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Dossiê: A fotografia em instituições de memória:

experiências no Brasil e em Portugal

Rogério Pereira de Arruda


Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
Diamantina – Minas Gerais - Brasil
rogerio.arruda@ufvjm.edu.br

Ana Gandum
Universidade Nova de Lisboa
Lisboa – Portugal
anagandum@gmail.com

Apresentação

No dossiê “A fotografia em instituições de memória: experiências no Brasil e em


Portugal”, reunimos entrevistas e artigos que trazem uma série de informações, reflexões e
problematizações em torno da pesquisa sobre fotografia, tendo em vista sua presença em
instituições de memória. O dossiê insere-se num contexto de incorporação da fotografia nos
campos de estudo da História, da Antropologia, da Comunicação e das Artes, dando
continuidade a um processo iniciado há algumas décadas. De acordo com o balanço
historiográfico realizado por Ana Mauad (2016), os estudos, ao tomarem a fotografia como
objeto e fonte de investigação, têm possibilitado significativos avanços nas reflexões sobre
diversos temas: as formas de linguagem, as maneiras de representação do mundo social, o
modo como as imagens amparam vivências individuais e coletivas, bem como a influência da
imagem nas formas de percepção do espaço e do tempo e nas políticas de memória. As
pesquisas, em suas diferentes vertentes teóricas, têm refletido tanto sobre os modos de
produção das imagens, como sobre suas formas de circulação e de apropriação social.
Nesse processo, foi e tem sido vital a organização e a disponibilização de acervos
fotográficos1 públicos e privados, pessoais ou institucionais, que amparam pesquisas em
diferentes domínios e sem os quais não teria sido possível trilhar grande parte dos caminhos

1
Segundo Aline Lacerda (2013, p. 240) acervos fotográficos são “grupos de documentos tão distintos quanto
arquivos estritamente fotográficos, arquivos mais tradicionais que abarcam, além de documentos de gênero
textual, também o material fotográfico, parcelas de arquivos que foram desmembrados e dos quais restam
apenas seu componente fotográfico, coleções mais orgânicas de fotografias (pois que produzidas com alguma
sistemática), coleções menos orgânicas de fotografias (pois que mais fragmentadas), pequenos conjuntos de
fotografias avulsas reunidas sob critérios vários etc.”
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percorridos. Ao serem abrigados por instituições que são concebidas como lugares de memória
(NORA, 1993), – tais como os arquivos, museus, bibliotecas, centros de documentação – estes
acervos adensam o patrimônio histórico e cultural de seus respectivos países. Tanto no Brasil
quanto em Portugal, verifica-se certa sensibilidade para a necessidade de guarda, tratamento
e disponibilização dos acervos fotográficos. Há, nestes dois países, instituições públicas e
privadas que são referências importantes para o trabalho com a história da cultura visual
fotográfica e que se tornaram verdadeiros repositórios, capazes de viabilizar o trabalho com as
memórias dos sujeitos, das famílias, dos governos, dos movimentos sociais e, também, dos
próprios fotógrafos, com suas histórias pessoais, seus aparelhos, técnicas e métodos de
trabalho. Nos limites desta apresentação, não será possível traçar um panorama da situação
dos acervos fotográficos nos dois países, mas podemos indicar alguns aspectos para reflexão.
No caso do Brasil é possível afirmar que três instituições podem ser vistas como
referência para o trato dos acervos fotográficos, pois contribuíram e ainda contribuem para
pensar as políticas de guarda, preservação e difusão: a Funarte, a Biblioteca Nacional e o
Instituto Moreira Salles. A Funarte começou a atuar no final da década de 1970 por meio do
seu Núcleo de Fotografia, renomeado INFoto (Instituto Nacional de Fotografia) em 1984, e
colaborou na implantação de uma política pública para os acervos fotográficos do país
(VASQUEZ, s/d). Graças especialmente ao Programa Nacional de Preservação e Pesquisa da
Fotografia, o INFoto contribuiu para disseminar a importância da valorização dos acervos
fotográficos em arquivos públicos e particulares, universitários e sindicais, nos âmbitos federal,
estadual e municipal (VASQUEZ, s/d). Foi nesse âmbito de atuação que surgiu a colaboração
com a Biblioteca Nacional por meio do Projeto de Preservação do Acervo Fotográfico da
Biblioteca Nacional (PROFOTO), iniciado em 1990, e que se revelou um dos mais importantes
trabalhos com acervos fotográficos do país. A Biblioteca Nacional se tornou, com essa
iniciativa, uma referência “(...) na afirmação e na definição de uma política de tratamento das
coleções fotográficas representada por meio de publicações técnicas, orientação, processo de
identificação e indexação, bem como da guarda desse material” (ZAHER, 2004). Já o Instituto
Moreira Salles afirmou-se nas duas últimas décadas como uma referência na constituição de
acervos fotográficos de caráter autoral, com ênfase especial em fotógrafos do século XIX e
XX, contendo cerca de 800 mil fotografias. Muitas outras instituições no país guardam acervos
fotográficos de relevância, tais como Arquivo Nacional, o Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro, o Museu Paulista da USP, a Fundação Joaquim Nabuco, o Museu de Comunicação
Social Hipólito José da Costa e o Arquivo Público Mineiro. Para oferecer uma visão mais ampla
do assunto, teríamos que levar em consideração as instituições públicas e privadas do âmbito
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estadual e municipal, as bibliotecas, centros de documentação de universidades, etc. Além


disso, teríamos que acrescentar a presença da fotografia nas coleções dos museus de arte.
Enfim, fazer um balanço da situação dos acervos fotográficos no país é muito delicado, mas é
possível afirmar, seguindo Aline Lacerda (2012, p. 284), que a fotografia se apresenta de
maneira sistemática nos arquivos, sejam eles públicos ou privados, institucionais ou pessoais.
Uma questão importante diz respeito à digitalização de acervos, que é um desafio
enfrentado pelas instituições de memória a partir da década de 1990. Desde então, vários
projetos têm sido implantados. De acordo com Rubens Silva (2006), a digitalização permite a
preservação da memória visual, traz a possibilidade de fortalecer as identidades e de ampliar
os conhecimentos no que tange à formação educacional e cultural, principalmente quando
ocorre a disponibilização de acervos online. Assim, o acesso remoto, ao mesmo tempo em que
maximiza a utilização, satisfaz parcialmente as necessidades e as demandas da sociedade e,
embora não permita o acesso à materialidade dos objetos fotográficos, apresenta-se como um
caminho possível para democratizar a informação. Alguns exemplos de sucesso nesse campo
podem ser citados: a Biblioteca Nacional Digital, o Instituto Moreira Salles e o Arquivo
Público Mineiro. Cabe destacar, pela sua excelência, o projeto da Brasiliana Fotográfica, que é
um dos desdobramentos da expertise alcançada pela Biblioteca Nacional no tratamento dos
acervos fotográficos. A iniciativa surgiu da parceria com o Instituto Moreira Salles (IMS),
obtendo posterior adesão de outras instituições2. O acesso remoto de acervos fotográficos abre
a possibilidade de fruição, ampliação da consciência, facilita o acesso de pesquisadores, constitui
uma forma de preservar o documento original, abrindo oportunidades para a produção de
conhecimento crítico. Um dos grandes desafios atuais diz respeito à entrada dos arquivos nato-
digitais nos acervos fotográficos das instituições de memória.
Em Portugal, existem instituições de referência para o estudo e para a conservação da
fotografia, tal como o Centro Português de Fotografia, o Arquivo Municipal Fotográfico de
Lisboa e o Arquivo de Documentação Fotográfica da Direcção Geral do Património Cultural,
cuja coordenadora, Alexandra Encarnação, é entrevistada neste dossiê. O projeto de
investigação Fotografia no Arquivo e no Museu Colonial Português 1850 – 1950,
desenvolvido em 2013 e coordenado pela historiadora Filipa Lowndes Vicente, explorou a
existência de fotografias em diversas instituições de memória em Portugal e analisou-as à luz
dos debates internacionais historiográficos sobre o colonialismo e a condição colonial. Graças

