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A CIDADE DE TODOS OS CORPOS: TRANSGRESSÕES E DESVIOS DE GÊNERO


NO ESPAÇO URBANO DO BRASIL E DA BOLÍVIA (1950-1970)

Chapter · February 2023

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0 9

1 author:

Alberto Rodrigues de Freitas Filho


Federal University of Rio de Janeiro
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SOBRE
PAISAGENS,
MEMÓRIAS
ra E CIDADES
M
emória,identidades e tempo histórico. Lu¬
gares de memória e disputas, conflitos na
paisagem urbana. História, preservação da
memória e património. Património em contextos de
crise, políticas e pós-memória. Essas palavras e con¬
ceitos traduzem o livro que ora se apresenta ao leitor
interessado em refletir sobre o tempo, a paisagem ur¬
bana por onde transita e a história social do presente
em relação com outros tempos. Os capítulos dão plu¬
ralidade de sentidos e interpretações, tocando quem
tem desejo de conhecer mais sobre as cidades, sobre
as ruas, sobre o património e os sujeitos que pelas pai¬
sagens urbanas transitam, interagem, manifestam-se,
vivem a vida. As páginas escritas falam de corpos e
almas na cidade e da cidade, assim como suas memó¬
rias, pretéritas ou presentes.
Andréa Casa Nova Maia
Wladimyr Sena Araújo
(organizadores).

ISBN 976^52527326-6

786525 273266
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte
desta edição pode ser utilizada ou reproduzida -
em qualquer meio ou forma, seja mecânico ou
eletrónico, fotocópia, gravação etc. - nem DIALÉTICA PREFÁCIO
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dados, sem a expressa autorização da editora.
II /editoradialetica
Copyright © 2023 by Editora Dialética Ltda.
Copyright © 2023 by Wladimyr Sena Araújo, © @editoradialetica
Andréa Casa Nova Maia (Orgs.) www.editoradialetica.com
Carlos Eduardo Pinto de Pinto (UERJ)
EQUIPE EDITORIAL
Editores Preparação de Texto
Profa. Dra. Milena de Cássia de Rocha Nathália Sôster Mais misteriosa do que a alma é a matéria. Mais enigmática que o
Prof. Dr. Rafael Alem Mello Ferreira
Prof. Dr. Tiago Aroeira Revisão pensamento, é a “coisa”.
Prof. Dr. Vitor Amaral Medrado Marcos Luís Batista
Assistentes Editoriais
Clarice Lispector
Designer Responsável
Daniela Malacco Jean Farias
Larissa Teixeira O que é uma cidade? A pergunta poderia ser respondida de mui¬
Produtora Editorial Ludmila Azevedo Pena
Camila Gabarrão Thaynara Rezende tas maneiras. Um modo clássico é arrolar cifras, gráficos, metragens.
Controle de Qualidade Estagiários Quantos habitantes? Qual a extensão de seu território? E o impacto de
Maria Laura Rosa DiegoSales sua economia? Também é possível pensar juridicamente, buscar conhe¬
Capa Lais Silva Cordeiro cer as leis que determinam o que permite a um distrito almejar ser cida¬
Larissa Marques Maria Cristiny Ruiz
de, que direitos e deveres esse estatuto carrega e com quais instâncias go¬
Diagramação
Lygia Magalhães vernamentais se relaciona. Caminhos válidos, porém distantes do que as
leitoras e os leitores encontram, neste livro. Aqui, as urbes são pensadas
a partir das vivências de citadinos e citadinas, das relações entre os cor¬
pos e as pedras, das memórias, das reinvenções criativas, dos rituais, das
“coisas” - estas, encaradas com a mesma reverência que Clarice Lispector
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) lhes atribui na epígrafe que abre esta apresentação. Ainda que nem to¬
dos os artigos versem, diretamente, sobre realidades urbanas, podem ser
entendidos a partir dessa lógica, bastando substituir “cidade” por “pai¬
S677p Sobre Paisagens, Memórias e Cidades / organização Wladimyr Sena
Araújo, Andréa Casa Nova Maia. - São Paulo : Editora Dialética, 2023. sagem”, para ampliar e complexificar as reflexões que construo a seguir.
344 p.
Cidades podem ser evocadas a partir de ruas, parques, praças,
edifícios, estátuas, muros. Partes que contêm o todo, como sinédoques.
ISBN 978-65-252-7326-6 Dito de outra forma, as “coisas” reverberam suas géneses urbanas. Mas
até onde essa relação poderia se sustentar? Haveria limites para as di¬
1. Memórias. 2. Património. 3. História. I. Organizadores. II. Título. mensões de uma “coisa”, que carrega em si os traços de uma cidade? Os
artigos, reunidos aqui, demonstram que não. Desde a monumentalidade
CDD907 dos estádios de futebol, das favelas e das ruínas industriais, passando pe-
CDU 93

Ficha catalográfica elaborada por Mariana Brandão Silva CRB -1/3 1 50


Anexo
A CIDADE DE TODOS 0S CORPOS: TRANSGRESSÕES
E DESVIOS DE GÊNERO N0 ESPAÇO URBANO DO
Imagens e referências BRASIL E DA BOLÍVIA (1950-1970)

