabulosos, g) cães em liberdade, j) incluídos na presente classificação, i)
que se agitam como loucos, j) inumeráveis, k) desenhados com um pincel muito fino de pêlo
de camelo, l) etc., m) que acabam de quebrar o bebedouro, n) que, de longe, parecem
moscas".
A descrição de Borges permite a Foucault iniciar uma longa digressão a respeito de
qual é o dispositivo realmente constitutivo das operações de conhecimento. Um ponto da
descrição de Borges logo chama a atenção de Foucault. O caráter fantástico da ordenação
não está no acréscimo de seres monstruosos. Mesmo se encontramos lá sereias, por exemplo,
é forçoso reconhecer que: "Borges não acrescenta nenhuma figura ao atlas do impossível".
Dado importante por lembrar que a verdadeira operação feita por Borges é uma certa
subtração do lugar no qual estes seres poderiam encontrar-se, ou seja, o quadro que permite
ao pensamento ordenar os seres. O que transgride a imaginação é simplesmente a série
alfabética que liga categorias incompatíveis. Esta destruição do lugar de ordenamento dos
seres, da sintaxe de classificação que permite o estabelecimento seguro de operações de
identidade e diferença, através da profusão de "erros de categorias" permite a Foucault
introduzir a questão arqueológica maior. Esta questão poderia ser enunciada da seguinte
forma: "como se constitui o espaço de ordenamento dos seres?". Pois, se Foucault estiver
certo, e se o riso provocado por Borges :"é sem dúvida aparentado ao profundo mal-estar
destes cuja linguagem está arruinada: ter perdido o comum do lugar e do nome", ruína que
aparece de maneira privilegiada nesta categoria “incluídos na presente classificação” que visa
desarticular as distinções entre caso e estrutura, então o verdadeiro esforço de compreensão

35
idem, 258
36
FAUSTO, Dialética marxista, dialética hegeliana, p. 142
deve nos levar ao ser bruto da ordem, esta região mediana que entrega a ordem em seu ser
próprio.
Já é possível aqui intuir o peso de um raciocínio estruturalista guiando tal questão
arqueológica. Da mesma forma como o estruturalismo procurava definir este conjunto de
regras e sistemas que organizavam, de maneira transcendental, o campo possível de
experiências possíveis, Foucault procura demonstrar como os saberes positivos de uma época
configuram-se a partir de uma matriz comum de racionalidade, ou seja, de definição das
ordens com suas relações de diferença e de identidade. Notemos, inclusive, como a noção
foucaultiana de "ordem" é eminentemente estruturalista:

A ordem, é ao mesmo tempo o que se oferece nas coisas como sua lei interior, a rede
secreta segundo a qual elas, de uma certa forma, se olham entre si e que só existe
através da grelha de um olhar, de uma atenção, de uma linguagem; e é apenas nas
casas brancas deste esquadrinhamento que ela manifesta-se como algo que já está lá,
esperando em silêncio o momento de ser enunciada"37.

37
FOUCAULT, Les mots et les choses, p. 11
Jacques Derrida
Aula 3

Na aula passada, vimos alguns traços gerais do pensamento estruturalista.


Programa interdisciplinar de pesquisa que partiu da tentativa de redefinir por completo o
padrão de racionalidade das ciências humanas, o estruturalismo procurava realizar tal
programa através da defesa da lingüística como “ciência ideal”. Lembremos mais uma
vez, por exemplo, do tom ditirâmbico que animava a afirmação de Lévi-Strauss :

No conjunto das ciências sociais ao qual pertence indiscutivelmente, a lingüística


ocupa, entretanto, um lugar excepcional; ela não é uma ciência social como as
outras, mas a que, de há muito, realizou os maiores progressos: a única, sem
dúvida, que pode reivindicar o nome de ciência e que chegou, ao mesmo tempo,
a formular um método positivo e a conhecer a natureza dos fatos submetidos à sua
análise1.

Este primado da lingüística implicava em um duplo efeito. Primeiro, como vemos na


afirmação de Lévi-Strauss, tratava-se de uma questão de método. A lingüística estrutural
inspirada por Saussure havia realizado um amplo processo de formalização de seu objeto,
o fato lingüístico, através da compreensão da linguagem como sistema diferencial-
opositivo de unidades elementares (fonemas). Não se tratava de uma matematização no
sentido próprio àquela implementada no campo das ciências físicas, ou seja, redução dos
objetos a uma unidade comum de medida que permite a implementação de processos de
quantificação e comparação. Tratava-se de uma formalização estrutural, ou seja,
sistematização de “elementos que se especificam reciprocamente em relações” 2 e que não
tem nenhuma realidade intrínseca para além deste campo de relações.
Tal formalização visava compreender a organização da língua como um sistema
fechado (Saussure falará da língua como sistema arbitrário de signos), que responderá
pelo processo de produção de significações. Isto significava dizer que a significação não
era o resultado da confrontação entre palavra e coisa, mas de uma articulação posicional-
opositiva dos signos entre si, como em um sistema fechado. É da noção saussureana de
“sistema” que nascerá o conceito de “estrutura”: “ A língua é um sistema do qual todas
as partes podem e devem ser consideradas em sua solidariedade sincrônica”3.
Por outro lado, a estrutura não é dada de maneira imanente no campo fenomenal.
Ao contrário, ela determina de maneira transcendente este campo e seus atores, que agem
de maneira inconsciente. Ao falar, os sujeito não têm consciência da estrutura fonemática
que determina seus usos da língua, da mesma maneira que, ao operar escolhas
matrimoniais, os sujeitos não têm consciência dos sistemas de parentesco que determinam
tais escolhas. Este caráter inconsciente da estrutura será um dado fundamental para a
objetividade do pensamento estruturalista, assim como para o seu anti-humanismo. Para
um pensamento estruturalista estrito os sujeito não falam, eles são falados pela linguagem.
De onde se segue a afirmação clássica de Lévi-Strauss: “Não pretendemos mostrar como

1
LÉVI-STRAUSS, Antropologia estrutural, Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, p. 45. Ou ainda, como nos
diz Granger : “A tentativa de transformar o acontecimento vivido em objeto abstrato, essencialmente
definido por suas correlações a outros objetos em um sistema formal, parece ter sido levada ao extremo
pela lingüística estrutural e apresenta-se como uma verdadeira provocação aos olhos dos hábitos do
conhecimento científico” (GRANGER, Pensée formelle et sciences de l´homme, p. 74)
2
DELEUZE, Em que se pode reconhecer o estruturalismo?, p. 280
3
SAUSSURE, idem, p. 102
os homens pensam nos mitos, mas como os mitos se pensam nos homens, e à sua revelia.
E. como sugerimos, talvez convenha ir ainda mais longe, abstraindo todo sujeito para
considerar que, de um certo modo, os mitos se pensam entre si” 4. Daí a afirmação de que
o verdadeiro objeto das ciências humanas não era o homem, mas as estruturas que o
determinam. Michel Foucault compreendeu isto claramente ao afirmar que: “Há ciências
humanas não em todo lugar onde é questão do homem, mas em todo lugar onde
analisamos, na dimensão própria do inconsciente, as normas, regras, conjuntos
significantes que desvelam à consciência as condições de suas formas e de suas
condutas”5.
Uma terceira característica do estruturalismo, além de seu método de formalização
estrutural a partir da determinação de sistemas onde todos os elementos têm uma profunda
relação de solidariedade entre si e da defesa da natureza inconsciente das regras de
ordenamento do sistema social, era o caráter transcendental de seu encaminhamento.
Lembremos de como Saussure determinava, como tarefa geral da lingüística nascente,
estabelecer leis gerais, permanentes, universais e incondicionadas que determinariam os
fatos lingüísticos. Pois se tratava, na verdade, de determinar as condições a priori para a
existência de fatos lingüísticos. Um questionamento transcendental a respeito da
linguagem como elemento de estruturação do pensamento se insinuava aqui. Tal
questionamento deveria dar conta, entre outras coisas, da maneira com que a linguagem
estrutura o pensável e como ela se relaciona com a referência do pensamento.
A natureza desse processo de estruturação estava claramente enunciada na
afirmação de que “A função simbólica antecede o dado” 6. Ou seja, ela não se conforma
aos dados naturais, ao contrário, ela estabelece previamente o campo possível de
experiências no interior do qual a própria noção de dado se disponibilizará. Daí porque
alguém como Lévi-Strauss poderá afirmar: “os símbolos são mais reais do que aquilo que
simbolizam”7. Notamos assim que a anterioridade da estrutura em relação ao dado é uma
anterioridade que indica uma força formadora, força formadora que pode ser esclarecida
se compreendermos a natureza transcendental da estrutura na sua função de determinar
previamente a configuração do campo de experiências possíveis.
No entanto, esta articulação entre a transcendentalidade e a posição da estrutura
como inconsciente, entre inconsciente e transcendental, acabava por criar aquilo que um
dia Paul Ricoeur chamou de “kantismo sem sujeito transcendental”. Programa cujas
conseqüências forma claramente expostas por Gilles-Gaston Granger através desta
afirmação que vale a pena retomar.

Seria inexato caracterizar este encaminhamento preliminar como simples


abstração. A estrutura lingüística aqui visada não é apenas um abstrato em relação
ao fato da linguagem; ela é aquilo que, na ausência de termo melhor, chamaremos
com Husserl de essência, ou seja, um esboço transcendental de objeto, para além
de toda ontologia. Transcendental aqui não conserva nenhuma significação
propriamente idealista, na medida em que não se trata de exposição de uma
condição imutável de conhecimento de objeto fundada na natureza de um eu
abstrato (...) A palavra transcendental justifica-se precisamente porque o esboço
não se reduz a um empobrecimento do vivido por abstração. Não importa qual
seja seu estatuto genérico, o esboço constitui o guia de um conhecimento

4
LÉVI-STRAUSS, o cru e o cozido, p. 31
5
FOUCAULT, Les mots et les choses, Paris : Seuil, 1966, p. 376
6
MERLEAU-PONTY, signos, p. 133
7
LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss, p. 29
conceitual possibilitando as contribuições de uma experiência controlada e o
desenvolvimento de uma combinatória.8

Para além do estruturalismo

Devemos levar em conta tais características do estruturalismo se quisermos


compreender as críticas de Derrida. De fato, a posição de Derrida é peculiar no interior
do cenário intelectual francês. Sem deixar de reconhecer, no estruturalismo, “uma
aventura do olhar, uma conversão na maneira de questionar todo objeto” 9 da mais alta
importância, Derrida nunca chegou a assumir para si o programa estruturalista, como
fizeram Michel Foucault, Jacques Lacan e, em menor grau, Gilles Deleuze. Sua postura
sempre foi marcada pela análise crítica que podemos encontrar, principalmente, em dois
textos de A escritura e a diferença: “Força e significação” e “A estrutura, o signo e o jogo
no discurso das ciências humanas” e em Da gramatologia. De fato, muito contribuiu para
isto a formação inicial de Derrida no campo da fenomenologia. Em 1954, ele defende
uma dissertação para a obtenção de um diploma de estudos superiores cujo título era: “O
problema da gênese na filosofia de Husserl”. Tal trabalho só será publicado em 1990.
No entanto, Derrida não fará algo como uma crítica ao estruturalismo a partir da
fenomenologia ou de temas maiores da fenomenologia francesa de então, como o vínculo
entre sujeito e intenção significativa, o que traz, por conseqüência, a irredutibilidade do
problema lingüístico da expressão. Lembremos, a este respeito, da maneira como
Merleau-Ponty afirmava que: “Do ponto de vista fenomenológico, ou seja, para o sujeito
falante que utiliza sua língua com um meio de comunicação com uma comunidade viva,
a língua reencontra a sua unidade: já não é o resultado de um passado caótico de fatos
lingüísticos independentes, e sim um sistema cujos elementos concorrem todos para um
esforço de expressão único voltado para o presente ou para o futuro, e assim governado
por uma lógica atual”10.
Na verdade, como dissera na primeira aula, a crítica de Derrida será, ao mesmo
tempo contra o estruturalismo e contra a fenomenologia. Gostaria, na aula de hoje,
mostrar como se dá a vertente da crítica ao estruturalismo. O primeiro aspecto desta crítica
está claramente enunciado na seguinte afirmação:

A estrutura, ou melhor, a estruturalidade da estrutura, mesmo que estivesse sempre


presente, encontrou-se sempre neutralizada, reduzida por um gesto que consistia
em dar-lhe um centro, a reportá-la a um ponto de presença, a uma origem fixa.
Este centro não tinha por função apenas orientar e equilibrar, organizar a estrutura
– de fato, não é possível pensar uma estrutura desorganizada – mas, sobretudo,
fazer com que o princípio de organização da estrutura limitasse o que poderíamos
chamar de jogo da estrutura11.

Analisemos detalhadamente esta afirmação. Primeiro, o que pode significar


exatamente o “centro” de uma estrutura? Grosso modo, podemos falar que se trata de
definir a natureza do elemento capaz de fundamentar a estrutura, de ser sua condição de
produção de sentido. Diz Derrida: este fundamento (que o filósofo chegará a chamar de
“significado transcendental” por aparecer como garantia da inteligibilidade do discurso)
visa assegurar as operações de sentido no interior da estrutura, mas ele mesmo não pode

8
GRANGER, Pensée formelle et sciences de l´homme, p. 76
9
DERRIDA, L´écriture et la différence, Paris: Seuil, 1967, p. 9
10
MERLEAU-PONTY, Signos, São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 91
11
DERRIDA, ibidem, p. 409
estar sob as condições daquilo que ele deveria fundar. Por isto, seu estatuto é paradoxal.
Pois a regra tem uma posição absolutamente peculiar no interior da estrutura. De um lado,
ela é aquilo que articula a estrutura. Mas, por outro, ela é exatamente aquilo que não pode
ser articulado no interior da mesma. Até porque, a condição de existência de elementos
do tipo X não pode ser ela também um elemento do tipo X. A regra pede então um lugar-
Outro no qual ela poderia ser apresentada em sua fundamentação. Se não fôssemos
estruturalistas, diríamos que o fundamento para um sistema determinado de signos
poderia ser ou uma metaestrutura (como se houvesse uma estrutura estruturante e uma
estrutura estruturada) ou uma designação ostensiva de uma referência naturalizada. Mas
o problema da metaestrutura nos levaria a uma certa regressão ao infinito. A saída pela
designação ostensiva não parece suportar as críticas feitas por Quine a respeito da
indeterminação da referência.
Como o estruturalismo procura resolver este problema? Tomemos Lévi-Strauss
como exemplo a partir de uma discussão importante referente ao sentido do que
antropólogos encontraram em certas tribos sob o nome de mana, manitou, hau, orenda,
entre outros. Grosso modo, podemos dizer que mana é uma noção que encontramos na
Melanésia e que “escapa da categoria rígida de nossa linguagem e de nossa razão” 12. Ela
visa designar uma quantidade de idéias que poderíamos designar por: poder de feiticeiro,
qualidade mágica de uma coisa, magia, ser mágico, ter poder mágico, estar encantado,
agir magicamente. Esta confusão do agente, do rito e das coisas é fundamental em magia.
No interior do pensamento mágico, o mana é o que produz o valor das coisas e das
pessoas, valor mágico, religioso e mesmo social. Mauss afirma que ele é a força por
excelência, a verdadeira eficácia das coisas.
Ao discutir a natureza deste processo de determinação de valor que permite a
constituição de sistemas de trocas, Lévi-Strauss desenvolve uma importante teoria a
respeito de uma classe particular de significantes da qual mana faria parte. Tal teoria, não
por acaso refere-se à origem da linguagem e da estrutura:

Quaisquer que tenham sido o momento e as circunstâncias de seu aparecimento


na escala da vida animal, a linguagem só pôde nascer repentinamente. As coisas
não puderam passar a significar de forma progressiva. Em conseqüência de uma
transformação cujo estudo não compete às ciências sociais, mas à biologia e à
psicologia, uma passagem efetuou-se, de um estágio em que nada tinha um sentido
a um outro em que tudo o possuía. Ora, essa observação, aparentemente banal, é
importante, porque essa mudança radical não tem contrapartida no domínio do
conhecimento, que se elabora lenta e progressivamente. Dito de outro modo, no
momento em que o Universo interior, de uma só vez, tornou-se significativo, nem
por isso ele foi melhor conhecido, mesmo sendo verdade que o aparecimento da
linguagem haveria de precipitar o ritmo do desenvolvimento do conhecimento.
(...) É que as duas categorias do significante e do significado se constituíram
simultânea e solidariamente, como dois blocos complementares; mas que o
conhecimento, isto é, o processo intelectual que permite identificar uns em relação
aos outros, alguns aspectos do significante e alguns aspectos do significado (...)
só se pôs a caminho muito lentamente (...) o homem dispõe desde sua origem de
uma integralidade de significante que lhe é muito difícil alocar a um significado,
dado como tal sem ser no entanto conhecido 13.

12
MAUSS, Sociologia e filosofia,. p. 142
13
LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss In: MAUSS, Sociologia e antropologia, São
Paulo: Cosac e Naif, 2006, p. 42
Este é um trecho que revela questões maiores do pensamento de Lévi-Strauss. Não
é difícil notar como a questão da origem trabalha toda esta reflexão, isto em um
pensamento, como o estruturalista, que teria, a princípio, livrado-se de questões sobre a
origem e a proveniência como fundamento. No entanto, a maneira que Lévi-Strauss
conjuga o problema da origem é peculiar. Ele diz: a origem é marcada por um excesso de
significante, por uma superabundância em relação às possibilidades de significado, o que
encontramos na origem é uma experiência radical de inadequação. Há assim, em todo
sistema simbólico, significantes flutuantes (como os significantes do tipo mana, aos quais
se acrescenta os nossos trem, troço, coisa) que apenas formalizam a inadequação entre
significante e significado. Por isto, eles são “símbolos em estado puro”, suscetíveis de
assumir qualquer conteúdo simbólico, “valor simbólico zero”, ou ainda “valor
indeterminado de significação, em si mesmo vazio de sentido e portanto suscetível de
receber qualquer sentido, cuja única função é preencher uma distância entre o significante
e o significado”14.
Esse elemento paradoxal, que está ao mesmo tempo dentro e fora do sistema
simbólico é o que, à sua maneira, forneceria um centro para a estrutura, estabilizando sua
produção de sentido através de uma inscrição, no interior do próprio sistema, de uma
inadequação interna ao sistema15. Mesmo através desta astúcia que parece transformar o
fundamento em um suplemento sem significação positiva, Derrida insistirá que o
problema do fundamento da estrutura arrisca-se a continuar sendo, no fundo, uma versão
do problema da origem. Um problema que, por sua vez, deve ser compreendido como
relevante apenas a partir da determinação do ser como presença (mesmo que esta presença
apareça como a inscrição de uma ausência, o importância é que a ausência pode ser
localizada, inscrita, controlada). Por isto, Derrida precisa dizer: “Poderíamos mostrar que
todos os nomes do fundamento, do princípio ou do centro sempre designaram a invariante
de uma presença (eidos, arché, telos, energeia, ousia (essência, existência, substância,
sujeito) aletheia, transcendentalidade, consciência, homem, Deus, etc.)” 16.
Como vemos, a lista é grande e heteróclita. Já encontramos aqui um dispositivo
importante de relação entre o pensamento de Derrida e a história da filosofia. Trata-se de
procurar uma espécie de solo comum pretensamente pressuposto por posições distintas
no interior da história da filosofia, embora sempre possamos nos perguntar se afinal este
solo existe, se ele é realmente uma chave profícua de análise da dispersão da
discursividade filosófica, se realmente precisamos de uma chave-geral para pensar a
história da filosofia.
No entanto, Derrida é suficientemente astuto para procurar recompor a noção
mesma de “chave-geral”. Daí a necessidade de repensar a relação entre história da
metafísica e destruição da história da metafísica afirmando:

não há sentido algum em abandonar os conceitos da metafísica para abalar a


metafísica; nós não dispomos de linguagem alguma – de sintaxe e léxico algum –
que seja estrangeiro a esta história; não podemos enunciar proposição destrutiva

14
Idem, p. 39
15
Outros, como Jacques Lacan, utilizaram esta mesma noção de um elemento paradoxal para descrever o
seria o fundamento da estrutura significante. No caso de Lacan, este elemento recebe o nome de Falo,
enquanto “significante destinado a designar no seu conjunto os efeitos de significado” (LACAN, Ecrits,
Paris: Seuil, 1966, p. 690). Deleuze também insistirá neste elemento paradoxal (a seu ver, presente tanto
em Lacan quanto em Lévi-Strauss, afirmando que ele: “assegura a convergência de duas séries que ele
percorre, mas à condição precisamente de fazê-las divergir incessantemente” (DELEUZE, Logique du
sens, Paris: Minuit, 1969, p. 55)
16
DERRIDA, ibidem, p. 411
alguma que não tenha já se deslizado na forma, na lógica e nos postulados
implícitos disto mesmo que queremos contestar 17.

Por isto, a posição “tática” da perspectiva de Derrida bem descrito da seguinte


forma:

Nosso discurso pertence irredutivelmente ao sistema de oposições metafísicas. Só


podemos anunciar a ruptura deste pertencimento através de uma certa
organização, uma certa organização estratégica que, no interior do campo e de
seus poderes próprios, viram contra ele seus próprios estratagemas, produzem uma
força de deslocamento propagando-se através de todo o sistema, provocando
fissuras em todos os sentidos e de-limitando-os de cima abaixo18.

Ou seja, trata-se de forçar os conceitos e operações que serão criticados a exporem


este momento no qual eles estão prestes a dizer o contrário do que deveriam dizer. É este
tipo de leitura que Derrida irá impor aos textos de Lévi-Strauss.

O lugar privilegiado da etnologia

Derrida começa lembrando que a etnologia ocupa um lugar privilegiado no campo


das ciências humanas, pois ela é uma ciência que nasce a partir de um descentramento.
“Podemos dizer em toda segurança que não há nada de fortuito no fato da crítica do
etnocentrismo, condição para a etnologia, ser sistemáticamente e historicamente
contemporânea da destruição da história da metafísica. Todas as duas pertencem a uma
mesma época”19. Mesmo partilhando um discurso e uma conceitografia forjada no interior
de tradições etnocêntricas, a etnologia procura, estrategicamente, estabelecer uma relação
crítica à história da metafísica e aos conceitos dela herdados. A esta relação crítica,
Derrida chama “desconstrução”.
Um exemplo fornecido pelo filósofo francês é a distinção natureza/cultura, tal
como aparece desde “As estruturas elementares de parentesco”, de Lévi-Strauss.
Distinção que acompanha a filosofia ocidental, diz Derrida, desde antes de Platão. Como
tal distinção aparece em Lévi-Strauss?
Primeiro, encontramos uma definição tradicional que vê a natureza como o que é
universal e necessário, enquanto a cultura seria um sistema de normas e regras que podem
variar de contexto a outro. A cultura é a esfera da contingência. No entanto, Lévi-Strauss
lembra como esta definição parece encontrar um problema ao confrontar-se com a lei do
incesto. Questão delicada, já que a lei do incesto marca exatamente a passagem, no ser
humano, da natureza à cultura. Na realidade: “A proibição do incesto é o processo pelo
qual a natureza se ultrapassa a si mesma (...) [Tal proibição] realiza, e constitui por si
mesma, o advento de uma nova ordem” 20. É por tal razão que ela possui, ao mesmo tempo,
o caráter coercitivo das leis e das instituições (ela é uma regra) e tem o caráter universal
das tendências e dos instintos. No fundo, tal proibição marca a passagem do fato natural
da consaguinidade ao fato cultural da aliança. Submetendo-se ao tabu do incesto, o
homem insere-se, de uma vez por todas, em um sistema de trocas, ou ainda, em um
sistema de comunicação onde as mulheres são tratadas da mesma forma que sinais
lingüísticos. Assim, desde a instauração da proibição do incesto, a conduta humana é

17
Idem, p. 412
18
Idem, p. 34
19
Idem, p. 414
20
idém, pag. 63
coordenada por um sistema cultural de regras que forma uma estrutura capaz de ser
analisada a partir da utilização do mesmo paradigma que serve ao estudo da linguagem.
Desta forma, a ordem das descobertas empíricas é mobilizada para, ao mesmo
tempo, conservar e denunciar os limites de conceitos herdados da tradição metafísica.
“Enquanto esperamos, explora-se a eficácia relativa [destes conceitos] utilizando-os para
destruir a antiga máquina à qual eles pertencem e a respeito da qual eles são peças. É
assim que se critica a linguagem das ciências humanas”21. Como se fosse possível separar
questão de método (ou questão de validade) e questão de verdade.
Tal perspectiva leva o discurso etnográfico a aproximar-se daquilo que o próprio
Lévi-Strauss chamou de bricolage. Em algumas páginas célebres de O pensamento
selvagem, Lévi-Strauss abandona a antiga categoria do pensamento primitivo (ou
pensamento mágico) a fim de expor, em novo patamar, a distinção entre a razão ocidental
e seu outro histórico-geográfico, o pensamento moderno e estas formas de pensar na qual
a modernidade teima em não se reconhecer. Normalmente, define-se o “pensamento
primitivo” a partir de duas características maiores: um modo de pensar projetivo animado
pelo medo e pela ignorância, assim como a incapacidade de operar com simbolizações e
abstrações. A primeira característica mostra o pensamento primitivo (o fetichismo aqui é
um ótimo exemplo) como modo elementar de defesa contra um afeto: o medo diante do
caráter imprevisível dos fenômenos naturais. Projetar qualidades humanas em objetos
naturais aparece como móbile de um pensamento assombrado pelo medo, pensamento
que ainda não se tornou “senhor da natureza” através do desvelamento da estrutura causal
dos fenômenos.
Por outro lado, “o progresso natural das idéias humanas” seria resultado de um
movimento de abstração que consistiria em: passar dos objetos sensíveis aos
conhecimentos abstratos. As sociedades primitivas seriam estranhas a formas de
pensamento que se abstraem das determinações sensíveis imediatas a fim de construir
conceitos e símbolos genéricos. Ou seja, elas desconheceriam o pensamento conceitual,
tomando por atributo imediato da coisa particular o que é próprio de sua espécie, gênero,
ou da estrutural causal da qual ela faz parte.
Lévi-Strauss rompe com esta tradição a fim de mostrar de que o “pensamento
primitivo” implica operações intelectuais e métodos de observação comparáveis àqueles
próprios a nosso conhecimento científico. Ele passa então à descrição destas extensas
taxionomias zoológicas e botânicas encontradas nos EUA e Canadá onde os elementos
são distinguidos pela sua eficácia e causalidade. Maneira de evidenciar a força de
abstração própria ao chamado pensamento primitivo. E aqui, diz Lévi-Strauss: “Ao invés
de opor magia e ciência, valeria mais a pena colocá-las em paralelo, como modos de
conhecimento, desiguais quanto aos resultados teóricos e práticos (...), mas não quanto ao
gênero de operações mentais que supõem e que diferem menos pela natureza do que em
função dos tipos de fenômeno aos quais eles se aplicam” 22. Isto permite ao antropólogo
dizer que o dito pensamento primitivo é, na verdade, uma “ciência do concreto” que em
muito se assemelha à ação de um bricoleur. Por isto: “o que é próprio ao pensamento
mítico é exprimir-se através de um repertório cuja composição é heteróclita e que, ainda
que extenso, continua limitado; no entanto, faz-se necessário que o pensamento o utilize,
não importa qual tarefa ele precise realizar, pois o pensamento não tem mais nada à mão.
Ele aparece assim como uma espécie de bricolagem intelectual” 23. Por isto, o bricoleur
fica sempre entre o percepto e o conceito. Ele fica preso ao universo do signo, sem aceder
completamente ao conceito. Daí a idéia lévi-straussiana de contrapor o bricoleur ao

21
Idem, p. 417
22
LÉVI-STRAUSS, La pensée sauvage, Paris: Plon, 1962, p. 26
23
Idem, p. 30
engenheiro. Figura metafórica deste que operaria com a capacidade global de
reorganização e de instauração própria ao conceito. Como se ele fosse capaz de
reconstruir a totalidade de sua linguagem, sintaxe e léxico através de um corte
epistemológico.
No entanto, dirá Derrida: “o engenheiro é um mito: um sujeito que seria a origem
absoluta de seu próprio discurso e o construiria ´peça por peça´ seria o criador do verbo,
o próprio verbo”24. O engenheiro seria o mito produzido pelo bricoleur. Derrida não se
contenta em denunciar a divisão, mas quer afirmar que o próprio discurso etnológico de
Lévi-Strauss opera por bricolagens. O uso da distinção natureza/cultura seria aqui um
exemplo privilegiado. Este uso seria apenas um exemplo de um problema mais geral
referente ao estatuto da estrutura interpretativa da etnologia. Não seria ela um mito que
se acrescenta à série infinita de transformações e reconstruções dos mitos entre si? Não
seria ela uma maneira dos mitos “pensarem entre si”, como vimos na aula passada?
É o próprio Lévi-Strauss que levanta tais questões. Para Derrida, trata-se de
indicar estes momentos decisivos nos quais as próprias dicotomias sintetizadas pelo seu
pensamento parecem a ponto de desmoronar. Neste sentido: “o que parece mais sedutor
nessa procura crítica de um novo estatuto do discurso é o abandono declarado de toda
referência a um centro, a um sujeito, a uma referência privilegiada, a uma origem ou a
uma arché absoluta”25.
No entanto, este pensamento bricoleur ao qual Derrida parece querer reduzir o
antropólogo não seria, por sua vez, uma forma de bloquear totalizações necessárias para
todo saber? Maneira de entificar um certo empirismo que se contentaria em descrever
fatos e registrar modificações sem nunca chegar a uma visão sistemática de conjunto.
Aqui, entra em cena o problema do recurso à totalidade. Problema ainda mais interessante
se lembrarmos da função manifesta da noção de “sistema fechado” no estruturalismo.
Neste ponto, Derrida afirmar existir duas maneiras de compreender o que pode ser
um sistema. Podemos imaginar que o sistema determina previamente o sentido de todos
os acontecimentos. Neste caso, teremos uma: “totalidade abandonada por suas forças,
mesmo se ela é totalidade da forma e do sentido, pois se trata então do sentido repensado
na forma, e a estrutura é unidade formal da forma e do sentido”26. Mas podemos
compreendê-lo também sob a forma de um jogo que permite substituições infinitas entre
elementos finitos. Trata-se aqui, no entanto, de um jogo peculiar. Não algo como um jogo
de xadrez com suas regras regulativas (metáfora maior para a compreensão da linguagem
em Saussure). Mas de um jogo que problematiza, que traz para dentro de seu sistema, o
problema da relação entre o que é interno ao jogo e o que lhe é externo (como, por
exemplo, a história).
A metáfora do jogo é sempre uma metáfora da instauração que neutraliza o tempo
e a história. Para que um jogo funcione bem, não devemos nos perguntar o que existia
antes do jogo. Por isto, diz de maneira perspicaz Derrida, Lévi-Strauss: “como Rousseau,
deve sempre pensar a origem de uma estrutura nova a partir do modelo da catástrofe –
desordenamento da natureza na natureza, interrupção natural do encadeamento natural,
separação da natureza”27. Essa ausência da história é, segundo Derrida, compensada no
pensamento estrutural por uma nostalgia da origem, da pura presença e da imediaticidade
rompida (Derrida dedicará páginas fundamentais ao problema da origem e das sociedades
sem história em Lévi-Strauss).