2
Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, Dir. Pat. Hist.
Documentação da Marinha, Fundação Bibliioteca Nacional, Fundação Joaquim Nabuco, Instituto Moreira
Salles, Leibniz-Institut fuer Laenderkunde, Museu Aerospacial, Museu da República e Museu Histórico Nacional.
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a esse trabalho, podemos construir uma visão ampla sobre a presença da fotografia nos acervos
de diversas instituições3. Mais precisamente, nesse contexto, a existência de fotografias em
instituições de memória em Portugal foi exaustiva e até então, a nosso conhecimento,
ineditamente mapeada – ainda que sob a perspectiva da sua inscrição ou afetação a um contexto
colonial. Desde então, alguns desses arquivos e fundos vêm passando por reconfigurações
institucionais, como, por exemplo, o Instituto de Investigação Científica Tropical, hoje sob a
tutela da Universidade de Lisboa. Além disso, foram surgindo outros projetos de pesquisa na
área da fotografia, – como, por exemplo, a OPSIS – Base Iconográfica de Teatro em Portugal,
Mobilizando Arquivos, Photo Impulse, Perphoto –, assim como conferências, publicações,
colóquios e investigações acadêmicas dedicadas ao estudo da fotografia no contexto histórico
português, bem como à relação entre fotografia e (sua representatividade no e do) arquivo.
O arquivo surge então aqui como um conceito sinônimo de instituição de memória,
embora possamos considerar a existência de arquivos não institucionais, tais como os fundos
pessoais e as fotografias “soltas”, ou seja, não consideradas enquanto corpus arquivável. Desde
há cerca de uma década, assistimos igualmente a uma gradual afirmação no panorama cultural
português de instituições de memória dedicadas, direta ou indiretamente, à fotografia, tais
como: o Museu da Imagem em Movimento, em Leiria; a Casa-Estúdio Carlos Relvas, na
Golegã; ou, mais recentemente renovado, o Museu de Fotografia da Madeira – Atelier
Vicente’s, no Funchal. À semelhança do caso brasileiro, outro movimento importante no
contexto português tem sido o da dinamização de projetos de constituição de fundos
fotográficos digitais disponibilizados (exclusivamente ou não) online, que promovem a difusão
de seus acervos e facilitam o trabalho dos pesquisadores4.
Ainda à semelhança do caso brasileiro, para termos uma visão mais ampla da
representatividade dos acervos fotográficos em instituições de memória em Portugal,
deveríamos considerar a sua presença em nível distrital, municipal, das bibliotecas e de centros
de documentação diversos; e, sobretudo, considerar a sua presença nas coleções dos museus de

