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Resistência "marica": a preservação da memória travesti nas festas populares


bolivianas

Conference Paper · August 2022

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Alberto Rodrigues de Freitas Filho


Federal University of Rio de Janeiro
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Resistência “marica”: a preservação da memória travesti nas festas populares bolivianas
Alberto Rodrigues de Freitas Filho1

A memória dos/as corpos/as dissidentes de gênero está sempre em disputa contra o


modelo cisheteronormativo dominante, que muitas vezes a sujeita ao silenciamento ou ao
apagamento. Na história do tempo presente, na virada do século XX para o XXI, a resistência
de grupos organizados de mulheres e de lésbicas, gays, travestis e transgêneros2, entre outros,
intensificou-se. Em contrapartida, o conservadorismo também se fortaleceu e se integrou no
mundo globalizado. Na América Latina, em países outrora colonizados por Portugal e Espanha,
bastante influenciados pelo cristianismo herdado dos europeus, o discurso moralista e
conservador manteve-se fortalecido no âmbito religioso.
Assim, os/as dissidentes de gênero continuaram a ser assombrados/as pelo fantasma do
conservadorismo, que marcou as ditaduras militares instaladas em países sul-americanos entre
as décadas de 1960 e 1980. Para enfrentá-lo, um coletivo de transformistas e drag queens
passou a ocupar os espaços públicos de La Paz, na Bolívia, em busca de visibilidade. Algum
tempo depois, levaram o travestismo para as festas populares realizadas em homenagem a
santos/as católicos/as, inserindo-se na cultura popular do país.3 A partir do diálogo com outros
participantes das festas, David Aruquipa Pérez, que também assume a identidade da drag queen
Danna Galán, pôde revelar a memória de travestis que participaram das festas populares
bolivianas nas décadas de 1960 e 1970.
Este texto resulta da entrevista realizada com David Aruquipa, realizada a fim de
investigar como as memórias travestis na cultura popular boliviana foram resgatadas pelo
ativista. O estudo dessas memórias, iniciado por ele em 2009, resultou em um livro lançado em
2012, com transcrições de entrevistas e fotografias das chinas morenas que dançaram no
Carnaval de Oruro e na festividade do Señor Jesus Del Gran Poder quatro décadas antes dele.4
Assim, objetiva-se compreender como a história oral pode dar visibilidade à memória dos/das

1
Doutorando no Programa de Pós-Graduação em História Comparada (PPGHC) da Universidade Federal do Rio
de Janeiro.
2
Considerando-se o período histórico, optou-se pela menção a grupos que compõem a sigla LGBT, uma vez que
a sigla LGBTQIAP+, na qual se incluem intersexuais, queers e pansexuais, é de uso mais recente.
3
De acordo com o entrevistado, há na Bolívia cerca de 2.500 festas populares registradas, que ocorrem
anualmente.
4
Segundo Aruquipa (2022, p. 348), as chinas morenas são personagens femininas da dança da morenada, que é
“uma expressão típica das terras altas bolivianas. A teoria mais aceita da dança é a representação da escravatura
na época colonial, onde os personagens masculinos usam máscaras exagerando os seus traços negros, e a
personagem feminina é a china morena.” (Tradução livre do autor)
2

corpos/as dissidentes inseridos na cultura popular, uma vez que esses/as são costumeiramente
invisibilizados/as na memória e na história oficiais.
Na primeira parte, descrevo como foi utilizada a metodologia da história oral neste
trabalho, por meio de entrevista realizada à distância com interação audiovisual síncrona. Além
disso, esclareço a necessidade de obter de David Aruquipa as memórias das memórias, ou seja,
o conhecimento sobre a produção de saberes a partir da investigação feita anteriormente por
ele. Na segunda parte, a partir de uma reflexão que relaciona os conceitos de memória e história,
discuto como a história oral pode dar voz aos grupos excluídos. Abordo também uma
perspectiva descolonial de gênero para as memórias e os lugares de memória dos/as corpos/as
dissidentes.
Na terceira parte, descrevo o trabalho de pesquisa, divulgação e produção de
conhecimento sobre as memórias travestis na cultura popular boliviana, a partir da entrevista
realizada com David Aruquipa e de artigos publicados pelo entrevistado anteriormente, nos
quais se encontram várias fotografias antigas das chinas morenas. Também discuto o papel do
coletivo Família Galán como “lugar de memória”, ao manter vivo o travestismo nas festas
populares e resistir ao conservadorismo religioso e cisheteronormativo.