24
DERRIDA, ibidem, p. 418
25
Idem, p. 419
26
Idem, p. 13
27
Idem, p. 426
No entanto, seria possível pensar algo como uma história sem origem, isto em
uma chave muito próxima da noção nietzscheana de devir. História que afirmaria “a
indeterminação genética, a aventura seminal do traço”. Neste ponto, Derrida não está
longe do Foucault de “Nietzsche, a origem e a história” (1971). Ou seja, há um momento
no pensamento francês onde a noção nietzscheana de devir aparece como horizonte de
orientação para a discussão das relações entre pensamento e história. Mas o que nos
ensinaria Nietzsche a este respeito? Que: “procurar a origem é tentar encontrar ´o que já
estava lá´, o ´isto mesmo´ de uma imagem exatamente adequada a si (...) “ Mas o que
aprendemos? “Que atrás das coisas, há ´algo totalmente outro´; não seu segredo essencial,
sem data, mas o segredo que elas são sem essência, ou que sua essência foi construída
peça por peça a partir de figuras que lhes eram estrangeiras”28.
Uma das estratégias de Derrida, que veremos mais claramente quando
comentarmos Da gramatologia, consiste em dizer que estes significantes flutuantes que
Lévi-Strauss apresentou ao comentar as noções de mana, hau, manitou etc., significantes
que vinham suplementar uma inadequação radical entre significante e significado,
poderiam nos abrir a uma outra forma de compreender o que está no lugar do fundamento.
Eu havia dito que, mesmo através desta astúcia que parece transformar o fundamento em
um suplemento sem significação positiva, Derrida insistirá que o problema do
fundamento da estrutura arrisca-se a continuar sendo, no fundo, uma versão do problema
da origem. No entanto, devemos entender como Derrida irá procurar isolar este
fundamento, pensá-lo como suplemento (criticando inclusive alguns usos do mesmo,
como a noção lacaniana de “Falo”). Mas para tanto, será necessário afirmar que:

Há pois duas interpretações da interpretação, da estrutura, do signo e do jogo. Uma


procura decifrar, sonha decifrar uma origem que escapa ao jogo e à ordem do
signo, e vive a necessidade de interpretação como um exílio [trata-se de perguntar
: o que há fora do jogo?]. A outra, que não está mais voltada à origem, afirma o
jogo e tenta passar para além do homem e do humanismo, o nome do homem
sendo o nome deste ser que, através da história da metafísica ou da onto-teologia,
sonhou a presença plena, o fundamento assegurador, a origem e o fim do jogo29.

Ou seja, a primeira vê o “jogo de linguagem” como aquilo que, ou oblitera uma


exterioridade na qual se leria a verdadeira matriz do sentido, ou sente esta imediaticidade
como possibilidade perdida (e já o termo “perdido”, neste contexto, diz e pressupõe muito
mais do que gostaria). A outra insistiria na irredutibilidade arbitrária do jogo, na
impossibilidade de fazer apelo a uma referência exterior que poderia fundamentar o jogo,
impossibilidade vinculada (e ainda não sabemos nada sobre a razão desse vínculo, o que
podemos fazer com ele) à presença do homem. Essas duas vias fariam parte do projeto
estruturalista. Liberar uma via da outra é um exercício que Derrida procurará fazer, mas
através de uma perspectiva que lhe colocará para além do estruturalismo e que o levará,
durante um certo momento, a acreditar na possibilidade de constituir um outro campo de
pesquisas, chamado de “gramatologia”.

28
FOUCAULT, Dits et écrits I, Paris: Gallimard (Quarto), p. 1006
29
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 427
Jacques Derrida
Aula 4

Na aula de hoje, começaremos com o módulo dedicado às relações entre Jacques Derrida
e a fenomenologia de Husserl. Relação fundamental, já que foi a partir dela que se
constituiu a experiência intelectual do filósofo francês. Se acrescentarmos as relações de
Derrida com o pensamento heideggeriano, teremos um quadro extenso de debate entre a
desconstrução e a fenomenologia alemã. No caso da relação entre Derrida e Husserl, os
textos principais são: a dissertação de mestrado de 1954, defendida sob a orientação de
Maurice de Gandillac e intitulada O problema da gênese na filosofia de Husserl, a longa
introdução e tradução do texto husserliano A origem da geometria, de 1962 e,
principalmente, o livro A voz e o fenômeno: introdução ao problema do signo na
fenomenologia de Husserl, de 1966. Há ainda um importante texto em Escritura e
diferença, intitulado “’Gênese e estrutura’ e a fenomenologia”.
Depois desta primeira fase de confrontação com a fenomenologia, Derrida
escreverá, principalmente na década de setenta e oitenta, textos importantes sobre
Heidegger como, por exemplo, Heidegger e a questão, de 1987 e os textos de Margens
da filosofia dedicados a Heidegger ou escritos a partir de problemas suscitados pelo texto
heideggeriano (como “Ousia e gramme: nota sobre uma nota de Sein und Zeit” e “Os fins
do homem”).
Antes de iniciar a análise da leitura derridiana de Husserl, vale a pena procurar
contextualizar o sentido da abordagem peculiar que Derrida impõe ao projeto
fenomenológico. Notemos, inicialmente, que a leitura de Derrida parece relativamente
distante daquela que podemos encontrar na fenomenologia francesa de então. Por
exemplo, não encontramos em Derrida algo como uma crítica ao estruturalismo (corrente
intelectual dominante na França dos anos cinqüenta e sessenta) a partir de temas maiores
da fenomenologia francesa de então, como o vínculo entre sujeito e intenção significativa,
o que traz, por conseqüência, a irredutibilidade do problema lingüístico da expressão.
Lembremos, a este respeito, da maneira como Merleau-Ponty afirmava que: “Do ponto
de vista fenomenológico, ou seja, para o sujeito falante que utiliza sua língua como um
meio de comunicação com uma comunidade viva, a língua reencontra a sua unidade: já
não é o resultado de um passado caótico de fatos lingüísticos independentes, e sim um
sistema cujos elementos concorrem todos para um esforço de expressão único voltado
para o presente ou para o futuro, e assim governado por uma lógica atual” 1.
Na verdade, como dissera na primeira aula, a crítica de Derrida será, ao mesmo
tempo contra o estruturalismo e contra a fenomenologia. Esta crítica dupla será animada
pelo reconhecimento da importância das questões ligadas à fundamentação da
objetividade, presentes tanto em Husserl quanto no estruturalismo. No entanto, Derrida
age como quem está interessado, principalmente, no que há de impensado em tal
fundamentação, no que, no interior mesmo do processo de fundamentação, parece
exceder as promessas de segurança ontológica no agir e no julgar enunciadas pelo
fundamento. Vimos, na aula passada, como Derrida procurava tematizar tal impensado
no interior do estruturalismo. Retomemos rapidamente tal discussão a partir da afirmação
de Derrida:

A estrutura, ou melhor, a estruturalidade da estrutura, mesmo que estivesse sempre


presente, encontrou-se sempre neutralizada, reduzida por um gesto que consistia

1
MERLEAU-PONTY, Signos, São Paulo: Martins Fontes, 1991, p. 91
em dar-lhe um centro, a reportá-la a um ponto de presença, a uma origem fixa.
Este centro não tinha por função apenas orientar e equilibrar, organizar a estrutura
– de fato, não é possível pensar uma estrutura desorganizada – mas, sobretudo,
fazer com que o princípio de organização da estrutura limitasse o que poderíamos
chamar de jogo da estrutura2.

Vimos como o “centro” de uma estrutura deveria ser compreendido como o


elemento capaz de fundamentá-la, de ser sua condição da sua produção de sentido. Diz
Derrida: este fundamento (que o filósofo chegará a chamar de “significado
transcendental” por aparecer como garantia da inteligibilidade do discurso) visa assegurar
as operações de sentido no interior da estrutura, mas ele mesmo não pode estar sob as
condições daquilo que ele deveria fundar. Por isto, seu estatuto é paradoxal. Pois a regra
tem uma posição absolutamente peculiar no interior da estrutura. De um lado, ela é aquilo
que articula a estrutura. Mas, por outro, ela é exatamente aquilo que não pode ser
articulado no interior da mesma. Até porque, a condição de existência de elementos do
tipo X não pode ser ela também um elemento do tipo X. A regra pede então um lugar-
Outro no qual ela poderia ser apresentada em sua fundamentação. Se não fôssemos
estruturalistas, diríamos que o fundamento para um sistema determinado de signos
poderia ser ou uma metaestrutura.
Vimos como o estruturalismo procurava resolver este problema. Lembremos da
discussão a respeito do sentido do que antropólogos encontraram em certas tribos sob o
nome de mana, manitou, hau, orenda, entre outros. Grosso modo, podemos dizer que
mana é uma noção que encontramos na Melanésia e que “escapa da categoria rígida de
nossa linguagem e de nossa razão” 3. Ela visa designar uma quantidade de idéias que
poderíamos designar por: poder de feiticeiro, qualidade mágica de uma coisa, coisa
mágica, ser mágico, ter poder mágico, estar encantado, agir magicamente. Esta confusão
do agente, do rito e das coisas é fundamental em magia. No interior do pensamento
mágico, o mana é o que produz o valor das coisas e das pessoas, valor mágico, religioso
e mesmo social. Ao discutir a natureza deste processo de determinação de valor que
permite a constituição de sistemas de trocas, Lévi-Strauss desenvolve uma importante
teoria a respeito de uma classe particular de significantes da qual mana faria parte.
Tal teoria, como vimos, não por acaso referia-se à origem da linguagem e da
estrutura. Lèvi-Strauss afirma que a origem seria marcada por um excesso de significante,
por uma superabundância em relação às possibilidades de significado. O que
encontraríamos na origem seria uma experiência radical de inadequação. Haveria assim,
em todo sistema simbólico, significantes flutuantes (como os significantes do tipo mana,
aos quais se acrescenta os nossos trem, troço, coisa) que apenas formalizam a
inadequação entre significante e significado. Por isto, eles seriam “símbolos em estado
puro”, suscetíveis de assumir qualquer conteúdo simbólico, “valor simbólico zero”, ou
ainda “valor indeterminado de significação, em si mesmo vazio de sentido e portanto
suscetível de receber qualquer sentido, cuja única função é preencher uma distância entre
o significante e o significado”4.
Esse elemento paradoxal, que está ao mesmo tempo dentro e fora do sistema
simbólico é o que, à sua maneira, forneceria um centro para a estrutura, estabilizando sua
produção de sentido através de uma inscrição, no interior do próprio sistema, de uma
inadequação interna ao sistema. A aposta de Derrida consistirá em liberar este suplemento
ao fundamento de uma certa metafísica cuja melhor descrição encontra-se exatamente nos

2
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 409
3
MAUSS, Sociologia e filosofia,. p. 142
4
LÉVI-STRAUSS, Introdução à obra de Marcel Mauss, p. 39
textos dedicados à Husserl. Esta metafísica estaria presente no estruturalismo através de
uma nostalgia da origem, da pura presença e da imediaticidade rompida. Metafísica
radicalmente vinculada aos usos da noção de signo. Há uma metafísica do signo a respeito
da qual Derrida fará uma crítica radical. Devemos compreendê-la melhor para afinal
entrarmos no cerne da crítica derridiana ao estruturalismo. Mas para isto, faz-se
necessário irmos à Husserl.

Qual a origem da geometria?

De fato, a tese fundamental de Derrida é: “Em todo o lugar onde é questão do uso da
noção de signo, encontramos sempre o vínculo fundamental de um regime de pensamento
à metafísica”. Haveria assim uma unidade ontológica da noção de signo, o que permite a
unificação da crítica a todo regime de pensar para o qual a noção de signo é peça
fundamental. Podemos mesmo dizer que esta é a função de A voz e o fenômeno, a saber,
fornecer um dispositivo geral de crítica à noção de signo, compreendendo-o como peça
fundamental daquilo que devemos definir como “metafísica”. De uma certa forma, para
Derrida, toda metafísica é uma metafísica do signo, é uma redução da linguagem à
dimensão do signo.
Mas qual o problema com a noção de “signo”? Responder de maneira adequada
esta pergunta irá nos exigir não apenas discutir A voz e o fenômeno, mas também Da
gramatologia. Uma discussão que exigirá também a leitura de um capítulo das
Investigações lógicas, de Husserl, intitulado: “Expressão e significado” (Ausdruck und
Bedeutung). Leitura que pediria para a aula que vem.
Por enquanto, gostaria de dar um passo atrás de expor as coordenadas gerais de
um texto que, em vários pontos, adianta e prepara a discussão que encontraremos em A
voz e o fenômeno, a saber, a Introdução à Origem da geometria, de Husserl. A origem da
geometria é um pequeno texto que pertence ao projeto geral do incompleto A crise das
ciências européias e a fenomenologia transcendental, que aparecerá em 1936. Grosso
modo, Husserl diagnostica uma situação de crise devido a uma “alienação objetivista”
que ameaçaria a ciência européia. De onde se seguiria a necessidade de uma reflexão
capaz de regredir (Rückfragen) em direção ao sentido original da ciência.
Antes de começarmos a discussão do texto de Derrida, vale a pena sublinhar que
não se trata de discutir aqui a adequação ou não da leitura por ele proposta. Trata-se de
compreender como, através do comentário de um texto da tradição filosófica, as peças
centrais do seu próprio programa filosófico foram desenhadas.
De fato, o comentário deste pequeno texto de Husserl serve a Derrida de ocasião
para uma discussão inaugural a respeito do problema da fundamentação da objetividade
através do recurso à noção de “origem”. Uma origem que não deixará de se articular ao
problema da exigência estruturalista que conduz à descrição compreensiva de uma
totalidade segundo uma legalidade interna, que não deixará de ser a reflexão sobre o
fundamento de tal estrutura.
Por sua vez, o problema husserliano da origem só poderá ser corretamente
compreendido se posto no interior de uma reflexão sobre a linguagem e seus mecanismos
de produção de sentido. Pensar o problema da produção do sentido a partir da reflexão
sobre a geometria permite a Derrida perguntar: “Como se passa de um estado individual
ante-predicativo originário à existência de um ser geométrico em sua objetividade
ideal?”5. Que a idealidade seja aqui inquirida a partir do objeto geométrico, eis algo que

5
DERRIDA, Le problème de la génèse chez Husserl, Paris: PUF, 1990, p. 267
não poderia ser diferente. Pois o objeto geométrico, assim como o objeto matemático, é
o exemplo ideal devido à sua pureza em relação à empiricidade:

Seu ser se esgota e transparece integralmente em sua fenomenalidade.


Absolutamente objetivo, ou seja, totalmente liberado da subjetividade empírica,
ele, no entanto, não é o que ele aparenta. Ele está sempre já reduzido a seu sentido
fenomenal e seu ser é, desde o início do jogo, ser-objeto para uma consciência
pura6.

Ou como dirá Husserl:

Assim, na geometria pura nós em regra não fazemos juízos sobre o eidos ‘reta’,
‘ângulo’, ‘triângulo’, ‘seção cônica’ e tc., mas sobre reta e ângulo em geral ou
‘como tal’, sobre triângulos individuais em geral, sobre seções cônicas em geral.
Tais juízos universais possuem o caráter da generalidade eidética, da generalidade
pra ou, como também se diz, da generalidade ‘rigorosa’, pura e simplesmente
‘incondicionada’7.

Esta definição do objeto matemático em sua independência em relação á


subjetividade empírica parece colocá-lo em uma relação de completa exterioridade em
relação à história e sua faticidade. Este é um ponto importante pois Derrida inicia seu
texto lembrando que, para a fenomenologia, a tematização da historicidade sempre foi
ligada à condenação tanto do genetismo historicista quanto do psicologismo. Todas as
duas posições seriam figuras de um certo materialismo para o qual a dimensão das
empiricidades forneceriam o fundamento para aquilo que procura ter validade
incondicional. Contra elas, faz-se necessário insistir no vínculo entre fenomenologia e
filosofia transcendental. Vínculo que não significaria anular toda questão relativa à
historicidade. Pois os objetos transcendentais que assegurariam a possibilidade de
história, seu telos, não pertenceriam ao eidos do Ego concreto. Como se a história, como
experiência empírica, estivesse na dependência de um fundo de pressuposições eidéticas
revelado pela fenomenologia. É neste sentido que devemos interpretar a afirmação:

Necessidade de proceder a partir de fato da ciência constituída, regressão em


direção às origens não empíricas que são, ao mesmo tempo, condições de
possibilidade; eis, nós sabemos, os imperativos de toda filosofia transcendental [e
da fenomenologia de Husserl] em face de algo como a história das matemáticas 8.

Mas contrariamente a Kant, para quem a construção própria à atividade do


matemático e do geômetra seria a explicitação de um conceito já constituído que ele
encontraria em si mesmo, os objetos visados pela intuição husserliana não existiriam
antes dela. Conhecemos a dissociação radical entre história e geometria que Kant
apresenta logo na introdução à Crítica da razão pura: “Aquele que primeiro demonstrou
o triângulo isósceles (fosse ele Tales ou como quer que se chamasse) teve uma iluminação
(ging ein Licht auf)”9 que consistiu em compreender que ele deveria trazer à luz
(hervorbringen) a partir de conceitos pensados e já presentes a priori. Uma iluminação

6
Idem, Introduction à L´origine de la géométrie, Paris: PUF, 2004, p. 6
7
HUSSERL, Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, p. 39
8
Idem, p. 20
9
KANT, Crítica da razão pura, B XII
nada tem a ver com o processo da constituição histórica, mas com o processo analítico da
apreensão do que já se encontra diante de nós.
No entanto, para Husserl, mesmo que a geometria em seu caráter normativo seja
independente da história, há a necessidade de descrever o processo através do qual as
idealidades geométricas surgem em um solo de experiências não-geométricas, solo ligado
ao mundo da cultura. Ou seja: “para Husserl, as objetividades geométricas ideais, como
a triangularidade, devem advir de objetividades não-geométricas, elas não existem como
tais antes desta experiência” 10. Derrida chegará a dizer que a intuição husserliana, no que
concerne os objetos ideais das matemáticas, é absolutamente constituinte e criadora. Na
verdade, ao invés da simples autonomia da idealidade lógica em relação a toda
consciência em geral, Husserl quer: “manter ao mesmo tempo a autonomia normativa da
idealidade lógica ou matemática em relação a toda consciência factual e as dependência
originária a uma subjetividade em geral; em geral mas concreta”11. Concreta, mas não
empírica, como uma “experiência transcendental”.
No entanto, esta primeira experiência em solo ‘pré-científico” não pode colocar
em causa a unidade de sentido do que deve ser pensado como “geometria”:

A axiomática em geral, a partir da qual todo ideal de dedutividade exaustiva e


exata pode ganhar sentido, a partir da qual todo problema de decidibilidade pode
em seguida surgir, já supõe uma sedimentação do sentido, ou seja, uma evidência
originária, um fundamento radical, que é também um passado12.

Este passado não é a determinação factual de um acontecimento empírico que


colocaria a geometria nas vias da relatividade e da contingência dos fatos. Ele é uma
espécie de “pré-história transcendental” sempre vivenciada como distância e acontecido.
Husserl nos diz haver “proto-materiais”, “arqui-premissas” no mundo pré-científico da
cultura, como se seu desvelamento fornecesse as coordenadas de tal pré-história.”Toda
história factual permanece na não-inteligibilidade enquanto ela, concluindo sempre
diretamente e de maneira ingênua a partir de fatos, não tematizar o solo de sentido
universal sobre o qual repousam o conjunto de tais conclusões, enquanto ela nunca
explorou o potente a priori estrutural que lhe é próprio” 13. Neste sentido, a história não
pode ser outra coisa que a recondução das formas de sentido históricas dadas no presente
à dimensão dissimulada das arqui-premissas fundadoras.
Por outro lado, isto exige uma forma cultural que não seja específica de cultura
particular alguma: “A idéia da ciência é o index da cultura pura em geral, ela designa o
eidos da cultura por excelência” 14. A este respeito, Derrida chega a falar de cultura da
verdade no interior da qual a idealidade é absolutamente normativa.
De fato, a fenomenologia, e isto desde Hegel, descreve um movimento da verdade
no qual esta aparece como uma história concreta cujo fundamento são atos de uma
subjetividade temporal, atos fundados no mundo da vida como mundo da cultura. No
entanto, esta subjetividade não é uma subjetividade egológica; ela é uma subjetividade
comunitária ou, se quisermos utilizar um termo mais apropriado, uma intersubjetividade:

Cada cientista não se sente ligado a todos os outros apenas pela unidade de um
objeto ou de uma tarefa. Sua própria subjetividade de cientista é constituída pela

10
LAWLOR, Konyv; Derrida amd Husserl : the basic problems of phenomenology, p. 107
11
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 235
12
DERRIDA, Introduction ..., p. 42
13
HUSSERL, idem, p. 202
14
Idem, p. 46
idéia ou horizonte desta subjetividade total que se torna responsável, nele e através
dele, de cada um de seus atos de cientista 15.

Vê-se assim como Husserl, segundo Derrida, faria apelo às tramas de uma
intersubjetividade transcendental enraizada em um mundo da vida onde encontraríamos
uma forma cultural que não seria específica de cultura particular alguma. Aqui,
encontramos um dos pontos fundamentais da leitura derridiana: esta forma cultural pura
nos remete à concepção fenomenológica de linguagem. Pois ela implica na neutralização
espontânea da existência factícia do sujeito falante de uma língua particular (daí a
insistência na tradutibilidade absoluta dos objetos geométricos), das palavras e da coisa
designada. Por isto, Derrida deve afirmar que: “a objetividade desta verdade não poderia
se constituir sem a possibilidade pura de uma informação em uma linguagem pura em
geral. Sem esta possibilidade pura e essencial, a formação geométrica seria inefável e
solitária”16. Esta linguagem pura é própria de uma intersubjetividade transcendental como
condição da objetividade. Desta forma, o problema da origem da geometria nos remete,
necessariamente, ao problema da constituição da intersubjetividade e da origem
fenomenológica da linguagem. O que não poderia ser diferente já que o modelo da
linguagem, para Husserl, é a linguagem objetiva da ciência. Uma linguagem poética cujas
significações não seriam objetos nunca teria, a seus olhos, valor transcendental.
No entanto, Derrida é sensível ao “fundamento empírico” desta intersubjetividade
transcendental. Não lhe escapa uma afirmação como esta, de Husserl: “Na dimensão da
consciência, a humanidade normal e adulta (excluindo o mundo dos anormais e das
crianças) é privilegiada como horizonte de humanidade e como comunidade de
linguagem”17. Pois se a maturidade do homem adulto e sua normalidade permitem uma
determinação eidético-transcendental rigorosa da consciência, então: “o privilégio de
Husserl implica que uma modificação factual e empírica – a normalidade adulta –
pretenda ser uma norma transcendental universal”18. Se quisermos utilizar uma palavra
proibida, podemos dizer que tal modificação factual e empírica não seria outra coisa que
uma certa recaída na dimensão do psicológico. É ela que permitiria assim a
fundamentação da consciência de se estar diante da mesma coisa, da consciência de um
nós puro e pré-cultural.
Tudo se passa como se Derrida procurasse mostrar como a liberação da
intersubjetividade de um fundamento empírico acabasse por transformá-la,
necessariamente, em uma forma de “infra-ideal inacessível”, de natureza pré-cultural que
sempre nos escapa. E aqui encontramos a origem de uma temática maior que atravessará
toda a experiência intelectual de Derrida, a saber, o primado da escritura como modo de
ser de uma linguagem liberada do peso da metafísica.

Para introduzir o problema da escritura

Para que a intersubjetividade seja algo como uma relação não-empírica entre egos faz-se
necessária que ela libere-se de todo vínculo a modificações empírico-factuais. Da mesma
forma, para que o objeto seja absolutamente ideal, ele deve ser liberado de todo vínculo
a uma subjetividade atual, ao modo de descrição próprio a uma subjetividade atual, a
saber, a palavra falada com suas contingências. Por isto, é a possibilidade de um outro

15
Idem, p. 50
16
Idem, p. 70
17
HUSSERL, L´origine de la géométrie, p. 182
18
LAWLOR, ibidem, p. 112
modo de ser da linguagem, ou seja, a escritura, que garantirá a objetividade ideal absoluta
na pureza de sua relação a uma subjetividade transcendental universal:

Sem a última objetivação que a escritura permite, toda linguagem estaria ainda
cativa da intencionalidade factícia e atual de um sujeito falante ou de uma
comunidade de sujeitos falantes. Ao virtualizar absolutamente o diálogo, a
escritura cria uma forma de campo transcendental autônomo a respeito do qual
todo sujeito atual pode se abster 19.

Notemos aqui dois pontos centrais. Primeiro, a problemática derridiana da


escritura nasce da reflexão a respeito da condição de possibilidade para a fundamentação
da objetividade e da universalidade. Para um autor que passou à posteridade como
defensor do relativismo e do nivelamento geral entre ciência e literatura, o mínimo que
podemos dizer é que se trata de um ponto de partida inesperado. Ainda mais porque, em
certos momentos, Derrida reconhece que esta temática da escritura não deixa de ter
relações com a noção kantiana de “Idéia”, compreendida como “irrupção do infinito aos
pés da consciência, que a permite unificar o fluxo temporal como ela unifica o objeto e o
mundo, por antecipação e a despeito de um inacabamento irredutível” 20. A Idéia se dá na
evidência fenomenológica como evidência de um “transbordamento essencial em relação
à evidência atual e adequada”21. Enquanto transbordamento, ela impede o aprisionamento
da gênese do ser e do sentido em um valor estático e plenamente determinado. Como
veremos, esta característica da Idéia será fundamental para o advento da idealidade do
objeto geométrico.
Segundo, através do problema da escritura, Derrida procura atualizar uma
temática cara ao pensamento francês contemporâneo ao menos desde um pequeno texto
de Sartre, de 1936, intitulado A transcendência do Ego, a saber, a discussão a respeito das
condições de possibilidade e das conseqüências de um campo transcendental impessoal.
Neste sentido, encontramos uma proximidade bastante importante entre Derrida e
Deleuze. Todos os dois procuram realizar uma premissa maior : fundar uma filosofia
transcendental liberada de uma noção identitária de subjetividade. Como se a afirmação
de Paul Ricoeur a respeito do estruturalismo como um “kantismo sem sujeito
transcendental” fornecesse, involuntariamente, a chave que marcará os próximos passos
da filosofia francesa contemporânea. Pois tudo se passa como se Derrida e Deleuze
dissessem algo como: “Franceses, só mais um esforço se quiserem realmente escapar do
psicologismo”. Pois é deste problema que se trata : uma certa dependência subreptícia de
temática empíricas na determinação do transcendental como campo. E será através de
uma linguagem não mais pensada como expressão de uma subjetividade, seja ela atual
seja ela transcendental, uma linguagem originada pela escritura, que Derrida procurará
realizar tal tarefa. Mesmo o recurso à Idéia kantiana como potência de indeterminação
não será estranha a nenhum dos dois. Basta estarmos atentos a páginas decisivas de
Diferença e repetição, de Deleuze.
Mas para tanto, Derrida precisará voltar-se contra Husserl, voltar-se em direção
ao impensado da axiomática da fenomenologia husserliana e, com isto, ir a uma região
que não poderia ser tematizada no interior da fenomenologia, já que uma região para
além da filosofia da consciência. Pois Husserl nunca questionará o fato deste campo
transcendental exigir a possibilidade jurídica de ser inteligível para um sujeito
transcendental em geral. Por isto, o ato de escritura aparece como uma redução

19
DERRIDA, ibidem, p. 84
20
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 242
21
Idem, p. 250
transcendental. Através desta redução, abre-se uma origem no qual encontramos o “a
priori universal da história”22. Um a priori que não é outra coisa que a noção mesma de
escritura. Esta relação entre história e escritura voltará com toda a força, como veremos,
em Da gramatologia. Lá, será o caso de problematizar esta relação comumente aceita
entre povos sem história e povos sem escritura, isto a fim de abrir o espaço para uma
noção renovada de história.
Na sua Introdução à Origem da geometria, Derrida aludirá a duas formas de
pensar a escritura. Uma, a de Husserl, visa reduzir ou empobrecer metodicamente a língua
empírica até a transparência atual de seus elementos universais e tradutíveis. A outra,
vinda da literatura, em especial da literatura de vanguarda (Derrida cita James Joyce),
mostraria a unidade estrutural da cultura empírica total através do equívoco generalizado
de uma escritura que circula por todas as línguas, que se instala no campo labiríntico da
cultura encadeada por seus equívocos. Como vocês podem imaginar, é pelos caminhos
desta segunda forma de escritura que Derrida irá trilhar. Não por acaso seu primeiro
projeto de tese de doutorado, apresentado em 1957 para Jean Hyppolite, terá por título :
“A idealidade do objeto literário”.
Mas ainda não respondemos a questão colocada no início da nossa aula, a saber:
como a idealidade geométrica procede de sua origem primária intrapessoal (do primeiro
geômetra) para sua idealidade objetiva? Esta discussão sobre a escritura já nos fornece a
resposta. Pois é certo que o primeiro estágio de transição á objetividade ocorre no meio
da intersubjetividade lingüística. No entanto, esta linguagem não pode limitar-se à
dimensão da comunicação atual entre o inventor e os outros cientistas, ou seja, ela não
pode se limitar à dimensão da fala. “É neste ponto que a importância da escritura, que
Husserl descreve como ´comunicação que advém virtual´, fica evidente. É apenas através
da liberação em relação a toda subjetividade atual permitida pela escritura que a
objetividade e comunicabilidade do conhecimento científico pode ser finalmente
asseguradas”23.
Esta dicotomia entre escritura e fala, entre inscrição e expressão, será de grande
importância para Derrida. Pois notemos um dentre vários pontos centrais. A possibilidade
do advento da escritura, enquanto espaço no qual a idealidade da verdade poderia se
afirmar e a constituição da objetividade poderia ser assegurada, é solidária de uma certa
anulação, de uma certa negação sem retorno do modo de presença e de recuperação do
sentido próprio à fala. Nos limites da fala, temos sempre a possibilidade de direito de
recuperar o sentido, isto através da atualização da intencionalidade do falante. Nos limites
da escritura, essa possibilidade se esvai. Por isto, Derrida precisa afirmar:

O silêncio das arcanas pré-históricas e das civilizações desaparecidas, o


sepultamento das intenções perdidas e dos segredos guardados, a ilisibilidade da
inscrição lapidar revelam o sentido transcendental da morte, naquilo que a une ao
absoluto do direito intencional na instância mesma de seu fracasso 24.

Este estatuto paradoxal da escritura, ao mesmo tempo o que constitui o sentido e


o que marca a possibilidade do desaparecimento do sentido, da não recuperação do
sentido por uma consciência, será o dado maior a ser revelado pela desconstrução. Derrida
tende, neste momento, a vincular o advento da escritura à instauração da geometria como
ato filosófico de inauguração da atitude teórica, da ultrapassagem do finito. “Nós estamos
na infinitude matemática por termos definitivamente idealizado e ultrapassado as

22
Idem, L´introduction..., p. 112
23
DEWS, Peter; Logic of disintegration, p. 9
24
DERRIDA, L´introduction..., p. 85
finitudes sensíveis e factícias” 25.Há uma passagem ao limite constitutiva do advento da
geometria que Derrida descreve como “ato idealizador”, “liberdade radical e disruptiva”,
“descontinuidade decisória”. Esta passagem é a revelação de um a priori que já se anuncia
no próprio mundo da vida. Já no interior da vida há algo que ultrapassa a simples
faticidade, que se impõe como diferença em relação àquilo que é objeto de uma
consciência empírica. Isto permite a Derrida dizer que, sob o conceito de transcendental,
sempre houve a diferença originária da origem absoluta que deve anunciar
indefinidamente sua pura forma concreta como um para além de toda profusão factícia:

Transcendental seria a certeza pura de um Pensamento que, só podendo alcançar


o Telos que já se anuncia avançando sobre a Origem que indefinidamente se
reserva, nunca deveria ter aprendido que ela seria sempre a vir 26.

Resta ainda procurar compreender como esta questão da escritura e da diferença


servirá como fundamento para uma crítica extensiva a todas as filosofias dependentes de
uma teoria da linguagem baseada na centralidade da noção de signo. Mas para isto
deveremos adentrar a leitura de A voz e o fenômeno.