3
Arquivo Histórico da Marinha, Arquivo Histórico Diplomático do Ministério dos Negócios Estrangeiros, Arquivo
Histórico do Patriarcado de Lisboa, Arquivo Histórico do Ex-Banco Nacional Ultramarino, Arquivo Histórico
Militar, Arquivo Histórico Ultramarino, Arquivo Municipal de Lisboa – Fotográfico, Arquivo Nacional da Torre do
Tombo, Biblioteca Nacional da Ajuda, Centro de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa, Centro
Português de Fotografia, Fundação Mário Soares, Divisão de Documentação Fotográfica / Direcção-Geral do
Património Cultural, Palácio Nacional da Ajuda, Sociedade de Geografia de Lisboa.
4
Como exemplo podemos citar a base iconográfica do teatro em Portugal, OPSIS; o site em desenvolvimento
dedicado a fotografia vernacular portuguesa Foto-Sintese; coleções digitais fotográficas da Fundação Calouste
Gulbenkian; registos fotográficos do Arquivo Fotográfico da Câmara Municipal de Lisboa disponibilizados
online; imagens fotográficas da secção Cinemateca Digital da Cinemateca portuguesa; a coleção online do
Centro Português de Fotografia; o repositório digital do Arquivo Científico Tropical.
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arte, onde se privilegia uma prática fotográfica autoral. Consideramos que o balanço da
situação dos acervos fotográficos no caso português é ainda mais incerto do que no caso do
Brasil, tendo sido pouco pesquisado de forma sistemática. Mas, em suma, na última década,
assistimos em Portugal a um processo de consideração da fotografia, quer enquanto
imagem/janela quer enquanto objeto/material, e mais particularmente como fonte de
interesse da disciplina da História (e das ciências sociais em geral). Assistimos ainda ao
aumento dos estudos e cuidados (de restauro, conservação, inventariação, digitalização…) com
as coleções fotográficas, ou ao seu devir institucional: a sua integração em arquivos e acervos,
bem como a uma crescente visibilidade da fotografia em museus e exposições de natureza
diversa.
O presente dossiê reúne duas entrevistas e oito artigos. No que tange às entrevistas,
temos duas conversas bem interessantes com representantes de instituições de alta relevância
para a memória cultural e histórica de seus respectivos países. Pela Biblioteca Nacional do
Brasil, temos Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, servidor da instituição há trinta e nove
anos, que fez um amplo balanço do trabalho com os acervos fotográficos que esta vem
realizando há algumas décadas, o que a tornou referência na área. Pelo Arquivo de
Documentação Fotográfica, temos Alexandra Encarnação, que faz um balanço dessa mesma
instituição de grande relevância no que diz respeito ao panorama dos arquivos fotográficos em
Portugal, assim como do trabalho desenvolvido pela mesma na guarda de outros acervos. Na
entrevista, destaca-se ainda alguns exemplos de coleções e imagens no arquivo, fundamentais
quer para a história da fotografia em Portugal quer na Europa.
No que diz respeito aos artigos, talvez devido ao fato de ser esta publicação uma
iniciativa “brasileira”, houve uma resposta mais expressiva em relação às pesquisas que incidem
em coleções fotográficas no Brasil. Na apresentação dos artigos, optamos por trazê-los em
conjuntos. Temos dois artigos nos quais os autores, cada qual partindo de uma fotografia
específica, problematizam a participação das referidas imagens nas práticas sociais. O artigo
de Marcus Vinicius de Oliveira discute as formas de apropriação da fotografia de uma criança
guineense de nome Augusto na época de sua produção, no contexto da Exposição Colonial de
1934, na cidade do Porto. Estuda-se a trajetória da imagem com o objetivo de problematizar
o colonialismo contemporâneo, por meio das reflexões em torno dos usos e funções
desempenhados pela imagem. Já o artigo de Aline Montenegro Magalhães e Maria do Carmo
Teixeira Rainho problematiza a trajetória histórica da fotografia de uma mulher de turbante,
realizada provavelmente no Rio de Janeiro na segunda metade do século XIX, pelo fotógrafo
alemão Albert Henschel. Em ambos, podemos acompanhar a potência dos estudos de biografia
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das imagens e o quanto uma única fotografia pode constituir-se como instância de sentido, a
partir da qual várias problemáticas podem ser levantas, na medida em que ela é tomada
enquanto fonte histórica polissêmica. Os autores nos mostram que as imagens devem ser
interpeladas em relação às suas características formais, à sua autoria, ao contexto de produção,
bem como analisadas em virtude da produção, circulação, consumo e apropriações diversas ao
longo da história.
Um segundo conjunto de artigos nos leva para dentro de instituições de memória que
lidam com acervos fotográficos, sendo que um deles tematiza a experiência de um museu e o
outro aborda uma escola. O artigo de Guilherme Marcondes Tosetto apresenta um histórico
da atuação do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) na incorporação da fotografia
em seu acervo. A partir do levantamento das exposições realizadas pelo museu e da atuação do
Clube de Colecionadores de Fotografia, o autor constrói uma descrição detalhada do conjunto
fotográfico sob guarda da instituição, indicando os questionamentos artísticos que orientaram
o trabalho de curadoria na constituição da coleção. Já o artigo de Hugo Rodrigues Cunha traz
o relato do encontro fortuito e inesperado com um material fotográfico guardado em uma área
da escola onde é docente da disciplina de Química: o Liceu Camões, em Lisboa. A partir de um
pequeno conjunto formado por objetos, negativos e fotografias, ele realiza algumas reflexões
sobre a relação entre memória e história e os silêncios e invisibilidades, intencionais ou
involuntários, que marcam as ações humanas na escola e em outros espaços.
Outro conjunto formado por três artigos se dedica ao estudo, cada um a seu modo, dos
acervos dos fotógrafos Mario Baldi, Pierre Verger e Paulino de Araújo Ferreira Lopes. Mario
Baldi, fotógrafo austríaco, realizou um amplo trabalho de fotografia, escrita de artigos e
reunião de objetos da cultura indígena no Brasil, entre as décadas de 1930 e 1950. Marcos de
Brum Lopes analisa a coleção do fotógrafo, que é compartilhada por duas instituições de
memória: o Serviço de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural de Teresópolis (SPHAC), no
Brasil; e o Weltmuseum Wien (WMW), na Áustria. O texto de Marcos Lopes discute como o
“Projeto Baldi” vem sendo desenvolvido pelas duas instituições e reflete sobre os motivos e
intenções do colecionismo. O artigo de Marilécia Oliveira Santos e Thiago Machado de Lima
clarifica o trabalho minucioso sobre a constituição da Fundação Pierre Verger, enfatizando o
papel da instituição na guarda do legado fotográfico do fotógrafo e antropólogo francês, que
viajou por muitos lugares do mundo e se radicou na Bahia em 1946. Os autores detalham o
trabalho desenvolvido pela Fundação com o propósito de constituir uma organização interna
que garanta a conservação do acervo fotográfico e permita a memorialização e valorização do
legado fotográfico de Verger. Por fim, o artigo de Marcos Ferreira de Andrade traz um relato
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do trabalho de organização do Centro de Memória Cultural do Sul de Minas (CEME),


desenvolvido entre 1996 e 2000, na cidade de Campanha (MG), quando era professor na
Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Nossa Senhora de Sion, hoje pertencente à
Universidade Estadual de Minas Gerais (UEMG). Em seu trabalho, ele discute a importância
dos centros de memória dirigidos por instituições de ensino em localidades com carência de
arquivos públicos. Ele apresenta o escopo de todo o projeto, mas enfatiza o trabalho realizado
junto ao acervo fotográfico de Paulino de Araújo Ferreira Lopes, fotógrafo que atuou na região
entre o final do século XIX e meados do século XX.
Finalizando o dossiê, o artigo de Laila Zilber Kontic não se concentra numa instituição
de memória específica, mas problematiza as representações sobre os indígenas brasileiros na
fotografia, a partir da visita a acervos fotográficos do Museu do Índio, da Biblioteca Nacional
Digital, do Instituto Moreira Salles, do Museu do Quai Branly, e da Galeria Vermelho. Em
um primeiro tempo, a autora analisa fotografias do século XIX de fotógrafos como E.
Thiesson, Albert Frisch e Marc Ferrez; em um segundo tempo, ela discute o trabalho de
documentação realizado pela Comissão Rondon, e por reportagens da revista O Cruzeiro; em
um terceiro tempo, a autora discute o trabalho da fotógrafa suíça Claudia Andujar, que mora
no Brasil desde 1955 e construiu uma convivência próxima com os Yanomami, desde a década
de 1970. O objetivo principal de Laila Zilber Kontic repousa em mostrar como o trabalho
artístico de Andujar elabora novas formas de utilizar a fotografia para abordar os costumes e
valores do povo Yanomami, diferentemente do que fizeram outros fotógrafos com suas
representações de indígenas.
Esperamos que este dossiê contribua para o aprofundamento da análise da fotografia
em instituições específicas e que, deste modo, se alcance uma visibilidade quer sinóptica quer
precisa da existência e da representatividade da fotografia nos arquivos e demais instituições
de memória, em Portugal e no Brasil. Esperamos ainda que o dossiê constitua uma pequena
contribuição para a valorização (institucional ou não) de fundos fotográficos até então
invisibilizados. Finalmente, esperamos lançar o mote para pesquisas futuras e outras ações,
como exposições ou mostras online, que estabeleçam análises, relações e sinergias entre
coleções, fundos e acervos fotográficos nos dois países: Portugal e Brasil.
Desejamos uma ótima leitura!
8 | Apresentação do Dossiê ARRUDA, R. P; GANDUM, A.

Referências

DIAS, Inês Sapeta; FAZENDA, Maria do Mar Fazenda; NASCIMENTO, Susana. O


que é o arquivo?/What is the Archive? Lisboa: Sistema Solar/Documenta, 2018.

LACERDA, Aline Lopes de. Quatro variações em torno do tema acervos fotográficos. Revista
do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, n.7, p. 239-248, 2013,
Disponível em: http://wpro.rio.rj.gov.br/revistaagcrj/wp-
content/uploads/2016/11/e07_a11.pdf. Acesso em: 28 jun. 2020.