1 – Metodologia

O testemunho da fonte oral é o núcleo da investigação proposta, que se utilizou da


metodologia da história oral, que visa à “geração de documentos (entrevistas) que possuem uma
característica singular: são resultado do diálogo entre entrevistador e entrevistado, entre sujeito
e objeto de estudo” (FERREIRA; AMADO, 2006, p. xiv). Portanto, essa metodologia depende,
conforme aponta Portelli (2016, p. 10), de uma relação dialógica que se estabelece entre o
historiador e o narrador. Para o autor, a história oral é a arte da escuta, que vai além do ato de
escutar propriamente dito, pois envolve também a troca de olhares, a observação e a confiança
mútuas. “Em outras palavras: é a abertura do historiador para a escuta e para o diálogo, e o
respeito pelos narradores, que estabelece uma aceitação mútua baseada na diferença, e que abre
o espaço narrativo para o entrevistado entrar.” (PORTELLI, 2016, p. 15).
Embora a entrevista tenha sido realizada à distância, sem a possibilidade do encontro
físico entre dois corpos tão caro à metodologia da história oral, foram observados os aspectos
críticos da entrevista no ambiente online, relacionados por Santhiago e Magalhães (2020, p. 6):
3

[...] a oralidade (e com ela seus recursos expressivos, como a entonação, a qualidade
vocal, entre outros), a imediatez (a narração e a escuta acontecendo em
simultaneidade, garantindo a elaboração em tempo real dos relatos de memória, cuja
reflexibilidade é constrita ao próprio desenrolar da entrevista), a dialogicidade (a
possibilidade de reação e interferência e a flexibilização dos papéis desempenhados
na entrevista), a situacionalidade (o acesso, mesmo que relativo, ao contexto no qual
o narrador está inserido no momento da narração).

Para realização da entrevista, foi utilizada a ferramenta Google Meet, por meio da qual
foi possível a interação audiovisual síncrona, com a gravação simultânea do áudio e do vídeo.5
Vale destacar que o entrevistado possuía a aptidão necessária e não apresentou dificuldade para
utilizar os recursos audiovisuais síncronos. Além disso, é importante pontuar que David
Aruquipa optou por ser entrevistado em português, embora a língua nativa dele seja o espanhol.
Assim sendo, a entrevista foi realizada a partir de um roteiro que abarcou três tópicos principais:
a) A trajetória como ativista pela preservação da memória LGBT na Bolívia;
b) O trabalho em torno das memórias das chinas morenas: como iniciou a jornada
e como investigou os acontecimentos históricos que veio a caracterizar como
“revolução travesti” nas festas populares e religiosas da Bolívia;
c) A criação e atuação do coletivo Família Galán para a continuidade da revolução
travesti nas festas populares e religiosas da Bolívia.
Portanto, tendo em vista a necessidade de captar as memórias do narrador acerca da
investigação feita por ele que, por sua vez, teve como objeto as memórias das chinas morenas
travestis, a história oral foi utilizada não apenas como metodologia, mas como “forma de
saber”. Para Meihy e Holanda (2015, p. 74), “saber é um ato racional, premeditado, e que
também demanda procedimentos explícitos, ele pode ser definido como forma de expressão em
que se fundem o desejo de registrar e a dimensão pública de histórias que merecem divulgação.”
Logo, o saber gerado pelas memórias investigadas pelo ativista foi além do simples registro da
experiência humana. Partindo dessa premissa, o processo de produção de saberes sobre os
corpos dissidentes nas festas populares da Bolívia é o objeto deste trabalho.
Nesse sentido, a partir da entrevista com David Aruquipa, busquei dialogar com outros
documentos, ainda segundo o que propõe Meihy e Holanda (2015, p. 72), para quem “os
eventuais diálogos documentais complementares devem manter os olhos nos temas emanados
das entrevistas.” Portanto, no corpus documental, também se inserem as fotografias que foram
obtidas durante a investigação das memórias das chinas morenas e trechos dos depoimentos
orais publicados em artigos científicos assinados pelo entrevistado.

5
A necessidade de realizar a entrevista por videoconferência deu-se pela impossibilidade de deslocamento até a
Bolívia, devido a restrições orçamentárias.
4

2 – Memória, História e Dissidências

Por meio dos testemunhos orais, as memórias dos/das “excluídos/as” também se


tornaram objeto da história oral. Segundo Ferreira e Amado (2006, p. xiv), essa vertente
possibilitou “esclarecer trajetórias individuais, eventos ou processos que às vezes não têm como
ser elucidados de outra forma”. Entre os/as excluídos/as citados/as pelos autores, estão
“analfabetos, rebeldes, mulheres, crianças, rebeldes, miseráveis, prisioneiros e loucos”, entre
outros/as, incluindo os movimentos sociais populares. Esses/as são os/as chamados/as
sujeitos/as ocultos/as, silenciados/as “por questões de raça, gênero, classe, etnia... etc.”
(TEDESCHI, 2014, p. 8). Como se trata de grupos situados em lugares de produção social,
econômico, político e cultural não hegemônicos, devem ser compreendidos historicamente a
partir de suas próprias realidades. Para Certeau (1995, p. 28),

É admirável admitir que a história faz parte da “realidade” da qual trata, e que essa
realidade pode ser captada “enquanto atividade humana”, enquanto “prática”. A partir
dessa perspectiva, gostaria de demonstrar que a operação histórica se refere à
combinação de lugar social e de práticas “científicas”.