Alberto Rodrigues de Freitas Filho

Introdução

Istanbul Project II, Doris Salcedo, 2003. Untitled, Doris Salcedo, 2003. As transgeneridades e as travestigeneridades se inserem nas
Fonte: Art21 Fonte: Museum of Chicago, online. transgressões e desvios de gênero presentes no espaço urbano, onde o
regime de dominação cisheteronormativo regula o modo pelo qual os
Figura 3 Figura 4
corpos generificados irão se portar e interagir com outros corpos na pó-
Figura 5
lis.1 Desde o seu surgimento, as cidades foram concebidas de modo a
reproduzir esse mecanismo de poder, a fim de determinar quais papéis
sociais e comportamentos eram mais adequados e socialmente aceitos
para homens e mulheres.2
Na pólis grega, a figura masculina era exaltada, enquanto a fe¬
minina teria importância menor. Embora devamos ter cuidado para não
cair na tentação anacrónica de igualar a fisiologia daquela época ao sexis-
mo contemporâneo, é possível reconhecermos que já se manifestava, en¬
tre os gregos, uma contradição determinada pelas diferenças biológicas
La casa viuda III, Doris La casa viuda I, Doris entre os corpos sexuados. De acordo com essa visão binária, baseada nas
Salcedo, 1994. Salcedo, 1992-94. 1 As transgeneridades abarcam as identidades não cisgêneras, agrupadas por Nasci¬
Fonte: Museum of Fonte: Museum of mento (2021): transexuais, mulheres transgêneras, homens transgêneros, transmas-
Untitled, Doris Salcedo. Chicago, online. Chicago, online. culines e pessoas não binárias. A autora entende ainda a “travestigeneridade “como
Istambul, 2003. um gênero originário, no sentido de ser um gênero próprio, um gênero em si, para
Fonte: Museum of além do binarismo homem e mulher - as travestigeneridades apresentam-se como
Chicago, online. mais um gênero, um terceiro gênero.” (NASCIMENTO, 2021, p. 53).

2 O sistema cisheteronormativo é o que determina a cisgeneridade como norma so¬


cialmente aceita para a identidade de gênero, e a heterossexualidade como norma
socialmente aceita para a orientação sexual dos corpos, buscando sempre um ali¬
nhamento entre o sexo biológico, o gênero e a sexualidade/desejo dos sujeitos.

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79
características da physis, os corpos masculinos eram mais “quentes” e o* ro, desafiando a ordem binária da dominação masculina, emergi¬
femininos mais “frios”? ram e se afirmaram nas bandeiras das lutas feministas. Práticas e
identidades sexuais cada vez mais diversas desafiavam o padrão
Ao estudar a história das cidades através das imagens, mesmo o ob
patriarcal e heteronormativo, produzindo e sendo produzido por
servador menos atento perceberá os signos que remetem à divisão binán.i
uma contracultura pulsante de experimentações e subversões.
entre o masculino e o feminino, que prevalece até hoje. É possível observat. A politização do corpo e da intimidade contestava a tradicional
nesses documentos históricos, como as vestimentas, os gestos, os lugares e as distinção entre o público e o privado, afirmando a autonomia, o
profissões, entre outros marcadores identitários, diferenciam-se no cenário desejo, o direito ao prazer, como reivindicações centrais na esfera
urbano, de acordo com o gênero atribuído aos corpos, no nascimento. pública. (QUINALHA, 2021, p. 22).
No entanto, desde a ascensão do movimento feminista, em mea
dos da década de 1970, a categoria gênero tem sido tensionada, princi À luz dessas e de outras contribuições teóricas que mencionarei
palmente em áreas das ciências humanas, que investigam mais a fundo adiante, analiso, neste capítulo, como os corpos transgressores de traves¬
a vida nas cidades, como a Sociologia, a Antropologia, a Psicologia e a tis c homossexuais masculinos travestidos desafiaram o padrão cishetero-
História, entre outras. As transgressões de gênero, discutidas no âmbito noi inativo,no cenário urbano do Brasil e na Bolívia, entre as décadas de
da chamada teoria queer, que dialoga interseccionalmente com os estu 1950 e 1970? Considerando que travestir-se é a primeira e mais comum
dos de gênero e com o feminismo, passam a ganhar destaque nos anos iiansgressão de gênero, praticada, inclusive, por homens cis e heterosse-
1980? Embora o queer não esteja presente apenas no espaço urbano, os » uais durante o carnaval, seria possível resistir à lógica de dominação ci-
corpos cuja sexualidade se manifesta de forma dissidente ou desviante sheteronormativa sem grandes consequências. Porém, ao transgredirem
estão mais incorporados à paisagem das grandes cidades? essa regra sistematicamente, alguns corpos se tornam marginalizados e
sujeitos à violência urbana e institucional.
O acelerado processo de urbanização, que marca a consolidação Entre as décadas de 1950 e 1960, os bailes de travestis, como o
das grandes cidades brasileiras, conviveu com uma forte onda de Baile dos Enxutos, reunia centenas de pessoas para concursos de fan¬
mudanças também no campo dos valores. Novos papéis de gêne- tasias bastante disputados durante o carnaval carioca? Depois de des¬
pertar grande atenção do público e da imprensa, os participantes desses
3 A physis, a natureza, era o objeto de investigação dos primeiros filósofos gregos,
eventos, em sua maioria homossexuais masculinos e travestis, passaram
que buscavam a explicação dos fenômenos a partir do mundo natural, recusando
possíveis explicações divinas ou sobrenaturais. Entre esses filósofos, destacaram-se a ser alvo de atitudes homofóbicas e, posteriormente, foram reprimidos
alguns pré-socráticos da região da Jônia, como Tales de Mileto, Xenófanes de Colo- e presos pela polícia, durante a ditadura militar. O regime de poder insti-
fao e Heráclito de Éfeso.
4 De acordo com Louro (2020), “queer seriam sujeitos e práticas que se colocam con¬
tra a normatização venha de onde vier, ou seja, contra a evidente normatização da 6 Travesti é o termo utilizado para caracterizar pessoas que se apresentam com vesti¬
chamada sociedade ‘mais ampla’ e contra a normatização que se faz no contexto das mentas e comportamentos associados ao gênero oposto, porém assumem tal identida¬
lutas afirmativas das identidades minoritárias” (LOURO, 2020, p. 97). A autora ex¬ de de gênero de forma quase sempre permanente. Diferente de transexuais, travestis
plica que os intelectuais queer são muito mais desconstrutivos do que propositivos, não passaram por cirurgia de redesignação sexual, embora possam ter se submetido
aproximando-se de vertentes pós-estruturalistas, recorrendo a Lacan, a Derrida e a a alterações estéticas, como a aplicação de silicone nos seios e glúteos, entre outras.
Foucault, nem sempre de forma harmoniosa.
7 A mídia que cobria os eventos carnavalescos não diferenciava os homossexuais
5 Halberstam (2005, p. 15) questiona o fato de que o espaço urbano das grandes cidades masculinos das travestis propriamente ditas. A designação “travesti” se aplicava a
é considerado um ambiente mais natural para o queer do que as pequenas cidades ou todos e a todas que desafiavam o padrão cisheteronormativo durante as festividades
zonas rurais. Essa divisão, segundo o autor, oblitera as vivências queer não urbanas. do carnaval, no Rio de Janeiro.