MAUAD, Ana Maria. Sobre as imagens na História, um balanço de conceitos e perspectivas.


Revista Maracanan, Rio de Janeiro, v. 12, n. 14, p. 33-48, jan./jun. 2016. Disponível em:
http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/maracanan/issue/view/1194/showToc.
Acesso em 28 out. 2017.

NORA, Pierre. Entre Memória e História - A problemática dos lugares. Projeto História, São
Paulo, n. 10, p. 7–28, dez. 1993. Disponível em:
http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/12101/. Acesso em: 10 jul. 2010.

SILVA, Rubens. Acervos fotográficos públicos: uma introdução sobre digitalização no


contexto político da disseminação de conteúdos. Ciência da Informação, Brasília, v. 35, n. 3, p.
194-200, set./dez. 2006. Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0100-
19652006000300018&lng=pt&nrm=iso. Acesso em: 29 jun. 2020.

VASQUEZ, Pedro. As ações do INFoto. Brasil Memória das artes. s/d. Disponível em:
http://portais.funarte.gov.br/brasilmemoriadasartes/acervo/infoto/as-acoes-do-infoto/.
Acesso em: 10 jul. 2020.

VICENTE, Filipa (Coord.). O império da visão: a fotografia no contexto colonial português


(1860–1960). Lisboa: Edições 70, 2014.

ZAHER, Celia Ribeiro. Comentário IV. Anais do Museu Paulista, São Paulo, v.12, p. 35-37,
jan./dez. 2004, Disponível em:
https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_issuetoc&pid=0101-
471420040001&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 08 jul. 2020.

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SOBRE OS AUTORES

Rogério Pereira de Arruda é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG);
professor Adjunto III na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri - Campus JK-
Diamantina.

Ana Gandum é doutora em Estudos Artísticos - Artes e Mediações pela Universidade Nova de Lisboa
(UNL); pesquisadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa,
Portugal.

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“O ex libris da graça africana”: uma fotografia no
contexto colonial português

Marcus Vinicius de Oliveira


Universidade Federal Fluminense
Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
marcusoliveira93@gmail.com

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Resumo: O presente artigo busca pensar a trajetória de uma imagem visual dentro de um conjunto que
integra as problemáticas das imagens fotográficas em contexto colonial contemporâneo. Para isso,
percorre os sentidos atribuídos a uma fotografia produzida na I Exposição Colonial Portuguesa de uma
criança nomeada então de Augusto. Seu circuito social foi intenso e marcado por diferentes espaços de
consumo, persistindo ainda hoje no circuito de colecionadores de objetos coloniais. Logo, o itinerário
apresentado permite delinear alguns usos e funções desempenhados pela imagem técnica no contexto
colonial português e abordar algumas questões importantes para o desenvolvimento de estudos históricos
com fotografia no colonialismo contemporâneo.

Palavras-chaves: Fotografia. Colonialismo. Circuito social. Visualidade.


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Introdução

Figura 1: Postal fotográfico da 1ª Exposição Colonial Portuguesa. Augusto, Bijagós – Guiné.


Fonte: Coleção particular Filipa Vicente.
2 | “O ex libris da graça africana”: uma fotografia no... OLIVEIRA, M. V.

A imagem em tela é um postal fotográfico de 1934. Nele, observamos uma criança


com um dedo na boca olhando diretamente para a objetiva da máquina fotográfica que
registra sua reação. Seus olhos penetrantes apresentam tanto uma curiosidade, quanto
um medo daquele objeto desconhecido direcionado a si. Além disso, sua postura retraída
conjuga uma percepção de receio e apreensão daquele que lhe observa como se ele
pudesse também lhe fazer algum mal. Atrás dele se encontra um fragmento de uma
habitação composta por um material que parece um vegetal. Esta compõe seu cenário
fotográfico e sugere a inserção em uma aldeia distante de um espaço urbanizado em
alguma parte do território colonial.
A criança fotografada fora nomeada como Augusto na I Exposição Colonial
Portuguesa, em 1934, local onde foi produzida a fotografia. O evento foi um dos
primeiros eventos públicos do recém-instaurado Estado Novo (1933-1974) (MATOS,
2006) e ocorreu na cidade do Porto, no norte de Portugal. Esta foi uma plataforma de
propaganda da “nova política colonial” imposta pelo regime salazarista, a qual já tinha
sido elaborada e exposta no Ato Colonial de 1930 (anos antes da instauração do governo
autoritário). Além disso, funcionou também como uma grande vitrine das empresas que
atuavam nas colônias que expuseram seus produtos e divulgaram informações das suas
ações dentro de um espaço que se propunha ser também um lugar de diversão e lazer.
Segundo o diretor técnico da exposição, Henrique Galvão (1933, p. 7), o evento
era organizado em torno de uma “lição do colonialismo” para a população metropolitana,
a qual precisava conhecer melhor os territórios que compunham o então Império
Colonial Português. Suas mensagens de propagandas possuíam um duplo objetivo: 1)
valorizar a dimensão civilizadora do projeto colonial, que se direcionava diretamente
para a população metropolitana que deveria ser educada para os propósitos do Império
Colonial Português; assim como 2) demonstrar a inflexível defesa do projeto colonial do
regime recém-instaurado (MARRONI, 2013, p. 59-78).
Para realizar tal empreitada, a exposição buscou recriar diversos lugares das
colônias nos jardins do Palácio de Cristal (local do evento), assim como construir um
espaço com objetos e elementos que apresentassem a história da ocupação portuguesa
no Ultramar (este fora organizado pela Sociedade de Geografia de Lisboa). Além disso,
também ocorrera o Primeiro Congresso de Antropologia Colonial durante o evento, o
qual buscou apresentar estudos desenvolvidos com os nativos expostos e inserir
Portugal também nesse circuito científico que utilizava as colônias como laboratórios de
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estudos. Logo, o evento era uma forma de ampliar a difusão do conhecimento colonial e
demarcar também Portugal como uma nação colonialista.
A exposição mobilizou também as diversas partes do país com caravanas para
visitar os espaços expositivos e as pessoas expostas no Palácio de Cristal, as quais
consumiam notícias e informações sobre o acontecimento nos jornais e revistas que
apresentavam cada aspecto do evento com ilustrações ou fotografias dos espaços
coloniais recriados na localidade. As imagens fotográficas produzidas por fotógrafos
comunicavam, informavam, educavam e monumentalizavam aquele episódio para uma
população que vivia um regime interessado em reconfigurar a política colonial e angariar
novos partidários para seus objetivos coloniais e, ainda, ampliava os arcos de
comunicação do regime instaurado, já que havia assegurada toda uma cadeia de
circulação dessas imagens visuais1 (jornais, revistas, souvenires, concursos e outras
publicações oficiais).
Nesse sentido, como afirma Ana Mauad (2015, p. 377-400; 2016), a experiência
contemporânea se utilizou de diversas imagens para apresentar seus acontecimentos e
fatos que, em determinada medida, apontam para a centralidade que a visualidade
incorporou na história contemporânea. Neste contexto, a noção de fotografia pública
torna-se central para se refletir sobre a variedade de usos e funções da fotografia nos
cenários de produção, circulação e exposição em situação colonial. A fotografia se
inscreve na cena pública como prática social, em culturas visuais historicamente
estabelecidas, colocando-se como um dos dispositivos visuais mais importantes do
mundo contemporâneo. Trata-se, portanto, de considerar as dimensões históricas da
experiência fotográfica, ou porque não afirmar, dimensões fotográficas da experiência
histórica.
Logo, para refletir sobre essa questão em um cenário colonial, retornamos a
figura 1 que abriu essa breve introdução. Encontrei esse postal em 2018 em duas coleções
privadas diferentes, quando realizava pesquisas nos arquivos sobre fotografias
produzidas na ascensão do regime salazarista que colaboraram com o projeto colonial
que emergiu com o novo regime em Portugal (OLIVEIRA, 2019). Em linhas gerais, a
coleção de Filipa Lowndes Vicente (a qual pertence a figura 1) é composta por diversos
postais fotográficos encontrados em feiras de livre comércio pela pesquisadora. Nela não
se encontram somente postais do colonialismo português, mas também de outras