25
Idem, p. 140
26
Idme, p. 171
Curso Jacques Derrida
Aula 5

Na aula de hoje, daremos continuidade ao módulo dedicado à leitura de A voz e o


fenômeno. Na aula passada, foi questão de apresentar as linhas gerais do longo texto de
introdução que Derrida escreveu à Origem da geometria. Hoje, gostaria de começar a
leitura de A voz e o fenômeno através do comentário de seus quatro primeiros capítulos.
Na aula que vem, terminaremos o comentário do livro.
Vimos na aula passada, como Derrida partia das discussões de Husserl a respeito
da natureza da idealidade própria aos objetos geométricos, isto a fim de tentar responder
a pergunta: “Como se passa de um estado individual ante-predicativo originário à
existência de um ser geométrico em sua objetividade ideal?” 1. Uma pergunta desta
natureza implicava o reconhecimento de certa “passagem” necessária, de um certo
enraizamento entre a idealidade e aquilo que não aparece imediatamente como idealidade.
Pergunta importante pois estamos acostumados a definir o objeto matemático em geral e
o objeto geométrico em particular em sua independência em relação á subjetividade
empírica. O que parece colocá-lo em uma relação de completa exterioridade em relação
à história e sua faticidade.
Este é um ponto importante pois Derrida inicia seu texto lembrando que, para a
fenomenologia, a tematização da historicidade sempre foi ligada à condenação tanto do
genetismo historicista quanto do psicologismo. Todas as duas posições seriam figuras de
um certo materialismo para o qual a dimensão das empiricidades forneceria o fundamento
para aquilo que procura ter validade incondicional. Contra elas, faz-se necessário insistir
no vínculo entre fenomenologia e filosofia transcendental. No entanto, Derrida insiste que
este vínculo não significaria anular toda questão relativa à historicidade. Pois tratava-se
de lembrar que a história, como experiência empírica, estaria na dependência de um fundo
de pressuposições eidéticas revelado pela fenomenologia.
Para tanto, vimos como era necessário descrever o processo através do qual as
idealidades geométricas surgem em um solo de experiências não-geométricas, solo ligado
ao mundo da cultura. Maneira de dizer que: “para Husserl, as objetividades geométricas
ideais, como a triangularidade, devem advir de objetividades não-geométricas, eles não
existem como tais antes desta experiência” 2. Derrida chegará a dizer que a intuição
husserliana, no que concerne os objetos ideais das matemáticas, é absolutamente
constituinte e criadora. Na verdade, ao invés da simples autonomia da idealidade lógica
em relação a toda consciência, Husserl quer: “manter ao mesmo tempo a autonomia
normativa da idealidade lógica ou matemática em relação a toda consciência factual e a
dependência originária a uma subjetividade em geral; em geral mas concreta”3. Concreta,
mas não empírica, como uma “experiência transcendental”. Neste sentido, a historicidade
implicada na geometria não seria outra coisa que a recondução das formas de sentido
históricas dadas no presente à dimensão dissimulada de arqui-premissas fundadoras
presentes no mundo da cultura.
Vimos como esta subjetividade em geral, constituinte e criadora, a respeito da qual
alude Derrida, não era uma subjetividade egológica; ela era uma subjetividade
comunitária ou, ainda, uma intersubjetividade:

1
DERRIDA, Le problème de la génèse chez Husserl, Paris: PUF, 1990, p. 267
2
LAWLOR, Konyv; Derrida amd Husserl : the basic problems of phenomenology, p. 107
3
DERRIDA, L´écriture et la différence, p. 235
Cada cientista não se sente ligado a todos os outros apenas pela unidade de um
objeto ou de uma tarefa. Sua própria subjetividade de cientista é constituída pela
ideia ou horizonte desta subjetividade total que se torna responsável, nele e através
dele, de cada um de seus atos de cientista 4.

Vê-se assim como Husserl, segundo Derrida, faria apelo às tramas de uma
intersubjetividade transcendental enraizada em um mundo da vida onde encontraríamos
uma forma cultural que não seria específica de cultura particular alguma. Aqui,
encontramos um dos pontos fundamentais da leitura derridiana: esta forma cultural pura
nos remete à concepção fenomenológica de linguagem. Desta forma, o problema da
origem da geometria nos remete, necessariamente, ao problema da constituição da
intersubjetividade e da origem fenomenológica da linguagem. O que não poderia ser
diferente já que o modelo da linguagem, para Husserl, é a linguagem objetiva da ciência.
Uma linguagem poética cujas significações não seriam objetos nunca teria, a seus olhos,
valor transcendental.
No entanto, para que a intersubjetividade seja algo como uma relação não-
empírica entre egos faz-se necessária que ela libere-se de todo vínculo a modificações
empírico-factuais. Da mesma forma, para que o objeto seja absolutamente ideal, ele deve
ser liberado de todo vínculo a uma subjetividade atual, ao modo de descrição próprio a
uma subjetividade atual, a saber, a palavra falada com suas contingências. Por isto, é a
possibilidade de um outro modo de ser da linguagem, ou seja, a escritura, que garantirá a
objetividade ideal absoluta na pureza de sua relação a uma subjetividade transcendental
universal:

Sem a última objetivação que a escritura permite, toda linguagem estaria ainda
cativa da intencionalidade factícia e atual de um sujeito falante ou de uma
comunidade de sujeitos falantes. Ao virtualizar absolutamente o diálogo, a
escritura cria uma forma de campo transcendental autônomo a respeito do qual
todo sujeito atual pode se abster 5.

Ou, ainda, como Derrida dirá em A voz e o fenômeno:

O proto-geômetra deve produzir em pensamento, por passagem ao limite, a pura


idealidade do objeto geométrico puro, assegurar a transmissibilidade pela palavra
e enfim confia-la a uma escritura através da qual poder-se-à sempre repetir o
sentido dirigido, ou seja, o ato de pensamento puro que criou a idealidade do
sentido6.

Desta forma, vimos como Derrida, leitor de Husserl, podia responder a questão
sobre a maneira através da qual a idealidade geométrica procede de sua origem primária
intrapessoal (do primeiro geômetra) para sua idealidade objetiva. É certo que o primeiro
estágio de transição à objetividade ocorre no meio da intersubjetividade lingüística. No
entanto, esta linguagem não pode limitar-se à dimensão da comunicação atual entre o
inventor e os outros cientistas, ou seja, ela não pode se limitar à dimensão da fala. “É
neste ponto que a importância da escritura, que Husserl descreve como ´comunicação que
advém virtual´, fica evidente. É apenas através da liberação em relação a toda

4
Idem, p. 50
5
DERRIDA, ibidem, p. 84
6
Idem, La voix et le phénomène, p. 91
subjetividade atual permitida pela escritura que a objetividade e comunicabilidade do
conhecimento científico pode ser finalmente asseguradas” 7.
Esta dicotomia entre escritura e fala, entre inscrição e expressão, será de grande
importância para Derrida. Pois notemos um dentre vários pontos centrais. A possibilidade
do advento da escritura, enquanto espaço no qual a idealidade da verdade pode se afirmar
e a constituição da objetividade pode ser assegurada, é solidária de uma certa anulação,
de uma certa negação sem retorno do modo de presença e de recuperação do sentido
próprio à fala. Nos limites da fala, temos sempre a possibilidade de direito de recuperar
o sentido, isto através da atualização da intencionalidade do falante. Nos limites da
escritura, essa possibilidade se esvai. É tendo em vista um programa de constituição de
um modelo de reflexão sobre a linguagem baseado na noção de escritura que Derrida
passará à redação de A voz e o fenômeno.

A vida transcendental

Derrida escreve A voz e o fenômeno para mostrar as premissas conceituais que


estariam presentes em A origem da geometria. Trata-se, na verdade, de perguntar: “A
necessidade fenomenológica, o rigor e a sutileza da análise husserliana não
dissimulariam, no entanto, une pressuposição metafísica?” 8. A pergunta é posta tendo em
vista a temática presente já no subtítulo do livro, a saber, o problema do signo na
fenomenologia de Husserl. Como vimos na aula passada, Derrida acredita que em todo o
lugar onde a linguagem é pensada a partir da noção de signo, evidencia sua dependência
em relação à metafísica. Pois a metafísica não seria outra coisa que o discurso que precisa
da noção de signo para fundamentar seu modo de relação ao sentido. É por isto que
Derrida diz ser possível partir do conceito de signo para compreender a própria crítica
fenomenológica à metafísica como momento interno à história da metafísica, como
realização histórica do projeto metafísico.
Todas estas proposições são ousadas e Derrida é cônscio disto. No entanto, ele
entende que colocá-las em operação é a condição para ultrapassar o quadro regulador da
filosofia da consciência. Digamos que, neste contexto, a consciência é,
fundamentalmente, um modo de presença dos objetos diante de mim. Neste sentido,
poderíamos simplesmente seguir Heidegger para quem a fundação do conceito moderno
de consciência, através do cogito cartesiano, está organicamente vinculado a uma noção
de pensar como representação, como Vorstellung. Uma representação que é pôr-diante-
de-si, Vor-sich-stellen. Heidegger insiste que a estrutura da reflexão que nasce com o
princípio moderno de subjetividade é fundamentalmente posicional. Refletir é por diante
de si no interior da representação, como se colocássemos algo diante de um “olho da
mente”. Pensar, aqui, só poderá ser então: “tomar posse de algo, apoderar-se
(bemächtigen) de uma coisa, e aqui no sentido de dispor-para-si (Sich-zu-stellen)
[lembremos que Sicherstellen é confiscar] na maneira de um dispor-diante-de-si (Vor-
sich-stellen), de um re-presentar (Vor-stellen)”9.
Provavelmente, é por pensar nesta chave que Derrida poderá dizer que a
idealidade da idealidade, ou seja, o que determina o caráter da idealidade, é o presente
vivo, a presença a si de um conceito peculiar de vida que Derrida define como “vida
transcendental”. O que nos explica uma definição de consciência como: “a possibilidade
da presença a si do presente no presente vivo” 10. Pois, como já vimos na Origem da

7
DEWS, Peter; Logic of disintegration, p. 9
8
DERRIDA, ibidem, p. 3
9
HEIDEGGER, Nietzsche II
10
DERRIDA, ibidem, p. 8
geometria, o mundo da vida que serve de fundamento para a constituição das idealidades
geométricas não é o mundo de uma vida puramente factícia e empírica, mas de uma vida
que guarda no seu interior traços daquilo que tem validade transcendental e trans-
individual. Por outro lado, a própria “idealidade” será definida como a forma na qual a
presença de um objeto em geral pode ser indefinidamente repetida como o mesmo. E aqui
o conceito de “repetição do mesmo” é fundamental. Pois ele mostra como a presença não
é presença de algo que existe no mundo, mas é o nome que damos à simples correlação
com atos de repetição, eles mesmos ideais.
Mas Derrida não é indiferente a uma tensão no projeto husserliano. Pois esta vida
transcendental nunca conseguiria abstrair-se completamente do domínio da facticidade e
isto, de uma certa forma, acaba por interferir nos usos gerais do próprio conceito de
transcendental. Assim, Derrida pode, por exemplo, fazer uma afirmação como:

Husserl nunca colocou a questão do logos transcendental, da linguagem herdada


na qual a fenomenologia produz e exibe os resultados de suas operações de
redução. Entre a linguagem ordinária (ou a linguagem da metafísica tradicional) e
a linguagem fenomenológica, a unidade nunca é rompida apesar das precauções,
da aspas, das renovações ou das inovações 11.

Esta afirmação é decisiva. Primeiro, notemos a peculiaridade desta enunciação: “a


linguagem ordinária (ou a linguagem da metafísica tradicional)”. Ou seja, tudo se passa
como se Derrida estivesse a dizer que a linguagem da vida comum, esta linguagem que
utilizamos em nossas operações mais elementares fosse prenhe de posições metafísicas.
Como se ela fosse condição essencial para a constituição transcendental. Mas isto
significa sustentar a proposição de que devemos elevar as relações entre linguagem
filosófica e linguagem pré-filosófica à condição de problema filosófico maior. Pois a
linguagem pré-filosófica, esta linguagem “ordinária” própria ao senso comum, forneceria
ao pensar filosófico seu conjunto tácito de pressuposições não problematizadas. Trata-se
de afirmar que nossa linguagem pré-filosófica naturaliza categorias filosóficas como
unidade, substância, duração, causa, ser, atribuição, identidade, diferença e,
principalmente, sujeito (e veremos de onde vem esta centralidade do conceito de
“sujeito”) devido simplesmente à sua gramática. Este é um dado fundamental : o senso
comum é uma gramática, entendendo aqui por “gramática” a articulação sistemática de
princípios e regras de estruturação e validação de enunciados. E não há gramática neutra
do ponto de vista de suas implicações metafísicas. Como se Derrida creditasse certos
impasses da filosofia husserliana à sua pretensa incapacidade de colocar em questão
estruturas normativas e lógicas herdadas de uma gramática naturalizada. Por isto que ele
dirá que o logos transcendental depende de uma certa linguagem herdada, para ser mais
específico, herdada do mundo da vida. Neste sentido, Derrida denuncia a dependência da
linguagem filosófica aos pressupostos da linguagem ordinária elevados à condição de
uma “gramática pura lógica”.
Isto talvez nos explique porque Derrida insistirá, por exemplo, que entre meu Eu
transcendental e meu Eu natural e humano, há uma diferença radical. No entanto, eles não
se distinguem em nada que possa ser determinado no sentido natural da distinção. Pois o
Eu transcendental não é o fantasma metafísico ou formal do Eu empírico. Aceitar isto nos
levaria à assumir a metáfora do Eu espectador absoluto de seu próprio Eu empírico.
Mas este “nada” que distingue o Eu transcendental e o Eu empírico não implica,
por sua vez, alguma forma de adequação, o que só poderia nos levar à confusão de um

11
DERRIDA, ibidem, p. 6
verdadeiro “psicologismo transcendental”. Na verdade, só seria possível “salvar” o
transcendental à condição de relativizar seu caráter constituinte a fim de compreendê-lo
principalmente como “inquietude transcendental” que impõe uma diferença que não pode
ser substancializada. Veremos como esta noção particular de transcendental, longe de
assegurar a fundamentação das condições de possibilidade de toda experiência, acabará
por servir de peça de desconstrução da noção mesma de “fundar”.
Por outro lado, é o conceito de vida que servirá para pensar esta relação de
paralelismo: “Mas a estranha unidade destes dois paralelos, o que os remete um ao outro,
não se deixa partilhar por eles e, dividindo-se a si mesmo, cola finalmente o
transcendental a seu outro, é a vida” 12. Esta vida não é apreendida em sua ingenuidade
pré-transcendental, na linguagem da vida ordinária ou na ciência biológica. Na verdade,
a vida empírica é colocada em parênteses para o aparecimento de uma espécie de “vida
transcendental”.
Para entender tal vida transcendental, devemos partir da indiscernibilidade entre
consciência e linguisticidade e, com isto, do “vínculo essencial” entre logos e phonè.
Como dirá Giorgio Agamben: “A linguagem humana é a ‘voz da consciência’, nela a
consciência existe e se dá realidade, porque a linguagem é a voz articulada” 13. No entanto,
Derrida lembrará que não é com a substância sonora ou com a voz física que Husserl
reconhecerá uma afinidade de origem entre logos e phonè: “mas à voz fenomenológica,
à voz na sua carne transcendental, ao sopro, à animação intencional que transforma o
corpo da palavra em carne, que faz do Körper um Leib, um geistige Leiblichkeit”14.
Notemos aqui um dado essencial: a voz indica necessariamente o primado da
enunciação, indica que a linguagem tem lugar através do dizer o mundo. Mas este dizer,
antes de falar sobre o mundo, é dizer sobre si mesmo, é o movimento que expõe a
presença de uma linguagem que impõe ao mundo uma ordem através do dizer. Pois a
enunciação diz os objetos do mundo, mas ela os diz a partir da realização da presença do
enunciador, ela os diz como objetos diante do enunciador. Por isto, antes de comunicar
algo, a enunciação comunica a presença de alguém para um Outro. Ou, se quisermos dar
um passo arriscado, mas necessário no interior do argumento derridiano, a enunciação
não comunica algo, ela comunica fundamentalmente a presença do enunciador. Se
tomarmos o puro acontecimento da enunciação, se tomarmos a manifestação irredutível
da voz (e sempre podemos ouvir, para além da palavra que diz a coisa, a pura voz que se
mostra a si mesma), veremos que ela é não mais um puro som, já que ela porta a
expressividade da presença. No entanto, ela ainda não é o significado de uma
exterioridade.
Neste sentido, digamos que a pura enunciação traz inscrita em seu seio a
possibilidade de anular todo e qualquer “algo” para que a pura enunciação, o puro querer-
dizer possa se fazer ouvir. Um puro querer-dizer que : “indicando o puro ter-lugar de uma
instância de linguagem sem nenhum determinado advento de significado [aqui no sentido
de relação à referência], apresenta-se como uma espécie de ‘categoria das categorias’ que
subjaz desde sempre a todo pronunciamento verbal, sendo, portanto, singularmente
próxima da dimensão de significado do puro ser” 15. Talvez um dos pensadores que
melhor compreendeu esta natureza própria à linguagem baseada na enunciação foi
Jacques Lacan. O mesmo Lacan que, partindo da experiência da fala no interior da
situação analítica, dirá : “A função da linguagem não é de informar [a estrutura de um
objeto pré-linguístico], mas de evocar [a presença de alguém para alguém]. O que eu

12
DERRIDA, ibidem, p. 14
13
AGAMBEN, Giorgio; A linguagem e a morte, p. 65
14
DERRIDA, ibidem, p. 15
15
AGAMBEN, ibidem, p. 55
procuro na palavra é a resposta do outro [ainda com a minúscula]. O que me constitui
como sujeito é a minha questão”16.
A afirmação é clara: a função da linguagem não estaria na representação de um
dado natural ou no comunicar um sentido pré-existente à comunicação. Sua função estaria
fundamentalmente vinculada ao ato de presentificar um sujeito, ele mesmo reduzido ao
puro fato de falar, de se comunicar com um outro. Mas isto significa, e Derrida saberá
jogar com este problema até o final, que no próprio advento da linguagem como instância
de enunciação estará inscrita a possibilidade de negar toda referencialidade, toda
capacidade de fazer referência a “algo”.

A voz do signo

A fim de discutir a natureza particular da enunciação, Derrida volta-se à discussão


central de seu livro, a saber, o conceito husserliano de signo. Derrida parte do comentário
de um capítulo central do segundo volume das Investigações lógicas, intitulado :
“Expressão e significado” (Ausdruck und Bedeutung). Lá, Husserl afirma existir uma
certa confusão no usoéda palavra “signo” (Zeichen). Por vezes, ele significa “expressão”
(Ausdruck), por vezes “indicação” (Anzeigen). A confusão nos faz esquecer que “todo
signo é signo de algo, mas nem todos tem um significado (Bedeutung) do qual o signo
seria a expressão”17. Pois “signos no sentido de índices (Anzeichen) nada expressam”;
eles seriam bedeutunglos, sinnlos. O que não significa um signo desprovido de
significação, um signo que nada diz .
Husserl usa como exemplos de índice a relação entre a bandeira e a nação, o
stigma e o escravo. A respeito destes exemplos, Husserl dirá que é índice tudo o que serve
para indicar algo para uma essência pensante. Tal definição é muito próxima da noção
tradicional de signo como aquilo que designa algo para alguém. Não é difícil perceber
como estas definições não são claras a respeito do que, afinal, devemos entender por
“indicar algo” ou “designar algo”. Mais a frente, Husserl falará de “indicar algo”, neste
contexto, como uma relação de motivação que se apresenta de maneira objetiva em
processos associativos. Esta motivação pode ser operada pelo dedo que indica a coisa
não-vista ou por um estado de coisas que nos remete a outro estado de coisas. Husserl
recoloca o problema da indicação no interior da discussão sobre associação de idéias (já
que mesmo a designação ostensiva não é outra coisa que uma forma elaborada de
associação).
Contrariamente a Frege, Husserl não distingue Bedeutung e Sinn, ou seja, a
relação à referência e o sentido da proposição [“O homem que se chamava Josef Stalin”
é a Bedeutung, é a denotação das proposições “O guia genial dos povos” e “O coveiro da
revolução”; proposições que, como podemos ver, têm sentidos, têm conotações
absolutamente diferentes]. Mesmo quando esta distinção aparece, ela não desempenha a
mesma função que desempenha em Frege. Esta recusa em operar com tal distinção trará
conseqüências para a dicotomia expressão/indicação. Pois ela implica em anular o
problema da relação à referência extra-linguística enquanto problema central na definição
de operações de significação.
Neste sentido, a expressão sempre pressuporia a idealidade de uma Bedeutung.
No entanto: “poderíamos talvez, sem forçar a intenção de Husserl, definir, ou mesmo
traduzir, bedeuten por querer-dizer, ao mesmo tempo no sentido de um sujeito falante
“exprimindo-se”, como diz Husserl, “sobre algo”, quer dizer, e no sentido do que uma

16
LACAN, Jacques; Ecrits, Paris: Seuil, 1966, p. 299
17
HUSSERL, Logische Untersuchungen vol II Teil I, p. 23
expressão quer dizer”18. Trata-se pois de pôr uma idealidade objetiva como Bedeutung,
como objeto da intenção de um querer-dizer. Como dirá Derrida, a expressão deve ser
compreendida como o signo animado por um querer-dizer (sendo que o querer-dizer,
devido à natureza da relação de intencionalidade, será sempre o ato de visar uma relação
de objeto). Esta definição da Bedeutung pode nos explicar porque Derrida afirma que, no
final das contas, a diferença entre índice e expressão aparece como uma diferença
funcional, e não exatamente substancial. Dependendo da vivência intencional que o
anima, um mesmo fenômeno lingüístico pode ser apreendida como expressão ou como
índice. Por isto, Derrida deve dizer:

O idealismo transcendental fenomenológico responde à necessidade de descrever


a objetividade do objeto (Gegenstand) e a presença do presente (Gegenwart) – e
a objetividade na presença – a partir de uma interioridade, ou melhor, de uma
proximidade a si, de um próprio (Eigenheit) que não simplesmente um dentro,
mas a possibilidade íntima da relação a um lá e a um fora em geral 19.

Como já sabemos, não se trata simplesmente de fundar as operações de


significação na interioridade de uma disposição psicológica do falante. Esta intenção
própria ao querer-dizer nos levaria ao puro solipsismo se fosse conjugada tendo em vista
a individualidade do sujeito psicológico. Ou ainda, ela nos levaria a dizer que a expressão
subordina-se à capacidade de indicar uma vivência psíquica através de um estado físico
(tom de fala, gestos, ritmo das palavras, etc.) e um conjunto de ações sociais. Fato que,
para Husserl, equivaleria a confundir expressão e indicação própria à tentativa, sempre
falha, de comunicação da presença do vivido do outro. Daí porque Derrida deve afirmar
que: “A relação ao outro como não-presença é a impureza da expressão. Para reduzir a
indicação na linguagem e alcançar enfim a pura expressividade, faz-se necessário
suspender a relação ao outro”20.
Na verdade, o querer-dizer é o modo de presença, intersubjetivamente partilhado
(mas de uma intersubjetividade transcendental, para além da interelação entre Eus
empíricos], que o sujeito encontra quando opera uma redução fenomenológica. Ele é a
demonstração de que o próprio conteúdo do sentido não é outro que esta modalidade de
presença. Daí porque Husserl afirma não ser possível admitir que um solilóquio seja uma
comunicação por signos, pois: “em um discurso (Rede) monológico, não podemos nos
servir da palavra como índice para o ser de um ato psíquico” 21. Em um monólogo, não há
possibilidade de dissociação entre a palavra e o estado psíquico que é por ela expressado.
As palavras daquele que fala a si mesmo não podem lhe servir de signos, de índices de
suas próprias vivência psíquica. Na fala que endereço a mim mesmo quando digo, por
exemplo: “Você agiu mal”, a palavra aparece como desprovida de distância, sua intenção
me é completamente transparente (de direito, não haveria espaço para uma intenção
inconsciente aqui). Por isto, segundo Husserl, seria necessário abrir o campo da vida
solitária da alma a fim de apreender a natureza da expressividade. Uma expressividade
que aparece como pura voz. Uma vida que será posteriormente definida como a esfera
noético-noemática da consciência. [noema : o objeto enquanto idealidade presente à
consciência, o correlato intencional / noese : o ato que permite a apreensão de
significações pela subjetividade constituinte]

18
DERRIDA, ibidem, p. 18
19
DERRIDA, ibidem, p. 23
20
Idem, p. 44
21
HUSSERL, ibidem, p. 36
Abrir este campo exige uma forma de redução do domínio da indicação. Só assim
seria possível retornar à constituição ativa do sentido e do valor, à atividade de uma vida
produzindo a verdade e o valor em geral através dos signos. De fato, a significação
indicativa recobrirá tudo o que, na linguagem, será objeto de redução: a factualidade, a
existência mundana, a não-evidência etc. Ou seja, toda a camada de efetividade empírica
pertence a esta indicação que deve ser reduzida. Como se a redução, antes mesmo de
advir método se confundisse com o ato mais espontâneo do discurso falado, a simples
prática da palavra, o poder da expressão.
Mas se voltarmos à expressão, veremos que ela é, antes de tudo, a impressão, em
um certa exterioridade, de um sentido que se encontra inicialmente em uma certa
interioridade. Mas o exterior visado aqui é este de um objeto ideal, ele é a esfera noético-
noemática da consciência. Maneira de lembrar que não há expressão sem a intenção de
um sujeito fornecendo ao signo uma espiritualidade (Geistigkeit). Não há expressão sem
intenção voluntária, como se um ato involuntário ou, como dirá outro aluno de Brentano,
Freud, à mesma época de Husserl, um ato falho, não pudesse expressar algo. Como se
consciência intencional e consciência voluntária devessem ser tratadas como sinônimos.
Por isto, Derrida pode dizer que, apesar de todos os temas relativos à intencionalidade
receptiva ou intuitiva, assim como da gênese passiva, o conceito de intencionalidade
estaria aprisionado à tradição de uma metafísica voluntarista: “o sentido quer se
significar, ele só se exprime em um querer-dizer que e apenas um querer-se-dizer da
presença do sentido”22. Ou ainda:

Faz-se necessário reconhecer que o critério de distinção entre a expressão e a


indicação é finalmente confiado a uma descrição bem sumária da ‘vida interior’.
Nesta vida interior , não haveria comunicação porque não há alter ego23.

Isto talvez nos explique porque tudo o que escapa da pura intenção espiritual é
excluído da expressão: o jogo da fisionomia, o gesto, a totalidade do corpo e da inscrição
mundana etc. mesmo o corpo só pode comparecer à expressão ao ser transformado de
Körper em Leib. A essência da linguagem é seu telos, e seu telos é a consciência
voluntária como querer-dizer. Neste sentido, podemos mesmo dizer que aquilo que separa
a expressão do índice é o que podemos chamar de não-presença imediata de si do presente
vivo. Pois há indicação toda vez que o ato que confere o sentido, que a intenção
animadora, a espiritualidade viva do querer-dizer não está plenamente presente. Toda vez
que a presença imediata e plena do significado não estiver presente, o significante será
de natureza indicativa e, por isto, inexpressivo.
Mas este presente é, até agora, presente a uma intuição ou a uma percepção
“interna”. Por isto, para recuperar a pura expressividade, faz-se necessário suspender a
relação ao outro. “Pois somente quando a comunicação é suspensa que a pura
expressividade pode aparecer”24. O que significa dizer que, de uma certa forma, a
expressão plena escapa ao conceito de signo, como vimos no exemplo do monólogo, isto
se pensarmos na definição clássica de signo: aquilo que representa alguma coisa para
alguém.
No entanto: “Derrida sugere que a tentativa husserliana de apagar as funções
externas e indicativas da linguagem através de uma série de reduções que culminam em
uma fala interior auto-endereçada, está condenada ao fracasso”25. Ainda não sabemos

22
DERRIDA, ibidem, p. 37
23
Idem, p. 78
24
Idem, p. 41
25
DEWS, ibidem, p. 19
porque tal tentativa irá fracassar, nem sabemos claramente o que Derrida pretende colocar
em seu lugar. Para tanto, precisaremos esperar até a próxima aula.
Curso Jacques Derrida
Aula 6

Nesta aula, gostaria de terminar a apresentação de A voz e o fenômeno. Vimos na aula


passada, como Derrida escreve A voz e o fenômeno a fim de mostrar as premissas
conceituais que estariam presentes em A origem da geometria. Já o título não deixa de
fazer alusão à uma tentativa de decompor a fenomenologia ao analisar o phainomenon e
o logos (voz). Tratava-se, na verdade, de perguntar: “A necessidade fenomenológica, o
rigor e a sutileza da análise husserliana não dissimulariam, no entanto, une pressuposição
metafísica?”1. A pergunta é posta tendo em vista a temática presente já no subtítulo do
livro, a saber, o problema do signo na fenomenologia de Husserl. Como vimos, Derrida
acredita que em todo o lugar onde a linguagem é pensada a partir da noção de signo,
evidencia sua dependência em relação à metafísica. Pois a metafísica não seria outra
coisa que o discurso que precisa da noção de signo para fundamentar seu modo de relação
àquilo que poderíamos chamar de “sentido do ser” ou, ainda, de origem. É por isto que
Derrida diz ser possível partir do conceito de signo para compreender a própria crítica
fenomenológica à metafísica como momento interno à história da metafísica, como
realização histórica do projeto metafísico. Na verdade, talvez Habermas tenha razão
quando afirma: “Um vez que o logos é sempre inerente à palavra falada, Derrida quer
atingir o logocentrismo do ocidente na figura do fonocentrismo” 2.
Todas estas proposições são ousadas e Derrida é cônscio disto. No entanto, ele
entende que colocá-las em operação é a condição para ultrapassar o quadro regulador da
filosofia da consciência. Digamos que, neste contexto, a consciência é,
fundamentalmente, um modo de presença dos objetos diante de mim. Neste sentido,
sugeri que deveríamos, por exemplo, seguir Heidegger para quem a fundação do conceito
moderno de consciência, através do cogito cartesiano, está organicamente vinculado a
uma noção de pensar como representação, como Vorstellung. Uma representação que é
pôr-diante-de-si, Vor-sich-stellen. Heidegger insiste que a estrutura da reflexão que nasce
com o princípio moderno de subjetividade é fundamentalmente posicional. Refletir é por
diante de si no interior da representação, como se colocássemos algo diante de um “olho
da mente”. Pensar, aqui, só poderá ser então: “tomar posse de algo, apoderar-se
(bemächtigen) de uma coisa, e aqui no sentido de dispor-para-si (Sich-zu-stellen)
[lembremos que Sicherstellen é confiscar] na maneira de um dispor-diante-de-si (Vor-
sich-stellen), de um re-presentar (Vor-stellen)”3.
Provavelmente, é por pensar nesta chave que Derrida poderá dizer que o que
determina o caráter próprio da idealidade é o presente vivo, a presença a si de um conceito
peculiar de vida que Derrida define como “vida transcendental”. O presente vivo é a
forma última, mais bem acabada, da idealidade. O que nos explica uma definição de
consciência como: “a possibilidade da presença a si do presente no presente vivo”4. Pois,
como já vimos na Origem da geometria, o mundo da vida que serve de fundamento para
a constituição das idealidades geométricas não é o mundo de uma vida puramente factícia
e empírica, mas de uma vida que guarda no seu interior traços daquilo que tem validade
transcendental e trans-individual. Por outro lado, a própria “idealidade” será definida
como a forma na qual a presença de um objeto em geral pode ser indefinidamente repetida
como o mesmo. E aqui o conceito de “repetição do mesmo” é fundamental. Pois ele

1
DERRIDA, La voix et le phénomène, p. 3
2
HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, Lisboa, Dom Quixote, p. 160
3
HEIDEGGER, Nietzsche II
4
DERRIDA, ibidem, p. 8
mostra como a presença não é presença de algo que existe no mundo, mas é o nome que
damos à simples correlação com atos de repetição, eles mesmos ideais.
Para entender o regime de presença próprio à tal vida transcendental, devemos
partir da indiscernibilidade entre consciência e linguisticidade e, com isto, do “vínculo
essencial” entre logos e phonè. Como dirá Giorgio Agamben: “A linguagem humana é a
‘voz da consciência’, nela a consciência existe e se dá realidade, porque a linguagem é a
voz articulada”5. No entanto, Derrida lembrará que não é com a substância sonora ou com
a voz física que Husserl reconhecerá uma afinidade de origem entre logos e phonè: “mas
à voz fenomenológica, à voz na sua carne transcendental, ao sopro, à animação
intencional que transforma o corpo da palavra em carne, que faz do Körper um Leib, um
geistige Leiblichkeit”6.
Notemos aqui um dado essencial: a voz indica necessariamente o primado da
enunciação, indica que a linguagem tem lugar através do dizer o mundo. Mas este dizer,
antes de falar sobre o mundo, é dizer sobre si mesmo, é o movimento que expõe a
presença de uma linguagem que impõe ao mundo uma ordem através do dizer. Pois a
enunciação diz os objetos do mundo, mas ela os diz a partir da realização da presença do
enunciador, ela os diz como objetos diante do enunciador. Por isto, antes de comunicar
algo, a enunciação comunica a presença de alguém para um Outro. Ou, se quisermos dar
um passo arriscado, mas necessário no interior do argumento derridiano, a enunciação
não comunica algo, ela comunica fundamentalmente a presença do enunciador. Se
tomarmos o puro acontecimento da enunciação, se tomarmos a manifestação irredutível
da voz (e sempre podemos ouvir, para além da palavra que diz a coisa, a pura voz que se
mostra a si mesma), veremos que ela é não mais um puro som, já que ela porta a
expressividade da presença. No entanto, ela ainda não é o significado de uma
exterioridade.
Neste sentido, digamos que a pura enunciação traz inscrita em seu seio a
possibilidade de anular todo e qualquer “algo” para que a pura enunciação, o puro querer-
dizer possa se fazer ouvir. Um puro querer-dizer que : “indicando o puro ter-lugar de uma
instância de linguagem sem nenhum determinado advento de significado [aqui no sentido
de relação à referência], apresenta-se como uma espécie de ‘categoria das categorias’ que
subjaz desde sempre a todo pronunciamento verbal, sendo, portanto, singularmente
próxima da dimensão de significado do puro ser” 7. Mas isto significa, e Derrida saberá
jogar com este problema até o final, que no próprio advento da linguagem como instância
de enunciação estará inscrita a possibilidade de negar toda referencialidade, toda
capacidade de fazer referência a “algo”. Haverá sempre, na linguagem de signos, a
possibilidade da palavra ser, como gostava de dizer Alexandre Kojève, o assassinato da
coisa.
Vimos, na aula passada, como Derrida procurava discutir esta natureza particular
da enunciação voltando-se se à discussão central de seu livro, a saber, o conceito
husserliano de signo. Derrida parte do comentário de um capítulo central do das
Investigações lógicas, intitulado : “Expressão e significado” (Ausdruck und Bedeutung).
Lá, Husserl afirma existir uma certa confusão no uso da palavra “signo” (Zeichen). Por
vezes, ele significa “expressão” (Ausdruck), por vezes “indicação” (Anzeigen). A
confusão nos faz esquecer que “todo signo e signo de algo, mas nem todos tem um
significado (Bedeutung) do qual o signo seria a expressão”8. Pois “signos no sentido de