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tuído no Brasil, após o golpe de 1964, iniciaria uma perseguição não ape¬ das por ela expressaram-se, nas cidades ocidentais, através de al¬
nas política, mas também moral, contra esses e outros corpos dissidentes. terações que macularam e subverteram a forma e o espaço urbano
Na Bolívia, igualmente em um contexto de regime militar, no -
onde, todavia, foi a própria natureza do corpo humano neces¬
sariamente incoerente e fragmentada - que contribuiu para gerar
final da década de 1960 e início da década de 1970, corpos travestidos
direitos e dignificar as diferenças. (SENNETT, 2013, p. 23).
transgrediam o regime cisheteronormativo no Carnaval de Oruro e na
festividad del Senõr Jesus del Gran Poder, em La Paz. Ao encarnarem as
Na busca pela compreensão desses mecanismos de dominação
“chinas morenas”, homossexuais masculinos e travestis passaram a ocu¬
par um lugar que antes era reservado aos homens cis e heterossexuais, masculina e de possíveis formas de resistência a eles, as relações entre
uma vez que a participação feminina, nessas festas populares e religiosas, gênero e poder foram abordadas por algumas das principais teorias sur¬
era vetada pela tradição popular. gidas a partir do feminismo e dos estudos queer, nas últimas décadas do
século 20. Para Scott, “o gênero é uma forma primeira de significar as
As transgressões descritas neste capítulo, a partir de revisão biblio¬
relações de poder” (SCOTT, 2019, p.69). Butler (2018), por sua vez, afir¬
gráfica, também apontam para modos de reivindicar o direito de viver a
ma que “a estrutura binária para o sexo e o gênero são sempre considera¬
cidade e de resistir às violências do regime de poder cisheteronormativo,
das como ficções reguladoras, que consolidam e naturalizam regimes de
patriarcal, capitalista e colonial. Ao se desviarem do gênero determinado
poder convergentes de opressão masculina e heterossexista” (BUTLER,
pelo sexo biológico, esses corpos dissidentes nos possibilitam superar o de¬
2018, p. 70). Para Louro, “É binária a lógica que dá as diretrizes e os limi¬
terminismo da divisão binária que moldou, não apenas o espaço urbano,
tes para se pensar os sujeitos e as práticas. Fora desse binarismo, situa-se
mas também a maneira como o percebemos e nos relacionamos com ele.
o impensável, o ininteligível” (LOURO, 2020, p. 99).
Na Antiguidade, a crença de que os corpos masculinos eram mais
Gênero e poder na cidade capazes de absorver calor e, portanto, “quentes”, justificou a hierarquia
binária de gênero que vigorava na pólis grega, no século 4 a.C. Segundo
De acordo com Sennett (2003), “A cidade tem sido um lócus de Sennett, “a fisiologia grega justificava direitos desiguais e espaços urbanos
poder, cujos espaços tornaram-se coerentes e completos à imagem do distintos para corpos que contivessem graus de calor diferentes, o que se
próprio homem” (SENNETT, 2003, p. 24). Embora o autor, nessa passa¬ acentuava na fronteira dos sexos, pois as mulheres eram tidas como ver¬
gem, provavelmente tenha utilizado a palavra “homem” como sinónimo sões mais frias dos homens” (SENNETT, 2003, p. 31 ). Portanto, os corpos
de “humanidade”, essa flexão do substantivo já denota uma naturalização femininos deveriam permanecer em casa, não poderiam se envolver nos
do masculino como o gênero que detém o poder na cidade. Entretanto, negócios da cidade, nem tampouco se mostrar nus, ao passo em que a
afirma que essa imagem se “estraçalha” no contexto do agrupamento de nudez masculina era admitida e desejada no espaço público. A demo¬
pessoas diferentes que vivem na cidade, o que intensifica a complexidade cracia ateniense, que simbolizaria o poder de “todos”, na verdade excluía
social e causa estranhamento entre os sujeitos. mulheres e escravos. Esses últimos também se enquadravam na categoria
dos corpos frios, uma vez que as condições de servidão reduziriam a tem¬
Ao longo da história do Ocidente, imagens dominantes dos cor¬ peratura corporal deles.
pos estilhaçaram-se no processo de sua transferência para a cida¬ Apesar disso, segundo Sennett (2003), os gregos antigos admitiam
de. A imagem idealizada encerra um convite à multiplicação de
valores, dadas a idiossincrasias físicas de cada um, que além disso
posições intermediárias nessa hierarquia de gênero, como a ideia de que fe¬
possui desejos opostos. As contradições e ambivalências desperta¬
tos masculinos frios dariam origem a homens “afeminados”, assim como a