1
A utilização de “imagem visual” busca reforçar a imagem limitada à dimensão visual, pois se
compreende que o conceito de imagem não se reduz a essa dimensão.
4 | “O ex libris da graça africana”: uma fotografia no... OLIVEIRA, M. V.

experiências o que gera uma diversidade grande de temas e temporalidade reunidos e


guardados pela historiadora. Já a coleção de Hélder Pacheco vem sendo doada ao
Arquivo Municipal da Câmara do Porto desde 2016 e reúne diversos objetos, inclusive
souvenires da Exposição Colonial de 1934. Este material está sendo recebido e descrito
pela instituição, portanto não podemos determinar todo o seu conjunto, tampouco sua
situação no arquivo.2
Em ambas há objetos do certame de 1934, o qual compunha o conjunto de eventos
de produção fotográfica que me permitia pensar os circuitos dos objetos que produziram
essa experiência fotográfica nos primeiros anos do salazarismo. No entanto, ao encontrar
esse suporte visual tive contato com um circuito social que reconfigurou os valores dessa
imagem visual dentro de uma prática colecionadora. Logo, a visualidade, ato de
interpretar, criar significados e contestá-los (MIRZOEFF, 2003), estabelecida naquela
temporalidade ganhava outros sentidos que permitiam ampliar as ações das imagens
fotográficas no contexto social português e compreender os contextos históricos
atuando na formação de sentidos para esses suportes visuais.
Deste modo, a escolha desse cartão-postal nos orienta nos itinerários da imagem
fotográfica com vistas a identificar seus circuitos sociais e os usos e funções de uma
imagem fotográfica em contexto colonial. Assim, o presente trabalho busca delimitar um
conjunto de problemas inscrito no âmbito da produção da fotografia pública no mundo
contemporâneo e projetar questões para pensar a fotografia em um cenário colonial,
tomando a visualidade como um problema histórico.

Exposições coloniais: o cenário que produziu o retrato de Augusto

A emergência do Estado Novo em Portugal, em 1933, buscou reorganizar


diversas estruturas políticas, econômicas e culturais do país, dentre elas aquelas
relacionadas ao seu mundo colonial. Os primeiros anos do novo regime são marcados
por uma série de eventos com essa temática, assim como um investimento na propaganda
colonial (ROSAS, 1994; VALENTIM, 2000). É neste cenário de mudanças nas políticas
coloniais que foi realizada a I Exposição Colonial Portuguesa de 1934, com a inspiração
da Exposição Colonial Francesa de 1931, pois buscou igualmente enquadrar os

2
A discussão sobre coleções privadas de objetos do colonialismo e a presença de coleções privadas em
instituições públicas faz parte do conjunto de questões que venho desenvolvendo no meu doutorado no
Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal Fluminense.
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portugueses no concerto das nações coloniais que organizavam e produziam esses


certames tão populares.
Entre os anos de 1840 e 1940, foram realizadas na Europa e nos Estados Unidos
diversas exposições coloniais e universais. Elas atuavam como plataformas de divulgação
dos avanços tecnológicos dos países organizadores, vitrines das “benesses do
capitalismo” e também o lugar da demonstração pública do “atraso”, da “barbárie” e da
“selvageria” que viviam alguns povos que habitavam os territórios coloniais. Os eventos
coloniais promoviam um espaço de “zoológico humano”, onde traziam nativos dos
territórios que controlavam colonialmente e os apresentavam como forma de reforçar a
ideia que somente com a presença da metrópole era possível a superação daquela
“situação atrasada” (SILVA, 2012).
Iniciativas que tinham o objetivo de promover uma síntese da modernidade
Ocidental em tons pedagógicos capaz de colocar em evidência as transformações que o
avanço industrial promoveu nos países industrializados e a possibilidade de ampliá-las
nos territórios coloniais. Deste modo, ocorria a promoção, a organização e a mobilização
de toda uma indústria do entretenimento, que, além de recriar lugares que ocupavam o
imaginário social, sejam aqueles coloniais ou nacionais, também proporcionavam espaços
de lazer para as pessoas que consumiam e visitavam as áreas expositivas (SILVA, 2012).
Ao analisar as relações entre a fotografia e as exposições durante o século XIX,
Maria Inez Turazzi (1995) indica como o desenvolvimento da fotografia acompanhou o
processo da celebração dos progressos da humanidade que as exposições universais
queriam imprimir didaticamente. Nesse sentido, a autora afirma que, após a Exposição
Universal de Paris de 1855, houve cada vez mais a presença da fotografia nas exposições
do século XIX, o que apresenta tanto uma importância, quanto um acirramento de
interesses que o dispositivo vinha ganhando ao longo do seu período de expansão. Além
disso, a autora também demonstra que, na Exposição Universal da Filadélfia de 1876, a
Centennial Photographic Company propôs a construção de um espaço dentro do recinto,
onde desenvolvia trabalhos fotográficos (esse pavilhão era composto por uma sala de
recepção, um salão de pose, vestiários, oficinas, laboratórios e uma galeria com os
trabalhos produzidos). Este, inclusive, gerou um bom retorno financeiro para a empresa
devido ao sucesso de público. Deste modo, aos poucos, a fotografia foi também se
tornando um dos souvenires mais populares para o divertimento das pessoas que
visitavam os diferentes certames desse caráter produzidos pelos países.
6 | “O ex libris da graça africana”: uma fotografia no... OLIVEIRA, M. V.