5
AGAMBEN, Giorgio; A linguagem e a morte, p. 65
6
DERRIDA, ibidem, p. 15
7
AGAMBEN, ibidem, p. 55
8
HUSSERL, Logische Untersuchungen vol II Teil I, p. 23
índices (Anzeichen) nada expressam”; eles seriam bedeutunglos, sinnlos. O que não
significa um signo desprovido de significação, um signo que nada diz.
Husserl usa como exemplos de índice a relação entre a bandeira e a nação, fósseis
e animais pré-históricos, o stigma e o escravo. A respeito destes exemplos, Husserl dirá
que é índice tudo o que serve para indicar algo para uma essência pensante. Tal definição
é muito próxima da noção tradicional de signo como aquilo que designa algo para alguém.
Não é difícil perceber como estas definições não são claras a respeito do que, afinal,
devemos entender por “indicar algo” ou “designar algo”. Mais a frente, Husserl falará de
“indicar algo”, neste contexto, como uma relação de motivação que se apresenta de
maneira objetiva em processos associativos. Assim, Husserl recoloca o problema da
indicação no interior da discussão sobre associação de idéias que nos remetem a estados
de coisas, já a expressão não se submete à esta dinâmica de associações.
Contrariamente a Frege, Husserl não distingue Bedeutung e Sinn, ou seja, a
relação à referência e o sentido da proposição [“O homem que se chamava Josef Stalin”
é a Bedeutung, é a denotação das proposições “O guia genial dos povos” e “O coveiro da
revolução”; proposições que, como podemos ver, têm sentidos, têm conotações
absolutamente diferentes]. Mesmo quando esta distinção aparece, ela não desempenha a
mesma função que desempenha em Frege. Esta recusa em operar com tal distinção trará
conseqüências para a dicotomia expressão/indicação. Pois ela implica em anular o
problema da relação à referência extra-linguística enquanto problema central na definição
de operações de significação.
Neste sentido, a expressão sempre pressuporia a idealidade de uma Bedeutung.
No entanto: “poderíamos talvez, sem forçar a intenção de Husserl, definir, ou mesmo
traduzir, bedeuten por querer-dizer, ao mesmo tempo no sentido de um sujeito falante
“exprimindo-se”, como diz Husserl, “sobre algo”, quer dizer, e no sentido do que uma
expressão quer dizer”9. Trata-se pois de pôr uma idealidade objetiva como Bedeutung,
como objeto da intenção de um querer-dizer. Como dirá Derrida, a expressão deve ser
compreendida como o signo animando por um querer-dizer (sendo que o querer-dizer,
devido à natureza da relação de intencionalidade, será sempre o ato de visar uma relação
de objeto).
Este querer-dizer é modo de presença, intersubjetivamente partilhado, que o
sujeito encontra quando opera uma redução fenomenológica. Ele é a demonstração de
que o próprio conteúdo do sentido não é outro que a pura presença. Daí porque Husserl
afirma não ser possível admitir que um solilóquio seja uma comunicação por signos, pois:
“em um discurso (Rede) monológico, não podemos nos servir da palavra como índice
para o ser de um ato psíquico”10. Em um monólogo, não há possibilidade de dissociação
entre a palavra e o estado psíquico que é por ela expressado. Na fala que endereço a mim
mesmo quando digo, por exemplo: “Você agiu mal”, a palavra aparece como desprovida
de distância, sua intenção me é completamente transparente (de direito, não haveria
espaço para uma intenção inconsciente aqui). Por isto, segundo Husserl, seria necessário
abrir o campo da vida solitária da alma a fim de apreender a natureza da expressividade.
Notemos como a hipótese da vida solitária da alma visa provar que uma expressão sem
indicação é possível. Como se a distinção entre indicação e expressão acabasse por ser
fundamentada na idéia de “vida interior” 11. Na verdade, tudo o que é exterior será
atribuído ao índice. Por outro lado, ela mostraria como: “O significado (Bedeutung) de
uma expressão está fundamentado nos atos da intenção significante e da consumação

9
DERRIDA, ibidem, p. 18
10
HUSSERL, ibidem, p. 36
11
DERRIDA, ibidem, p. 79
intuitiva desta intenção – isto, claro está, não de um modo psicológico, mas no sentido de
uma fundamentação transcendental”12. Isto nos leva a esta afirmação maior de Derrida:

O telos da expressão integral é a restituição, na forma da presença, da totalidade


de um sentido atualmente dado à intuição. Estando este sentido determinado a
partir de uma relação ao objeto, o médium da expressão deve proteger, respeito,
restituir a presença do sentido ao mesmo tempo como estar-diante do objeto
disponível à um olhar e como proximidade a si na interioridade13.

Por outro lado, isto significaria dizer que, de uma certa forma, a expressão plena
escapa ao conceito de signo, isto se pensarmos na definição clássica de signo: aquilo que
representa alguma coisa para alguém. No entanto: “Derrida sugere que a tentativa
husserliana de apagar as funções externas e indicativas da linguagem através de uma série
de reduções que culminam em uma fala interior auto-endereçada, está condenada ao
fracasso”14.

O querer-dizer e a representação

Voltemos pois ao comentário do nosso texto no ponto em que o deixamos na aula passada,
a saber, o capítulo IV. Derrida compreende que o “nervo” da demonstração da diferença
entre expressão e indicação encontra-se nesta discussão referente à vida solitária da alma:

A função pura da expressão e do querer-dizer não é de comunicar, de informar, de


manifestar, ou seja, de indicar. Ora, a vida solitária da alma provará que uma
expressão sem indicação é possível. No discurso solitário, o sujeito aprende nada
sobre si mesmo, não se manifesta a si mesmo 15.

Alguns comentadores afirmarão que isto demonstra como: “A interpretação de


Derrida compreende que o significado (Bedeutung) é apenas a função de um signo
expressivo, expressividade que é obtida através da representação (Vorstellung) idealizada
de um sentido (Sinn) primordial dado como completamente ou simplesmente presente
(...) O resultado é a redução da expressão e de seu ‘medium’, a linguagem, à auto-afecção
de um discurso imaginado, como determinado em um solilóquio” 16. Mas devemos
desdobrar mais demoradamente as conseqüências desta operação.
Esta função do monólogo é essencial por nos revelar afinal o que devemos
entender por representação. Se Husserl pode dizer que, no monólogo, “não se comunica
nada a si mesmo, apenas representa-se a si mesmo como falando e comunicando”, é
porque a representação não está sendo entendida aqui como a presença de uma ausência,
mas como uma re-presentação, uma repetição da presença. Neste sentido, a representação
é o modo de repetição, sempre renovável, da presença no interior da idealidade da
consciência. É devido a este conceito de representação que podemos dizer que a
idealidade absoluta, própria à pura expressão, será o correlato de uma possibilidade de

12
HABERMAS, O discurso filosófico da modernidade, p. 166
13
DERRIDA, ibidem, p. 83
14
DEWS, Logic of disintegration, p. 19
15
DERRIDA, ibidem, p. 53
16
HOPKINS, Burt; Derrida's reading of Hussed in Speech and Phenomena: Ontologism and the
metaphysics of presence, Husserl Studies 2:193-214 (1985), p. 203
repetição indefinida, o que só é possível devido ao fato da representação aparecer como
a forma geral da presença:

A idealidade da forma da presença implica, com efeito, que ela possa se re-petir
ao infinito, que seu retorno, como retorno do mesmo, seja infinitamente necessário
e inscrito na presença como tal; que o retorno seja retorno de um presente que se
reterá em um movimento finito de retenção 17.

Signo, representação e idealidade são definidos a partir da noção de


iterabilidade. Um signo é constituído por um conjunto de elementos iterativos. No
entanto, esta possibilidade de repetição infinita é, ao mesmo tempo, o fundamento do
signo e sua dissolução. Ela é fundamento porque um fonema ou grafema só pode
funcionar como signo: “se uma identidade formal permite reeditá-lo e reconhecê-lo”.
Mas, como vimos, a pura expressividade desta presença fundamental pressuposta pela
repetição infinita implica dissolução da natureza comunicativa do signo enquanto
capacidade sua de presentificar algo ausente, de, através da palavra “cão”, atualizar o
animal que não está no hic et nunc. Como se no processo de clarificação da presença, a
relação à empiricidade da referência ausente fosse sendo apagada. Como se a referência
à idealidade em sua pureza fosse indissociável de uma certa forma de dissolução bem
enunciada nesta longa afirmação de Derrida:

Posso esvaziar todo conteúdo empírico, imaginar uma modificação absoluta do


conteúdo de toda experiência possível, uma transformação radical do mundo : a
forma universal da presença (tenho uma certeza estranha e única pois ela não
concerne estado determinado algum) não será afetada. É pois a relação à minha
morte (ao meu desaparecimento em geral) que se esconde nesta determinação do
ser como presença, idealidade, possibilidade absoluta de repetição. A
possibilidade do signo é esta relação à morte. A determinação e a dissolução do
signo na metafísica é a dissimulação desta relação à morte que, no entanto,
produziria a significação 18.

Este tema é central. Se a possibilidade do signo é esta relação à morte, outro nome
possível ao processo de esvaziamento do conteúdo empírico, de confrontação da palavra
com um certo vazio de objeto, então somos obrigados a admitir uma tensão interna à
determinação mesma da noção de presença. Pois a relação à desaparição em geral, à
morte, encontra-se paradoxalmente no cerne da determinação do ser como presença.
Como se a possibilidade da minha desaparição em geral devesse ser vivenciada para que
uma relação à presença em geral pudesse ser instituída. Daí esta passagem famosa onde
Derrida aproxima o cogito cartesiano à enunciação de um “Eu estou presente”, “Eu estou
sempre presente na possibilidade incessante de repetição da minha enunciação”.
Proposição que Derrida não deixa de aproximar da enunciação do Sr. Valdemar,
personagem do conto de Edgar Allan Poe : “Eu estou morto”, “Esta presença que nasce
através do cogito implica minha desaparição como empiricidade”. O que Derrida diz ao
falar da determinação de meu ser como res cogitans como: “o movimento através do qual
a origem da presença e da idealidade se oculta na presença e na idealidade que ela
possibilita”19. Questão que nos remete à discussão entre Foucault e Derrida a respeito da
natureza própria à fundamentação propiciada pelo cogito.

17
Idem, p. 76
18
DERRIDA, ibidem, p. 60
19
Idem, p. 61
Isto leva, por exemplo, alguém como Giorgio Agamben a dizer que: “A
centralidade da relação entre ser e presença na história da filosofia ocidental tem o seu
fundamento no fato de que temporalidade e ser têm a sua fonte comum no ´presente
incessante´ da instância de discurso. Mas – justamente por isso – a presença não é algo
simples, mas conserva em si, em vez disso o secreto poder do negativo” 20. Agamben
chegará mesmo a dizer que isto demonstra como a Voz fenomênica se estabelece como
“fundamento ontológico negativo”, como ela já teria uma função que, mais a frente,
Derrida reconhecerá na escritura 21.
Talvez possamos dizer que Derrida reconhece esta estranha negatividade no
interior mesmo da noção de presença. Ela aparece na maneira com que o filósofo francês
procura mostrar a coexistência tensa entre dois paradigmas da temporalidade em Husserl:
um, pontilhista, que privilegia a noção de instante, e outro, próprio à consciência interna
do tempo, que nos leva a discutir a noção de “retenção”.
Sobre o primeiro paradigma, sua necessidade vem do fato da presença a si dever
se produzir na unidade indivisa de um presente temporal. Derrida insiste que a evidência
da consciência está necessariamente vinculada à predominância do “agora” na
determinação da experiência do tempo. O tempo é uma sucessão de “agoras”, uma
sucessão de instantes. Esta dominância do “agora” nos remete àquilo que Heidegger
chamou de “conceito vulgar de tempo”: “Para a compreensão vulgar do tempo, este se
mostra como uma seqüência de agoras, sempre ‘simplesmente dados’, que, igualmente,
vêm e passam. O tempo é compreendido como o um após outro, como o ‘fluxo’ dos agora,
como ‘correr do tempo’. (...) Os agora são, por assim dizer, enquadrados nessas remissões
e se enfileiram simplesmente um ao outro para constituir a fila de um após outro” 22. Esta
“representação natural do tempo”, que teria um direito natural na dimensão do ser
cotidiano, estaria presente quando Husserl diz: “O agora atual é necessariamente e
permanece algo pontual, uma forma que persiste para sempre nova matéria”23..
Derrida compreende que este conceito vulgar de tempo está, por exemplo, na base
da rejeição husserliana da estrutura freudiana do tempo. Pois o tempo em Freud é
caracterizada pelo fato de conteúdos mentais inconscientes só advirem consciente a
posteriori (nachträglich). Ou seja, estamos diante de um tempo que só é presente a
posteriori, que em última instância nunca foi presente, que sempre foi vivenciado como
passado, como uma espécie de “passado puro” 24. Ao contrário, para Husserl é um
verdadeiro absurdo falar de conteúdo inconsciente que só adviria consciente a posteriori,
pois a consciência é necessariamente ser consciente em todas as suas fases e momentos.
Derrida chega mesmo a lembrar como, para Husserl, o agora pontual é a “arqui-forma”
(Urform) da consciência. O que talvez fique claro em afirmações como: “Todo agora do
vivido, mesmo o da fase inicial de um vivido que acaba de surgir, tem necessariamente
seu horizonte do antes. Mas este não pode ser, por princípio, um antes vazio, uma forma

20
AGAMBEN, A linguagem e a morte, p. 58
21
Daí porque Agamben deve afirmar, criticando Derrida, que: Identificar o horizonte da metafísica
simplesmente na supremacia da phonè e crer, então, poder ultrapassar este horizonte por meio do grámma
significa pensar a metafísica sem a negatividade que lhe é coessencial” (AGAMBEN, ibidem. P. 61)
22
HEIDEGGER, Ser e tempo, § 81
23
HUSSERL, Idéias para uma fenomenologia pura e para uma filosofia fenomenológica, §81
24
Ver, neste sentido, a idéia central de Gilles Deleuze: “Os personagens parentais não são termos últimos
de um sujeito, mas os termos médios de uma intersubjetividade, as formas de comunicação e de
mascaramento de uma série à outra para sujeitos diferentes, na medida que estas formas são determinadas
pelo transporte do objeto virtual. Atrás das máscaras á sempre máscaras e o mais escondido é ainda um
esconderijo, ao infinito” (DELEUZE, Différence et répétition, p. 140)
vazia sem conteúdo, um nonsense. Ele tem necessariamente a significação de um agora
passado, que capta nessa forma um algo passado, um vivido passado”25.
No entanto, Derrida vê uma contradição entre esta concepção de tempo e uma
outra, pressuposta pelas operações de retenção e protensão. Pois, apesar desta temática
do instante e do “agora”, Husserl nos impede de falar de uma simples identidade imediata
a si do presente. A presença do presente percebido compõe com uma não-presença e uma
não-percepção, a saber, com a lembrança e a experiência primárias (retenção e protensão).
A retenção, por exemplo, aparece como caso de uma percepção cujo percebido não é ou
foi um presente, mas um passado como modificação do presente, como uma “não-
percepção”, termo que Husserl utiliza na seção XVI das Lições sobre a consciência
interna do tempo. Isto permite a Derrida falar que tudo se passa como se existisse uma
continuidade, entre o agora e não-agora que destruiria toda a possibilidade de identidade
a si na simplicidade. Derrida pode estar também a pensar em afirmações de Husserl
segundo as quais:

todo vivo está num nexo de vividos essencialmente fechado em si não apenas do
ponto-de-vista da seqüência temporal, mas também do ponto de vista da
simultaneidade [neste sentido, o passado é, de uma certa forma, simultâneo ao
presente, ele é a distância do presente em relação a si mesmo]. Isso quer dizer
que todo agora de vivido possui um horizonte de vividos que também têm
justamente a forma originário do “agora”, e como tais constituem um único
horizonte de originariedade do eu puro, o seu agora de consciência completo e
originário [no entanto, este horizonte único de originariedade, deve nos lembrar
como “todo vivido carece de complemento” , como todo vivido está entre
retenção e representação]26.

Derrida vê assim uma contradição entre duas possibilidades irreconciliáveis, como


se fosse questão de encontrar uma outra lógica do tempo sob o paradigma instantaneista
: a) manter a idéia de que o agora vivo só se constitui como fonte perceptiva absoluta em
continuidade com a retenção enquanto não-percepção (Derrida chegará a falar que
estamos aqui diante da différance no interior do próprio processo de auto-afecção; como
ele mesmo lembrará: “O próprio Husserl evocou a analogia entre a relação ao alter ego
tal como ele se constitui no interior da mônada absoluta do ego e a relação ao outro
presente (passado) tal qual ela se constitui na atualidade absoluta do presente vivo” 27); b)
conservar a originareidade do presente vivo através do agora. Alguns comentadores verão
nesta leitura de Derrida uma certa confusão entre o “agora” do fluxo de consciência (onde
as três dimensões do tempo estão em simultaneidade) e o “agora” do presente vivo. Sem
entrar no mérito da questão, gostaria apenas de salientar que esta contradição é
fundamental para a leitura feita por Derrida pois ela demonstra a possibilidade de uma
diferença irredutível no interior mesmo da experiência da presença.

Voz e escritura

Os dois últimos capítulos são talvez os mais importantes do nosso livro. Neles, Derrida
expõe mais claramente as funções de sua dicotomia entre uma concepção de linguagem
onde a idealidade do significado está assentada na expressividade da voz e outra
concepção cuja disseminação do significado está assentada na noção de escritura.

25
HUSSERl, ibidem, § 82
26
HUSSERL, ibidem, p. §82
27
DERRIDA, La voix et le phénoméne, p. 77
A respeito do primeiro caso, Derrida dirá claramente que toda crítica da razão
deve começar por uma crítica do fonocentrismo, já que :

A metafísica, a filosofia, a determinação do ser como presença são a época da voz


como domínio técnico do ser-objeto, para bem compreender a unidade da tecné e
da phoné, faz-se necessário pensar a objetividade do objeto. O objeto ideal é o
mais objetivo dos objetos: independentemente do hic et nunc dos acontecimentos
e dos atos da subjetividade empírica que lhe visa, ele pode ser indefinidamente
repetido, continuando sempre o mesmo 28.

Aqui, encontramos novamente a idéia de que falar das coisas é necessariamente


impor um domínio técnico sobre o que falo, sobre o que se submete à estrutura da minha
fala. Falar das coisas é colocá-las diante de mim, é colocá-las neste espaço virtual a
respeito do qual eu sou o fundamento. Neste sentido, a objetividade do objeto é aquilo
que, no objeto, submete-se à minha fala, porque, em um peculiar giro copernicano (talvez
o mais astuto de todos, talvez o capítulo mais insidioso do idealismo), foi minha fala que
o instituiu. A fala arranca os objetos do hic et nunc, do aqui e do agora, para colocá-los
em um espaço que não teria a forma da mundaneidade. Neste espaço virtual de pura
presença, descubro que: “minhas palavras são ‘vivas’ porque elas parecem não me deixar,
não sair de mim, fora de meu sopro, em um distanciamento visível, não cessar de me
pertencer, de estar à minha disposição ‘sem acessório’”29.
Talvez seja por isto que Derrida pode dizer que a dissolução do corpo sensível e
da exterioridade é, para a consciência, a forma mesma da presença imediata do
significado. Pois o significado só pode ser aquilo que se dá na abertura da transcendência.
E nesta transcendência aberta pela fala está sempre implicado que eu posso me escutar
falando, que posso escutar minha própria voz, sentir minha própria presença em uma auto-
afecção de tipo absolutamente único. Assim, nasce não só a subjetividade ou o para si,
mas principalmente a identidade indissociável de um certo regime de funcionamento da
linguagem.
No entanto (e esse “no entanto” é aqui decisivo), esta auto-afecção coloca em
operação mais do que gostaria, ela dissemina algo que ela mesma não é capaz de controlar
inteiramente. Ela mostra como “a escritura habitava o interior da palavra”, como ela já
estava em trabalho na intimidade do pensamento. Pois Derrida não esquece que, se
minhas palavras parecem não me deixar, elas só podem ser vivas à condição de fundar
uma idealidade sempre negadora da minha empiricidade, ou seja, que só existe como
negação incessante de minha empiricidade. Pois: “Como o ideal sempre é pensado por
Husserl sob a forma da idéia kantiana, esta substituição da não-idealidade à idealidade,
da não-objetividade à objetividade é diferida ao infinito” 30. A univocidade da expressão
objetiva aparece como ideal inacessível, e esta inacessibilidade à consciência de algo que,
de uma certa forma, me constitui não e outra coisa que aquilo que Derrida entende por
différance.
Esta différance não é a diferença entre dois termos opostos (Um e múltiplo,
transcendental e psicológico, vivo e morto etc.). Ela não é uma diferença estruturada, mas
é uma diferença que, ao invés de aparecer na relação entre um termo e seu oposto, é a
diferença que aparece na relação entre fundamento e fundado. Não por acaso,
encontramos uma temática similar em outros autores franceses da época, como Deleuze
(Différence et répétition) e Lyotard (Le différend). Por isto, Derrida pode dizer que o

28
DERRIDA, ibidem, p. 84
29
Idem, p. 85
30
Idem, p. 112
movimento da différance não é objeto a um sujeito transcendental, ele produz toda e
qualquer figura do sujeito. O sujeito é o que está no lugar da différance como movimento
em direção ao fundamento.
Por outro lado, différance é o nome do efeito produzido pela escritura. Já sabemos
como a escritura : “torna o que foi dito independente do espírito do autor e da respiração
do destinatário, bem como da presença dos objetos discutidos. O médium da escritura
confere ao texto uma autonomia lítica em face de todos os contextos vivos” 31. Derrida
encontra algo disto em Husserl através de sua “última exclusão”, esta que distingue
querer-dizer e intuição, já que a unidade da intuição e da intenção nunca é homogênea. É
ela que me lembra como a ausência total de sujeito e de objeto de um enunciado – a morte
do escritor e a desaparição dos objetos que ele descreveu – não impedem um texto de
“querer-dizer”. Mas o que é uma escritura, um puro traço que se impõe lá onde nenhum
sujeito da consciência está mais presente, lá onde nenhum objeto já foi engendrado? Para
entender melhor a cena desta escritura, nós devemos passar de Husserl a um outro autor
que Derrida não cessará de se confrontar, vindo da mesma época: Sigmund Freud.

31
HABERMAS, ibidem, p. 342
Curso Derrida
Aula 7

Na aula de hoje, iniciaremos o módulo dedicado à relação entre Derrida e a psicanálise,


em especial através da leitura do texto Freud e a cena da escritura, de 1966. Trata-se, na
verdade, do fragmento de uma conferência pronunciada no Instituto de psicanálise, no
interior do seminário do psicanalista André Green. Texto fundamental não apenas por
permitir a introdução de uma das articulações maiores do pensamento de Jacques Derrida,
a saber, o reconhecimento da centralidade da relação entre psicanálise e filosofia. Este
texto é fundamental principalmente por fornecer, através da teoria freudiana da mente, o
modelo de um aparelho psíquico para além da filosofia da consciência. Podemos mesmo
dizer que, em Freud, Derrida encontra uma reflexão que lhe permite mostrar uma psique
que não se submeteria mais às críticas que vimos à ocasião de seus comentários sobre
Husserl e os limites da fenomenologia. Mais do que uma psique, temos através desta
leitura de Freud as bases de uma “escritura psíquica” que fornece a Derrida uma relação
entre escritura e experiência de si para além dos móbiles da filosofia da consciência. Uma
relação baseada principalmente no trabalho da memória e do sonho.
A este respeito, lembremos rapidamente como Derrida insistia no vínculo
essencial entre consciência e linguisticidade, entre consciência e estrutura da linguagem.
Vimos também como o filósofo francês elevara o “fonocentrismo” a uma espécie de
modelo hegemônico da linguagem no ocidente. Entendamos por “fonocentrismo”, neste
contexto, uma linguagem no interior da qual a enunciação e a possibilidade, de direito, da
expressibilidade integral da intenção fornecem o fundamento para os processos de
esclarecimento do sentido. De direito, a enunciação sempre pode expressar integralmente
a intenção. Expressão integral de uma intenção que não é apenas querer-dizer, mas
também visada em direção a um objeto transcendental. È isto que podemos derivar de
afirmações de Derrida como:

O telos da expressão integral é a restituição, na forma da presença, da totalidade


de um sentido atualmente dado à intuição. Estando este sentido determinado a
partir de uma relação ao objeto, o médium da expressão deve proteger, respeitar,
restituir a presença do sentido ao mesmo tempo como estar-diante do objeto
disponível à um olhar e como proximidade a si na interioridade1.

Tentemos desdobrar, em um outro quadro teórico, os pressupostos disto que


Derrida chama de fonocentrismo. Digamos que o aspecto mais importante de todo
fonocentrismo é a pressuposição de uma sólida identidade entre intencionalidade e força
perlocucionária do ato de fala, ou seja, força de modificação de estados de coisas,
modificação do campo de experiência no qual sujeitos estão inseridos. Isto significa que,
no momento em que se engaja em um ato de fala intencionalmente orientado, o sujeito
sempre pode, de direito mas nem sempre de fato, partir da pressuposição prévia de saber
o que quer dizer e como deve agir socialmente para fazer o que quer dizer. Este saber o
que se quer-dizer funda-se na pressuposição da presença, idealmente repetível, do objeto
à mim. Em outras palavras, podemos dizer que essa presença ideal me assegura que, em
situações de performatividade, terei uma representação prévia e fundamentada não apenas
do conteúdo intencional de meu ato de fala, mas também das condições objetivas de
satisfação de tal conteúdo. Este último ponto é o mais complexo. Por ser a fala, antes de

1
DERRIDA, La voix et lê phenomène, p. 83
mais nada, um modo de comportamento governado por regras e pelo meu conhecimento
sobre falar uma língua envolver, necessariamente, o domínio de um sistema de regras de
ação social, seguiria daí que o sujeito que fala teria sempre, de direito e previamente, a
possibilidade de saber como tal sistema de regras determina a produção do sentido da
ação em geral e dos atos de fala em particular.
Tal pressuposição é uma conseqüência derivada, entre outras coisas, do que está
em jogo naquilo que os pragmáticos chamam de "princípio de expressibilidade" com sua
definição de que sempre haverá um conjunto de proposições intersubjetivamente
partilhadas capaz de ser a exata formulação de um determinado conteúdo intencional 2.
Princípio que vale também para a regulação das expectativas referenciais dos usos da
linguagem, já que o fazer referência a algo ou a um estado de coisas implica na capacidade
performativa e intencional de identificar este algo através de uma expressão de sentido
intersubjetivamente partilhado.
Neste sentido, o recurso a Freud quebra o que seria o regime fonocêntrico, isto na
medida em que o psicanalista nos obrigaria a aceitar a existência de conteúdos
intencionais inconscientes. De uma certa forma, o que Freud diz é: há conteúdos
intencionais que não se submetem ao regime de presença e disponibilidade próprios à
consciência. A este respeito, lembremos como eu disse na quinta aula que Derrida
criticava o fato de que, para Husserl, não haveria expressão sem intenção voluntária,
como se um ato involuntário ou, como dirá Freud, à mesma época de Husserl, um ato
falho, não pudesse expressar algo. Como se consciência intencional e consciência
voluntária devessem ser tratadas como sinônimos. Por isto, Derrida podia dizer que,
apesar de todos os temas relativos à intencionalidade receptiva ou intuitiva, assim como
da gênese passiva, o conceito de intencionalidade estaria aprisionado à tradição de uma
metafísica voluntarista: “o sentido quer se significar, ele só se exprime em um querer-
dizer que é apenas um querer-se-dizer da presença do sentido”3.
Estas proposições são fundamentais e devem ser compreendidas em toda sua
extensão. Derrida quer dizer que, com a noção freudiana de inconsciente, não se trata
simplesmente de dizer que haveriam conteúdos intencionais expulsos da consciências,
alojados em outra cena e acessíveis novamente à consciência após operações complexas
de rememoração, de simbolização e de verbalização. Como se o inconsciente fosse uma
espécie de depósito de conteúdos mentais recalcados e de pulsões não-socializadas que
poderiam ser, depois dos processos analíticos, enfim acessíveis à consciência. Na
verdade, Freud teria trazido algo de natureza totalmente diferente. Sua noção de
inconsciente nos obrigaria a admitir que existem conteúdos e processos intencionais que
não se submetem à forma da consciência, o que no nosso caso só pode significar, que não
se deixam pensar a partir do regime de linguisticidade próprio à consciência. Por isto, a
análise de tais processos, ou seja, a análise do inconsciente e de suas formações (sonhos,
sintomas, atos falhos etc.) só é possível à condição de assumirmos que eles implicam um
outro regime de linguisticidade. Ou seja, o inconsciente não pressupõe apenas uma outra
cena de enunciação, mas uma outra forma de produção do sentido, um outro regime de
linguisticidade. É este outro regime que Derrida procura nos textos de Freud. Por isto,
Derrida precisa insistir:

2
Por « princípio de expressibilidade » entende-se que : « para qualquer sentido X e qualquer falante S,
não importa o que S queira dizer com X (intenções a expor, desejos a comunicação em um sentença, etc.),
é possível haver alguma expressão E de maneira que E seja a exata expressão ou formulação de X.
Simbolicamente : (S) (X) (S significa X →P ( E) (E é a expressão exata de X)) » (SEARLE, Speech
acts, p. 20)
3
DERRIDA, ibidem, p. 37
Não é um acaso que Freud, em momentos decisivos de seu itinerário, recorra a
modelos metafóricos que não são emprestados da linguagem falada, das formas
verbais, nem mesmo da escritura fonética, mas de uma grafia que nunca é
assujeitada, exterior e posterior à palavra falada. Freud faz apelo a signos que não
vem transcrever uma palavra viva e plena, presente a si e segura de si4.

Neste sentido, a importância do recurso à Freud é clara. Ela fornece o modelo para
pensar uma vida que não é mais a vida transcendental que vimos em Husserl, vida do
presente vivo, mas é agora uma espécie de vida pensada sob o signo da escritura, vida
que não precisa mais fazer apelo à centralidade do conceito de presença, vida para além
da metafísica da presença. Freud fornece à Derrida o modelo de uma psique radicalmente
distinta do horizonte regulador do conceito de consciência.