A operação histórica proposta por Certeau é muito importante para a produção de um


conhecimento histórico baseado nos desvios e nas diferenças, que muitas vezes atentam contra
a objetividade e a totalidade demandadas pelo discurso científico. Desse modo, tal operação
também pode se beneficiar investigação de memórias que se localizam no interior dos próprios
grupos de excluídos/as ou “diferentes”.
Para Le Goff (2013, p. 51), “tal como o passado não é a história, mas seu objeto, também
a memória não é a história, mas um de seus objetos e, simultaneamente, nível elementar de
elaboração histórica.” Já a memória coletiva é obtida a partir das lembranças ou memórias
individuais que se coligam umas às outras em uma comunidade de afeto (HALBWACHS, 1990,
p. 34). De acordo com o autor, “a partir de dados ou de noções comuns que se encontram tanto
no nosso espírito como no dos outros, pois elas passam incessantemente desses para aquele e
reciprocamente, o que só é possível se fizeram e continuam a fazer parte da mesma sociedade.”
Indo mais além, Nora (1993, p. 9) defende que história e memória estão em campos
transversalmente opostos. “A memória é sempre suspeita para história, cuja verdadeira missão
é destruí-la e a repelir. A história é a deslegitimação do passado vivo.” Porém, o autor também
defende a importância da memória como um dado coletivo. Ainda segundo Nora (1993, p. 9):
5

A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e, nesse sentido, ela está em
permanente evolução, aberta à dialética da lembrança e do esquecimento, inconsciente
das suas deformações sucessivas, vulnerável a todos os usos e manipulações,
susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações. A história é a
reconstrução sempre problemática e incompleta do que não existe mais. A memória é
um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente: a história, uma
representação do passado.

Logo, a memória seria o lócus de enunciação em que se situam os/as corpos/as


dissidentes, que sempre foram sub-representados/as na história oficial. Para Tedeschi (2014, p.
12), “um documento, uma fonte oficial, nunca poderão transmitir os sentimentos, as dúvidas,
as contradições em jogo de um determinado contexto, seja em uma revolução, em uma rua, em
uma mobilização social ou em qualquer situação em que intervenham homens e mulheres.” Por
isso, conforme nos aponta Nora (1993, p. 13), os lugares de memória são tão importantes para
as minorias, que deles dependem como refúgio.6 “Sem vigilância comemorativa, a história
depressa os varreria. São bastiões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não
estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los.”
Se o/a próprio/a corpo/a pode ser entendido/a como lugar de memória ou como arquivo,
esse lugar pode e deve ser descolonizado, segundo o que argumenta Link (2014, p. 264-265).
O autor propõe que os arquivos coloniais e os documentos das repúblicas que nasceram no
Novo Mundo sejam revistos, bem como os textos fundadores da América Latina e os relatórios
de imprensa que nos chegam das profundezas do tempo, “para nos dizer que há vida no arquivo
e que a memória destas formas de vida é subtraída dos dispositivos disciplinares no preciso
momento em que tentam administrar a sexualidade americana.7” Ainda de acordo com o autor,
houve uma marginalização das sexualidades dissidentes na história contada pelos colonizadores
dos países latino-americanos. Em registros oficiais que datam do século XVI, os espanhóis
condenavam a prática de “sodomia” e travestismo entre nativos incas, moches e pampas, entre
outros. De acordo com Oyěwùmí (2021, p. 29-30):

Mulheres, povos primitivos, judeus, africanos, pobres e todas aquelas pessoas que
foram qualificadas com o rótulo de “diferente”, em épocas históricas variadas, foram
consideradas como corporalizadas, dominadas, portanto, pelo instinto e pelo afeto,
estando a razão longe delas. Elas são o Outro, e o Outro é um corpo. Ao apontar a
centralidade do corpo na construção da diferença na cultura ocidental, não se nega
necessariamente que tenha havido certas tradições no Ocidente que tentaram explicar
as diferenças segundo critérios diversos em relação à presença ou ausência de certos

6
Na visão de Pierre Nora, os lugares de memória são arquivos, celebrações, rituais, monumentos e atas, entre
outros empreendimentos, que excluem o aspecto espontâneo ou natural da memória.
7
Tradução livre do autor. No original: para decirnos que hay vida en el archivo y que la memoria de esas formas
de vida se sustrae a los dispositivos de disciplinamiento en el momento mismo en que éstos pretenden administrar
la sexualidad americana.
6

órgãos: a posse de um pênis, o tamanho do cérebro, a forma do crânio ou a cor da


pele.

Cinco séculos depois da chegada dos colonizadores europeus ao continente americano,


segundo o que analisa Lugones (2014, p. 939): “diferentemente da colonização, a colonialidade
do gênero ainda está conosco; é o que permanece na intersecção de gênero/classe/raça como
construtos centrais do sistema de poder capitalista mundial.” De acordo com a autora, os
colonizadores não tinham como meta tornar os/as corpos/as colonizados/as em humanos/as. Ao
contrário disso, a colonialidade resultou em um processo de desumanização, chamado de
“transformação civilizatória”, que justificava a colonização da memória e, por conseguinte,
“das noções de si das pessoas, da relação intersubjetiva, da sua relação com o mundo espiritual,
com a terra, com o próprio tecido de sua concepção de realidade, identidade e organização
social, ecológica e cosmológica.” (LUGONES, 2014, p. 938).
Portanto, descolonizar as memórias dos/das corpos/as dissidentes é necessário para
evitar que a colonialidade de gênero continue a se apropriar delas, bem como deformá-las,
transformá-las, sová-las e petrificá-las.8 Logo, o/a corpo/a dissidente não pode ser apenas um
mero lugar de memória, mas um/uma corpo/a vivo/a e pulsante que guarda memórias,
integrado/a a uma comunidade de afeto.