82 83
de que fetos femininos aquecidos dariam a origem a mulheres “masculini- também começa uma espécie de viagem, ou melhor, instala um proces¬
zadas”. Porém, no caso da “afeminação”, não se deve confundi-la com o que, so que, supostamente, deve seguir um determinado rumo ou direção”
hoje, conhecemos como homossexualidade, embora os corpos masculinos (LOURO, 2020, p. 15).
“frios” ou “frágeis” pudessem ser tratados como femininos no intercurso Em um sistema que já normatiza o gênero, enquanto o corpo
sexual, assumindo o papel “passivo” (SENNETT, 2003).
ainda se materializa no ventre da genitora, os desvios de rota podem ser
Ao analisarmos o sistema de poder baseado em gênero na an¬ tomados como transgressões graves. A família patriarcal, normalmente,
tiga pólis grega, vemos uma escala de valores muito mais determinada é a primeira a reprimir e a não tolerar os corpos transgressores gerados
pela physis, ou seja, por um aspecto da natureza dos corpos do que um no seu seio. “O casal, legítimo e procriador, dita a lei. Impõe-se como
sistema baseado na mera oposição entre os sexos biológicos. Porém, a inodelo, faz reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar,
oposição entre corpos quentes e frios não deixa de ser binária. Logo, não reservando-se o princípio do segredo” (FOUCAULT, 2021, p. 7). A figura
estaria tão distante da oposição macho-fêmea. Ao menos, os gregos, na paterna, masculina, deve ser temida. A figura materna, feminina, deve ser
Antiguidade, admitiam pontos intermediários nessa hierarquia de gêne¬ submissa. Os papéis de gênero estão postos à mesa e não devem ser ques¬
ro, que passariam a ser vistos como transgressões por outras civilizações, tionados. Apenas obedecidos e reproduzidos. Aos corpos que insistem
ao longo da história. em transgredir e resistem às imposições do sistema patriarcal, restará, na
De acordo com Louro: maioria das vezes, o abandono ou a expulsão do lar. Em alguns casos, o
abandono do corpo, por meio do suicídio.
O ato de nomear o corpo acontece na lógica, que supõe o sexo A existência como resistência é o que define a luta travada por
como um “dado’ anterior à cultura e lhe atribui um caráter imutᬠcorpos transgressores de pessoas trans e travestis, que desafiam cotidia-
vel, a-histórico e binário. Tal lógica implica que esse “dado” sexo
namente o sistema cisheteronormativo e rompem os limites estabelecidos
vai determinar o gênero e induzir uma única forma de desejo.
pela determinação do gênero, baseada no sexo biológico. Ao existirem e
Supostamente, não há outra possibilidade senão seguir a ordem
resistirem, estão desafiando a divisão binária, que é utilizada para fixar as
prevista. A afirmação “é um menino” ou “é uma menina” inaugura
um processo de masculinização ou feminização com o qual o su¬ identidades e os papéis dos corpos sexuados, na sociedade. Desse modo,
jeito se compromete (LOURO, 2020, p. 15). algumas normas de gênero, tidas como naturais, são desnaturalizadas pe¬
los corpos trans*.’ A artificialidade, portanto, é um atributo inerente a
O regime de poder baseado no gênero já começa a regular os cor¬ todos os corpos, inclusive os de pessoas cisgênero, que estão sujeitas ao
pos ainda no útero, e a determinar os papéis que serão desempenhados mesmo sistema de dominação, embora acreditem ser mais beneficiadas
ao longo de suas existências. A necessidade de se conhecer o sexo bioló¬ do que prejudicadas por ele.
gico, antes do nascimento, por meio de exames de ultrassonografia, assim
como o ritual de revelá-los à sociedade, que se traduz nos chamados “chás
revelação”, sacraliza esse processo de masculinização ou feminização do
9 De acordo com Halberstam, o asterisco na palavra trans* “modifica o significado
feto.8 Segundo Louro, “a declaração ‘É uma menina!’ ou ‘É um menino!’
da transitividade, recusando-se a situar a transição em relação a um destino, uma
forma final, uma forma específica ou uma configuração estabelecida de desejo e
8 É nesse momento em que também se define a cor do enxoval do nascituro. Se for identidade. O asterisco adia a certeza do diagnóstico; mantém à distância qualquer
atribuído ao feto o gênero masculino, a cor é o azul. Se feminino, a cor determinante sentido de saber com antecedência qual significado esta ou aquela forma variante
é o rosa. Essa tradição, por mais inofensiva que pareça, é a primeira regra imposta de gênero pode ter, e talvez o mais importante, faz das pessoas trans* as autoras de
para os corpos generificados pela cisheteronormatividade. suas próprias categorizações (HALBERSTAM, 2018, P. 4 - Tradução livre do autor).

84 85
Por diversos modos, todos os corpos trans* rompem com as nor¬ mulher são vazias e transbordantes: “vazias, porque elas não têm nenhum
mas cisgêneras, reinventando modos de ser para além das femi¬ significado definitivo e transcendente; transbordantes porque, mesmo
nilidades e masculinidades, como, por exemplo, a emergência da quando parecem fixadas, elas contêm em si definições alternativas nega¬
não binaridade. Os corpos são referências que podem funcionar das ou reprimidas” (Idem, 2019, p. 75). São essas definições que os corpos
como âncora para nossas identidades, um ponto firme ao qual nos 1 1 ansgressores trazem à tona, desafiando o poder, que regula e coloniza as
vinculamos e nos conectamos, um ponto de apoio. Por isso, com¬
identidades de gênero.
preender suas multiplicidades se faz tão importante, sob risco de
continuar reiterando um jogo hierárquico que produz opressões
diversas, processos de adoecimentos e mortes. (NASCIMENTO, Corpos proibidos
2021, p. 124).