Sobre a relação entre filosofia e psicanálise em Derrida

Antes de iniciar a leitura de nosso texto, faz-se necessário contextualizar esta operação
peculiar de recurso filosófico à psicanálise. Pois, por um lado, ela não será realmente uma
novidade no interior da experiência intelectual francesa do século XX. Desde a
fenomenologia de Sartre e de Merleau-Ponty, o recurso filosófico à psicanálise era uma
constante. Basta lembrar da maneira com que Sartre, após uma crítica conhecida à
pretensa inconsistência da noção freudiana de um inconsciente pensado principalmente a
partir das operações de recalcamento, termina O ser e o nada exatamente através da
proposição de uma psicanálise existencial. Pensemos ainda a maneira com que a
psicanálise acompanha Merleau-Ponty desde a Fenomenologia da percepção, dedicados
várias sessões de seus cursos no Collège de Franca à psicanálise, chegando a propor, em
seu O visível e o invisível, fazer não uma psicanálise existencial, mas uma psicanálise
ontológica.
Após a fenomenologia, a psicanálise será peça maior dos debates em torno do
estruturalismo graças a Lacan. Lévi-Strauss havia desenvolvido uma noção de
inconsciente estrutural fundamental para o psicanalista francês. Lacan não só absorverá
este programa estrutural proposto por Lévi-Strauss como constituirá uma incessante
interface entre filosofia e psicanálise, entre tradição filosófica e problemas clínicos
ligados às ditas doenças mentais que aparecerá de maneira promissora para toda uma
grande geração de filósofos franceses. Desta conjunção entre antropologia estrutural e
psicanálise, sairá um programa influente de pesquisa que alcançará Foucault e Louis
Althusser. Por exemplo, em As palavras e as coisas, livro que sai praticamente na mesma
época que o texto de Derrida sobre Freud, Foucault reconhecerá a função central da
psicanálise na ultrapassagem de uma epistème ainda presa à filosofia do sujeito e na
reconstituição do campo das chamadas “ciências humanas”. A este respeito, ele dirá que:

no horizonte de toda ciência humana, há o projeto de trazer a consciência dos


homens às suas condições reais, de restituí-la aos conteúdos e formas que a
fizeram nascer e que nela se esquivam: é por isto que o problema do inconsciente
(...) não é simplesmente um problema interno às ciências humanas (...) mas é um
problema coextensivo à sua própria existência 5.

Mesmo que os desdobramentos do pensamento de Michel Foucault lhe levarão a ver, na


psicanálise, um astuto dispositivo disciplinar, é inegável que a frequentação de textos e
4
DERRIDA, Ecriture et différence, p. 296
5
FOUCAULT, Les mots et les choses, pp. 375-376
questões psicanalíticas foi fundamental para a constituição de seu próprio programa
filosófico.
Por outro lado, filósofos como Deleuze e Lyotard não figuram à regra. Deleuze,
por exemplo, sempre teve grande proximidade com certos campos empíricos das ciências
humanas, como a psicologia e a psicanálise. Já a escolha de escrever dissertações sobre
Hume e Bergson tinha um pano de fundo ligado a epistemologia da psicologia. Hume é
um teórico fundamental para o associacionismo (corrente maior da psicologia do início
do século XX e bastante criticada pela psiquiatria fenomenológica hegemônica em solo
francês nos anos 50). Por sua vez, Bergson era tratado como antípoda de uma perspectiva
associada em psicologia à crítica do chamado “mito da vida interior” (Politzer). Já sobre
a psicanálise, Deleuze se mostrará um leitor atento de Freud e Lacan. Isto é visível desde
“Apresentação de Sacher-Masoch”. Há uma recorrência constante à psicanálise em
Diferença e repetição e Lógica do sentindo, principalmente através da teoria das pulsões
e do fantasma com sua noção de objeto do fantasma.
No entanto, O anti-Édipo representa uma ruptura brutal em relação a tal
perspectiva de aproximação. Em larga medida, a resposta a tal ruptura (que também pode
ser encontrada em Foucault) concerne o impacto filosófico de maio de 68. O anti-Édipo
acabou conhecido com o livro que mais claramente sustentou as aspirações libertárias
globais que animaram a revolta de 68. Tais aspirações foram patrocinadas em larga
medida pela recuperação de uma crítica às instituições que se voltou necessariamente
contra a maneira com que a psicanálise seria dependente da inscrição do desejo no interior
das regras do núcleo familiar, da perpetuação de estruturas normativas burguesas de
socialização que seriam os verdadeiros núcleos de reprodução do capitalismo como forma
de vida.
O caso da relação entre Derrida e a psicanálise segue, no entanto, uma coreografia
distinta destas relações de proximidade e distância que animam as experiências
intelectuais de Foucault e Deleuze. Derrida sempre verá em Freud um interlocutor maior,
isto a ponto de dizer: “seria inútil lembrar que desde Da gramatologia e Freud e a cena
da escritura todos meus textos inscreveram o que chamaria de seu “alcance”
psicanalítico?”6. Maneira de reconhecer que toda a discussão sobre a definição mesmo de
“escritura’ encontrava na obra freudiana um apoio fundamental. Por outro lado, Derrida
sempre verá em Lacan um risco de retorno da psicanálise às vias de uma filosofia do
sujeito e à uma teoria da linguagem claramente fonocêntrica. Sua leitura de Freud será,
assim, em larga medida, autônoma e distante de certas elaborações maiores de Lacan (a
grande referência na psicanálise francesa da época). Pois ela se inscreve na sua estratégia
de fornecer uma dupla crítica a duas continuações possíveis do fonocentrismo: a
fenomenologia e o estruturalismo. Na verdade, o esforço de Derrida poderá ser descrito
como a tentativa de evidenciar, contra Lacan, que as elaborações freudianas abrem o
espaço para uma consideração sobre a relação entre linguagem e inconsciente
radicalmente estranha ao primado estruturalista e fora de considerações antropológicas
sobre o homem, filosóficas sobre a consciência e lacanianas sobre o sujeito.
Se quisermos organizar os vários momentos de confrontação entre Derrida e a
psicanálise, encontraremos quatro momentos relativamente distintos. O primeiro é
fornecido por Freud e a cena da escritura. Aqui, trata-se principalmente de se apoiar na
teoria freudiana do inconsciente, da memória e da temporalidade (lembremos como o
problema da temporalidade e da memória já eram apresentados, à ocasião do comentário
dos textos de Husserl, como caminho para a crítica da metafísica da presença), isto a fim

6
DERRIDA, Positions, p. 110
de fornecer as coordenadas gerais de uma reconstrução da psique para além da filosofia
da consciência.
Quase quinze anos depois, em 1981, Derrida retornará a Freud e a Lacan no livro
O cartão-postal: de Sócrates a Freud e além. Neste livro onde é questão da natureza da
escritura e do endereçamento, encontramos uma longa parte intitulada “Especular – sobre
“Freud”” onde é questão, principalmente, das conseqüências da teoria freudiana das
pulsões para a desconstrução. Uma leitura do texto Para além do princípio do prazer é
sugerida. Nela, Derrida mostra-se bastante cônscio da operação que faz. A teoria das
pulsões é o núcleo daquilo que Freud chamou de “metapsicologia” e que deve ser
compreendido como uma espécie de núcleo conceitual “especulativo” onde, a meu ver,
encontramos algo muito próximo de uma verdadeira ontologia do conflito (entre vida e
morte, se quisermos utilizar os termos empregados por Freud). Derrida serve-se desta
teoria para pensar uma “intencionalidade pulsional”, uma disposição em direção aos
objetos enraizada em uma concepção peculiar de impulso. Neste sentido, estas
elaborações visam complementar o que já se apresentava em Freud e a cena da escritura.
Um terceiro momento vem, novamente, quase quinze anos depois, com o
lançamento do livro Mal de arquivo, em 1995. Nesta época, Derrida também copila
alguns de seus textos dedicados à psicanálise em outro livro : Resistências à psicanálise,
de 1996. Servindo-se da metáfora da memória como arquivamento, Derrida procura
aprofundar as conseqüências de pensar operações de memória partindo da existência de
uma pulsão de morte, ou seja, de uma pulsão de dissolução e anulação do que a memória
procura arquivar. No fundo, trata-se de procurar pensar em profundidade o paradoxo de
um aparelho psíquico, como o proposto por Freud, onde a pulsão de morte não é um mero
entulho metafísico, mas um dispositivo central no funcionamento do aparelho.
Por fim, um último momento pode ser encontrado no livro Estados de alma da
psicanálise, de 2000. Se admitirmos uma certa leitura que procura definir os últimos
textos de Derrida como animados por algo que poderíamos chamar de “guinada ética”,
veremos que a psicanálise aparecerá como um regime de discurso capaz de pensar as
antinomias entre soberania e crueldade. Antinomias que, segundo Derrida, seriam peças
fundamentais para toda e qualquer reflexão ética.
Como vemos, o recurso à psicanálise é periodicamente renovado por Derrida, não
se limitando a momentos específicos e restritos de sua experiência intelectual. Esta
constância demonstra a centralidade da operação, aliando a psicanálise a outros discursos
(como a literatura) que permitiram a Derrida integrar a filosofia em um movimento de
tensão com outras áreas da cultura. Esta aproximação funcional entre psicanálise e
literatura, longe de ser compreendida como uma depreciação à objetividade analítica,
significa para Derrida reconhecimento da similitude entre discursos capazes de não se
submeterem ao regime fonocentrico da linguagem.

Escritura psíquica

Freud e a cena da escritura é um texto que procura apresentar as bases daquilo


que Derrida chama de “escritura psíquica”. Para tanto, Derrida propõe uma leitura
peculiar dos textos freudianos. Não será questão nem do comentário de conceitos
metapsicológicos maiores, nem da análise dos textos principais de Freud. Sobre o
primeiro ponto, Derrida insistirá na “reticência teórica em utilizar os conceitos freudianos
sem aspas: eles pertencem todos, sem nenhuma exceção à história da metafísica” 7. Ou
seja, mais uma vez, não se tratará (e Derrida é totalmente cônscio disto) de um comentário

7
DERRIDA, Ecriture et différence, p. 294
de texto, mas de uma desconstrução que visa expor aquilo que “da psicanálise, não se
deixar conter no interior da clausura logocêntrica”. Ou seja, aquilo que Freud produz
contra seus próprios conceitos, herdados de uma filosofia da consciência e de uma
psicologia da representação. Por isto, Derrida se baseia em três textos “marginais”, à
margem : um rascunho não-publicado (Projeto para uma psicologia científica), uma carta
(Carta n. 52, endereçada à Wilheim Fliess) e um pequeno texto que até então passara
praticamente desapercebido (Nota sobre o bloco mágico). Derrida vê, no encadeamento
dos três textos, uma progressão em direção à compreensão do aparelho psíquico como
uma máquina de escritura. Maneira de mostrar como: “não há psíquico sem texto” 8.
Comecemos com o Projeto para uma psicologia científica. Na aula que vem,
falaremos dos outros dois textos, a saber, a carta n. 52 a Fliess e a Nota sobre o bloco
mágico. Escrito em 1895 (ou seja, antes do texto fundador da psicanálise, a saber, A
interpretação dos sonhos, de 1900), este texto foi abandonado por Freud por considerar
seu programa, em larga medida, um fracasso. Sua intenção, diz Freud, era: ‘fornecer uma
psicologia como ciência natural, ou seja, apresentar os processos psíquicos como estados
quantitativamente determinados de partes materiais determináveis e, com isto, livra-los
de contradição”9. Neste sentido, o Projeto é a versão mais bem acabada da tentativa
freudiana de adequar as elaborações por ele desenvolvidas na clínica das neuroses
(principalmente após os Estudos sobre a histeria, de 1895) à neurologia. O que
encontraremos aqui é, entre outras coisas, a tentativa de descrever o aparelho psíquico
através de partes materiais que são, na verdade, neurônios. Derrida toma as descrições
neuronais de Freud como metáforas, o que, é claro, está longe das reais intenções de
Freud. De fato, Freud nunca deixará de ver a psicanálise como um setor avançado das
ciências naturais, mesmo que ele acabe rapidamente por abandonar o modelo neuronal
em prol de modelos do aparelho psíquico autônomos em relação às estruturas do cérebro.
No entanto, é inegável que elaborações presentes no Projeto serão absorvidas pelos
trabalhos posteriores de Freud.
No Projeto, Freud tem pois dois conceitos fundamentais: neurônios e quantidade.
Seguindo a tradição da psicologia experimental, a quantidade em questão aqui é
fundamentalmente quantidade de excitação (Erregung) que exige do aparelho psíquico
alguma forma específica de reação. Por isto, Freud pode falar que a quantidade é o que
diferencia a atividade do repouso 10. Esta excitação pode vir tanto do meio ambiente
externo quanto ser endógena (neste caso, Freud pensa naquilo que ele chama de Not des
Leben – a fome, a respiração e a sexualidade).
O aparelho psíquico, por sua vez, estaria constituído a partir de um princípio
fundamental de funcionamento : o princípio de inércia. Este princípio de inércia faz com
que os neurônios tendam normalmente a se desembaraçar das quantidades de excitação a
fim de conservar um estado anterior, o que demonstra como é a excitação que leva o
aparelho psíquico a abandonar sua tendência original ao repouso. Ao se desembaraçar de
tais quantidades, os neurônios voltariam ao seu estado original. Assim, o processo de
descarga (Abfuhr) aparece como a função primária do sistema nervoso. Se no caso das
excitações vindas do mundo externo, o aparelho psíquico pode se desembaraçar do
aumento da excitação através da motricidade, ou seja, fazendo o organismo afastar-se da
fonte de excitação, no caso das excitações endógenas, a descarga só pode significar

8
DERRIDA, Jacques; L’écriture et la différence, p. 297
9
FREUD, Nachtragsband, p. 387
10
Em As psiconeuroses de defesa, Freud compara quantidade, soma de excitação e a carga elétrica
espalhada pela superfície de um corpo. Em Estudos sobre a histeria ela estabelece analogias entre quota
de afeto e excitação elétrica nas vias condutoras do encéfalo.
satisfazer as exigências ligadas à fome e à sexualidade, já que a motricidade neste caso é
sem conseqüência.
No entanto, esta satisfação exige que o aparelho psíquico seja apto a realizar
funções específicas. Funções estas que exigem a existência de algo como a memória que,
por sua vez, depende da capacidade de “armazenamento (Aufspeicherung) de
quantidades” de energia. Para que exista memória, faz-se necessário que as excitações
deixem marcas, traços duráveis 11. Mas se a memória depende da capacidade de
armazenamento, ela implica também uma capacidade de conservar modificações que
aparentemente entra em contradição com a tendência à descarga. Neste sentido, a
explicação da existência da memória aparece como uma das funções fundamentais do
manuscrito freudiano.
Freud lembra como toda teoria psicológica digna deste nome deve ser capaz de
explicar um fenômeno como a memória. Como dirá Derrida: “a memória não é uma
propriedade entre outras do psiquismo, ela é a própria essência do psiquismo” 12. No
entanto, explicar a memória não será algo simples para Freud. Pois ele não quer aceitar
versões de alguma teoria localizacionista da atividade cerebral, teoria que afirma ter o
cérebro neurônios qualitativamente distintos, dispostos em regiões cerebrais precisas e
responsáveis por funções específicas. Ou seja, ele não pode apelar à existência de um
conjunto de neurônios, qualitativamente distintos, responsáveis pela memória. Neste
sentido, sua perspectiva é profundamente distinta daquela presente nos estudos do cérebro
desde Franz Joseph Gall. Foi Gall que, no começo do século XIX, propôs primeiramente
que a funções específicas da atividade mental tem sua sede em localizações específicas
da estrutura cerebral (Gall chega a identificar 27 localizações que responderiam por 27
faculdades mentais como : esperança, sublimidade, idealidade, tempo, causalidade, auto-
estima, entre outros).
A solução freudiana consistirá em dizer que o aparelho psíquico conheceria, ao
menos, duas categorias de neurônios que se distinguem devido simplesmente ao nível de
resistência produzida nos pontos de contato entre um neurônio e outro. Para designar tais
pontos, Freud utiliza o termo “barreira de contato” (Kontaktschranken). Se estas barreiras
permitem a passagem sem entraves de quantidades, então temos “neurônios permeáveis”.
Se, ao contrário, tais barreiras dificultam a passagem de quantidades, então teremos
“neurônios impermeáveis”, resistentes e retentores de quantidades. A memória depende
destes últimos, que Freud chamará de neurônios ψ. Os primeiros seriam responsáveis pela
percepção, recebendo o nome de neurônios φ. Que a percepção seja caracterizada por
neurônios permeáveis, isto se explica pelo fato da recepção a novas sensações e
excitações ser condição maior para a sobrevivência do organismo e para a plasticidade de
sua relação ao meio ambiente. Esta distinção entre a passividade da percepção que recebe
as impressões externas e a atividade da memória será uma constante na teoria freudiana
da mente.
A descrição de Freud segue, em larga medida o seguinte esquema: uma quantidade
Q de excitação passa pelos neurônios φ e atingem os neurônios responsáveis pela
memória. Se ela for muito intensa, se sua repetição for freqüente, ela abrirá caminhos
entre as barreiras de contato. Senão, elas não modificarão o contato entre neurônios. Este
11
Joel Birman resume bem o conceito de memória no Projeto: “A memória seria um conjunto de marcas
neurobiológicas, denominadas e engramas, nas quais tais marcas seriam as resultantes das resistências que
se oporiam à livre circulação das excitações. Neste contexto, o organismo visaria a descarga total das
excitações, pela sua tendência fundamental à inércia. Porém, como tal descarga absoluta implicaria na
morte do organismo, a “urgência da vida” se oporia então à dita descarga total. Com isso, a descarga seria
apenas parcial, de forma somente que uma parcela das excitações se manteria circulante no organismo”.
(BIRMAN, Escritura e psicanálise: Derrida, leitor de Freud)
12
DERRIDA, ibidem, p. 299
ato de abrir caminhos, que Freud associa à dor, é o que ele chama de Bahnung (que, em
português traduzimos ou por “facilitação” ou por “trilhamento”). A memória é, de fato,
representada por estes caminhos de condução de excitações que encontramos nos
neurônios ψ. Como vemos, trata-se aparentemente de um mero jogo de forças entre
pressão de quantidades de excitação e resistência. Como se a significação, evento
necessário aos fenômenos da memória, nascesse da força pressuposta pela intensidade,
pela repetição e pela resistência.
Neste ponto, podemos entender melhor o que Derrida tem em vista ao afirmar que:
“a vida psíquica não é nem a transparência do sentido, nem a opacidade da força, mas a
diferença no trabalho das forças. Nietzsche já havia dito isto” 13. Há uma longa tradição
de leituras sobre a psicanálise freudiana que insiste em uma dicotomia entre a linguagem
da força e a linguagem do sentido presente na metapsicologia. Por um lado, Freud seria
ainda dependente das expectativas científicas da psicologia experimental do final do
século XIX e das Naturwisseschaften. Por isto, os processos psíquicos deveriam ser
descritos a partir de um vocabulário onde se mistura neurologia e metáforas científicas
vindas da termodinâmica (força, energia, pressão, descarga etc.). Mas, por outro, sua
experiência intelectual abriria espaço para uma hermenêutica do sentido, onde a cura seria
pensada a partir do modelo de interpretações de uma consciência que paulatinamente
apreenderia reflexivamente suas próprias produções. Neste sentido, Freud se aproximaria
das Geistwisseschaften. Como dirá, por exemplo, Paul Ricoeur: “O discurso de Freud se
apresenta como um discurso misto, às vezes, ambíguo, que tanto enuncia conflitos de
força passíveis de uma energética, tanto enuncia relações de sentido passíveis de uma
hermenêutica”14.
Derrida procura, na verdade, mostrar como, em larga medida, o pensamento
freudiano mostra a primazia dos puros jogos de força, daí a aproximação sugerida entre
Freud e Nietzsche. A aproximação serve para demonstrar que a aceitação do vocabulário
da força não pode ser compreendida como a aceitação de uma certa inscrição do
freudismo em alguma forma de naturalismo. Na verdade, Derrida vê nisto a figura de uma
memória que funciona como escritura sem consciência, escritura que mostra, à
contracorrente do que poderíamos esperar, que a memória não é um atributo da
consciência. De fato, Derrida precisa insistir que, em Freud, encontramos inicialmente a
idéia da memória como um sistema de Bahnungen, de ligações neuronais ou, se quisermos
utilizar um termo caro a Derrida, de traços que foram constituídos levando em conta
apenas diferenças entre jogos de forças. A este respeito, Derrida falará de “topografia de
traços”, “mapa de trilhamentos”, “espaçamento”.
Por outro lado, ao introduzir a ideia de que a vida psíquica é a diferença no
trabalho das forças, Derrida lembra como os trilhamentos mostram como as resistências
entre os neurônios não podem ser todas equivalentes. Caso assim fosse, a memória seria
paralisada já que não existiria diferença alguma na escolha dos itinerários. Isto permite a
Derrida insistir que uma diferença de intensidades, sem inscrição qualitativa, é o que
funda a vida psíquica. Isto nos permite pensar a vida como traço, antes de tentar
determinar o ser como presença.
Neste sentido, Derrida pode ainda se apoiar no fato de, no Projeto para uma
psicologia científica, Freud introduzir a consciência apenas como uma terceira categoria
de neurônios, por ele chamada de neurônios ω. Todo processo que vai da percepção à
memória seria feito sem apelo à consciência. Caberia à consciência apenas a
transformação de relações de quantidade em diferenças de qualidade. Em especial,
caberia à consciência operar as distinções qualitativas próprias às sensações conscientes
13
Idem, p. 299
14
RICOEUR, De l´interpretation, p. 78
de prazer e desprazer, base para a construção de julgamentos. Mesmo neste caso, a
distinção qualitativa entre prazer e desprazer será compreendida a partir da noção de
assimilação do período de uma excitação, do tempo de retorno de uma excitação.
Curso Jacques Derrida
Aula 8

Nesta aula, continuaremos a leitura de “Freud e a cena da escritura”. Vimos na


aula passada como o recurso derridiano a Freud visava quebrar o regime fonocêntrico de
funcionamento da linguagem, isto na medida em que Freud insistia na existência de
conteúdos intencionais inconscientes. De uma certa forma, o que Freud diz é: há
conteúdos intencionais que não se submetem ao regime de presença e disponibilidade
próprios à consciência. A este respeito, pedi que vocês lembrassem como eu dissera, na
aula 5, que Derrida criticava o fato de que, para Husserl, não haveria expressão sem
intenção voluntária, como se um ato involuntário ou, como dirá Freud, à mesma época de
Husserl, um ato falho, não pudesse expressar algo. Como se consciência intencional e
consciência voluntária devessem ser tratadas como sinônimos. Por isto, Derrida podia
dizer que, apesar de todos os temas relativos à intencionalidade receptiva ou intuitiva,
assim como da gênese passiva, o conceito de intencionalidade estaria aprisionado à
tradição de uma metafísica voluntarista: “o sentido quer se significar, ele só se exprime
em um querer-dizer que é apenas um querer-se-dizer da presença do sentido”1.
Estas proposições são fundamentais e devem ser compreendidas em toda sua
extensão. Derrida quer dizer que, com a noção freudiana de inconsciente, não se trata
simplesmente de dizer que haveriam conteúdos intencionais expulsos da consciências,
alojados em outra cena e acessíveis novamente à consciência após operações complexas
de rememoração, de simbolização e de verbalização. Como se o inconsciente fosse uma
espécie de depósito de conteúdos mentais recalcados e de pulsões não-socializadas que
poderiam ser, depois dos processos analíticos, enfim acessíveis à consciência. Uma noção
de inconsciente construída a partir o modelo de eventos passados que foram, em dado
momento, presentes à consciência mas que, devido à forte excitação que eles produziram,
deveriam ser expulsos da consciência.
No entanto, Freud teria trazido algo de natureza totalmente diferente. Sua noção
de inconsciente nos obrigaria a admitir que existem conteúdos e processos intencionais
que não se submetem à forma da consciência, o que no nosso caso só pode significar, que
não se deixam pensar a partir do regime de linguisticidade próprio à consciência. Eventos
que, neste sentido, nunca foram conscientes. Por isto, a análise de tais processos, ou seja,
a análise do inconsciente e de suas formações (sonhos, sintomas, atos falhos etc.) só é
possível à condição de assumirmos que eles implicam um outro regime de linguisticidade.
É este outro regime que Derrida procura nos textos de Freud. Neste sentido, o texto é uma
reflexão sobre a especificidade do conceito freudiano de inconsciente, assim como sobre
a maneira com que o inconsciente freudiano nos permitir nos livrarmos do amálgama
entre vida psíquica e metafísica da presença. Isto implica, como veremos, uma
reconsideração sobre a temporalidade própria à vida psíquica, assim como uma profunda
reflexão sobre as relações entre linguagem e operações mentais. Derrida partirá das
considerações freudianas de operações mentais como a memória e os sonhos, isto a fim
de mostrar como elas nos colocam diante de um funcionamento da linguagem muito
próximo daquele que a desconstrução pressupõe.
Isto talvez nos explique melhor porque o conceito central em Freud e a cena da
escritura é “escritura psíquica”. Ou seja, o regime de escritura pressuposto pelas
operações do psiquismo. Aqui, devemos levar em conta como Derrida procura mostrar,
em Freud, o advento de uma metáfora radicalmente nova na compreensão do mental : a

1
DERRIDA, ibidem, p. 37
metáfora da máquina de escritura não fonética : “O conteúdo mental será representado
por um texto de essência irredutivelmente gráfica. A estrutura do aparelho psíquico será
representada por uma máquina de escritura”2. No entanto, esta metáfora freudiana do
psiquismo não é idêntica a outras metáforas que conhecemos, como as metáforas óticas
da consciência (com seus termos óticos como: reflexão, especulação, clarividência, auto-
observação, luz natural da razão) ou, mais recentemente, as metáforas computacionais.
Se toda descrição possível do psiquismo deve operar por metáforas, nem todas as
metáforas se equivalem. Pois há metáforas que, longe de serem a comparação entre dois
conhecidos (como quando digo “Seu discurso foi leonino” e coloco em relação dois
termos de sistemas distintos, mas previamente conhecidos), são a desconstrução do
conhecido: “Através da insistência de seu investimento metafórico, Freud transforma em
enigmático aquilo que conhecemos sob o nome de escritura” 3. Um pouco como se certa
metáforas não visassem, através de analogias, clarificar o que elas procuram descrever,
mas reconstruir a linguagem a partir de um fundamento que não é, em si, claro. È assim
que podemos compreender uma afirmação como:

Não deveremos nos perguntar se um aparelho de escritura, como este descrito na


Nota sobre o bloco mágico, é uma boa metáfora para representar o funcionamento
do psiquismo; mas qual aparelho devemos criar para representar a escritura
psíquica, e o que significa, quanto ao aparelho e quanto ao psiquismo, a imitação
projetada e liberada em uma máquina, de algo como a escritura psíquica 4.

Em que condições podemos projetar a escritura psíquica, o que ela impõe para a
própria compreensão do que é uma metáfora? Certamente, e esta é uma frase fundamental,
“não há psíquico sem texto”, nem há texto sem origem psíquica. Mas nada disto significa
dizer que o psíquico seja um “mero” texto. Antes, seria correto dizer que o psíquico
reconstrói nossa noção trivial de texto, abrindo-nos para “o sentido da escritura no sentido
corrente”.
Três são os passos dados por Derrida na análise do que seria o conceito freudiano
de escritura psíquica. Em todos estes passos, vemos o aprofundamento de um problema
central que derivaria dos textos freudianos, a saber, o problema da memória. Derrida
chega a afirmar que: “A memória não é uma propriedade do psíquico entre outras, ela é
a essência mesma do psíquico” 5. No fundo, Freud e a cena da escritura é um texto sobre
como o conceito freudiano de memória nos obriga a sair dos limites de uma filosofia da
consciência.
Vimos, na aula passada, como Derrida iniciava seu trajeto comentando um
manuscrito de Freud, datado de 1895: Projeto para uma psicologia científica. Este texto
foi abandonado por Freud por considerar seu programa, em larga medida, um fracasso.
Sua intenção, diz Freud, era: ‘fornecer uma psicologia como ciência natural, ou seja,
apresentar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partes
materiais determináveis e, com isto, livra-los de contradição”6. Neste sentido, o Projeto
é a versão mais bem acabada da tentativa freudiana de adequar as elaborações por ele
desenvolvidas na clínica das neuroses (principalmente após os Estudos sobre a histeria,
de 1895) à neurologia. O que encontraremos aqui é, entre outras coisas, a tentativa de
descrever o aparelho psíquico através de partes materiais que são, na verdade, neurônios.