3 – A resistência marica na Bolívia

David Aruquipa Pérez acumula mais de 25 anos de ativismo político em defesa das
diversidades sexuais e de gênero na Bolívia, especialmente os direitos trans. De acordo com
informações divulgadas pelo próprio entrevistado em um de seus artigos, ele já presidiu a
Associação de Coletivos TLGB do Departamento de La Paz e Bolívia (2010 - 2014) e
atualmente preside o Conselho de Administração da Comunidad Diversidad, além de integrar
o coletivo Família Galán. (ARUQUIPA, 2016, p. 206). Administrador de empresas por
profissão, possui estudos em Preparação e Avaliação de Projetos e mestrado em Estudos de
Gênero pelo Programa de Pós-Graduação em Ciencias del Desarollo da Universidad Mayor de
San Andrés (CIDES – UMSA), onde desenvolveu temas de discussão e pesquisa sobre
diversidade sexual e identidade de gênero. Em 2012, publicou a pesquisa La China Morena:
Memoria Historica Travesti que reúne as memórias e depoimentos dos primeiros homossexuais
e travestis nas festas populares da Bolívia.

8
Aqui faço uma livre adaptação das palavras de Nora (1993, p. 13).
7

Para Aruquipa (2016, p. 206), festas como o Carnaval de Oruro e a festividad del Señor
Jesus del Gran Poder eram dotadas de uma cosmovisão sincrética andina, em que a presença
travesti e homossexual era aceita e celebrada. Porém, quando entrou em cena o poder estatal,
os governantes, funcionários públicos e organizadores oficiais tornaram-se representantes da
ordem patriarcal e institucionalizaram um caráter homofóbico. “Não é por acaso que a expulsão
de travestis da festa do Grande Poder ocorreu em um contexto de ditadura fascista até que sua
contribuição para a cultura popular do país seja finalmente esquecida.9” Mais de duas décadas
depois, a necessidade de resistência a essa ordem patriarcal institucionalizada foi o que o
despertou para o ativismo LGBT, conforme relata no início da entrevista:10

Em 1996 temos a primeira repressão, em que 200 pessoas, nós no meio, fomos presos
com uma dose de narcóticos. Eles falavam que naquele lugar se comercializava
narcóticos. Então, o que nós fizemos? Aí todo mundo se inteirou, nossas famílias, foi
uma questão pública. E então muitas famílias de meus amigos fizeram com que eles
saíssem do país. Foram para o Chile, para os Estados Unidos, para a Argentina, para
o México e para outros lugares. E nós que ficamos, ficamos com muita raiva. Com
muita raiva porque eles invadiram o nosso espaço privado e aí foi que sai a questão
de então: vamos afrontar uma questão política. Vamos lutar não somente por uma
necessidade de querer espaços privados, se não antes, de ter espaços de reivindicação
política, pública, de direitos humanos. Então aí que começa nossa luta, jovens. Então
fazemos uma primeira comunidade que se chamava Libertad. Era o nosso primeiro
grupo com que começamos a questionar, interpelar, as questões políticas binárias
sobre a sexualidade, os papéis de gênero. (David Aruquipa, 2022).

Porém, ocupar os espaços públicos não era suficiente. Era preciso intervir neles e
descolonizá-los por meio dos/as corpos/as de transformistas e drag queens. Como nos lembra
Oyěwùmí (2021, p. 28), “uma vez que o corpo é o alicerce sobre o qual
a ordem social é fundada, o corpo está sempre em vista e à vista.” Para David e seu grupo
travestido, resistir era ser visto.

É aí foi que o transformismo, o drag queen, foi como um instrumento de luta, que nos
deu os recursos estratégicos para poder sair nas ruas e ser visível. Não era uma questão
de estar escondido, poder sair assim com roupa de rua, como na cotidianidade, como
antes. Era a de ser personagens que poderiam ser vistos daqui a 500 metros, por
exemplo. (David Aruquipa, 2022).

9
Tradução livre do autor. No original: No es casual que la expulsión de travestis del Gran Poder se haya dado
em un contexto de dictadura fascista hasta que finalmente se olvide su contribución a la cultura popular del
país.
10
Embora o entrevistado tenha optado por realizar toda a entrevista em português, há momentos em que ele
pronuncia algumas palavras em espanhol. Quando foi possível e quando não se tratava de palavra relacionada a
alguma identidade étnica ou de grupo, optei pela tradução direta.
8

A visibilidade dos/as corpos/as travestidos/das foi fundamental para conquistar a


atenção e, nas palavras de Aruquipa, “seduzir” a população na rua. Esses/as corpos/as
adquiriram, portanto, o caráter de corpos/as políticos/as, que reivindicavam não apenas o direito
ao espaço público, como também o direito à existência e, principalmente, o direito de integrar
uma comunidade, uma família. Nesse momento da entrevista, David já se refere ao grupo como
Família Galán:

Todas as pessoas, jovens e meninos se aproximavam de nós. Então elas diziam que
éramos parte de uma de uma companhia de teatro, uma companhia de circo, o que
erámos? Tinha uma necessidade e curiosidade também saber o que nós éramos. Então
era esse momento de falar da nossa luta. Nós somos a família Galán e fazemos isto
por uma questão que o estado não reconhece as nossas famílias, as nossas formas de
amar e as nossas formas de ter uma família política. E então isso que foi um discurso
muito forte porque aí os movimentos de mulheres e os movimentos feministas
também falavam. Nós temos muitas coisas em comum, então vamos fazer uma coisa
como um grupo, de resposta a estas questões tão conservadoras, repressoras, como é
uma sociedade patriarcal e conservadora. (David Aruquipa, 2022).

O conceito de família, tão arraigado ao discurso conservador e patriarcal, é reapropriado


e descolonizado pelo grupo. David Aruquipa explica que o sistema patriarcal ainda não foi
rompido, mas já apresentava fissuras e, portanto, não fazia mais sentido a comunidade LBGT
permanecer em espaços fechados. Na visão dele, os espaços privados não permitiam agregar a
população à luta, pois nesses lugares estavam sozinhos/as. Na família reapropriada e
descolonizada pelo grupo cabia todo o povo e a cultura popular.

Queremos as ruas, queremos as praças, queremos os mercados, queremos o Palácio


de Governo, o Planalto [risos], queremos estar aí, queremos entrar aí. E como vamos
fazer? É justamente com a estratégia que nos está fazendo visíveis. Então, nós,
transformadas, íamos ao Congresso Nacional, à porta do governo e a polícia estava
assim [David faz cara de paisagem, demonstrando a reação de surpresa dos
policiais].11 Temos fotos muito lindas desses encontros, encontros assim mágicos, de
medo, mas também de uma resposta, se você quer é uma questão como resposta
política ao poder, como desafio ao poder. (David Aruquipa, 2022).

O entrevistado calcula que há 2.500 festas populares registradas na Bolívia. Nas contas
dele, há muito mais festas do que dias do ano. David explica que isso ocorre devido ao fato de
que uma mesma festa pode ocorrer em diferentes localidades no mesmo dia. Levar os/as
corpos/as travestidos/as para as festas foi uma estratégia não apenas para ampliar a visibilidade
do grupo, mas também para desafiar a colonialidade de gênero reforçada pelo discurso
religioso, uma vez que há nessas festividades um forte sincretismo com os santos católicos.

11
David sempre se refere à Família Galán na primeira pessoa do plural, utilizando o gênero feminino.
9

Então o que nós fizemos é apropriarmos também da nossa representação nas festas.
Então por isso que nós começamos a dançar com um novo personagem que se chama
Whapuri Galán. E quando começamos era um personagem muito, muito masculino,
patriarcal originalmente, mas nós travestimos esse personagem, fizemos ele caminhar
com tacones, com salto altos, com cores muito fortes, com maquiagens. E foi um
escândalo para a organização da festa. O que vocês são? Estão transgredindo os nossos
costumes, as nossas festas, a nossa tradição, como se a tradição fosse inamovível, uma
questão assim que não se transforma. E aí nós discutimos também a questão cultural.
(David Aruquipa, 2022)

De acordo com Aruquipa (2020, p. 348), o whapuri Galán foi criado em 2000 como
uma proposta homossexual para o personagem principal da dança da kullawada, que é de
origem pré-hispânica e representa os fiadores do altiplano. “Ela é conduzida pelo whapuri, guia
e mestre dos fiandeiros, que usa uma fantasia ostensiva e carrega uma grande roda giratória,
este personagem heterossexual ‘masculino’ lidera a tropa de dançarinos.” Ao subverter os
padrões de gênero pré e pós-coloniais, o entrevistado acredita que está contribuindo para a
transformação da cultura popular em seu país. Conforme nos aponta Montenegro (1994, p. 11),
“cada época recupera e atribui ao popular um sentido, que, em princípio, resulta da disputa ou
das relações no interior dos discursos, na medida em que estes discursos se propõem estabelecer
determinados imaginários.”

A cultura é dinâmica, a cultura se transforma, a cultura se se alimenta dos momentos


políticos e traz estas propostas. Então como foi também um discurso muito sedutor, o
mundo acadêmico e o mundo popular aceitou e se conectou com a proposta. Somos
personagens muito esperados nas festas populares, que aglutinam 50.000 dançarinos,
7.000 músicos e mais de 500.000 pessoas que assistem. (David Aruquipa, 2022)

Após alcançar o objetivo da visibilidade e se tornar uma figura pública, David conta que
a Família Galán passou a atrair a admiração de um público de idade mais avançada, que tinha
por hábito abordá-los/as e tirar fotos com os/as dançarinos/as travestidos/as entre os anos de
2001 e 2007. Algum tempo depois, uma dessas pessoas revelou a David que o grupo lembrava
outras travestis que dançavam nas festas populares nas décadas de 1960 e 1970. O entrevistado
descreve em detalhes o diálogo em que a revelação foi feita:
- O que? Não posso acreditar, nós somos as primeiras. [Assim, com arrogância.]
- Vocês não se lembram, porque tinha uma vez em 1960, [nós não tínhamos nascido,
nenhuma de nós], que Barbarella, Ofélia, umas travestis muito lindas que também começaram
a dançar nas festas populares.
10

- Hã? [O nosso grito de ser as primeiras ficou calado, né, ficou mudo. Eu precisava saber
quem eram elas, que fizeram, por que ainda estavam na memória das pessoas mais antigas, mais
velhas, que eram espectadoras da festa popular.]