Desde o início do século 20, há registro de corpos masculinos


Devido a esse caráter explicitamente transgressor, que desafia o travestidos, no carnaval do Rio de Janeiro. Na década de 1930, segundo
sistema de dominação cisheteronormativo, as corporalidades transgênero
Green, Madame Satã teria participado do bloco carnavalesco “Caçadores
e travestigêneres foram submetidas a variadas formas de violência física
de Veados” e desfilado, pelas ruas cariocas, trajando plumas e vestidos de
e psicológica ao longo da história. Nas cidades, travestis e mulheres trans
lantejoulas. Porém, o autor destaca que “travestir-se durante o carnaval,
foram e continuam sendo relegadas às zonas de prostituição, sujeitas, ao contudo, não significava que aqueles que praticavam essa transgressão de
mesmo tempo, à criminalidade e à criminalização. Santos lembra que “a
gênero eram homossexuais ou coniventes com o homoerotismo” (GREEN,
produção da subjetividade travesti esteve ligada a um regime de verda¬ 2019, p. 350). O travestismo, durante o reinado de Momo era tolerado, por¬
de pautado na ideia de prostituição, como algo inerente às experiências
que era transitório como qualquer fantasia usada pelos foliões, nos blocos
trans” (SANTOS, 2021, p. 206). Além disso, em regimes autoritários,
e nos bailes que aconteciam na cidade. “Nos 362 dias restantes, a pessoa
como na ditadura militar brasileira (1964-1985), expressões de gênero
tinha de se manter no limite estabelecido pela sociedade, especialmente os
que atentavam contra “a moral e os bons costumes” foram censuradas e limites de gênero, ou sofrer as consequências” (Idem, p. 342).
reprimidas pela polícia. Não é de se admirar que a despatologização dos
No começo, os bailes e concursos de fantasias frequentados por
corpos trans só avançou nas primeiras décadas do século 21, com algu¬
homens vestidos de mulher não eram diretamente associados às traves¬
mas ressalvas (NASCIMENTO, 2021).
tis. Porém, uma vez que esses eventos eram realizados em locais tradi¬
Scott, afirma que “o gênero é uma das referências correntes pe¬
cionais de sociabilidade homossexual, como os teatros, no entorno da
las quais o poder político foi concebido, legitimado e criticado. Ele se
Praça Tiradentes, a frequência de homossexuais nos bailes aumentou,
refere à oposição masculino/feminino e fundamenta, ao mesmo tempo, consideravelmente, nos anos 1940 (Ibidem, p. 354). A partir dos anos
seu sentido” (SCOTT, 2019, p. 64). Portanto, a cidade como um lócus de
1 950, a mídia sensacionalista passou a utilizar o termo “travesti” para se
poder, reproduz esse sistema binário e dele se apropria, a fim de regular referir a qualquer homossexual presente às festividades carnavalescas que
os corpos no interior do tecido urbano. Qualquer alteração da matriz
atraiam, majoritariamente, esse público.
cisheteronormativa, na cidade, é vista como ameaça à ordem instituída,
como, por exemplo, a implantação de banheiros de gênero neutro, em
alguns espaços públicos.10 Ainda segundo Scott, as categorias homem e dente do sexo biológico ou da identidade de gênero. Trata-se de uma nova forma de
pensar os espaços públicos para resistir à opressão cisheteronormativa, que inter¬
10 Também chamados de banheiros “sem gênero definido”, “multigênero” ou “inclu¬ fere até mesmo na satisfação das necessidades fisiológicas dos corpos que fogem ao
sivos”, esses ambientes sanitários permitem o acesso de qualquer corpo, indepen- padrão binário masculino/feminino.

86 87
Esses jornais e revistas que notaram a presença de travestis faziam político, pois “o que eles ousam ensaiar repercute não apenas em suas pró-
pi i.it vidas, mas nas vidas de seus contemporâneos. Esses sujeitos sugerem
uma distinção clara entre o travestismo carnavalesco de heteros
sexuais, que usavam vestidos emprestados para uma transgressão
uma ampliação nas possibilidades de ser e viver” (LOURO, 2020, p. 23).
de gênero temporária, e os homens efeminados, que se vestiam
como mulheres para expressar a sua identidade “real” (GREEN, Ao reunir os dissidentes do sistema de gênero cisheteronorma-
2019, p. 357). tlvo, os bailes começaram a sofrer restrições do governo, nos anos 1960,
Inclusive com a proibição da entrada de homens travestidos, nos teatros.
Lopes (2018) aponta para a necessidade de uma diferen Para burlar as restrições, os concorrentes dos concursos de fantasias, do
ciaçào entre o “estar de travesti” e o “ser travesti”, pois haveria uma clara Haile dos Enxutos, levavam roupas, calçados e acessórios femininos para
distinção entre os corpos que performavam o gênero feminino apenas v « stirem dentro do prédio (GREEN, 2019). Diante das reações hostis de
durante o carnaval, e aqueles que não se identificavam com o gênero, a parte da sociedade, que desaprovava os eventos, a polícia passou a res¬
eles atribuídos, no nascimento. Estes teriam deixado de “estar de travesti” ponder com prisões e agressões com golpes de cassetetes, tendo as traves-
e investido no “ser travesti”. Portanto, “esta diferenciação entre ser e estar I is como alvo preferencial.
marca e singulariza a primeira geração de travestis, no Rio de Janeiro. Em dezembro de 1968, no auge da ditadura militar, iniciada qua¬
Estar em travesti e ser travesti são, portanto, experiências e práticas histó¬ tro anos antes, com a deposição de João Goulart (1919-1976), o gover¬
ricas diferentes (LOPES, 2018, p. 58)” A identidade travesti deixa de ser, no baixou o Ato Institucional Número Cinco (AI-5), que aprofundava a
portanto, genérica, e passa a ser dotada de sentido histórico e subjetivo, repressão e a perseguição aos opositores do regime. Os códigos morais
inserido no que o autor caracteriza como um “devir sem fim”, que trans¬ que acompanhavam as políticas do governo de Emílio Garrastazu Médici
cende a temporalidade do carnaval. ( 1 905-1985) restringiram as exibições públicas da homossexualidade e as
tornaram alvo de censura, incluindo os bailes de carnaval, que reuniam,
Proponho que, ao longo da década de 1960, no Rio de Janeiro, tra¬ majoritariamente, o público homossexual.
vesti deixa de ser apenas um personagem do cenário carnavalesco, Embora as transgressões de gênero não representassem uma
deixa de ser sinónimo de homossexual masculino, de homens tra-
ameaça direta ao poder dos militares, Quinalha (2021) aponta que a
vestidos, de transformistas, de homens que apareciam em público
vestidos de mulher. A partir de então, temos a emergência de novas
intolerância do regime autoritário se materializou na perseguição e na
subjetividades, novas relações de si, para consigo. Pessoas, portanto, tentativa de controle dos grupos sociais transgressores ou desviantes, ou
que deixam de viver secretamente, as quais, com coragem e ousadia, seja, “gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais, por sua orientação
abandonam vidas secretas, investem em sonhos, desejos, projetos e sexual ou identidade de gênero diferente dos padrões tidos como nor¬
modos de ser, até então silenciados. (Idem, p. 59). mais (QUINALHA, 2021, p 34)” Para o autor, esse controle social, polí¬
tico e individual, sobre os corpos, era fundamental para a efetivação de
Os bailes de “travestis”, como eram conhecidos, deram a essas um regime de poder que suprimia direitos e liberdades. Portanto, corpos
transgressões de gênero uma grande visibilidade e se consolidaram como dissidentes eram obstáculos a serem eliminados para que se concretizasse
um espaço de socialização e reconhecimento para esses corpos transgres¬ a utopia autoritária da grandeza nacional. (QUINALHA, 2021, p. 35).
sores, entre as décadas de 1950 e de 1960. Alguns desses eventos chegaram
a obter patrocínio governamental e de empresas privadas, embora desper¬ Foram os homossexuais e as travestis pertencentes às classes popu¬
tassem reações na sociedade, que iam da admiração à intolerância. Para lares que sentiram, mais intensamente, o peso da ação repressiva da
Louro, o efeito das experiências dos transgressores de gênero é fortemente ditadura, em seus corpos e desejos. Enquanto alguns homossexuais