2
DERRIDA, Ecriture et différence, p.297
3
Idem, p. 296
4
Idem, p. 297
5
Idem, p. 299
6
FREUD, Nachtragsband, p. 387
Derrida toma as descrições neuronais de Freud como metáforas, o que, é claro, está longe
das reais intenções de Freud. Na verdade, ele as toma como os rudimentos da construção
metafórica de uma máquina de escritura.
O aparelho psíquico, por sua vez, estaria constituído a partir de um princípio
fundamental de funcionamento : o princípio de inércia. Este princípio de inércia faz com
que os neurônios tendam normalmente a se desembaraçar das quantidades de excitação a
fim de conservar um estado anterior, o que demonstra como é a excitação que leva o
aparelho psíquico a abandonar sua tendência original ao repouso. Ao se desembaraçar de
tais quantidade, os neurônios voltariam ao seu estado original. Assim, o processo de
descarga (Abfuhr) – pensado principalmente como descarga através da fuga - aparece
como a função primária do sistema nervoso. Se no caso das excitações vindas do mundo
externo, o aparelho psíquico pode se desembaraçar do aumento da excitação através da
motricidade, ou seja, fazendo o organismo afastar-se da fonte de excitação, no caso das
excitações endógenas, a descarga só pode significar satisfazer as exigências ligadas à
fome e à sexualidade, já que a motricidade neste caso é sem conseqüência.
No entanto, esta satisfação exige que o aparelho psíquico seja apto a realizar
funções específicas. Temos então duas funções : funções primárias (ligadas à tendência à
descarga) e funções secundárias (ligadas às ações específicas). Tais funções secundárias
exigiriam a existência de algo como a memória que, por sua vez, depende da capacidade
de “armazenamento (Aufspeicherung) de quantidades” de energia. Para que exista
memória, faz-se necessário que as excitações deixem marcas, traços duráveis 7. Mas se a
memória depende da capacidade de armazenamento, ela implica também uma capacidade
de conservar modificações; o que aparentemente entra em contradição com a tendência à
descarga. Neste sentido, a explicação da existência da memória aparece como uma das
funções fundamentais do manuscrito freudiano.
A solução freudiana consistirá em dizer que o aparelho psíquico conheceria, ao
menos, duas categorias de neurônios que se distinguem devido simplesmente ao nível de
resistência produzida nos pontos de contato entre um neurônio e outro. Para designar tais
pontos, Freud utiliza o termo “barreira de contato” (Kontaktschranken). Se estas barreiras
permitem a passagem sem entraves de quantidades, então temos “neurônios permeáveis”.
Se, ao contrário, tais barreiras dificultam a passagem de quantidades, então teremos
“neurônios impermeáveis”, resistentes e retentores de quantidades. A memória depende
destes últimos, que Freud chamará de neurônios ψ. Os primeiros seriam responsáveis pela
percepção, recebendo o nome de neurônios φ. Que a percepção seja caracterizada por
neurônios permeáveis, isto se explica pelo fato da recepção a novas sensações e
excitações ser condição maior para a sobrevivência do organismo e para a plasticidade de
sua relação ao meio ambiente. Esta distinção entre a passividade da percepção que recebe
as impressões externas e a atividade da memória será uma constante na teoria freudiana
da mente.
A descrição de Freud segue, em larga medida o seguinte esquema: uma quantidade
Q de excitação passa pelos neurônios φ e atingem os neurônios responsáveis pela
memória. Se ela for muito intensa, se sua repetição for freqüente, ela abrirá caminhos
entre as barreiras de contato. Senão, elas não modificarão o contato entre neurônios. Este

7
Joel Birman resume bem o conceito de memória no Projeto: “A memória seria um conjunto de marcas
neurobiológicas, denominadas e engramas, nas quais tais marcas seriam as resultantes das resistências que
se oporiam à livre circulação das excitações. Neste contexto, o organismo visaria a descarga total das
excitações, pela sua tendência fundamental à inércia. Porém, como tal descarga absoluta implicaria na
morte do organismo, a “urgência da vida” se oporia então à dita descarga total. Com isso, a descarga seria
apenas parcial, de forma somente que uma parcela das excitações se manteria circulante no organismo”.
(BIRMAN, Escritura e psicanálise: Derrida, leitor de Freud)
ato de abrir caminhos, que Freud associa à dor (pois a dor é o que indica a irrupção de
grandes quantidades em ψ; daí porque, diz Freud, ela seria “o mais imperioso de todos os
processos”) , é o que ele chama de Bahnung (que, em português traduzimos ou por
“facilitação” ou por “trilhamento”). A memória é, de fato, representada por estes
caminhos de condução de excitações que encontramos nos neurônios ψ. Como vemos,
trata-se aparentemente de um mero jogo de forças entre pressão de quantidades de
excitação e resistência. Como se a significação, evento necessário aos fenômenos da
memória, nascesse da força pressuposta pela intensidade, pela repetição e pela resistência.
Como se a “força produzisse o sentido” 8.
Vimos, na aula passada, como podíamos, a partir daí, entender melhor o que
Derrida tem em vista ao afirmar que: “a vida psíquica não é nem a transparência do
sentido, nem a opacidade da força, mas a diferença no trabalho das forças. Nietzsche já
havia dito isto”9. Há uma longa tradição de leituras sobre a psicanálise freudiana que
insista em uma dicotomia entre a linguagem da força e a linguagem do sentido presente
na metapsicologia. Por um lado, Freud seria ainda dependente das expectativas científicas
da psicologia experimental do final do século XIX e das Naturwisseschaften. Por isto, os
processos psíquicos deveriam ser descritos a partir de um vocabulário onde se mistura
neurologia e metáforas científicas vindas da termodinâmica (força, energia, pressão,
descarga etc.). Mas, por outro, sua experiência intelectual abriria espaço para uma
hermenêutica do sentido, onde a cura seria pensada a partir do modelo de interpretações
de uma consciência que paulatinamente apreenderia reflexivamente suas próprias
produções. Neste sentido, Freud se aproximaria das Geistwisseschaften.
Derrida procura, na verdade, mostrar como, em larga medida, o pensamento
freudiano mostra a primazia dos puros jogos de força, daí a aproximação sugerida entre
Freud e Nietzsche. A aproximação serve para expor a figura de uma memória que
funciona como escritura sem consciência, escritura que mostra, à contracorrente do que
poderíamos esperar, que a memória não é um atributo da consciência. De fato, Derrida
precisa insistir que, em Freud, encontramos inicialmente a idéia da memória como um
sistema de Bahnungen, de ligações neuronais ou, se quisermos utilizar um termo caro a
Derrida, de traços que foram constituídos levando em conta apenas diferenças entre jogos
de forças. A este respeito, Derrida falará de “topografia de traços”, “mapa de
trilhamentos”, “espaçamento”.
Neste sentido, Derrida pode ainda se apoiar no fato de, no Projeto para uma
psicologia científica, Freud introduzir a consciência apenas como uma terceira categoria
de neurônios, por ele chamada de neurônios ω. Todo processo que vai da percepção à
memória seria feito sem apelo à consciência. Caberia à consciência apenas a
transformação de relações de quantidade em diferenças de qualidade. Em especial,
caberia à consciência operar as distinções qualitativas próprias às sensações conscientes
de prazer e desprazer, base para a construção de julgamentos. Mesmo neste caso, a
distinção qualitativa entre prazer e desprazer será compreendida a partir da noção de
assimilação do período de uma excitação, do tempo de retorno de uma excitação.
Esta posição extemporânea da consciência fica ainda mais clara em uma carta de
Freud a Fliess (n.52). Aqui, Freud apresenta um esquema onde descreve mais claramente
o que seria o trajeto que vai da percepção de um estímulo à formação de uma
representação consciente a ele associado. No Projeto, entre a percepção e a consciência,
havia a memória. Na carta, Freud descreve a memória através de três estratos distintos
que se formam sucessivamente : os signos de percepção (I), o inconsciente (II) e o pré-
consciente (III). Esta estratificação é fundamental por indicar as sucessivas modificações
8
Idem, p. 316
9
Idem, p. 299
das inscrições geradas pelo estímulo até alcançar a representação consciente. Pois, como
dirá o próprio Freud: “o que há de essencialmente novo em minha teoria é a ideia de que
a memória está presente não apenas uma, mas várias vezes e que se compõe de diversas
formas de “signos””10.
O que há de essencialmente novo aqui é a ideia de que a memória produz
inscrições em um sistema estratificado onde a passagem de um estrato a outro nunca é
uma simples tradução, mas uma transcrição (Umschrift). Através destas reinscrições em
estratos, os traços mnésicos são periodicamente reordenados. Toda nova inscrição
modifica a inscrição precedente. Por outro lado, muitas vezes a passagem de certos traços,
de um estrato a outro, é bloqueada através de recalques. Assim, o que chega à
representação da consciência muito pouco tem a ver com o estímulo que apareceu no
nível da percepção.
De fato, Israel Rosenfield mostrou como Freud havia reconhecido o caráter
fragmentário e ambíguo das imagens da memória. Pois elas não são arquivadas como
impressões de coisas. Seu caráter fragmentário é o que permite, inclusive, os processos
de deslocamento e de condensação presentes nas formações oníricas. Não é a ausência de
contexto que faz o sonho retrabalhar a lembrança, sobredeterminá-la. Antes, as próprias
lembranças foram armazenadas como fragmentos. Neste sentido, a atualização de uma
lembrança nunca poderá ser a mera apresentação de um conteúdo previamente arquivado.
Ela é a construção de um sentido a partir das exigências do presente. Derrida alude a isto
ao afirmar:

O texto consciente não é uma transcrição porque ele não teve que transpor, que
transportar um texto presente em outro lugar, sob a forma do inconsciente (...) Não
há verdade inconsciente a encontrar como se ela estivesse escrita em outro lugar.
Não há texto presente e escrito em outro lugar, que daria lugar, sem ser
modificado, a um trabalho e a uma temporalização (esta pertencendo, se seguimos
a literalidade freudiana, à consciência) que lhes seria exterior e flutuaria em sua
superfície11.

Se não há texto presente em outro lugar, é porque a memória não é um


arquivamento, mas uma contínua e incessante interpretação. Pois as lembranças não são
imutáveis, mas são reconstituições operadas sobre o passado e em contínuo
remanejamento. Não se trata de unidades discretas perpetuando-se através do tempo. O
que temos é um sistema dinâmico que, a partir do presente, integra traços mnésicos em
relações que se constituem a posteriori (nachträglich). Isto levou Ronselfield a afirmar,
sobre Freud:

Na verdade, nós todos recriamos o passado, e uma repetição não deve ser
compreendida como um ato simbolizando um acontecimento que já ocorreu, mas
como uma história global de esforços desdobrados para reaprender o passado,
história situada em um contexto dado, em um certo momento, que é este própria
à repetição12.

O que demonstra como, fora do presente, a memória não existe. Ela faz da tríade
passado/presente/futuro não uma sucessão, mas uma conexão que, muitas vezes, se
justapõe. Como não é apenas uma retenção, mas atividade, a memória não conhece

10
FREUD, Carta 52
11
DERRIDA, ibidem, p. 313
12
ROSENFIELD, L´invention de la mémoire, p. 90
passado estático, ou futuro não-realizado. A este respeito, lembremos, como dirá
Loewald, que esta reinscrição do passado a partir do presente não modifica “o que
objetivamente aconteceu no passado”, mas modifica o passado que o paciente carrega
consigo em sua história vivida. No entanto, vale a pena meditar sobre o fato de que:

Qualquer verdade histórica – independente do que Freud tenha pensado a respeito


do estatuto da realidade objetiva e da verdade da objetividade – é uma
reconstrução ou construção que reestrutura de uma maneira nova o que já no
tempo no qual isto realmente ocorreu foi uma construção mental, uma estrutura
mnésica inconscientemente construída pelos agentes temporais da mente 13.

Ou seja, “o que objetivamente aconteceu no passado” já era, desde sempre uma


construção mental, pois já foi, desde sempre, uma interpretação que visava decidir a
natureza do sentido do fato. Não conhecemos nada como um “fato bruto” cujo sentido
esteja para além de conflitos de interpretação. No processo de interpretação social,
mobilizamos repetições, expectativas, medos que organizam os julgamentos enunciados.
O que temos desde o início é um conjunto de discursos que são reatualizados a partir de
acontecimentos que, por sua vez, pedem inscrições simbólicas. Neste sentido, a
modificação de como sujeitos vivem fatos passados já é, de alguma forma, a modificação
do que objetivamente aconteceu. Se a psicanálise foi sensível a força de reinscrição, é
porque:

A memória, na psicanálise, não é apenas uma faculdade ou função do intelecto


através da qual a mente registra, retém e procura lembra-se de experiências,
acontecimentos e objetos. Para ela, a memória tem a ver como separação, perda,
luto, restituição e geralmente traz consigo o sentido de nostalgia, especialmente
quando ficamos velhos 14.

Esta é uma colocação importante que ultrapassa o quadro estrito das técnicas de
intervenção clínica. Da mesma forma como não há percepção bruta, ou seja, a percepção
não é apenas o registro da presença de objetos, mas toda percepção é juízo carregado da
memória das percepções passadas, há faculdades conceituais em operação na mais
simples percepção, o rememorado nunca é um mero fato, pois de nada nos interessam
fatos. Rememoramos experiências como separação, luto e perdas; experiências que, por
sua vez, são continuamente recompreendidas através de sua articulação contínua com
acontecimentos posteriores. Um pouco como estas cadeias significantes em Lacan nas
quais o acréscimo de um elemento tem a capacidade de mudar retroativamente o sentido
de todos os demais.
Lembremos, por exemplo, de como funciona o trabalho de luto. Freud tem um
descrição clara do processo:

A prova de realidade mostrou que o objeto amado já não existe mais e agora exige
que toda a libido seja retirada de suas ligações com esse objeto. Contra isso se
levanta uma compreensível oposição: em geral se observa que o homem não
abandona de bom grado uma posição da libido, nem mesmo quando um substituto
já se lhe acena. Essa oposição pode ser tão intensa que ocorre um afastamento da
realidade e uma adesão ao objeto por meio de uma psicose alucinatória de desejo.
O normal é que vença o respeito à realidade. Mas sua incumbência não pode ser
13
LOEWALD, Hans, idem, p. 146
14
LOEWALD, idem, p. 148
imediatamente atendida. Ela será cumprida pouco a pouco com grande dispêndio
de tempo e de energia de investimento, e enquanto isso a existência do objeto de
investimento é psiquicamente prolongada. Uma a uma, as lembranças e
expectativas pelas quais a libido se ligava ao objeto são focalizadas e
superinvestidas e nelas se realiza o desligamento da libido 15.

Freud descreve um processo de fixação da memória em um objeto perdido reativa


a deslocamentos. Uma leitura rápida do trecho pode nos dar a impressão de que o luto se
trata de alguma forma de resignação diante do caráter inelutável da realidade. Resignação
cujo preço psíquico será sempre alto. No entanto, não compreenderemos com isto o tipo
de trabalho que se desenvolve no período de luto que permite um desligamento da libido.
Para compreendê-lo lembremos como tal trabalho de luto não opera por substituição do
objeto perdido através do deslocamento da libido. Dar a tal deslocamento o estatuto de
uma substituição equivaleria a colocar os objetos em um regime de intercambialidade
estrutural, regime no interior do qual a falta produzida pelo objeto perdido poderia ser
suplementada em sua integralidade pela construção de um objeto substituto a ocupar seu
lugar. Um mundo de balcão de trocas sem prazo de vencimento. Se o homem não
abandona antigas posições da libido mesmo quando um substituto lhe acena é porque não
se trata simplesmente de substituição. No entanto, o tempo do luto não é o tempo da
reversibilidade absoluta. Vincular o luto a uma operação de esquecimento seria, por sua
vez, elevar a lobotomia a ideal de vida.
Nem substituição, nem esquecimento, o luto não significa deixar de amar objetos
perdidos. O desligamento a respeito do qual fala Freud não é um esquecimento, mas uma
“operação de compromisso” a respeito da qual, infelizmente, o psicanalista não diz muito,
da mesma forma como não diz muito a propósito de um processo estruturalmente
semelhante ao luto, a saber, a sublimação. Talvez seja o caso de afirmar que tal operação
de compromisso própria ao trabalho de luto é indissociável da abertura a uma outra forma
de existência, da abertura de uma outra forma de realidade, entre a presença e a ausência,
entre a permanência e a duração. Uma existência espectral que, longe de ser um flerte
com o irreal, é existência objetiva do que habita em um espaço que força as determinações
presentes através de ressonâncias temporais 16. Existência descritível apenas em uma
linguagem de espectros que animam os vivos, que dão à realidade uma espessura espectral
pois é vida daquilo que, nos objetos mortos, nunca estava destinado à desaparição, vida
do que ainda pulsa tomando o espírito de outros objetos em uma metamorfose contínua.
É assim que desaparece a desaparição e é assim que o luto se afirma como processo de
conversão absoluta da violência das perdas e separações em ampliação do presente. Pois
esse espaço de metamorfoses produzido pelo luto é uma figura privilegiada da linguagem
de temporalidades múltiplas que se interpenetram. Por isto, podemos dizer que o trabalho
de luto não é construção de processos de substituição próprias a uma lógica
compensatória. Ele é produção de uma temporalidade que pode se dispor em um presente
absoluto

O bloco mágico

Todas estas conseqüências estão sintetizadas na metáfora freudiana do aparelho psíquico


como um bloco mágico. Trata-se de um pequeno brinquedo composto de um bloco de

15
FREUD, Sigmund; Luto e melancolia, São Paulo: Cosac e Naify, 2011, p. 49
16
Ver, por exemplo, os ensaios de Jeanne Marie Gagnebin sobre a “experiência liminar” em
GAGNEBIN, Jeanne Marie; Limiar, aura e rememoração: ensaios sobre Walter Benjamin, São Paulo:
Editora 34, 2014
resina e duas folhas, uma de celulóide transparente e outra de papel encerado translúcido.
Ao escrever no papel, a resina marca as duas folhas permitindo a constituição de uma
escrita. A segunda folha, aquela que realmente recebe as impressões, serve como proteção
para a primeira. Se esta estivesse diretamente em contato com o bloco de resina, ela se
rasgaria facilmente. Ao retirar o contato das folhas com o bloco, ela volta a ficar vazia,
enquanto todas as marcas passam para a resina. Com o tempo, as marcas vão se
acumulando, transformando-se em traços incompreensíveis e interferindo na superfície
de contato das folhas.
Freud encontra neste brinquedo uma metáfora para pensar a articulação entre
receptividade ilimitada da percepção e conservação de traços duráveis pela memória.
Articulação que lhe fez sustentar a existência de dois tipos de neurônios; um vinculado à
percepção e outro a memória. Ele ainda serve para figurar este processo de “suspensão
do contato” entre consciência e inconsciente através da separação periódica entre as
folhas e o bloco.
O fato de estarmos diante de uma máquina de escritura é algo que não deve ser
negligenciado. Que a mente tenha como metáfora privilegiada um sistema de escrita e de
conservação de traços é algo que diz muito a respeito de como entendemos a atividade da
memória, para além da ideia clássica do arquivamento de imagens. Falta à metáfora do
bloco mágico, no entanto, a capacidade de não apenas receber impressões de fora, mas
também de escrever a partir de dentro, como se a escritura pudesse se reproduzida do
bloco em direção às folhas. Caso isto ocorresse, ou seja, caso a percepção pudesse se
deixar marcar pela memória, então teríamos uma representação perfeita do aparelho
psíquico.

• Modificar o comportamento por aprendizado e memória. O aprendizado e a


memória são acessíveis à análise celular. O que muda no cérebro quando
aprendemos? Aprendizado resulta da modificação da força de conexões
sinápticas entre células interconectadas. Experiência altera a força e a
efetividade de conexões químicas preexistentes.
• Hipocampo: região do cérebro mais claramente envolvida com a memória. A
células piramidais do hipocampo seriam fundamentalmente diferentes de
outros neurônios? Questão incorreta. Boa questão: como as interconexões
funcionais entre células pode ser afetadas pelo aprendizado.
• Memória de longa duração difere de memória de curta duração (uma a seis
horas) pela necessidade de produção de novas proteínas. A memória de
longo prazo pode durar dias, meses ou anos. Seu processo de consolidação
dura de três a oito horas e requer a síntese de proteínas e a formação de
novas conexões neuronais. Esse é um período em que a memória ainda é lábil
e sujeita a interferências de outros estímulos. A memória de longo prazo leva
a alterações na expressão dos genes e a alterações anatômicas subsequentes
no cérebro
• Serotonina e dopamina aumentam estímulo e níveis de AMP cíclico,
responsável pela facilitação da plasticidade sináptica em neurônios
responsáveis pela memória de curta-duração. Serotonina: neurotransmissor
responsável pela comunicação entre neurônios. O nível de serotonina é
fundamental para a capacidade de resposta aos estímulos do meio, para a
regulação do humor, do sono e do apetite, além de estar envolvida na
memória e no aprendizado. Vários anti-depressivos (Prozac, Aropax, Zoloft,
Cipramil), por exemplo, são inibidores seletivos de recaptação de serotonina.
Ao inibir sua recaptação pelo neurônio pré-sináptico, a serotonina é
disponibilizada em maior quantidade na fenda sináptica, aumentando a
quantidade de serotonina no cérebro. Dopamina: responsável pela sensação
de prazer, controle do movimento e memória (Ritalina, Opio)
Curso Derrida
Aula 9

A unidade de tudo o que se deixa visar hoje através dos conceitos os mais diversos
da ciência e da escritura é inicialmente, mais ou menos de forma secreta mas
sempre, determinada por uma época histórico-metafísica da qual apenas
entrevemos o encerramento (...) O futuro só pode se antecipar na forma do perigo
absoluto. Ele é o que rompe absolutamente com a normalidade constituída e só
pode se anunciar, se apresentar, sob a forma da monstruosidade. Para este mundo
por vir e para o que nele teria feito tremer os valores do signo, da fala e da
escritura, para o que conduz aqui nosso futuro anterior, não há ainda epígrafe1.

É assim que se inicia a “epígrafe” de Da gramatologia. Como se vê, Derrida se


compreendia em um limiar histórico no qual toda uma época histórico-metafísica
indicava seu encerramento. Seu esforço filosófico mais relevante se coloca assim como a
tentativa de ultrapassar tal época, reconhendo que uma ultrapassagem desta natureza só
poderia equivaler a aproximar-se do que se antecipa apenas na forma do perigo absoluto.
De que perigo fala exatamente Derrida? Que monstruosidade é esta própria a tal mundo
por vir?
O que vem depois desta época histórico-metafísica terminal ainda não pode ser
pensado, a não ser de forma monstruosa. Ou seja, não temos ainda figura. A filosofia
crítica irá pois procurar abrir o espaço ao que não tem figura, a uma experiência da
diferença que ainda não terá figura e que se abrirá a uma ciência peculiar chamada aqui
de “gramatologia”.
Notemos como o livro começa colocando-se sob a égide de uma certa crítica da
metafísica definida como era histórica de um modo de ser da linguagem definido como
“logocentrismo”, ou seja, linguagem que tem, na palavra falada, seu modelo fundamental.
Derrida insiste que a história da metafísica sempre foi vinculada à operação de
recalcamento da escritura para fora dos limites da palavra falada. O regime de presença e
de objetividade constituinte desta larga época histórica que Derrida chama de “metafísica
ocidental” seria profundamente dependente da elevação da palavra falada à condição de
modelo fundamental e originário da linguagem. Pois o privilégio dado à phoné respondeu
a uma necessidade profunda. O sistema do ‘escutar-se falando’ através da substância
fônica produziu a ideia de mundo a partir da diferença entre o dentro e o fora, a idealidade
e não-idealidade, o transcendental e o empírico. Este sistema procurou reduzir a escritura
a uma função segunda: mera tradução de uma palavra plena e plenamente pronta. No
entanto, a anterioridade da escritura em relação à palavra expõe os motivos de um
esquecimento que tem a idade da metafísica e de sua preparação ao advento da
disponibilização dos objetos pela técnica.
Neste sentido, criticar a metafísica só poderia ser possível à condição de criticar o
modo de ser da linguagem que a suporta. Isto implicaria abrir caminhos para uma
linguagem que reverta a predominância da fala sobre a escritura e que, com isto, nos libere
dos regimes de objetividade e presença que marcam a essência dos modos de
determinação do sentido hegemônicos na metafísica ocidental. Pois aqui já deve ter ficado
claro como a escritura tematizada por Derrida teria, ao menos para o filósofo francês, um
potencial desarticulador de noções maiores como: origem, presença, idealidade do
sentido, entre outras. Ela marca, na verdade, propriedades estruturais presentes tanto na

1
DERRIDA, De la grammatologie, p. 14
palavra falada quanto na palavra escrita. Propriedades que, se liberadas do regime
fonocêntrico que procura colonizá-las, poderiam instaurar uma linguagem capaz de abrir
as portas para o encerramento desta longa era histórica definida, por Derrida, como era
da metafísica ocidental. Esta escritura seria composta por traços que devem ser
compreendidos como inscrições que não são organizadas em sistemas, como no caso dos
significantes. Tal como no texto de Derrida sobre Freud, esta escritura de traços está em
contínua reconfiguração a partir de uma temporalidade que remete a “um passado que
não pode mais ser compreendido sob a forma da presença modificada, como um presente-
passado”2.
Este é o contexto de enunciação do projeto de uma gramatologia. A gramatologia
não seria apenas uma espécie de “ciência da escritura” e de suas propriedades, setor a ser
acrescentado ao campo das ciências humanas. Antes, ela seria um regime de reflexão
sobre a linguagem que nos abriria as portas para a problematização daquilo que serviria
de fundamento às ciências humanas, a saber, o homem. Daí uma afirmação central como:
“Ela [a gramatologia] não deve ser uma das ciências do homem, pois ela coloca
inicialmente, como sua questão própria, a questão do nome do homem”3.
No entanto, não é certo que esta ciência verá o dia, já que a unidade de tudo o que
se deixa visar atualmente através dos conceitos os mais diversos da ciência e da escritura
é determinada por esta época histórico-metafísica da qual vemos o encerramento. Neste
sentido, a gramatologia acaba por se apresentar como um projeto negativo face ao
estabelecimento da ciência e da filosofia. Daí porque ela só pode se aproximar no perigo
absoluto.
Mas podemos compreender melhor esta afirmação decisiva sobre a gramatologia
como o que coloca em questão o próprio nome do homem, recorrendo a certas colocações
já presente à ocasião da publicação de A voz e o fenômeno. Lá, vimos como Derrida
insistia no vínculo entre a linguagem pensada a partir da palavra falada e a centralidade
da consciência enquanto modo de presença dos objetos, maneira de radicalizar a noção
constitutiva da subjetividade transcendental. O regime de presença determinado pela
linguagem encontra na consciência (tal como pensada pela fenomenologia de Husserl)
seu espaço fundador. O que nos explica uma definição de consciência como: “a
possibilidade da presença à si no presente vivo” 4.
Vimos, por outro lado, como a consciência era indissociável do fenômeno da voz
como puro querer-dizer que:

indicando o puro ter-lugar de uma instância de linguagem sem nenhum


determinado advento de significado [aqui no sentido de relação à referência],
apresenta-se como uma espécie de ‘categoria das categorias’ que subjaz desde
sempre a todo pronunciamento verbal, sendo, portanto, singularmente próxima da
dimensão de significado do puro ser 5.

Pois haveria uma proximidade absoluta entre a voz e o ser, a voz e o sentido do ser, a voz
e a idealidade do sentido.
Por outro lado, devemos lembrar como Derrida insiste que mesmo um conceito
transcendental de consciência (como o que encontraríamos na fenomenologia de Husserl)
não pode deixar de se sustentar em uma certa antropologia. Daí porque Derrida era
sensível a afirmações como: “Na dimensão da consciência, a humanidade normal e adulta

2
DERRIDA, De la grammatologie, p. 97
3
Idem, p. 124
4
Idem, La voix et le phénomène, p. 8
5
AGAMBEN, A linguagem e a morte, p. 55
(excluindo o mundo dos anormais e das crianças) é privilegiada como horizonte de
humanidade e como comunidade de linguagem” 6. Pois se a maturidade do homem adulto
e sua normalidade permitem uma determinação eidético-transcendental rigorosa da
consciência, então: “o privilégio de Husserl implica que uma modificação factual e
empírica – a normalidade adulta – pretenda ser uma norma transcendental universal”7. Se
quisermos utilizar uma palavra proibida, podemos dizer que tal modificação factual e
empírica não seria outra coisa que uma certa recaída na dimensão do psicológico.
Assim, quando Derrida afirmava que a gramatologia poderia colocar em questão
o nome do homem, tratava-se de ver, em uma reflexão sobre a linguagem que parte do
primado da escritura, a possibilidade de tematizar a dependência das ciências humanas a
um campo transcendental anterior à constituição de todo e qualquer sujeito. Daí uma
afirmação central como:

Sem a última objetivação que a escritura permite, toda linguagem estaria ainda
cativa da intencionalidade factícia e atual de um sujeito falante ou de uma
comunidade de sujeitos falantes. Ao virtualizar absolutamente o diálogo, a
escritura cria uma forma de campo transcendental autônomo a respeito do qual
todo sujeito atual pode se abster 8.

Pois: “a escritura é esse esquecimento de si, esta exteriorização, o contrário da


memória interiorisante, da Erinnerung que abre a história do espírito”9. Este campo
transcendental poderia ser apreendido apenas através de uma história da escritura que,
longe de nos fornecer a arqueologia de uma episteme determinada, nos fornecia: “uma
possibilidade comum e radical que nenhuma ciência determinada, nenhuma disciplina
abstrata, não pode pensar como tal” 10. Esta história da escritura que forneceria a
possibilidade de desconstrução dos motivos metafísicos presentes em nossa linguagem
seria o verdadeiro sentido da gramatologia.

A escritura habita a fala desde sempre

Vimos no início de nosso curso como, em todo lugar onde é questão do signo,
Derrida acredita encontrar sempre a mesma metafísica. Para ele, a era histórica da
determinação do sentido do ser como presença é a era do signo. Para Derrida, esta era
histórica do signo encontra seu ponto de maturidade no momento em que a determinação
da presença absoluta aparecer como presença à si no interior da subjetividade. Ou seja,
ele tem inicialmente em mente o grande racionalismo do século XVII. No entanto, sua
crítica ao signo terá, em Da gramatologia, dois personagens principais. Dois personagens
aparentemente totalmente distantes um do outro, a saber, o lingüista Ferdinand de
Saussure e o filósofo Jean-Jacques Rousseau. Neste amálgama, vemos a tentativa
derridiana de desenvolver uma crítica do signo que dê conta, em um movimento duplo
complementar, tanto da “ciência ideal” que visava animar um processo de racionalização
do quadro interdisciplinar das ciências humanas (lingüística estrutural de Saussure),
quanto de uma crítica da razão moderna que forneceu um dos quadros mais duradouros
de reflexão da crítica do progresso. Por outro lado, Derrida vê em Rousseau uma
expressão maior do sujeito moderno através de sua crítica da escritura representativa,

6
HUSSERL, L´origine de la géométrie, p. 182
7
LAWLOR, ibidem, p. 112
8
DERRIDA, Introduction à l´Origine de la géométrie, de Husserl, p. 84
9
Idem, De la grammatologie, p. 39
10
Idem, p. 141
decaída, segunda, instituída, isto em prol da voz e da palavra. Voz que funda a consciência
e o corpo (as paixões como a voz do corpo). Por isto, boa parte de Da gramatologia será
dedicada ao comentário do Ensaio sobre a origem das línguas.
Derrida apoiava-se em trechos de Saussure a respeito da relação entre linguagem
escrita e linguagem falada a fim de mostrar o vínculo da lingüística estrutural à metafísica.
De fato, Saussure afirma que a única razão da existência da escrita seria a de representar
a linguagem falada. Esta submissão da escrita à fala seria apenas mais um capítulo a
demonstrar que:

O pecado sempre foi definido – entre outros por Malebranche e por Kant – como
a inversão das relações naturais entre a alma e o corpo nas paixões. Saussure acusa
aqui a inversão das relações naturais entre a fala e a escritura. Não é uma simples
analogia: a escritura, a letra, a inscrição sensível sempre foram consideradas pela
tradição ocidental como o corpo e a matéria exteriores ao espírito, ao sopro, ao
verbo e ao logos. E o problema da alma e do corpo é sem dúvida derivado do
problema da escritura. Problema a respeito do qual – inversamente – ele parece
emprestar suas metáforas 11.

Ou seja, as dicotomias que impõem ao pensar a necessidade de distinguir o


sensível e o inteligível, a matéria e a forma, a natureza e a cultura encontram no
rebaixamento da escritura em relação à fala um fundamento suplementar.
No entanto, Saussure reconhece que a palavra escrita se mistura tanto à palavra
falada que ela acaba por usurpar-lhe o papel principal: “É como se acreditássemos que,
para conhecer alguém, seria melhor olhar sua fotografia ao invés de seu rosto” 12. Essa
usurpação abre a linguística à gramatologia, dirá Derrida. Ou seja, ela libera o devir a
uma gramatologia geral no interior da qual a fonologia será apenas uma região
circunscrita. Saussure insiste em lembrar que a língua falada tem uma tradição e um
desenvolvimento normalmente independente da língua escrita. Na verdade, a língua
falada evolui constantemente e mais rapidamente do que a língua escrita. Ao final, a grafia
acaba por não corresponder ao que ela deveria representar. Assim, no século XIII os
franceses pronunciavam “roi” e “loi”, enquanto se escrevia também “roi” e “loi”. No
século XIV, a pronúncia modifica-se para “roé” e “loè” e, no século XIX, para “rwa” e
“lwa”. No entanto, a escrita sempre continuou como “roi” e “loi”. Mas o que seria
realmente problemático para Saussure são situações nas quais nos deparamos com a
“tirania da letra” que, à força de se impor à massa, influencia a língua falada e a modifica:
“Isto só acontece em idiomas muito literários nos quais o documento escrito desempenha
um papel considerável”13. Saussure traz como exemplo a maneira com que os parisienses
falavam “sept femmes” fazendo soar o “t”.
Derrida encontrará nesta temática da usurpação dos direitos da língua falada pela
escrita ecos da noção de progresso como esquecimento de uma origem simples. Como se
a escrita fosse a dissimulação da presença natural, primeira e imediata do sentido.
“Sempre acabamos por esquecer que aprendemos a falar antes de aprendermos a escrever,
e a relação natural é invertida”, dirá Saussure. Derrida quer, no entanto, mostrar como a
linguagem é, desde o início, escritura: “A usurpação começou desde sempre” 14. A
usurpação começou desde sempre porque a linguagem natural nunca teria existido, ela

11
Idem, p. 52
12
SAUSSURE, Cours de linguistique générale, p. 45
13
Idem, p. 53
14
DERRIDA, De la grammatologie, p. 55
nunca estaria intacta, já que sempre foi uma arqui-escritura. A escritura habita a fala desde
sempre.
Para insistir em tal caráter, Derrida fala da escritura como “traço instituído”, como
inscrição ainda não organizada em sistema. Um traço que é pura diferença, pois não vale
como originário, assim como vimos nos traços mnésicos freudianos.
A fim de mostrar como a escritura habita a fala desde sempre, Derrida se propõe
criticar o conceito saussureano de signo. Tal como no caso do conceito de signo na
fenomenologia de Husserl, Derrida quer mostrar como há algo no interior do signo que
não pode mais ser compreendido no interior dos limites da metafísica da presença. Por
isto, o destino do signo seria procurar recalcar algo que, no limite, lhe ultrapassa.
Saussure definia o signo como a união de um conceito e de uma imagem acústica,
ou seja, de um significado e de um significante. Notemos inicialmente como o “conceito”
ao qual Saussure refere-se é apresentado como uma imagem genérica de objeto ou, se
quisermos utilizar uma descrição de Heidegger, “vista de um objeto qualquer”. Esta
imagem está em posição de esquema e permite ao esquema pôr-se como "conceito
sensível de um objeto", como transposição sensível do conceito. Para que haja uma
transposição sensível do conceito, faz-se necessário uma regra capaz de prescrever a
inserção do sensível em uma vista possível, prescrição que cria uma imagem do conceito
de um objeto, e não imagem de um objeto particular. Daí a afirmação:

A percepção imediata de um dado, por exemplo, desta casa, já contém


necessariamente uma vista prévia esquematizadora da visão em geral, é apenas
através desta vista prévia [Vor-stellung] que o ente reencontrado pode se
manifestar como casa, pode oferecer a vista de uma 'casa dada' 15.