3.1 – Memórias travestidas

A partir da constatação de que a Família Galán não era pioneira nas festividades e de
que havia memórias de outros/as corpos/as travestidos/as na cultura popular do seu país, David
inicia em 2009 o que ele chama de “travessia”, que representaria não apenas o envolvimento
em uma investigação histórica, mas o início de um trabalho pela preservação e disseminação
de conhecimento acerca das memórias LGBT na Bolívia. Mais do que isso, o entrevistado parte
de uma perspectiva descolonizadora, pois a revolução travesti nas décadas de 1960 e 1970 teria
sido, na visão defendida e propagada por ele, tão importante quanto a Rebelião de Stonewall,
que ocorreu nos Estados Unidos em 1969.12

Foi um ato muito importante o Stonewall nos Estados Unidos, mas nesse mesmo
momento aqui se estava dando outra revolução, que era a revolução das festas
populares, que estava promovendo as travestis. Então, eu sempre, quando há as
paradas, as paradas gays, as paradas LGBT em 28 de junho, eu falo: é lindo que agora
nós tenhamos institucionalizado, instituído uma parada, mas a nossa reivindicação e
a nossa luta política começam nas festas populares e pelas travestis. Então, as
primeiras paradas de visibilidade pública foram em 1960 em 1970, quando a ditadura,
ditadura duríssima, perseguia a elas e elas conseguiam desafiar o poder e dançar nas
festas populares. (David Aruquipa, 2022)

Voltando algumas décadas na história, de acordo com Aruquipa (2012, p. 35-36), o


projeto nacionalista iniciado a partir da Revolução de 1952 assumiu a cosmovisão e as práticas
culturais de origem andina na cultura popular, sob um slogan político de “integração nacional”.
Desse modo, “o novo Estado nacional promoveu a criação de uma sociedade única e a
construção de uma ‘cidadania boliviana’, baseada no modelo de modernidade de indivíduos
sobre ‘iguais em condições de igualdade 13’.” Porém, o partido Movimiento Nacionalista
Revolucionario - MNR, que se manteve no poder por quase duas décadas, aprofundou esse
projeto nacionalista, instaurando um modelo sindical vertical e autoritário na cultura política

12
A rebelião é considerada um marco nas lutas pelos direitos da população LGBT mundial. Na madrugada do dia
28 de junho de 1969, uma batida policial no bar Stonewall, localizado no bairro de Greenwich Village, Nova
Iorque, desencadeou um motim do público LBGT no local, que se revoltou contra a abordagem abusiva da polícia.
13
Tradução livre do autor. No original: el nuevo Estado nacional impulsó la creación de una sociedad única y la
construcción de una “ciudadanía boliviana”, basada en el modelo de modernidad de individuos en “igualdad de
condiciones”.
11

dos setores sociais populares. Segundo o autor, embora o MNR tenha liderado a revolução de
1952, por pouco não participou do ciclo de ditaduras militares, que vigorou do final dos anos
1960 até o início dos anos 1980. A ditadura mais duradoura nesse intervalo foi a do Coronel
Hugo Banzer Suárez, de 1971 a 1978. Durante a festa do Gran Poder de 1974, o então presidente
recebeu um beijo na bochecha de Barbarella, china morena que dançava na ocasião. Após esse
episódio, as travestis e homossexuais masculinos foram proibidos/as de participar das festas
populares nos anos seguintes.

As práticas de repressão são intensificadas no que diz respeito à disciplina dos corpos,
definindo o "homem e a mulher bolivianos" com características homogêneas, macho
e heterossexuais e papéis corporais. A este controle dos corpos se soma o poder da
Igreja Católica, que, em relação direta com o Estado, reforça a linha moral deste
"deveria ser", acentuando muito mais nestes períodos a perseguição e o controle dos
diferentes grupos que questionam estes modelos de corpos sexuais heterossexuais,
dando origem a práticas homofóbicas repressivas, que consolidam sua
institucionalidade a partir do próprio Estado. (ARUQUIPA, 2012, p. 37).14

Apesar da repressão institucionalizada, a revolução travesti das chinas morenas teve


algumas precursoras que David Aruquipa conheceu por meio da cabeleireira Diego Marangoni,
ou simplesmente Diega. “Sentadas em seu salão de beleza, ela começou a nomear as diferentes
maricas que se atreveram a taconear antes de nós.” (ARUQUIPA, 2020, p. 350). Para o
entrevistado, o “taconeado”, ou seja, andar ou dançar de salto alto é um elemento fundamental
do que ele traduz como uma estética marica. 15