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e bissexuais, com melhores condições económicas e culturais, geral¬ nagens femininas da dança da morenada, expressão típica do altiplano
mente enrustidos e com vida dupla, integravam-se à cidadania pela boliviano. A dança seria a representação da escravidão colonial, em que
via do mercado de trabalho, e os LGBTs pobres, que não tinham a os personagens masculinos usam máscaras com traços negroides exage¬
mesma sorte, eram enquadrados como vadios, mesmo que portassem rados” (ARUQUIPA, 2020, p. 347).
carteira de trabalho, sem nenhum direito de defesa. (Idem, p. 23).
Como as chinas morenas eram a representação de corpos trans¬
gressores, dotados de sedução, magnetismo e motivação sexual, a socie¬
O regime não poupava esforços para pôr em prática o contro¬
dade conservadora e machista, do início do século 20, não permitia que
le dos corpos, por meio de uma política repressora, que visava à crimi-
mulheres cisgênero as interpretassem, nas festas. Diante disso, era tolerado
nalização das transgressões e desvios de gênero. As prisões, as torturas,
que homens heterossexuais cisgênero interpretassem as chinas morenas,
as agressões e todos os abusos cometidos pelo aparelho estatal apenas
em uma performance que Aruquipa (2020) caracterizou como “travestis-
desvendaram a face cruel do sistema de dominação cisheteronormativo.
mo sexual festivo”. Embora fosse transitório, assim como o travestismo hé-
Quando não criminalizava, agia para readequar os corpos dissidentes à
tero do carnaval carioca, os homens bolivianos exageravam nos movimen¬
estética e às práticas aceitas pelo senso comum da heteronormatividade.
tos obscenos e de provocação sexual, de acordo com o autor.
No processo de abertura, iniciado em 1974, os bailes de traves¬
A partir dos anos 1960, os corpos transgressores de homosse¬
tis voltaram a treinar um lugar de destaque no carnaval carioca. Porém,
xuais masculinos e travestis se apropriaram da personagem da china mo¬
o critério de “passabilidade” passou a ser crucial para a aceitação da
rena e a ressignificaram, tornando-a abertamente “marica” e dando visi¬
transgressão de gênero na cena pública, ou seja, quanto mais parecida
com uma “mulher de verdade”, mais tolerada e mais respeitada seria a bilidade a outras expressões de gênero, nas festas populares bolivianas. O
atrevimento, a dança maliciosa e erotizada, tornou-se marca registrada
travesti ou a transexual (GREEN, 2019). Desse modo, o sistema de do¬
da morenada, ressignificada pela estética travesti.
minação cisheteronormativo impõe o que Louro (2020, p. 21) define
como “a coerência e a continuidade supostas entre sexo-gênero-sexuali-
Os anos setenta foram marcados pelas lutas feministas, pela re¬
dade”, ou o que Nascimento chama de “CIStema de sexo-gênero-desejo”
volução sexual e pelos movimentos de libertação homossexual na
(NASCIMENTO, 2021, p. 44).
América Latina e no mundo. Em nosso país, os “maricas” estavam
revolucionando, a partir de seus corpos, essa liberdade sexual, o
Corpos sagrados e profanos prazer e o gozo da resistência, ao sistema de opressão da ditadura;
as ruas eram as plataformas de luta, e as festas populares, os cená¬
rios onde a personagem da china morena travesti mudaria a his¬
Se, no Brasil, os corpos transgressores das travestis tinham que tória da estética e da política existente, até então. Descrever a me¬
se adequar à estética cisheteronormativa para conquistar um mínimo mória das morenas chinesas de carne e osso é retratá-las a partir
de aceitação social, na Bolívia, na década de 1960, as festas folclórico- de suas memórias, da saudade de sua presença sensual nas festas
-religiosas é que se adequaram à estética travesti. Aruquipa relata como populares, principalmente do Carnaval de Oruro. Não é apenas
a rebeldia “marica” das chinas morenas se matizou a duas festividades
populares, em La Paz: o Carnaval de Oruro e afestividad del Senor Jesús
del Gran Poder." De acordo com o autor, “as chinas morenas são perso- 2000, interpreta os whapuri, personagem da dança da kullawada das antíguas, que
está presente no carnaval mais importante da Bolívia. O whapuri Galán representou
11 O autor, que é pesquisador e ativista dos direitos LGBT na Bolívia, preserva as me¬ mais uma transgressão de gênero ao conferir um estilo “afeminado” a um persona¬
mórias das chinas morenas e integra o coletivo Família Galán que, desde os anos gem que, tradicionalmente, era bastante masculinizado e associado ao patriarcado.