É pensando em uma perspectiva desta natureza que Derrida pode ver, na noção
saussureana de significado, uma “idealidade de sentido”16.
Por outro lado, lembremos como Saussure não define o significante como uma
substância sonora, como a realidade fática imediata da palavra falada. Antes, ele é a
representação psíquica de um som, uma imagem acústica, imagem que aparece quando
dizemos uma palavra em um monólogo interior. Isto não deixa de nos remeter à leitura
que Derrida propôs de Husserl, onde o recurso à vida interior, ao solilóquio, aparecia
como fundamento para o sentido compreendido como expressão. Tendo em vista as
temáticas apresentadas em seus estudos sobre Husserl, Derrida se mostra bastante
advertido em relação à maneira com que o recurso à noção de imagem acústica procura
livrar a sistematicidade da língua da dependência à empiricidade da fala efetiva, pois:

A imagem acústica é o escutado (l´entendu / que também pode ser “o


compreendido”), não o som escutado, mas o ser-escutado do som. O ser-escutado
é estruturalmente fenomenal e pertence a uma ordem radicalmente heterogênea
em relação ao som real no mundo 17.

Pois esta representação psíquica do som não pode ser compreendida como uma
realidade interna simplesmente copiando uma realidade externa. Por trazer no seu bojo a
diferença irredutível em relação à substância fônica, ela nos remete ao problema da
idealidade da expressão em Husserl. A diferença se dá aqui, de uma certa forma, como
diferença ontológica entre a faticidade da substância fônica e a idealidade da imagem

15
HEIDEGGER, idem, p. 159
16
DERRIDA, De la gramamtologie, p. 93
17
Idem, p. 93
acústica. Derrida chega a falar da diferença entre o “sensível aparecendo” e o “aparecer
vivido” (que Saussure chama de “impressão psíquica” /empreinte psychique). Esta
imagem acústica que não é exatamente minha fala, que é fala de ninguém, já que é
idealidade que funda a possibilidade do som organizar-se em sistema.
No entanto, Derrida baseia-se nesta noção de idealidade presente no sistema de
significantes para interpretar a afirmação de Saussure: “A língua não é uma função do
falante, ela é o produto que o indivíduo registra passivamente” 18. Se o indivíduo registra
passivamente a língua como produto é porque ela se impõe a ele em sua sistematicidade.
Na verdade, ele deve, no limite anulá-lo, anular a faticidade de sua fala, para poder impor-
se em sua realidade transcendental. Como se no processo de clarificação da presença, a
relação à empiricidade fosse sendo apagada. Como se a referência à idealidade em sua
pureza fosse indissociável de uma certa forma de dissolução bem enunciada nesta longa
afirmação de Derrida:

Posso esvaziar todo conteúdo empírico, imaginar uma modificação absoluta do


conteúdo de toda experiência possível, uma transformação radical do mundo : a
forma universal da presença (tenho uma certeza estranha e única pois ela não
concerne estado determinado algum) não será afetada. É pois a relação à minha
morte (ao meu desaparecimento em geral) que se esconde nesta determinação do
ser como presença, idealidade, possibilidade absoluta de repetição. A
possibilidade do signo é esta relação à morte. A determinação e a dissolução do
signo na metafísica é a dissimulação desta relação à morte que, no entanto,
produziria a significação 19.

Vimos em aulas passadas como este tema era central. Ele volta em nosso texto
através da afirmação canônica: “Todo grafema é testamentário. E a ausência original do
sujeito da escritura é também esta da coisa ou do referente” 20. Se a possibilidade do signo
é esta relação à morte, outro nome possível ao processo de confrontação da palavra com
um certo vazio de objeto, então somos obrigados a admitir uma tensão interna à
determinação mesma da noção de presença. Pois a relação à desaparição em geral, à
morte, encontra-se paradoxalmente no cerne da determinação do ser como presença.
Como se a possibilidade da minha desaparição em geral devesse ser vivenciada para que
uma relação à presença em geral pudesse ser instituída. Como Derrida não admite um
sujeito transcendental que deixe de ter sua gênese em uma antropologia que tem medo de
dizer seu nome, ficamos com a situação paradoxal de nos confrontarmos com um sistema
de significantes que se afirma anulando a possibilidade de sua recuperação por uma
consciência. Desta forma, Derrida espera realizar a desconstrução da noção e signo a fim
de que o advento de uma arqui-escritura desprovida de sujeito possa aparecer.

Afinal, sabem os Nambikwaras escrever?

No interior desta desconstrução da história geral da escritura, Derrida parte para a


crítica à idéia de uma origem na qual encontraríamos povos sem escritura e sem história.
Derrida vê nesta estratégia um etnocentrismo para o qual povos sem história estariam ou
aquém de um conceito realizado de “homem” ou além de um conceito decaído de
“homem”. Nos dois casos, encontramos uma exclusão intransponível entre nossas formas
de vida e o que teria ficado adormecido na origem.

18
SAUSSURE, ibidem, p. 30
19
DERRIDA, La voix et le phénoméne, p. 60
20
Idem, De la grammatologie, p. 101
A fim de realizar tal projeto de desconstrução, a gramatologia deve livrar-se de
três preconceitos insistentemente presentes em reflexões sobre a história da escritura. O
primeiro é um certo preconceito “teológico” que assume o mito de uma escritura primitiva
e natural dada por Deus. O segundo deveria ser chamado de “preconceito chinês”. Pois
todos os projetos filosóficos de escritura e de linguagem universal nos séculos XVII e
XVIII encorajaram a ver na escrita chinesa então descoberta, um caso exemplar de uma
escrita não-fonética, um modelo de língua subtraída à história. Derrida lembra de Leibniz
que via, na língua chinesa, uma profunda arbitrariedade ligada à essência não-fonética de
sua escrita e não-imitativa de seus caracteres. Essa arbitrariedade implicaria em
estaticidade e ausência de historicidade, já que a fala seria o motor das mudanças que se
dão na história. Por fim, Derrida fala do “preconceito hieróglifista” que transforma o
desprezo etnocêntrico pela escrita não-fonética em admiração hiperbólica.
Esta desconstrução da história geral da escritura assume, como seu ponto de
partida, a história da origem das línguas, de Rousseau. Derrida compreende Rousseau
como um momento maior no estabelecimento da história da metafísica enquanto
determinação do ser como presença. Derrida então esboça algumas estações disto que
seria sua leitura de tal história. Com Platão, a idealidade da presença oferecida à repetição
fora constituída sob a forma objetiva da idealidade do eidos e da substancialidade da
ousia. Com Descartes, tal objetividade tomava a forma da representação (onde se vê uma
clara influência da história heideggeriana da filosofia), da idéia como modificação de uma
substância presente à si, consciente e certa de si no momento de sua relação à si. A
idealidade e a substancialidade se relacionariam à si no elemento de uma consciência que
aparece como experiência da pura auto-afecção. Mas, por outro lado, Derrida insiste que
esta experiência de auto-afecção só pode se realizar através da voz, já que a voz é
exatamente o meio da auto-afecção, o meio do “escutar-se falando”. Neste sentido,
Rousseau teria sido um caso exemplar de filósofo que compreendeu como a experiência
da voz funda a presença imediata da substância à si mesma. Para tanto, bastaria lermos
Ensaio sobre a origem das línguas. Daí seu lugar central no interior do projeto de Da
gramatologia.
Mas, como já foi dito, Rousseau tem ainda um interesse suplementar. Pois ele nos
relevaria certos pressupostos em operação no interior deste projeto maior de
racionalização do campo das ciências humanas na segunda metade do século XX, a saber,
o estruturalismo. De fato, Lévi-Strauss chega a afirmar que Rousseau teria fundado a
etnologia em particular e as ciências humanas em geral. Segundo Lèvi-Strauss, enquanto
Descartes seria prisioneiro das pretensas evidências do Eu, passando diretamente da
interioridade de um homem à exterioridade do mundo sem ver que entre os dois extremos
encontram-se sociedades, civilizações, Rousseau nos teria mostrado que: “para chegar a
se aceitar nos outros, objetivo que o etnólogo impõe ao conhecimento do homem, faz-se
necessário inicialmente se recusar à si mesmo” 21. Ou seja, para construir a categoria
genérica do homem, faz-se necessário recusar o domínio das auto-evidências imediatas,
mostrar que existe um “ele” que se pensa em mim e que me faz duvidar que seja Eu que
pensa. Um “ele” no qual encontramos as marcas de uma natureza comum recalcada pelo
advento da modernidade.
No entanto, a leitura de Derrida é bastante diferente desta sugerida por Lévi-
Strauss. Ele quer mostrar como o estruturalismo partilha, juntamente como Rousseau,
uma metafísica incapaz de se livrar do fantasma da identidade imediata perdida e decaída.
Identidade que estaria definitivamente exilada e violentada devido ao advento da escritura
e da história. O que permite a Derrida colocar esta questão maior: “O que liga a escritura

21
LÉVI-STRAUSS, Anthropologie struturale II, p. 48
à violência? O que deve ser a violência para que algo nela se iguale à operação do
traço?”22.
Derrida propõe-se então a analisar um pequeno capítulo de “Tristes trópicos”
dedicado aos Nambikwaras, ‘pequeno grupo de índios nômades que estaria dentre os mais
primitivos que podemos encontrar no mundo”, índios aparentemente próximos de uma
“infância da humanidade”. Neste capítulo, Lévi-Strauss narra como os Nambikwara
teriam tido acesso, pela primeira vez, à escrita. Tal experiência de acesso à escrita
apareceria como uma ruptura em relação à infância, um exílio em relação à presença. No
entanto, Derrida quer corrigir esta história da queda através do acesso à escrita ao lembrar
que:

Há escritura a partir do momento em que o nome próprio é rasurado em um


sistema, há “sujeito” a partir do momento que esta obliteração do próprio se
produz, ou seja, a partir do momento do aparecer do próprio e da primeira manhã
da linguagem23.

Ou seja, trata-se de vincular a escritura não apenas a um sistema codificado de


caracteres em número limitado que serviriam para procedimentos elementares de
comunicação. A escritura já está presente a partir do momento que o nome próprio é
enunciado. Esta é uma idéia fundamental. Pois o nome próprio não pode ser
compreendido como a apelação única reservada à presença de um ser único, ele não pode
ser compreendido como o dispositivo que asseguraria a indexação do singular em um
regime de transparência pura. Para Derrida, e aqui seguindo explicitamente Lévi-Strauss,
todo ato de nomeação é necessariamente ato de classificação, inscrição no interior de um
sistema sócio-simbólico. O nome que se dá ao filho, por exemplo, classifica-o de acordo
com sua linhagem, inscreve-o em uma repetição que lhe faz continuar o nome do avô, os
ideais do pai, etc. Neste sentido, ele é necessariamente rasura do que o particular poderia
aspirar de particularidade irredutível. Desta forma, podemos dizer que o nome próprio:
“defines ambiguity because it is the point where ambiguity and determinacy coincide.
The suggestion that the conditions for the possibility of proper names are also the
conditions for their impossibility is typical of Derrida’s deconstructive strategies. He
always aims to show that the conditions of possibility are necessarily the conditions of
impossibility”24.

22
DERRIDA, Da gramatologia, p. 149
23
DERRIDA, Da gramatologia, p. 159
24
STOCKER, Barry, Derrida on deconstruction, p.
Curso Derrida
Aula 10

Na aula de hoje, daremos continuidade a nossa leitura de Da Gramatologia. Vimos na


aula passada como a gramatologia aparecia como uma desconstrução da história geral
da escritura. No interior desta história, Derrida parte da crítica à ideia de uma origem na
qual encontraríamos povos sem escritura e sem história. Derrida vê nesta estratégia um
etnocentrismo para o qual povos sem história estariam ou aquém de um conceito
realizado de “homem” ou além de um conceito decaído de “homem”. Nos dois casos,
encontramos uma exclusão intransponível entre nossas formas de vida e o que teria
ficado adormecido na origem.
Na verdade, neste ponto vemos a ligação entre a desconstrução e crítica do
colonialismo. A discussão a respeito de povos sem escrita é um setor importante da
crítica a uma visão colonial do progresso histórico. Povos sem escritura estariam presos
ainda à oralidade, a um horizonte originário, desconhecendo o tempo e suas
transformações. Por isto, estaríamos a falar de sociedades pretensamente estáticas.
Neste sentido, a generalização da escritura para toda e qualquer sociedade implica
reconhecimento de uma temporalidade múltipla sem h ierarquia, de um processo
histórico sem origem, atraso e desenvolvimento. Há uma generalização da história
trazida pela gramatologia.
Vimos como, a fim de realizar tal projeto de desconstrução, a gramatologia
deveria livrar-se de três preconceitos insistentemente presentes em reflexões sobre a
história da escritura. O primeiro é um certo preconceito “teológico” que assume o mito
de uma escritura primitiva e natural dada por Deus. O segundo deveria ser chamado de
“preconceito chinês”. Pois todos os projetos filosóficos de escritura e de linguagem
universal nos séculos XVII e XVIII encorajaram a ver na escrita chinesa então
descoberta, um caso exemplar de uma escrita não-fonética, um modelo de língua
subtraída à história. Derrida lembra de Leibniz que via, na língua chinesa, uma profunda
arbitrariedade ligada à essência não-fonética de sua escrita e não-imitativa de seus
caracteres. Essa arbitrariedade implicaria em estaticidade e ausência de historicidade, já
que a fala seria o motor das mudanças que se dão na história. Por fim, Derrida fala do
“preconceito hieróglifista” que transforma o desprezo etnocêntrico pela escrita não-
fonética em admiração hiperbólica.
Esta desconstrução da história geral da escritura assume, como seu ponto de
partida, a história da origem das línguas, de Rousseau. Derrida compreende Rousseau
como um momento maior no estabelecimento da história da metafísica enquanto
determinação do ser como presença. Derrida então esboça algumas estações disto que
seria sua leitura de tal história. Com Platão, a idealidade da presença oferecida à
repetição fora constituída sob a forma objetiva da idealidade do eidos e da
substancialidade da ousia. Com Descartes, tal objetividade tomava a forma da
representação (onde se vê uma clara influência da história heideggeriana da filosofia),
da ideia como modificação de uma substância presente à si, consciente e certa de si no
momento de sua relação à si. A idealidade e a substancialidade se relacionariam à si no
elemento de uma consciência que aparece como experiência da pura auto-afecção. Mas,
por outro lado, Derrida insiste que esta experiência de auto-afecção só pode se realizar
através da voz, já que a voz é exatamente o meio da auto-afecção, o meio do “escutar-se
falando”. Neste sentido, Rousseau teria sido um caso exemplar de filósofo que
compreendeu como a experiência da voz funda a presença imediata da substância à si
mesma. Para tanto, bastaria lermos Ensaio sobre a origem das línguas. Daí seu lugar
central no interior do projeto de Da gramatologia.
Mas, como já foi dito, Rousseau tem ainda um interesse suplementar. Pois ele
nos relevaria certos pressupostos em operação no interior deste projeto maior de
racionalização do campo das ciências humanas na segunda metade do século XX, a
saber, o estruturalismo. De fato, Lévi-Strauss chega a afirmar que Rousseau teria
fundado a etnologia em particular e as ciências humanas em geral. Segundo Lèvi-
Strauss, enquanto Descartes seria prisioneiro das pretensas evidências do Eu, passando
diretamente da interioridade de um homem à exterioridade do mundo sem ver que entre
os dois extremos encontram-se sociedades, civilizações, Rousseau nos teria mostrado
que: “para chegar a se aceitar nos outros, objetivo que o etnólogo impõe ao
conhecimento do homem, faz-se necessário inicialmente se recusar à si mesmo” 1. Ou
seja, para construir a categoria genérica do humano, faz-se necessário recusar o domínio
das auto-evidências imediatas, mostrar que existe um “ele” que se pensa em mim e que
me faz duvidar que seja Eu que pensa. Um “ele” no qual encontramos as marcas de uma
natureza comum recalcada pelo advento da modernidade.
No entanto, a leitura de Derrida é bastante diferente desta sugerida por Lévi-
Strauss. Ele quer mostrar como o estruturalismo partilha, juntamente como Rousseau,
uma metafísica incapaz de se livrar do fantasma da identidade imediata perdida e
decaída. Identidade que estaria definitivamente exilada e violentada devido ao advento
da escritura e da história. O que permite a Derrida colocar esta questão maior: “O que
liga a escritura à violência? O que deve ser a violência para que algo nela se iguale à
operação do traço?”2.
Derrida propõe-se então a analisar um pequeno capítulo de “Tristes trópicos”
dedicado aos Nambikwaras, “pequeno grupo de índios nômades que estaria dentre os
mais primitivos que podemos encontrar no mundo”, índios aparentemente próximos de
uma “infância da humanidade”. Neste capítulo, Lévi-Strauss narra como os
Nambikwara teriam tido acesso, pela primeira vez, à escrita. Tal experiência de acesso à
escrita apareceria como uma ruptura em relação à infância, um exílio em relação à
presença. No entanto, Derrida quer corrigir esta história da queda através do acesso à
escrita ao lembrar que:

Há escritura a partir do momento em que o nome próprio é rasurado em um


sistema, há “sujeito” a partir do momento que esta obliteração do próprio se
produz, ou seja, a partir do momento do aparecer do próprio e da primeira
manhã da linguagem3.

Derrida alude ao fato de que, entre os Nambikwaras, o emprego do nome próprio


era proibido. Lévi-Strauss conta, por exemplo, um jogo no qual as crianças acabavam
por lhe contar o nome próprio da outra, provocando raiva naquela que teve seu nome
revelado. Este ato de esconder o nome, de rasura-lo no uso social é, para Derrida, prova
de que estamos diante de uma nomeação que porta em si mesma a consciência de sua
ausência de imanência.
O fato do nome próprio ser assim solidário de sua rasura implica que ele rompe
com o mito da origem de uma lisibilidade transparente e imediatamente presente. Isto é
apenas a consequência do fato de nunca apenas nomearmos, nós classificamos o outro
ou nos classificamos a nós mesmos. Ou seja, trata-se de vincular a escritura não apenas

1
LÉVI-STRAUSS, Anthropologie struturale II, p. 48
2
DERRIDA, Da gramatologia, p. 149
3
DERRIDA, Da gramatologia, p. 159
a um sistema codificado de caracteres em número limitado que serviriam para
procedimentos elementares de comunicação. A escritura já está presente a partir do
momento que o nome próprio é enunciado. Esta é uma ideia fundamental. Pois o nome
próprio não pode ser compreendido como a apelação única reservada à presença de um
ser único, ele não pode ser compreendido como o dispositivo que asseguraria a
indexação do singular em um regime de transparência pura. Para Derrida, e aqui
seguindo explicitamente Lévi-Strauss, todo ato de nomeação é necessariamente ato de
classificação, inscrição no interior de um sistema sócio-simbólico. O nome que se dá ao
filho, por exemplo, classifica-o de acordo com sua linhagem, inscreve-o em uma
repetição que lhe faz continuar o nome do avô, os ideais do pai, etc. Neste sentido, ele é
necessariamente rasura do que o particular poderia aspirar de particularidade irredutível.
A linguagem sempre será solidária de uma violência:

A violência originária da linguagem que consiste em inscrever uma diferença,


em classificar, em suspender o vocativo absoluto. Pensar o único no sistema,
inscreve-lo, tal é o gesto da arqui-escritura: arqui-violência, perda do próprio, da
proximidade absoluta, da presença a si, perda em realidade do que nunca teve
lugar, presença a si que nunca foi dada mas sonhada e sempre já desdobrada,
repetida, incapaz de aparecer de outra forma que através da sua própria
desaparição4.

Esta violência já é o movimento de uma história, de uma temporalização


caracterizada pela consciência da inconsistência do originário. Por isto, toda arqui-
escritura traz também uma arqui-violência. Mas não porque a escritura marca a perda
das relações próprias, de proximidade absoluta. Sua violência é a paradoxal
decomposição do que nunca teve lugar, do que nunca foi dado, do que era incapaz de
aparecer de outra forma que através da sua própria desaparição. Por isto, Derrida pode
afirmar que : “a différance em seu movimento ativo – o que é compreendido, sem
esgotá-lo, no conceito de différance – é o que não apenas precede a metafísica, mas
também transborda o pensamento do ser” 5 . Pois esta arqui-escritura produzida pela
defférance impede a consolidação das relações entre ser e sentido . Daí porque Derrida
poderá dizer:

Nisto que chamamos a vida real de suas existências em “carne e osso”, para
além do que podemos circunscrever como a obra de Rousseau, e atrás dela,
houve apenas escritura, houve apenas suplementos, significações substitutivas
que só puderam aparecer em uma cadeia de reenvios diferenciais, o “real” só
aparecendo, só se acrescentando ao tomar sentido a partir de um traço de um
chamado de suplemento, etc. 6,

A origem das línguas

Derrida procura aproximar a leitura que Lévi-Strauss faz dos Nambikwaras do


Ensaio sobre a origem das línguas, de Rousseau. O Ensaio é uma reflexão política e
antropológica que funda uma forma de crítica social da modernidade baseada na
compreensão das relações sociais modernas como a generalização dos processos de
alienação. Rousseau ainda terminará seu texto insistindo na maneira com que a

4
DERRIDA; Da gramatologia, p. 165
5
Idem, p. 206
6
Idem, p. 228
emergência de uma outra linguagem é condição fundamental para a emancipação
política, no que reencontramos algumas pressuposições fundamentais de Derrida. Pois a
degradação da línguagem é o sintoma de uma degradação social e política. Para
Rousseau, ela tem sua origem na aristocracia e na capital.
Derrida insiste no fato de Rousseau compreender a passagem à escritura como
uma disruptura das relações, um meio perigoso e uma resposta crítica a uma situação de
desamparo. Lembremos do que fala Rousseau: “as línguas são feitas para serem faladas,
a escritura serve apenas de suplemento à fala”. Esta posição de suplemento é
fundamental para Derrida. Ele insistirá como o suplemento tem necessariamente duas
funções. Primeiro, o suplemento se soma, ele é um a mais, uma plenitude que enriquece
outra plenitude. Mas o suplemento também substitui o suplementado, ele se insinua no
lugar de. Neste sentido, ele é exterior, fora da positividade à qual ele se acrescenta. Há
uma perversão própria ao suplemento. Há um engano, um ato de enganar a natureza
primeira. Ele é aquilo que suplementa uma falta na natureza, uma voz que suplemente a
voz da natureza.
Mas esta compreensão da relação entre fala e escritura em Rousseau vincula-se a
uma metafísica que consiste em excluir a não-presença ao determinar o suplemento
como exterioridade simples, como pura adição ou pura ausência. Esta determinação
será, no entanto, contraditória em Rousseau. Derrida tentará mostrar como a todo
momento ela parece caminhar para outra direção. Por exemplo, no Ensaio sobre a
origem das línguas, Rousseau fará uma distinção entre as línguas do sul, expressivas,
cantadas e próximas da origem musical da linguagem, e as línguas do norte,
informativas, marcadas pela falta de musicalidade e pela distância, linguagem mais apta
à escritura. Esta língua é habitada pela proximidade à morte, à carência. A escrita
aparece como expressão da morte, mas também tour de force para guardar a vida.

Isolamento e compaixão no estado de natureza

Guardemos de confundir o homem selvagem com os homens que temos diante


de nossos olhos. A natureza trata todos os animais abandonados a seus cuidados
com uma predileção tal que parece assim mostrar como ela é ciumenta deste
direito7.

Esta é uma das primeiras características do estado de natureza, segundo Rousseau, a


saber, a ausência de falta. Rousseau não partilha a visão do estado de natureza como
estado de penúria no interior do qual seria necessário lutar para sobreviver, pois
estaríamos sempre as voltas com a experiência da finitude da vida. De certa maneira,
não seria errado dizer que a experiência da falta é uma criação da vida social. Se a
natureza fornece este horizonte de amparo que dá aos animais e aos humanos o espaço
potencial de realização de seus desejos e necessidades, então a falta não pode ser uma
condição contínua de um desejo que está sempre a procura de novos objetos. Essa
ausência de falta se repete na concepção rousseauista de infância: “a criança para
Rousseau é o nome do que não deveria ter relação alguma com um significante
separado”8.
De fato, há um traço distintivo central entre os humanos em estado de natureza e
estes que fazem parte da vida social, um traço que explica em larga medida como é
possível que a falta não seja o princípio regulador da experiência do desejo. Se o

7
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Discours sur l’origine de l’inegalité, in: Oeuvres complètes, La Pléiade, p.
139
8
DERRIDA, Jacques; Da gramatologia, p. 291
humano pode ser “só, despreocupado (oisif) e sempre vizinho do perigo” sem que isto
seja fonte de ansiedade é porque no estado de natureza não se conhece a propriedade.
Não temos indivíduos vinculados a propriedades, nem indivíduos vinculados a
necessidade e ao desejo de se fazer reconhecer em suas propriedades. Os humanos são
sós, seus encontros são intermitentes, suas preocupações se vinculam a auto-
conservação em um espaço natural vasto no interior do qual eles estão em contínua
mobilidade. Mas para tanto eles podem contar com sua força e habilidade. Por isto, os
humanos aparecem inicialmente como nômades solitários.
Mas, sendo assim, poderíamos nos perguntar como se dá a saída do estado de
natureza, o que significa a instauração da vida social. Rousseau se serve de dois
fenômenos para descrever a emergência da vida social e da corrupção desta relação
imanente à natureza. O primeiro é aquilo que ele chama de “faculdade de
aperfeiçoamento”. Só os humanos teriam esta faculdade que nos empurra a um
aperfeiçoamento constante, enquanto os animais se desenvolveriam apenas até os
limites de seus próprios instintos. No entanto, se na aurora do iluminismo a
perfectibilidade era vista como a fonte da criação e felicidade humana, em Rousseau ela
é a causa de todos seus males:

Esta faculdade distintiva e quase ilimitada é a fonte de todos os males do


homem. É ela que o tira, à força do tempo, desta condição originária na qual
corriam dias tranquilos e inocentes. É ela que, fazendo eclodir com os séculos
suas luzes e erros, seus vícios e virtudes, o transforma ao fim e ao cabo em
tirano de si mesmo e da natureza9.

Ou seja, Rousseau fornece aqui alguns dos temas fundadores da crítica do


progresso, pois seu Discurso sobre a origem da desigualdade será uma “história da
civilização como progresso da negação do dado natural” 10. O primeiro destes temas
consiste em dizer que o desenvolvimento não era apenas uma forma de conhecimento
da natureza e de si, mas de uma dominação técnica de si e do mundo que nos distancia,
que marca com um véu, esta condição originária que seria o espaço de afirmação da
emergência do sentido. O advento da vida social é algo como uma queda:

Porque o homem é perfectível, não cessou de acrescentar suas invenções aos


dons da natureza. E desde então a história universal, embaraçada pelo peso
continuamente crescente de nossos artifícios e de nosso orgulho, adquire o
andamento de uma queda acelerada na corrupção: abrimos os olhos com horror
para um mundo de máscaras e de ilusões mortais, e nada assegura ao observador
(ou ao acusador) de que ele próprio seja poupado pela doença universal 11.

Isto faz da história da técnica a história do afastamento do sentido, uma história da


alienação no sentido mais forte do termo, a saber, tomar-se por um outro, estar preso ao
olhar de um outro.
Neste ponto, lembremos de outro fenômeno responsável pela saída do estado de
natureza, um fenômeno ligado ao exercício da faculdade de perfectibilidade, a saber, a
emergência do trabalho cooperativo. Em Rousseau, o trabalho cooperativo não é fonte
de emancipação, mas uma das principais fontes de alienação. Pois o trabalho

9
Idem, p. 142
10
STAROBINSKI, Jean: Rousseau: a transparência e o obstáculo, p. 36
11
Idem, p. 23
cooperativo é expressão de relações de dependência e com tais relações de dependência
aparecem a necessidade do artifício, da conquista do olhar e da estima do outro:

Enquanto os homens se aplicavam apenas a obras que podiam ser realizadas por
um e a artes que não necessitavam do concurso de várias mãos eles viveram
livres, saudáveis, bons e felizes tanto quanto podia ser por sua própria natureza e
continuaram a gozar entre eles das doçuras de um comércio independente. Mas
desde que um homem teve necessidade do socorro de outro, desde que se
percebeu que seria útil a um ter provisões para dois, a igualdade desapareceu, a
propriedade foi introduzida, o trabalho adveio necessário e as vastas florestas se
transformaram em campos rudes que deveriam ser arados com o suor dos
homens e nos quais vimos rapidamente a miséria e a escravidão germinar e
crescer como musgos12.

A indústria e o trabalho impõem um regime de atividade baseado na cooperação


dos esforços, na previsão e calculo, no acúmulo tendo em vista a luta prévia contra
situações desfavoráveis no futuro. Desta forma, o trabalho quebra a imanência à
natureza, impondo uma atividade que não é mais atividade imediata. Por outro lado, o
estabelecimento de relações de trabalho e produção se funda em tendências imanentes
de exploração e dominação. Pois, com as relações de produção, não estamos apenas a
falar do advento da propriedade, mas principalmente do reconhecimento da importância
da sanção do outro, a necessidade de reconhecimento do outro como condição para a
justificação de minha atividade. Isto é indissociável, para Rousseau, do avento de um
ser-para-outro que implica perda de si. Assim, Rousseau espera articular de forma
profunda problema moral e problema econômico.
Em suma, o espaço de reconhecimento social é sempre o espaço da perda de si já
que o advento da vida social é a alienação da potência normativa da origem, isto devido
à indissociabilidade entre vida social e propriedade. A vida social implica dependência e
esta dependência leva os homens a garantir a estima dos outros, a cultivar a aparência e
a sempre preocupar-se com ela. Eles se tornam então: “enganadores e artificiais” 13 ao
submeterem seus desejos a demandas de reconhecimento. Abre-se assim o espaço à
imitação, a uma potência mimética que é também a perda de si.

Música e reconhecimento

Mas compreendamos o que é possível fazer após a saída do estado de natureza:

Este que ousa empreender a instituição de um povo deve se sentir em estado de


mudar, por assim dizer, a natureza humana; de transformar cada individuo que,
por si mesmo, é um todo perfeito e solitário em parte de um todo maior do qual
os indivíduos receberão de certa maneira sua vida e seu ser; de substituir uma
existência física e independente que todos nós recebemos da natureza por uma
existência parcial e moral14.