Começou com a Diega a primeira fala e ela me diz e me dá os nomes assim como um
abanico [abre os dedos frente ao rosto como um leque], santas travestis que
começaram juntas. Então começa a dar-me os nomes: a Barbarella, ela morreu; a
Pocha, ela morreu; a Ofelia, ela ainda vive ela vive numa cidade que nós temos que é
Cochabamba. Então foi assim que ela começou a fazer uma cartografia das pessoas,
como uma constelação de estrelas, que ela começou a fazer ao me dar os nomes e de
algumas poucas os endereços que ela já conhecia. (David Aruquipa, 2022)

14
Tradução livre do autor. No original: Las prácticas de represión se agudizan con respecto al disciplinamiento
de los cuerpos, definiendo el deber ser del “hombre y la mujer boliviano/a” con características y roles corporales
homogéneos, machistas y heterosexuales. A este control de los cuerpos se suma el poder de la iglesia católica,
que en relación directa con el Estado, refuerza la línea moral de este deber ser, acentuándose mucho más en estos
periodos, la persecución y control de los diferentes grupos que interpelan estos modelos de cuerpos sexuados
heterosexuales, dando lugar a prácticas homofóbicas represivas, que consolidan su institucionalidad desde el
propio Estado. Así las fuerzas del orden y el sistema judicial, ejercen medidas coercitivas y correctivas hacia la
población de las diversidades sexuales y de género. Estas prácticas refuerzan el orden y la norma social,
incidiendo en que personas y grupos de la sociedad civil también ejerzan practicas represivas, las cuales son
aceptadas, refrendadas y protegidas por el Estado.
15
Em muitos momentos da entrevista, David utilizou um gestual que remete ao marica e o fez quando queria
reforçar o significado de alguma palavra que não sabia pronunciar bem em português. Havia assim uma
correspondência de signos, uma vez que o entrevistado percebeu que o entrevistador também se identificava com
esse contexto. Os recursos cinésicos, ou seja, a linguagem falada com os movimentos do corpo, foram
fundamentais para superar as dificuldades com o idioma.
12

Considerando que “a memória coletiva de um grupo representa determinados fatos,


acontecimentos, situações”, mas, “no entanto, reelabora-os constantemente”
(MONTENEGRO, 1994, p. 19), a pesquisa iniciada por Aruquipa assume também um caráter
institucional. O narrador relata que era Diretor Nacional de Gestão Cultural do Ministério da
Cultura da Bolívia e contou com a assessoria técnica e recursos humanos do Museu de
Etnografia e Folclore da Bolívia para realizar as entrevistas e reunir documentos.

Então começamos a fazer as pesquisas e com todas, com todas, foi muito fácil chegar
às suas casas e entrar numa cumplicidade porque eu sou uma pessoa muito pública.
Eu te contei, desde o final dos anos 90 já estava nas ruas, já estava na nos meios de
comunicação, então era uma pessoa muito pública. Então elas se sentiram muito
acolhidas, que eu fosse às suas casas e quisesse recuperar essas memórias e elas
abriram tudo. Abriram o coração, abriram os baús, abriram as caixas onde estavam as
fotografias e me permitiram, me deram autorização firmada para que eu pudesse
publicar o primeiro livro, China Morena Travesti, que foi lançado em 2012 com as
entrevistas delas. Por isso que eu não me coloco como autor, mas como compilador,
porque em todas as entrevistas, em cada uma delas está um texto longo como elas
falaram, com todos os sotaques, com todas as gírias, com tudo. Então eu tive esse
respeito e cada entrevista delas está com a coleção de fotografias. A única foi a Ofélia,
que é Carlos Espinosa, que eu faço todo um perfil dela também. Foi a que me diz:
estas 15 fotografias você pode publicar agora. Estas 60 fotografias quando eu morrer.
Eu fiquei chocado, fiquei assim como uma questão de dor e de responsabilidade, de
que não pode, não pode ser. Tanta gentileza e tanta abertura já era como se
formássemos uma comunidade de afeto. (David Aruquipa, 2022).

Ao descrever o processo de realização das entrevistas com as fontes orais, David


Aruquipa demonstra ter praticado a “arte da escuta”, baseada no conjunto de relações descrito
por Portelli (2016, p. 12):

1. A relação de entre entrevistados e entrevistadores (diálogo);


2. A relação entre o tempo em que o diálogo acontece e o tempo histórico discutido
na entrevista (memória);
3. A relação entre a esfera pública e a privada, entre autobiografia e história – entre,
digamos, a História e as histórias;
4. A relação entre a oralidade da fonte e a escrita do historiador.