A Exposição Colonial Portuguesa também seguiu essa tendência ao valorizar


também a presença da fotografia em seus espaços. Não apenas como propaganda
governamental, mas também como um suporte informativo, recreativo e científico. Logo,
a fotografia possuía um papel importante também nos objetivos estabelecidos naquele
evento que mobilizou o país e seus territórios coloniais, uma vez que ampliava os arcos
de comunicação e promovia a participação das partes do império através de cenas
fotográficas captadas nos Jardins do Palácio de Cristal da cidade do Porto. A centralidade
da visualidade naquele certame se apresentava em diferentes frentes de atuação, as quais
estavam colaborando para o desenvolvimento de uma “cultura do império”. Esta definida
por Omar Thomaz (2002) como um produto baseado em uma determinada ideologia e
tradição do poder colonial lusitano que buscava traduzir o que o império deveria ser e de
que forma deveria atuar nas suas terras, interferindo tanto na vida dos nativos, quanto
condicionando a mentalidade e as ações do colono português.
Portanto, os usos da imagem fotográfica naquele espaço promoviam sentidos que,
em certa medida, colaboravam com o projeto colonial hegemônico, já que a censura do
regime não deixou de estar ausente, tampouco deixou de isolar representantes que
causassem problemas com a equipe organizadora, como o jornalista Hugo Rocha. 3 As
mensagens visuais expostas pelos meios de comunicação, em muitos casos, buscavam
organizar e educar a população em torno da “lição do colonialismo” defendida pelo
diretor técnico do certame, assim configurava-se um espaço central para a imagem
técnica. Ela seria a responsável por difundir cenas dos territórios recriados na metrópole,
construir concepções e valores em torno da colonização do além-mar e permitir a
produção visual da própria justificativa da empresa colonial dentro de uma ideia de
objetividade que estivesse alinhada aos objetivos governamentais.
Nesse sentido, a visualidade não pode ser compreendida como algo estável e fixo,
mas sim, inserida numa cadeia de relações sociais que compõe as interpretações possíveis
para os suportes visuais dentro dos quadros de consumo e agenciamento, principalmente
quando estes são permeados por censura. Logo, no caso da fotografia, toda uma cadeia
de consumo foi desenvolvida a fim de capilarizar e angariar adeptos na nova política

3
Hugo Rocha realizou críticas à Exposição Colonial que não foram bem aceitas pelo diretor técnico
Henrique Galvão. O jornalista chegou a suspender a publicação do periódico O Comércio do Porto Colonial
por cinco dias como protesto. No entanto, não teve sucesso e dias depois o jornal O Comércio do Porto
trouxe a seguinte nota: “Tendo a Direcção Técnica da I Exposição Colonial imposto uma censura a O
Comércio do Porto-Colonial, além da censura oficial, resolveu a Direcção deste jornal suspender a
publicação dele” (AZEVEDO, 2005, p. 125).
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colonial posta em prática pelo regime salazarista. Principalmente, porque a cena captada
compreendida como algo mecânico e sem interferência humana projetava a imagem
fotográfica dentro de uma sociedade interessada em conhecer outras paisagens, costumes
e pessoas do império colonial.
Deste modo, no plano governamental, temos a organização de um álbum
comemorativo com 101 fotografias da Casa Alvão (estabelecimento comissionado pelo
governo para registrar o evento) como um bom exemplo dessa importância
desempenhada pela fotografia neste evento. Segundo Henrique Galvão (1935, p. 2)
aquela publicação era a “que mais expressivamente manterá a lembrança de um
acontecimento que interessou profundamente todo o País” e configuraria como a
principal guardiã da memória do acontecimento que durante meses mobilizou os
portugueses. Logo, no plano governamental, a organização de uma narrativa visual
serviria para registrar uma percepção daquele evento pautada em sua monumentalização,
assim como assegurava uma percepção controlada do que foi o certame.
Essa característica fica evidente quando observamos as fotografias selecionadas
para o álbum e a produção fotográfica da Casa Alvão da Exposição Colonial. A
“eternização” de uma narrativa visual alinhada ao ideal mítico do novo regime era o
desejo expresso na confecção da publicação oficial e foi mobilizada para selecionar as
cenas fotográficas que deveriam compor a obra. Logo, as imagens fotográficas que não
reforçavam aquela narrativa não foram escolhidas para compor o álbum, mas não
deixaram também de ocupar outros espaços de consumo, como os periódicos e souvenires
do certame.
A fotografia também desempenhava várias funções neste cenário e desencadeou
outras produções, já que o governo não era o único polo produtor de imagens
fotográficas naquele cenário. Havia propagandas da Kodak incentivando as pessoas a
levarem suas máquinas ao certame para guardar os momentos daquela experiência
(VICENTE, 2014). É possível encontrar também um concurso de fotografia com
diferentes temáticas e seis categorias de premiação (“Paisagem”, “Etnografia” – dividida
em duas –, “Caça”, “Aspectos Econômicos”, “Diversos” e “Assuntos da Exposição”), do
qual participaram fotógrafos e amadores (ULTRAMAR, 1934). Sem contar a produção
fotográfica e antropológica do Instituto de Antropologia da Universidade do Porto, sob
a orientação do antropólogo português António Mendes Corrêa. Essa produção
fotográfica do evento ainda era composta pelas reportagens da imprensa, a confecção de
8 | “O ex libris da graça africana”: uma fotografia no... OLIVEIRA, M. V.

postais e a elaboração de souvenires que eram consumidos durante os meses de execução


da Exposição Colonial Portuguesa pelos frequentadores.
Logo, podemos apontar que, neste cenário, a fotografia se apresentava como um
elemento fundamental para compor os discursos coloniais e as justificativas mobilizadas
para explicar as razões da intervenção colonial naquele além-mar em diferentes espaços
do circuito social da imagem fotográfica, pois sua capacidade técnica era investida de
uma veracidade a fim de estruturar os sentidos atribuídos à empresa colonial e definir as
hierarquias civilizacionais, geografias morais, tipologias humanas e ações
governamentais em prol da civilização Ocidental. Nesse sentido, o conhecimento de
outras terras e pessoas passaria também pela fotografia e sua capacidade de promover o
desenvolvimento de uma imaginação geográfica, tal como apontada por Joan Schwartz
e James Ryan (2006).
Para Schwartz e Ryan (2006, p. 1-18), a fotografia é constituinte de uma forma
de pensamento que impacta na pessoa um meio de se conhecer no mundo e se situar em
um espaço e em um tempo determinados. Ela seria responsável por articular o espaço, o
lugar, a paisagem e conferir significado para os indivíduos que a interpretam. Conferindo
experiências, nomeações e sensações para pessoas que não necessariamente estiveram no
local. Em outras palavras, a experiência fotográfica seria uma das práticas contribuintes
para o desenvolvimento nos indivíduos de uma imaginação geográfica, que seria, em
essência, uma série de práticas e processos pelos quais a informação dessa ordem seria
recolhida, seus fatos ordenados e as geografias imaginativas construídas.
Os autores ainda destacam que as fotografias não são apenas registros visuais
com significados estanques e permanentes, mas sim, suportes de fatos visuais investidos
de valores e significados adquiridos em um determinado circuito social que marca a vida
social daquele objeto. Logo, a fotografia não se resumiria em simplesmente ser observada
por alguém, mas sim, a ser lida, decifrada e aberta a inúmeras interpretações, já que a
polissemia da fotografia também se estabelece através de uma prática socialmente
construída, culturalmente constituída e historicamente situada (SCHWARTZ; RYAN,
2006, p 1-18).
Portanto, as visualidades produzidas por uma imagem fotográfica são situadas
no tempo e no espaço dentro de um quadro de relações sociais. O ato de interpretar, criar
significados e contestá-los através de imagens visuais não é estável, tampouco
monolítico. Ele está inserido em um conjunto de elementos que mobilizam e conduzem
a sua efetivação. Essa característica permite compreender as ações humanas no
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investimento de sentido de uma fotografia, colocando-a não como um documento estável