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uma história oral, é uma história de desapego e coragem, de tornar des de gênero, que transgrediram a cisheteronormatividade para dar vida
públicas suas vozes e seus corpos. (ARUQUIPA, 2020, p. 349).12 As chinas morenas.
Segundo Arequipa (2016), Carlos Espinoza teria cometido a pri¬
Para o autor, a presença homossexual e travesti na história do fol¬ meira transgressão ao revolucionar o traje das chinas morenas, incluindo
clore boliviano, situa-se entre o cultural e o político, desafiando o poder elementos que remetiam a uma nova estética travesti, inspirada nas vede¬
repressivo. Esse era, também, o espaço da cultura popular, onde as chinas tes dos anos 1960 e 1970. Porém, a transgressão mais grave foi cometida
morenas conquistaram visibilidade e cumplicidade junto às classes popu¬ por Barbarella, que deu um beijo na bochecha do, então presidente da
lares. Comerciantes, artistas e migrantes da zona rural participavam das Bolívia, general Hugo Banzer Suarez (1926-2002), que estava no palco,
festividades, apoiando e permitindo que travestis e homossexuais “fos¬ durante a festa del Gran Poder, de 1975. O atrevimento resultou na proi¬
sem aceitos, reconhecidos, aplaudidos e incluídos, incorporados como bição da participação de homossexuais nas festividades, dali em diante.
capital simbólico para aumentar o prestígio das festas” (ARUQUIPA,
Porém, Louro alerta que a matriz heterossexual, ao mesmo tem¬
2016, p. 206). Era comum que as fraternidades envolvidas na realização
po em que delimita os padrões a serem seguidos, fornece, paradoxalmen¬
das festividades contratassem as chinas, com alguns meses e até um ano
te, a pauta para as transgressões. “É em referência a ela que se fazem não
de antecedência, atendendo a todas as exigências, para garantir a presen¬
apenas os corpos que se conformam às regras de gênero e sexuais, mas
ça das personagens travestidas.
também os corpos que as subvertem” (LOURO, 2020, p. 16). Assim, a ex¬
clusão dos corpos transgressores de travestis e homossexuais masculinos
A presença das chinas morenas tinha várias conotações, por um
lado, uma questão de prestígio e status para o grupo, por outro, a
abriu a possibilidade para que mulheres cisgênero pudessem, finalmente,
de inclusão social e aceitação de homossexuais como chinas mo¬ interpretar as chinas morenas. Porém, elas passaram a participar da festa
renas, “porque não havia outras”, era uma questão de necessidade. inspiradas pela estética travesti, preservando a memória da transgressão
Havia, também, uma questão de identidade e pertencimento a homossexual que ressignificou a morenada.
um grupo, afeto por um grupo; essa relação torna-se uma tran¬ Assim como no Brasil, também havia um componente relacio¬
sação entre as partes para satisfazer uma necessidade gerada, as nado à classe social, pois os homossexuais mais privilegiados frequenta¬
chinas eram parte fundamental das morenadas, eram a “atração”,
vam, majoritariamente, discotecas e casas noturnas, nas décadas de 1960
tanto que o público não era atraído pelo resto da fraternidade, ao
contrário, aglomerava-se e se empurrava para vê-las: elas eram o
e 1970, embora alguns também fossem transformistas. Essa visibilidade
centro das atenções e se sentiam como “rainhas”. (Idem, p. 211).'3 conquistada pelas chinas morenas, como travestis no espaço público, não
era muito bem-vista nesse círculo mais fechado, cujos integrantes se re¬
Algumas chinas morenas travestis se consagraram e fizeram feriam às participantes das morenadas como las pintadas (ARUQUIPA,
fama, ao longo dos anos, em que puderam encarnar a personagem. O au¬ 2016).14 Já as chinas morenas, por sua vez, referiam-se aos homossexuais
tor cita, entre outros nomes, Carlos Espinoza (Ofélia), Barbarella (Peter de classe alta como camuflados, ou seja, discretos.15
Alaiza), Titina, Diego Marangani, Candy, Juana, Rommy, Lucha. Nomes
masculinos e femininos figuram de forma intercalada na lista, alguns en¬
14 Numa livre tradução, seriam “as pintosas”. No Brasil, é o termo utilizado para se
tre parênteses, o que dá uma ideia da diversidade dos corpos e identida¬ referir, pejorativamente, a homossexuais muito afeminados, que não se preocupam
em ser discretos, que “dão pinta”.
12 Tradução livre do autor.
15 No Brasil, também poderiam ser denominados de forma pejorativa como “enrusti-
13 Tradução livre do autor. dos”, que não assumem a sexualidade publicamente.