Além disso, a investigação realizada por David Aruquipa integrou pesquisa e


documentação, conforme o que recomenda Alberti (2004, p. 81): “enquanto se obtém, das
fontes já existentes, material para a pesquisa e a relização das entrevistas, estas últimas tornar-
se-ão novos documentos”. Segundo autoras, esse novos documentos podem enriquecer e muitas
vezes explicar aqueles que foram obtidos inicialmente. O trabalho que aqui se apresenta
demonstra essa relação bidirecional entre a história oral e outros documentos, pois os
13

documentos escritos sobre as memórias das chinas morenas travestis publicados por David
Aruquipa fundamentaram a entrevista que é objeto deste estudo.
Outro aspecto a ser destacado é a formação de uma comunidade de afeto a partir do
trabalho por ele. A Comunidad Diversidad é um centro cultural formado para reunir o acervo
de memórias obtidas durante e após a pesquisa, incluindo roupas, fotografias, recortes de
jornais, gravações e todo o material documental obtido a partir de 2012. O próximo passo
almejado por David é a criação de um museu da diversidade sexual na Bolívia, marcando a
passagem da memória para a história (NORA, 1993, p. 17), mas nem tanto.

Eu acho que é transgressor a perder a visão que você tem do museu. Historicamente,
o museu sempre foi um repositório de identidades culturais. No momento que você
dá vida ao museu e conta a história de uma gente, histórias, o mesmo museu não sabe
como encaixar né? Simplesmente não são bens culturais de valor patrimonial histórico
do século XII et cetera né? Então você transgride a visão conservadora dos museus e
a qualidade. Dá a qualificação de história viva, a minha história oral precisa ser
contada e queremos ter um museu. Não é entrar na oficialidade, mas sim vai ser a
virada curatorial, a virada transgressora desse museu, que nós queremos fazer. Então
eu acho que sim, vai ser uma proposta interessante, porque tem muito o que falar. Eu
acho que a curadoria não seria uma curadoria convencional de colocar os trajes, os
manequins e uns quadrinhos não. Eu acho que teria que ser também muito mais vivo.
Teria que ser mais um espaço de encontro com a tua história, com a tua realidade e
com tua possibilidade de construir a partir dela outras vidas possíveis. (David
Aruquipa, 2022).

Ainda de acordo com o relato de Aruquipa vida em comunidade também é um aspecto


reforçado pela religiosidade presente na comunidade LGBT da Bolívia. O entrevistado não
discute sobre questões estruturais da Igreja Católica e sobre como ela contribui para a
colonialidade do gênero na América Latina, mas defende que a religião fortalece o laços de
comunidade e de afeto.

Bom a questão com a igreja é muito linda em meu país. Não a questão da igreja como
a estrutura. É uma questão de comunidade, de fé, de afeto. Então, todas as travestis, a
população gay, lésbica, tem seus santos, suas santas. Santa Maria de Dolores, o Santo
Peregrino, o São Roque, por exemplo. Então, eu acho que essa questão de formar
comunidade, de ter os laços de afeto, de amor, de apoio mútuo constante, fazem as
festas irem mais longe do que dizer que a festa é ou não religiosa. [...] É a reutilização
das imagens para terem um espaço de comunidade, de reafirmação de comunidade e
de transmissão de que a comunidade se faz em torno a um propósito. O propósito pode
ser essa imagem que pode ter valor ou não. Não tem importância, mas isso acontece.
Em nossa comunidade LGBT todo mundo quase tem uma crença, uma imagem, uma
festa. Por que se fazem tantas festas? [...] Então essa é a questão das imagens, da
religiosidade. Então, como levamos tão a sério essas festas, todo o pessoal respeita a
nossa presença quando nós representamos essa questão de fé ao santo. Então nunca
houve uma questão de discriminação ou instrução nesse sentido de dizer: não, você
não pode dançar. Podem dizer como uma pessoa, mesmo na comunidade, mas quando
você fala: eu não estou aceitando o que você disse, porque eu danço por fé à Virgem,
isso acabou. Então você vai contra ela. Então fica calada e vai embora. Não se fala
mais do assunto. Então são estratégias também que tanto as chinas morenas
14

utilizaram, como agora também se utiliza. É uma questão que é superior a você a
pessoa, é o santo. Eu danço por ele. Eu estou aqui com essa roupa por ele. Eu faço
toda essa inversão por ele. O melhor que eu tenho por ele. Então é como uma
estratégia, que está acima da mesma comunidade religiosa. (David Aruquipa, 2022)

A fala do entrevistado revela que ainda é necessário se utilizar de estratégias discursivas


e relacionais para manter viva a memória dos/as corpos/as travestidos/as nas festas populares
da Bolívia. Como mencionei anteriormente, a estética marica presente nessas festividades é
uma contribuição da Família Galán para a cultura popular da Bolívia. Mais do que isso, é um
traço de uma memória coletiva e viva, cujo/a corpo/a da travesti ou da drag queen é o acervo
multifacetado e multicolorido.
Ao fim da entrevista, fica evidente que a Família Galán se veste de memórias para
dançar ao ritmo da história. “A nossa história LGBT na Bolívia não pode ser contada sem a
presença da Família Galán, como militantes, como ativistas e como maricas, que continuam
desafiando ao poder.” (David Aruquipa, 2012).

Bibliografia
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15

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Paulo, SP, 2 jun. 2022.
Fontes escritas:
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Memorias Colectivas: Miradas a la Historia del Movimiento TLGB de Bolivia. La Paz:
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