O que acontece com esta natureza humana deixada para trás? Ela ainda terá
alguma força de implicar o campo de experiência humana? Pois podemos nos perguntar
se esta transformação produzida pelo legislador, se esta mudança da própria natureza

12
ROUSSEAU, Idem, p. 171
13
Idem, p.173
14
Idem, p. 381
humana não seria sem produzir uma certa nostalgia social. A vida política parece não
pode dar conta desta nostalgia. No máximo, ela transmuta a experiência de auto-
pertencimento própria ao estado de natureza em desejo de igualdade (forma única de
impedir a servidão) e de autonomia. Por isto, em algum nível, ela ainda fala aos
humanos como indivíduos marcados pela experiência do individualidade possessivo
No entanto, há um ponto no qual a vida política se deixa aproximar da voz da
natureza, no qual esta nostalgia se transmuta em proximidade a uma linguagem de pura
presença. A política procura uma linguagem da pura presença, ela procura dar à voz sua
força de direito. Tal linguagem, Rousseau a encontra na música e no uso da música
como paradigma para a reinstauração da ordem social.
A fim de compreender a configuração do paradigma musical em Rousseau,
lembremo-nos do sentido de uma das querelas mais importantes das quais ele
participou, a saber, a chamada querela dos bufões. Grosso modo, trata-se de uma
contraposição entre, de um lado, uma noção de modernidade musical vinculada ao
primado da harmonia e das regras estritas de uma progressão harmônica derivada da
teoria fisicalista do som, harmonia que abria as portas para uma polifonia
contrapontística controlada pelo centro harmônico e para uma definição de estruturação
da forma musical absolutamente autônoma em relação a tudo o que seria extra-musical
(Jean-Phillipe Rameau); de outro, uma reação que insistia no primado da melodia e da
simplicidade monofônica inspirada no canto. Posição rousseauista que Dahlhaus
caracterizou bem: “Um sentimentalismo que ama ver-se estimulado pela música, um
racionalismo que quer programas, uma pintura musical na música instrumental e a
nostalgia de uma antiguidade que opõe, à polifonia moderna, confusa e savant, uma
simplicidade tocante da monofonia grega – eis os compostos da estética musical de
Rousseau”15.
Para Rousseau, tratava-se de, através da defesa da centralidade da melodia,
sustentar a estrutura mimética da racionalidade musical. Mimetismo que não se refere
aos modos de imitação no interior da vida social, mas no vínculo exterior entre
sociedade e natureza. Vínculo que se faz sentir na relação entre música e a expressão
natural da linguagem com suas entonações e acentos. Isto o permitia vincular a música à
uma pedagogia da arte capaz de servir de veículo de formação moral por recuperar o
vínculo entre natureza e cultura. Lembremos do que diz Rousseau :

Quando pensamos que, de todos os povos da terra, todos o que têm uma música
e um canto, os europeus são os únicos que têm uma harmonia, acordes, achando
esta mistura agradável ; quando pensamos que o modo durou tantos séculos sem
que, em todas as nações que cultivaram as belas-artes, nenhuma tenha conhecido
esta harmonia, que nenhum animal ou pássaro, nenhum ser na natureza produziu
outro acorde que o uníssono ou outra musical que a melodia ; que as línguas
orientais, tão sonoras, tão musicais, exercidas com tanta arte, nunca guiaram
estes povos voluptosos e apaixonados em direção à nossa harmonia ; que sem
ela suas músicas tiveram efeitos tão prodigiosos ; que com ela a nossa tenha
efeitos tão fracos ; que, enfím, estava reservado aos povos do norte, cujos órgãos
duros e grosseiros são mais tocados pelos ruídos e explosões de vozes do que
pela doçura dos acentos e melodias das inflexões, fazerem esta grande
descoberta e defini-la como princípio a todas regras da arte ; quando, digo eu,
levamos tudo isto em consideração, é muito difícil não desconfiar que toda nossa
harmonia é uma invenção gótica e bárbara a respeito da qual nunca seríamos

15
DAHLHAUS, L´idée de la musique absolue, p. 49
avisados se fôssemos mais sensíveis as verdadeiras belezas da arte e à música
realmente natural 16.

A discussão de Rousseau vincula a expressão musical à “voz da natureza” que se


expressa sem afetação através da objetividade própria à entonação e aos acentos da fala
comum. O que explica porque Rousseau insistirá no canto (raiz de toda fala) como
fundamento da expressão musical. Esta expressão musical próxima da fala instaura, por
sua vez, um regime de presença garantido pela partilha de um fundamento ancorado no
seio da natureza, pensada aqui como polo positivo doador de sentido, como
transparência e proximidade. Proximidade que deve a todo momento saber livrar-se de
um “princípio corruptor, ligado ao espaçamento , a regularidade calculável e analógica
dos intervalos”17.
Tal proximidade, e este ponto é decisivo, teria a força de instaurar um espaço
político comum baseado na autenticidade dos costumes e na limitação da disseminação
da representação devido ao ideal estético de clareza. Esse naturalismo musical, que
submete a música ao “prazer moral da imitação” 18 enquanto sonha com o advento de
uma comunidade política por vir (ou seja, há uma submissão completa entre música e
moral em Rousseau, tal como houvera antes em Platão), faz da expressão do compositor
o uso consciente de efeitos objetivamente determinados. Ou seja, faz da expressão do
compositor a mera imitação dos afetos objetivamente dispostos. Ou seja, a imitação é,
em Rousseau, ao mesmo tempo, a vida e a morte da arte.
Notemos como a crítica da alienação em Rousseau serve-se da música como
horizonte de reconstrução da capacidade instauradora da linguagem e recuperação de
dimensões sociais de autenticidade. Rousseau é consciente de que a alienação social é
indissociável da degradação da linguagem no espaço político. Lembremos de como
termina seu Ensaio sobre a origem das línguas: “toda língua com a qual não nos
fazemos escutar pelo povo em assembleia é uma língua servil; é impossível que o povo
seja livre e fale uma língua destas” 19. Uma língua que o povo em assembleia não escuta
é aquela desprovida de eloquência, afastada da persuasão por separar o povo, por ser
apenas uma fala em nome próprio, reduzida a sua condição instrumental de descrição de
interesses. “A primeira máxima da política moderna”, dirá Rousseau, é: “os sujeitos
devem permanecer separados” e é a língua degradada à sua dimensão instrumental e
comunicacional que os separa. Lembremos do que diz Rousseau: “as necessidades
ditaram os primeiros gestos e as paixões arrancaram as primeiras palavras” 20. Ou seja, a
fala que expressa apenas sistemas de necessidades é uma fala muda, mais próxima da
pura gestualidade. Ela separa os humanos pois os coloca em relação de concorrência e
de defesa. Mas:

a força da linguagem não reside no poder de fornecer imagens das coisas, mas
no poder de pôr a alma em movimento, de colocá-la numa disposição que torne
visível a ordem da natureza. A linguagem imita a natureza quando colabora com
a ordem, quando restitui, no interior da humanidade, a ordem que seu
nascimento tinha contribuído para apagar” 21.

16
ROUSSEAU, Dictionnaire de musique
17
DERRIDA, Jacques; Da gramatologia, p. 304
18
ROUSSEAU, Jean-Jacques; Dictionnaire de musique, Paris: Actes Sud, 2007, p. 208
19
Idem, Essai sur l’origine des langues,
20
ROUSEEAU; Idem, p. 380
21
PRADO JR., Bento; A retórica de Rousseau, p. 161
As paixões, por sua vez, são implicativas. Elas nunca dizem respeito apenas a um, elas
mudam o outro quando enunciadas. Por isto, a linguagem das paixões é aquela que
realmente produz laços. A língua do povo em assembleia é aquela mais próxima do
canto, da poesia e da música. De certa forma, para Rousseau, não há assembleia sem
música e poesia. Pois o estar em assembleia não é apenas o ato de estar em um mesmo
espaço e de procurar um consenso entre interesses distintos. Estar em assembleia é o ato
de falar outra língua, estranha à língua dos interesses e das estratégias. Por isto, as
verdadeiras assembleias são algo raro.
Faz parte do poder não exatamente mobilizar por paixões, e sempre será o mais
profundo dos enganos imaginar que o poder mobiliza uma linguagem das paixões. Na
verdade, ele sempre irá procurar esvaziar a língua de sua força de expressão, fazer dela
ou o mero espaço de descrição desafetada ou o mero espaço de afirmação de minhas
propriedades, daquilo que me separa de outros sujeitos. Por isto, a primeira revolta
sempre será uma revolta da linguagem contra sua degradação, uma procura da
linguagem em parar um processo descrito por Rousseau da seguinte forma:

A medida que as necessidades crescem, que os negócios se confundem, que as


luzem se estendem a linguagem muda de caráter, ela se torna mais ajustada e
menos apaixonada; ela substitui os sentimentos por ideias, ela não fala mais ao
coração, mas à razão. Por isto, o acento se apaga, a articulação se estende, a
língua se torna mais exata, mais clara, mas mais surda e fria 22.

A recuperação da força expressiva da linguagem é assim a condição para a


política pois ela permite a emergência da proximidade e o fim da separação. Neste
sentido, podemos dizer que a forma fundamental de sujeição é a eliminação da força
expressiva da linguagem (o que nos coloca uma questão importante e que não será de
fácil resposta, a saber, o que significa “expressão” neste contexto). Pois o progresso
natural das “línguas letradas” consiste em perder a força a fim de ganhar clareza, o que
só pode significar para Rousseau uma forma de sujeição.

22
ROUSSEAU; Idem, p. 384
Curso Derrida
Aula 12

Em uma entrevista de 1972, Derrida afirma: “nada do que tento seria possível
sem a abertura das questões heideggerianas”1. Tal afirmação não poderia ser
diferente, já que sabemos como o projeto mesmo de desconstrução da metafísica
encontra suas raízes em Heidegger. No parágrafo 6 de Ser e tempo, Heidegger
fala da necessidade de uma destruição (Destruktion) da ontologia nos seguintes
termos:

Deve-se obter para a própria questão do ser a transparência de sua


própria história, então é preciso dar fluidez à tradição empedernida e
remover os encobrimentos que dela resultaram. Nós entendemos esta
tarefa como a destruição do conteúdo transmitido pela antiga ontologia,
tarefa a ser levada a cabo pelo fio condutor da questão do ser até chegar
às experiências originárias em que se obtiveram as primeiras e, a partir
de então, diretoras determinações do ser 2.

Ou seja, a possibilidade do desvelamento da questão do ser passa por


remover os encobrimentos produzidos por uma tradição na qual encontramos a
história da ontologia. Tal tradição deve ser destruída para que experiências
originárias possa ser recuperadas. Esta destruição não se comporta de maneira
simplesmente negativa em relação ao passado, mas visa o “hoje”, o modo
predominante de definir a história da ontologia. Isto significa que esta destruição
é forma de operar uma genealogia que possa revelar o que tal história comporta
de obscuro. Uma obscuridade que viria do fato de tal história ser fundada na
produção de conceitos que marcam com o selo do esquecimento o “sentido do
ser”. Sentido este que exigiria a recuperação de uma historicidade própria ao ser.
A este respeito, lembremos como Heidegger afirma: “O ente é em seu ser
apreendido como ‘presença’, ou seja, é entendido em referência a um modo
temporal determinado, o ‘presente’”3. Se o ente apreende-se enquanto presença,
o ser exige um modo temporal que seja de uma ordem distinta daquilo que se
concebe como presença para um sujeito. O que demonstra como a destruição a
qual alude Heidegger passa principalmente pelo conceito de tempo. Trata-se de
se perguntar pela mutação pela qual passou o conceito de tempo para que ele
acabasse por produzir o encobrimento da temporalidade originária do ser. Isto
exige o reconhecimento de uma diferença ontológica fundamental entre a
temporalidade dos entes, própria ao presente, e este que seria própria do ser.
A sua maneira, Derrida tentará mostrar como esta diferença ontológica
ainda está aprisionada no interior da metafísica. Daí a tarefa de: “abrir-se a uma
diferança que não seja ainda determinada, na língua do ocidente, como diferença

1 DERRIDA, Jacques; Positions, p. 18


2 HEIDEGGER, Martin; Ser e Tempo, p. 87
3 Idem, p. 95
entre o ser e o ente”4. Isto implica afirmar que a diferença entre ser e ente ainda
não é diferença que animaria a própria procura de Heidegger. O que exige que a
desconstrução de Derrida volte-se, de forma privilegiada, contra o conceito
heideggeriano de ser. É esta crítica, como vemos uma crítica central ao projeto
da desconstrução, que encontraremos em um texto como Os fins do homem.
Mas antes de começarmos a discutir nosso texto, tentemos sistematizar
aquilo que Derrida compreende como a estratégia geral da desconstrução:

Deve-se pois avançar um duplo gesto, segundo uma unidade ao mesmo


tempo sistemática e como que separada dela mesma, uma escritura
desdobrada, ou seja, ela mesmo multiplicada, o que chamei em A dupla
sessão de uma ‘dupla ciência’: de uma parte, atravessar uma fase de
inversão (renversement). Insisto muito e a todo momento na necessidade
desta fase de inversão que se procura rapidamente desqualificar.
Reconhecer esta necessidade, é reconhecer que, em uma oposição
filosófica clássica, não estamos nos referindo à coexistência pacífica de
um face a face, mas a uma hierarquia violenta. Um dos dois termos
comanda outro (axiologicamente, logicamente etc.), ocupa o lugar acima.
Desconstruir a oposição é inicialmente, em um dado momento, inverter a
hierarquia. Negligenciar esta fase de inversão é esquecer a estrutura
conflitual e subordinadora da oposição5.

Não se trata pois de simplesmente procurar suspender a estrutura binária


que constitui a história da ontologia (inteligível e sensível, forma e matéria, um e
múltiplo, essência e aparência, movimento e repouso, etc.). Tal oposição é
sempre uma hierarquia, uma submissão e não haverá nenhuma possibilidade de
transformação de nossas formas de pensar sem que, antes, tal hierarquia seja
quebrada. No entanto, não se quebra uma hierarquia suspendendo-a por
procuração. Uma hierarquia é quebrada quando ela é inicialmente invertida, em
um processo que em muito lembra a tópica nietzscheana da transvaloração de
valores. A inversão da hierarquia quebra a aderência natural de certas posições
ao poder, mostrando como os lugares de poder não estão naturalmente
vinculados a seus portadores, expondo assim a violência que sustentou a
perenidade de tal configuração. No entanto, Derrida reconhece:

Dito isto – e por outro lado – permanecer nesta fase é ainda operar sobre
o terreno e no interior do sistema desconstruído. Faz-se necessário
também, através desta escritura dupla, estratificada, defasada e defasante,
marcar a distância entre a inversão que coloca a baixo o que estava no
alto, desconstruindo a genealogia sublimante ou idealisante, e a
emergência disruptiva de um novo ‘conceito’, conceito do que não se
deixa mais, nunca se deixou, compreender no regime anterior 6.

Os procedimentos de inversão não são feitos tendo em vista a


preservação dos lugares. Eles são uma estratégia de decomposição. Assim, as

4 DERRIDA, idem, p. 19
5 DERRIDA, Jacques; idem, p. 57
6 Idem, p. 57
relações subalternas são tematizadas não para garantir lugares de poder àquilo
que até então fora excluído, recalcado e reprimido. Na verdade, elas são
recompostas para permitir a emergência do que nunca se deixou compreender
no regime anterior de determinação conceitual. Mas esta emergência não implica
alguma forma de superação dialética da oposição binária em direção a um
terceiro termo.
Derrida lembrará, por exemplo, que a noção de pharmakon não é nem o
remédio nem o veneno, nem o bem nem o mal; o suplemento não é nem um mais
nem um menos, nem o fora nem o complemento de um dentro, nem o acidente
nem a essência; o grama não é nem o significante nem o significado, nem um
signo nem uma coisa, nem uma presença nem uma ausência. Esses são conceitos
produzidos pela desconstrução que visam fazer emergir um horizonte pós-
metafísico.

Crítica da metafísica e antropologia

Mas esta emergência de um horizonte pós-metafísico exige retomar a crítica


daquilo que seria o fundamento da metafísica. Neste caso, Derrida insistirá na
seguinte equação: toda metafísica encontra seu fundamento em uma
antropologia. Ela sempre será solidária de um modo de ser do humano, de uma
imagem atual do humano. Há uma espécie de sono antropológico a marcar a
metafísica ocidental. Um sono do qual devemos acordar. Gostaria de dar alguns
passos atrás a fim de discutir de maneira mais adequada este ponto.
Comecemos por lembrar mais uma vez como, da gramatologia, Derrida
diz que ela “ não deve ser uma das ciências do homem, porque coloca de início,
como sua questão própria, a questão do nome do homem” (Derrida, 2008, p.104).
Esta frase é altamente significativa, pois anuncia a « questão própria » da
gramatologia, aquilo que determina o seu campo. Se uma reflexão do tipo
gramatológico deve necessariamente colocar em questão o nome do homem, é
porque, até agora, todo esforço para conceber as condições de possibilidade de
uma objetividade em geral e de uma ciência capaz de satisfazer certas normas de
validade, encontrou necessariamente seu fundamento em uma certa
antropologia.
Sabemos que a Gramatologia se esforça em mostrar que as noções
estruturalistas de signo e significante (entendido como imagem acústica) são
profundamente ligadas a uma “época histórico-metafísica” que se trata de
ultrapassar. De fato, Derrida acredita que onde quer que seja feito o uso da noção
de signo, encontraremos sempre um elo fundamental com a metafísica. Podemos
dizer que para Derrida qualquer metafísica é uma metafísica do signo, sendo
sempre uma redução da linguagem à dimensão do signo, o que nos leva a afirmar
que há uma antropologia subjacente ao conceito de signo. Mas se é preciso
responder brevemente à complexa questão acerca do que Derrida entende por
“signo”, talvez possamos simplesmente antecipar: o signo é um modo de
presença das coisas. Donde a tese: “A metafísica ocidental, como limitação do
sentido do ser no campo da presença, produz-se como a dominação de uma
forma linguística [ligada ao império do signo] ” (idem, p.28).
É conhecida a definição clássica que vê, no signo, aquilo que representa
alguma coisa para alguém. Tudo se passa como se Derrida nos lembrasse de que
esta re-presentação é, na verdade, a constituição do regime geral de visibilidade
dos objetos, a constituição de uma forma “de presença em geral” (Derrida, 1994,
p.64) a partir das idealidades responsáveis pela produção do sentido. Esta forma
geral é, por outro lado, a maneira através da qual “alguém” pode aparecer como
fundamento para a determinação de “alguma coisa”. Isso nos explicaria a razão
pela qual a reflexão sobre o signo privilegia sempre a linguagem falada. Seja no
estruturalismo, seja na fenomenologia, o signo é fundamentalmente o signo
falado. Pois falar das coisas é necessariamente impor um domínio técnico sobre
o objeto do qual eu falo. Falar das coisas significa colocá-las diante de mim, pô-
las em uma espécie de espaço virtual do qual eu sou o fundamento. Neste
sentido, a objetividade do objeto seria aquilo que, no objeto, submete-se a meu
discurso, como se o meu discurso (que não é apenas o discurso de uma
consciência empírica, mas o de um sujeito transcendental) fosse o meio de
instituição da objetividade. Pois o discurso tira as coisas do aqui e agora para
colocá-las em um espaço ideal de pura presença, que deixa de possuir a forma da
mundaneidade. Neste espaço, eu descubro que “minhas palavras são ‘vivas’,
porque parece que elas não me deixam: não caem fora de mim, para fora de
minha respiração, em um afastamento visível; não deixam de me pertencer, de
estar à minha disposição, ‘sem acessório’” (idem, p.86) .
Neste sentido, o “nome do homem” que a gramatologia quer colocar em
questão designa este “alguém” capaz de fundar um modo de presença e de
constituição da objetividade. Além dos atributos que normalmente determinam a
humanidade do homem (como autonomia, autenticidade, unidade, etc.), o
“homem” que fala essa linguagem dos signos, é, necessariamente, o nome de um
modo de ser, o nome de um regime que constitui a presença dos objetos e da
auto-afecção. Esse homem pode procurar incessantemente seu fim, ele pode
incessantemente tentar superar sua finitude ou fazer-se desaparecer, mas seus
movimentos serão sempre dependentes desta linguagem da qual ele é o suporte.
Assim, para Derrida, nós não acordaríamos de um certo “sono antropológico”
que assombrou o pensamento francês dos anos sessenta, a não ser com a
condição de que se aprenda a criticar a linguagem que protege esse sono contra a
aurora de um para além do humanismo.
Podemos identificar aqui o que constitui a peculiaridade de Derrida. Por
um lado, parece que Derrida apenas retoma uma temática corriqueira ao
pensamento francês dos anos sessenta. Considerem-se, por exemplo, três livros
publicados no decorrer dos anos de 1966-1967: As palavras e as coisas de Michel
Foucault, Escritos de Jacques Lacan e a Gramatologia. É inegável que a
problemática comum concernente às ciências do homem parece ter êxito, ainda
que essa problemática conduza a programas muito diferentes. Sendo assim
Lacan dirá “não há ciência do homem, porque o homem da ciência não existe,
mas apenas seu sujeito” (Lacan, 1998, p.873). Donde a ideia que “o objeto da
psicanálise não é o homem; é aquilo que lhe falta” (Lacan, 2003, p.218).
Em um artigo que não passou despercebido, Georges Canguilhem quanto
a ele afirmava: « É inevitável que, ao se propor como teoria geral da conduta, a
psicologia tome para si alguma ideia de homem. Deve-se então permitir à
filosofia perguntar à psicologia de onde ela tira esta ideia e se não seria, no
fundo, de alguma filosofia »7. Tudo se passa como se Lacan tivesse entendido que

7Canguilhem, Georges; Etudes d’histoire et de philosophie des sciences concernant les vivants et la
vie, Paris: Vrin, 2002
esta ideia de homem no coração da psicologia fosse o núcleo de uma
normatividade fundadora de uma “época histórico-metafísica”, para falar como
Derrida. Época nomeada por Lacan “era história do Eu”8, a qual a psicanálise
desejaria superar.
De sua parte, Foucault se perguntava se não seria necessário “renunciar a
pensar o homem, ou, para ser mais rigoroso, pensar mais de perto este
desaparecimento do homem — e o solo de possibilidade de todas as ciências do
homem — na sua correlação com nossa preocupação com a linguagem?”
(Foucault, 2000, p. 535). Uma renúncia que para o Foucault arqueólogo das
ciências humanas já estaria em marcha na psicanálise e na etnologia. Pois a
psicanálise e a etnologia eram os modelos de uma episteme por vir que já se
anunciava, uma episteme liberada da figura normativa do homem, uma episteme
das ciências do inconsciente “não porque atingem no homem o que está por sob
a sua consciência, mas porque se dirigem ao que, fora do homem, permite que se
saiba, com um saber positivo, o que se dá ou escapa à sua consciência” (idem, p.
524-525). O inconsciente proveria assim o sistema estrutural das regras, normas
e leis que determinam a “constituição originária da objetividade”.
Ora, para Derrida, falta ao Lacan dos Escritos e ao Foucault das Palavras e
as coisas uma compreensão mais clara do regime de linguagem pressuposto pelo
inconsciente freudiano. Pode-se dizer que Derrida aceita a ideia lacaniana
segundo a qual o inconsciente é estruturado como linguagem. Mas ele quer
mostrar de que maneira, em Freud, esta linguagem que estrutura o inconsciente
não se organiza segundo o modelo estruturalista, isto é, segundo o primado do
significante, do discurso e da voz. Ao contrário, Freud nos obrigaria a
desenvolver um conceito de linguagem próximo do que Derrida tenta pensar na
Gramatologia: um conceito de linguagem fundado na noção de “escritura
psíquica”. Escritura presente nos sonhos e na memória, capaz de “tornar
enigmático o que se julga conhecer pelo nome de escritura” (Derrida, 2009,
p.293); escritura capaz de sustentar o fundamento crítico do regime de presença
e de auto-afecção arraigado em nossa época histórico-metafísica, fundamento
crítico disto que nos aparece como procedimento de “constituição originária da
objetividade”.
Contudo, a fim de melhor compreender a aposta de Derrida, é antes
necessário retornar às intenções daqueles que, numerosos nos anos 60, viam no
nome do homem o resultado mais visível da metafísica oculta no coração das
ciências humanas. Isso permitirá que a peculiaridade de Derrida seja melhor
compreendida.

Franceses, ainda um esforço se quiseres sair do psicologismo

Duas problemáticas mesclam-se intimamente no interior do debate


francês da época: a do transcendental e a do inconsciente. O pensamento francês
dos anos sessenta resulta, na verdade, de uma convergência de programas que
têm em comum a vontade de liberar a reflexão transcendental dos limites de
uma filosofia da consciência através do questionamento sobre o nome do
homem. Isso exigiria, por um lado, a denúncia do psicologismo e do
antropologismo presentes nos projetos classicamente transcendentais ainda

8 Lacan, 1966, p. 283


dependentes do âmbito das filosofias da consciência. A reflexão transcendental
teria sido contaminada por uma “confusão entre o empírico e o transcendental”
onde “a análise pré-crítica do que é o homem em sua essência converte-se na
analítica de tudo o que pode dar-se em geral à experiência do homem” (Foucault,
2000, p. 472).
A crítica dessa confusão pode surgir, em Derrida, como uma necessidade
de apagamento. Assim, ele escreve: “ é preciso talvez pensar que o que
descrevemos aqui como trabalho da escritura elimina a diferença transcendental
entre origem do mundo e estar-no-mundo. Elimina-a produzindo-a” (Derrida,
2009, p.312). Compreendemos que o trabalho da escritura apaga a diferença
transcendental na medida em que expõe a confusão genética entre o ôntico e o
ontológico. A escritura demonstra os pressupostos ônticos que determinam a
forma da ontologia.
Por outro lado, o esgotamento das filosofias da consciência conduz a uma
reflexão sistemática acerca do inconsciente. Esse esgotamento dar-se-ia, na
verdade, devido à sua incapacidade de levar em conta o caráter fundador de uma
dimensão propriamente inconsciente capaz de determinar a forma do
pensamento ( há toda uma discussão à propósito do que devemos compreender
aqui por “determinar”).
Este contexto explica por que é encontrada, na antessala do projeto
gramatológico, uma renovação da interrogação transcendental através do
recurso, dentre outros, a uma reconstrução filosófica do conceito freudiano de
inconsciente. Alguns leitores de Derrida talvez se surpreendam com esta
afirmação. Eles se recordarão da intenção de Derrida de “esgotar seriamente a
problemática ontológica e transcendental, atravessar paciente e rigorosamente a
questão do sentido do ser, do ser do ente e da origem transcendental do mundo”
(Derrida, 2008, p.61). Mas não se pode esquecer que esse esgotamento foi
realizado em vista da abertura para o que “comanda toda objetividade do objeto
e toda relação de saber” (idem, p. 69), isto é, para a “formação da forma” (idem,
p. 77). Ocorre à Derrida falar da meditação da escritura como uma “
metarracionalidade” ou “metacientificidade” (idem, p. 109). Sendo assim, tudo se
passa como se o esgotamento de um determinado regime de questionamento
transcendental pudesse e devesse abrir a via em direção a uma região capaz de
indicar, ao mesmo tempo, um fundamento para a crítica da razão e de regimes de
saber, e de fornecer um método de constituição dos objetos da experiência que
deixam de depender das estruturas formais de síntese, unidade e identidade,
inicialmente acessíveis através da auto-afecção da consciência de si. Região onde
podemos encontrar “um campo transcendental autônomo do qual todo sujeito
atual pode abster-se” ( Derrida, 1999, p.84). Região em que podemos dizer:

“Transcendental seria a Diferença (...) Transcendental seria a certeza


pura de um Pensamento que, não podendo se colocar em direção a um
Telos que se anuncia já avançando sobre a Origem que
indefinidamente se reserva, não aprendeu jamais que ele seria sempre
porvir ” (idem, p.171)

Estamos, certamente, bastante longe da clássica definição do


transcendental como o conjunto de determinações formais das condições de
possibilidade de toda objetividade possível, isto é, das condições que permitem
estabelecer o regime de validade de toda representação do objeto por uma
consciência ideal. Se o transcendental aparece como a “Diferença”, se ele aparece
como um campo do qual todo sujeito atual pode abster-se, é porque ele não mais
permite a categorização e a constituição dos objetos da experiência a partir das
estruturas formais presentes na auto-afecção da consciência de si. A auto-afecção
da consciência de si não mais provê o princípio que permite a ligação
(Verbindung) do diverso da intuição sensível nas representações do objeto. Este
transcendental que podemos derivar do projeto da gramatologia poderia apenas
abrir um regime de disseminação sem retorno ou, se quisermos nos servir de um
termo de Derrida, um regime “de inquietude transcendental” (Derrida, 2003, p.
13) que fragiliza a identidade dos sujeitos e dos objetos.
Dessa forma, Derrida pode defender que a vida psíquica é instaurada pela
constituição de uma cena além de qualquer divisão entre sujeito ( pois “o
conceito de sujeito (consciente ou inconsciente) remete necessariamente para o
de substância – e portanto de presença” (Derrida, 2009, p. 336)) e objeto, entre
proximidade e distância, entre significado e significante. Uma cena “que não se
deixa ler a partir de nenhum código” (idem, p. 307) pois ela é a manifestação
absoluta da irredutibilidade de uma diferença que não mais poderá ser
controlada pelos métodos de codificação.

Os fins do homem

Voltemos então nossos olhos a Os fins do homem. Mas nos voltemos lembrando
desta afirmação de Derrida: “Tenho muitas vezes o sentimento de que a
problemática heideggeriana é a defesa a mais ‘profunda’ e mais ‘potente’ do que
tento colocar em questão sob o título de pensamento da presença” 9.
O texto de Derrida começa através da constatação de que o humanismo
tornara-se, logo após o pós-guerra, um eixo dominante do pensamento francês.
Humanismo este que, sob a figura principal de Sartre, insistia que a realidade
humana fornecia uma certa unidade àquilo que seria o fundamento do pensar.
No entanto: “a história do conceito de homem nunca é interrogada. Tudo se
passa como se o signo ’homem’ não tivesse qualquer origem, qualquer limite
histórico, cultural, linguístico. Nem mesmo qualquer limite metafísico 10.
Derrida insiste que esta vaga humanista se apoiava na leitura
antropológica, e equivocada, de três autores: Heidegger, Hegel e Husserl. No
entanto, a desconstrução da metafísica proposta por Heidegger visava, de forma
explícita, o humanismo:

Todo humanismo se funda sobre uma metafísica ou torna-se ele próprio o


fundamento dela. Toda determinação da essência do homem que já
pressupõe, quer ela o saiba ou não, a interpretação do ente sem colocar a
questão relativa à verdade do Ser é metafísica. É por isso que, se se
considera a maneira como é determinada a essência do homem, o próprio
de toda a metafísica revela-se no fato de ela ser ‘humanista’. De igual
modo, todo o humanismo permanece metafísico 11.

9 DERRIDA, Jacques; Positions, p. 75


10 DERRIDA, Jacques; Margens da filosofia, p. 155
11 HEIDEGGER, Martin; Carta sobre o humanismo, p. 47
Esta é uma forma de afirmar que não pode haver metafísica sem uma
antropologia de base, que a metafísica é na verdade a realização de uma forma de
vida cujas coordenadas encontram-se marcadas no interior de uma antropologia.
Neste sentido, é evidente que Derrida assume explicitamente o postulado de
Heidegger. Seu projeto de desconstrução irá seguir as coordenadas deste modelo
de crítica da metafísica consolidadas por Heidegger. Mas Derrida insistirá na
tarefa de pensar o fim do homem para além da maneira hegeliana de superar a
finitude do homem em uma dialética do reconhecimento com sua “teleologia na
primeira pessoa do plural”12.
Isto implica criticar o próprio Heidegger por ele ter sido pretensamente
incapaz de desvincular o pensamento do próprio do homem da questão da
verdade do ser. Ou seja, trata-se de afirmar que uma certa antropologia insidiosa
de fato permanece em Heidegger e que a desconstrução deve ser capaz de nos
levar para fora dela, como condição necessária para a efetivação de um
pensamento da diferença que não se reduza à diferença ontológica. Derrida
afirmará que o pensamento de Heidegger será guiado pelos motivos do ser como
presença e da proximidade do ser à essência do homem. Ou seja, o sono
antropológico também embalaria a filosofia do Dasein. Não é apenas o ente que é
constituído à imagem do homem. Também o ser em sua proximidade, em seu
acesso ainda segue as coordenadas de uma antropologia que não tem coragem
de dizer seu nome.
O que é ameaçado na extensão da metafísica e da técnica, diz Heidegger, é
a essência do homem. Ou seja, para além do humanismo e de sua associação à
metafísica, é a essência do homem que acaba sendo marcada pelo selo do
esquecimento. Trata-se de reinstaurar o homem em sua essência. Por isto,
Heidegger poderá afirmar:

Assim a humanitas permanece no coração deste pensamento, porque o


humanismo consiste nisto: refletir e velar (Sinnen und Sorgen) para que o
homem seja humano e não inumano (unmenschlich), isto é, fora da sua
essência13.

Esta é uma maneira de dizer, ao menos segundo Derrida, que se


pensamos contra o humanismo, é porque o humanismo não situa
suficientemente alto a humanitas do homem. Pois a autenticidade do homem é o
relacionar-se com o sentido do ser. Por isto, Derrida pode jogar com o duplo
sentido da palavra “fim” e dizer que o fim do homem era, na verdade, sua
finalidade, sua real destinação enquanto homem.
Esta é uma maneira de insistir na solidariedade entre a crítica
heideggeriana e aquilo que ela procura criticar. Sabemos que, contra a
temporalidade decaída que marca a metafísica, Heidegger acredita poder
mobilizar a temporalidade originária: “Ora, oposição do original e do derivado
não é ainda metafísica? A reclamação da arquia em geral, quaisquer que sejam as
precauções de que rodeemos este conceito, não é a operação ‘essencial’ da
metafísica?”14. Pois esta é a maneira que Derrida encontra de afirmar que a

12 DERRIDA, Jacques; idem, p. 161


13 HEIDEGGER, Martin; Carta sobre o humanismo
14 DERRIDA, Jacques; Margens da filosofia, p. 101
delimitação heideggeriana consiste a elevar-se do presente a um pensamento
mais original do ser como presença.

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