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Em um contexto de repressão às sexualidades dissidentes, mes¬ viinento, baseado na acumulação capitalista, em que a maior parte da
mo entre os transgressores de gênero, observava-se um maior ou menor tenda está sob domínio do patriarcado, representado por homens bran-
grau de regulação cisheteronormativa. Para alguns, a ampliação da visi¬ । < >s cisgênero e suas famílias tradicionais. Esses são os sujeitos que detêm

bilidade era vista como ameaça, pois expunha as transgressões e poderia a propriedade da maioria dos terrenos e imóveis urbanos e, portanto,
sujeitar os corpos transgressores a punições. Para outros, a visibilidade determinam como e por quem os espaços das cidades serão ocupados.
era uma forma de resistência, pois o sistema já estaria punindo os corpos I )csse modo, também influenciam as políticas públicas, de modo a favo-
transgressores ao sujeitá-los à invisibilidade. n cer sempre os seus “iguais”, ou seja, aqueles cujos corpos se conformam
Nascimento (2021) nos lembra que “Não somos corpos, fazemos ao padrão cisheteronormativo, binário, branco e burguês.
corpos.” Portanto, não há corporalidade que seja natural, nem mesmo a Por isso, uma das formas de resistência mais efetiva, embora não
cisgênera. Os limites impostos para os corpos tentam naturalizar estrutu¬ .i única, é a ocupação dos espaços públicos pelos corpos transgressores

ras que são, na verdade, artificiais, que se estabelecem nos termos de um < lc lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros, queers, intersexuais,
discurso cultural hegemónico (BUTLER, 2018). Portanto, a tentativa de nâo-bináries, negros, negras, deficientes, gordos, gordas, indígenas, qui-
invisibilizar os corpos transgressores tinha, como objetivo, naturalizar per¬ lombolas e sem-teto, entre outros. Quando isso ocorre, o aparato repres-
formances de gênero cisheteronormativo que não eram naturais, de fato. sor e normativo que controla o movimento dos corpos, na cidade, tende
Logo, os corpos transgressores das chinas morenas travestis eram tão arti¬ .i agir com violência, para desocupá-los. Afinal, desde a década de 1960,

ficiais quanto os corpos reguladores dos ditadores militares cisheteronor- quando diversos movimentos organizados começaram a ocupar as ruas
mativos. O que, talvez, diferenciasse-as dos generais eram os ímpetos re¬ para se manifestarem coletivamente, o corpo que grita também é trans¬
volucionários. A elas, se não pudessem bailar, não interessava a revolução. gressor (BERMAN, 2007).
No Rio de Janeiro ou na La Paz dos anos 1960, os corpos trans¬
Considerações finais gressores encontraram, no travestismo, uma forma de protesto, embora
nem todos estivessem conscientes disso. Ao se travestirem para ocasiões
A transgredir o padrão cisheteronormativo, os corpos de traves¬ festivas, nem todos atribuíam um peso político a esse gesto. Afinal, ape¬
tis e homossexuais masculinos, no Brasil e na Bolívia, resistiram a um nas no século 21 se consagraria, no movimento LGBT, a ideia de que
regime de opressão política e moral, instalado na América Latina, entre "fervo também é luta”.16 Os foliões do carnaval carioca, ao mesmo tempo
as décadas de 1960 e 1970. Nesse período, as ditaduras militares forta¬ em que buscam por diversão, socialização ou sexo casual nos bailes de
leceram a hegemonia da família patriarcal e heterossexista, como mo¬ 1 i avestis, estavam ocupando um espaço da cidade que já era reconhecida-

delo a ser seguido para a estabilidade e a unificação nacional, em um mente ocupado por outros corpos transgressores. As chinas morenas bo¬
claro enfrentamento à influência dos movimentos de liberação sexual livianas, ao mesmo tempo em que ressignificavam o papel feminino nas
que ocorreram na mesma época. Essa moral conservadora dava o tom da lestas populares, estavam introduzindo os corpos transgressores na tra¬
censura e determinava os limites para a expressões artísticas, culturais e dição popular. Em ambas as cidades, as transgressões foram reprimidas,
políticas. Sob o pretexto da preservação da moral e dos bons costumes, a porém, em alguns casos, os transgressores encontram alternativas para
cisheteronormatividade se impôs, de forma autoritária e violenta, com as continuar resistindo e ocupando os espaços que haviam conquistado.
transgressões de gênero.
Ao pensarmos como esse sistema cisheteronormativo se articula 16 A afirmação se tornou o slogan do coletivo paulistano “Revolta da Lâmpada”, a par¬
no espaço urbano, colocamos em xeque o próprio modelo de desenvol- tir da divulgação de um evento, nas redes sociais, realizado em novembro de 2014.

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Esses dois exemplos resultam de recortes ainda pouco represen IOURO, Guacira. Um corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria
tativos sobre a importância desses corpos transgressores, como mode ipocr. 3 ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2020.
los de resistência à dominação cisheteronormativa, no espaço urbano.
Porém, apontam para uma possibilidade de análise da categoria gênero NASCIMENTO, Letícia. Transfeminismo. São Paulo: Jandaíra, 2021.

no estudo da história das cidades. Como foi demonstrado no início do


QlJINALHA, Renan. Contra a moral e os bons costumes: a ditadura e a
capítulo, desde a pólis grega até o tempo presente, o binarismo de gênero
o pressão à comunidade LGBT. São Paulo: Companhia das Letras, 2021.
é um aspecto que se apresenta, de uma forma ou de outra, na organização
das cidades. Por isso, precisamos evidenciar e investigar, nesse campo da '. ANTOS, Rafael. Histórias não contadas: (re)existências travestis em Campos
historiografia, outros sujeitos e vivências que se mostram como alternati¬ dos Goytacazes (RJ) na década de 1990. In: COLAÇO, Rita; VERAS, Elias;
vas ao padrão normativo de gênero binário. S( HMIDT, Benito. (Orgs.) Clio sai do armário: historiografia LGBTQIA+. São

1'tulo: Letra e Voz, 2021.


Referências
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11OLLANDA, Heloísa. (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais.
ARUQUIPA, David. La revolución estética travesti em las fiestas populares
Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 48-81.
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. La revolución estética de las travestis en las fiestas populares


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BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.


16 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 1: A vontade de saber. 1 1 ed. Rio


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n. 14, p. 52-69, dez 2018.

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Anexo

Imagens e referências

Foto: Acervo Comunidad Diversidad/Bolivia

Foto: Estátua do deus grego Hermaphroditus

Foto: Acervo Comunidad Diversidad/Bolivia

Foto: Revista Manchete, 17 mar. 1962, p. 61. Acervo: Biblioteca Nacional.


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