e fixo, mas sim incorporado em uma rede de conexões e tensões capaz de dimensionar a
sua centralidade dentro da experiência contemporânea.
Em contexto colonial, James Ryan (2014, p. 31-42) também destaca questões que
estão condicionando a produção fotográfica, como os interesses de quem as produzia e
as via, já que em sua maioria essas fotografias eram produzidas por, e para, europeus e
americanos. Assim, a imagem fotográfica configurada como um fator de instauração de
uma experiência colonial assentava em, ao menos, três dimensões: 1) Durante os
procedimentos de produção da imagem fotográfica; 2) No momento de formulação e
organização em determinado dispositivo que permite a sua circulação e consumo para
um público específico; e 3) Na ocasião das leituras levantadas pelo suporte fotográfico,
pois este pode dar força a um projeto colonial, como também ser o fator de sua crítica
(RAMOS, 2014, p. 399-434).
Nesse sentido, a fotografia (compartilhando um repertório próximo aos
protocolos do retrato fotográfico)4 inseria-se na cultura visual dos desenhos, pinturas,
literaturas, esculturas e monumentos que figuravam o Império Colonial Português, para
criar esse “outro” visível e apreensível dentro de uma visualidade colonial que ampliava,
formava e difundia as noções de cidadania do império e configurava moralmente os
territórios que o constituía. Associada à noção de imaginação geográfica estava a de
geografia moral, na qual os colonizadores, ou potenciais colonizadores, atribuíam valores
e características aos “outros”, dentro de uma lógica própria. Logo, um mundo imaginado
e experimentado a partir de um suporte visual técnico que se apresentava enquanto a
comprovação da realidade alterou completamente as concepções de espaço-tempo e a
própria inserção do ser humano no mundo social ao produzir uma experiência fotográfica
no indivíduo moderno, validada no realismo fotográfico historicamente determinado no
contexto de seu consumo.
A apresentação dessas questões permite criar um panorama geral acerca dos usos
e funções das fotografias numa exposição colonial, a qual será importante para
pensarmos os valores presentes na imagem que abriu este artigo. A fotografia de
Augusto foi acionada em diferentes suportes em 1934, como veremos a seguir. A
compreensão dos usos e funções da fotografia naquele ano da exposição colonial permite

4
A recriação dos espaços coloniais e a organização fotográfica desses cenários estão em diálogo com
uma tradição dos estúdios fotográficos do final do século XIX, na qual as pessoas tiravam retratos dentro
de cenários “exóticos” e “selvagens” de forma a promover a ideia de presença naquele ambiente.
10 | “O ex libris da graça africana”: uma fotografia no... OLIVEIRA, M. V.

avaliar alguns sentidos que promoveram a integração desse objeto do passado numa
coleção de artefatos do período colonial e estabelecem também como as fotografias foram
fundamentais no projeto colonial dentro de diferentes frentes de ações.

Entre o jornal e o postal: Itinerários do retrato de Augusto

Figura 2: Recorte de notícia.


Fonte: Jornal O comércio do Porto de 25 de maio de 1934, p. 1.

A imagem em tela é um recorte de notícia do jornal O Comércio do Porto sobre


um dos espaços expositivos da Exposição Colonial Portuguesa, mais precisamente
aquele dedicado aos grupos nativos da Guiné portuguesa. A matéria está na primeira
página da edição de 25 de maio de 1934, dias depois da chegada dos 63 guineenses que
habitariam os ambientes do certame na cidade portuguesa. Esse pequeno recorte
apresenta uma imagem fotográfica, a qual não tem outros elementos fotográficos para
compor a primeira página junto dela. Logo, já podemos identificar a importância
concedida a esta neste jornal que atuou com diversas matérias sobre o evento público e
criou, inclusive, uma edição especial, com distribuição gratuita, para apresentar somente
notícias relacionadas ao evento: O comércio do Porto – colonial (AZEVEDO, 2005).
Esta foi a primeira publicação do retrato de Augusto que deu origem ao postal
fotográfico apresentado anteriormente na figura 1. Portanto, já podemos identificar
como os circuitos sociais das imagens fotográficas não estavam isolados e havia uma
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922001, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 11

intensa conexão e intercâmbio de fotografias que permitiam ampliar os arcos de


comunicação visual e estabelecer outras visualidades dentro da cultura visual
historicamente definida. Mas voltemos à figura 2 para pensarmos o contexto histórico
que produziu e agenciou essa imagem visual dentro dos objetivos da propaganda
colonial.
A pequena reportagem do dia 25 de maio de 1934 apresentou ao público
português a “Ilha da Guiné” que tinha sido criada no Palácio de Cristal, onde “todas as
tardes ouviam-se os batuques que entretinham os negros e as negras”, assim como a
“verdadeira vida do sertão guineense ocorria” em plena cidade do Porto. Essa curta nota
jornalística foi acompanhada por uma única fotografia: uma criança levada para ser
exposta. Essa imagem fotográfica tinha a seguinte legenda: “trincando a ponta do dedito,
‘o pretinho da Guiné’ olha, sem medo a objectiva de O Comércio do Porto...”. Ainda
dentro dessa pequena matéria havia um parágrafo que descrevia e falava desse “pretinho
da Guiné”, que fora nomeado depois como Augusto.

O meúdo, que é o encanto da sua aldeia e que está sendo amimado por quantos,
por ali, o vêm saltitar, representa, na verdade, o ex libris da graça africana,
tanto os seus olhos grandes e expressivos e o seu sorriso sádio dão uma nítida
ideia da vida simples e feliz e livre do sertão da Guiné, pletónico de verdura e
batido do Sol... (O COMÉRCIO DO PORTO, 23 de maio de 1934).

O fragmento acima investe a imagem fotográfica de diversos valores de acordo


com os anseios da política colonial posta em prática pelo regime salazarista. A criança e
suas características observáveis eram apresentadas como uma “mascote” com “hábitos
animalescos” (e não como uma ação normal da infância) a tornava um ser próximo aos
animais das savanas africanas. Característica que demarcava sua condição inferior dentro
da estrutura racial vigente. Além disso, esses elementos eram mobilizados para
demonstrar tanto como o continente africano era um lugar prazeroso para os colonos
brancos, como também para amenizar a violência e a dureza da colonização.
O último objetivo estava centrado na associação de Augusto a uma ideia geral ao
continente africano construída através da expressão “ex-libris da graça africana”. Ele
funcionaria como uma representação simbólica desse lugar no imaginário colonial do
regime, capaz de reunir visualmente um objetivo governamental relacionado à
colonização e potencialização da ocupação dos portugueses nos territórios coloniais pelos
portugueses. Como destaca Castro Henriques (1998, p. 216-274), um dos projetos
políticos em voga nesse período era tornar os territórios coloniais mais brancos,
12 | “O ex libris da graça africana”: uma fotografia no... OLIVEIRA, M. V.

expulsando os africanos das cidades e das suas terras a partir do colonato, além de
conceder aos colonos um controle sobre o trabalho dos nativos.
Portanto, as descrições da criança e do território colonial colocavam em evidência
tanto essa possibilidade de imigração para o império de modo a amenizar os estereótipos
que classificavam as colônias africanas como um lugar de degredo, quanto apresentava
justamente essa geografia moral que atribuía valores, costumes e características aos
outros integrantes do espaço colonial. Esse “outro” estava inserido dentro de
determinada escala civilizatória e etária, as quais poderiam ser observadas por qualquer
visitante do certame, ou mesmo por aqueles que consumiam seus produtos visuais. A
imagem fotográfica era usada como prova de veracidade dentro da construção do
argumento colonial que justificava o empreendimento colonizador. No caso de Augusto,
esses elementos eram apresentados pelos periódicos, públicos visitantes ou pelos
potenciais públicos que consumissem essa imagem nos diferentes suportes de circulação.
Deste modo, as leituras e interpretações da fotografia constroem outras imagens
e constituem a própria cultura visual da sociedade em questão, ao dialogarem com um
conjunto de imagens visuais que são incorporadas ao longo da nossa vida (MITCHELL,
2005, p. 336-356). Logo, se a fotografia é entendida enquanto prática e experiência, o seu
impacto no receptor provoca também essa capacidade imaginativa que cria, forma e
elabora leituras do mundo social a partir desse suporte visual que possui diferentes usos
e funções na sociedade. Portanto, a tríade formada por emissor, receptor e mensagem
possui diferentes espaços de reflexão e construção da fotografia, já que seu significado e
valor se constroem ao longo do tempo (BERGER, 2013, p. 317-320).
Nesse sentido, como Homi Bhabha (1998) argumenta, o discurso do colonialismo
estava estruturado em uma ambivalência do conhecimento e do poder. Segundo o autor,
há uma fixidez na instituição de características ao outro, na qual a imposição de signos
de diferença cultural/histórica/racial estaria calcada em uma rigidez e ordem imutável,
assim como desordem, degeneração e repetição demoníaca. Essa construção de
estereótipo é vista pelo pesquisador como uma estratégia discursiva apresentada na
forma de conhecimento e identificação que atua nas brechas daquilo que está sempre “no
lugar” (já conhecido) e aquilo que ansiosamente precisa ser repetido para ganhar
veracidade. Afinal, a duplicidade essencial do discurso colonial está na produção e
reprodução dessa ideia enquanto uma verdade indubitável.
Deste modo, para Bhabha (1998), haveria a articulação das diferenças (raciais e
sexuais) na construção do sujeito colonial no discurso, assim como no exercício do poder
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922001, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 13

colonial através desse discurso. Nesse sentido, o corpo estaria (mesmo que de modo
conflituoso) tanto inscrito em uma economia do prazer e do desejo, quanto em uma dada
economia do discurso, da dominação e do poder. Portanto, a palavra teria a função de
negar uma identidade “original” ou uma “singularidade” dentro dos objetos da diferença
– sexual ou racial –, na qual ocorreria a construção de um espaço para “povos sujeitos”
através da produção de conhecimentos em torno dos quais se exerce a vigilância e se
estimula uma forma complexa de prazer/desprazer. Logo, ocorreria a produção de
conhecimento do colonizador e do colonizado estereotipado. Sendo esse último associado
a uma população de tipos degenerados com base na origem racial de modo a justificar a
conquista e estabelecer sistemas de administração e instrução. Assim, o discurso colonial
produz o colonizado como uma realidade social que é ao mesmo tempo um "outro" e
ainda assim inteiramente apreensível e visível.
Assim, se o jornal já apresentava certa interpretação dessa imagem fotográfica e
da própria pessoa fotografada, a sua transformação em um cartão postal (como observado
na figura 1) a colocava em contato com outras formas de experiência fotográfica e
ampliava o itinerário social dessa atribuição de características. Nesta situação, o “ex-
libris da graça africana” do jornal também era acionado como representação simbólica
de um lugar, mas em outro circuito fotográfico, mais precisamente aquele dos postais
fotográficos e suas mensagens afetivas que atribuíam significados distintos para as
fotografias. O retrato de Augusto era agenciado por outros valores dentro da cultura
visual e promovia outra experiência visual dentro daquela sociedade, já que deslocava o
endereçamento da imagem fotográfica do jornal para o postal, assim como a
materialidade da fotografia (a forma de ter contato e ser afetado por esta).
Os postais fotográficos foram um marco dentro da experiência fotográfica do
mundo contemporâneo, pois eles apresentavam cenas, pessoas e acontecimentos de
diferentes lugares que o emissor queria deslocar e enviar para outro lugar, junto com
sua mensagem de afeto e saudade. Este suporte atrelava afeto, mensagem e experiências
visuais que demarcavam uma forma diferenciada de acessar o mundo social e aproximar
pessoas distantes. Sua atribuição enquanto um suporte histórico permite compreender
os outros sentidos atribuídos à imagem fotográfica em contexto colonial e os usos e
funções agregados à fotografia durante a sua vida social por sujeitos históricos do
próprio período.
Logo, tendo em vista o objetivo da “lição do colonialismo” do evento de 1934 e
sua cadeia produtiva, os cartões postais referentes à Exposição Colonial eram produzidos
14 | “O ex libris da graça africana”: uma fotografia no... OLIVEIRA, M. V.

e consumidos durante o próprio evento de forma a ampliar e difundir essa propaganda


colonial em formas auxiliares a governamental e a jornalística. Basta observar que um
dos muitos bilhetes postais dessa fotografia (Figura 1) foi enviado no dia 7 de julho de
1934 do Porto para Lisboa (sendo que a fotografia tinha sido publicada pela primeira vez
no jornal no final de maio) com dizeres sobre a exposição e os comentários sobre
Augusto.

Porto, 7 de julho de 1934.

Querida irmã,

O Jaime deve ter recebido um postal meu de Leiria. Fui ver a Exposição
na 5ª feira de dia, está interessante e bonita. Envio este postal como
recordação da Exposição. Este pretinho Augusto é muito falado.
Abraça por mim o Jaime, mamãe, Otília [?] recordações a tua [?]
sogra. À mamãe já enviei um postal ilustrado, um telegrama e uma
carta.
Abraça-te, teu irmão [?] que te deseja as maiores felicidades.

À D. Gabriela da Costa Cabral Brandão.

Da mesma forma que a fotografia de Augusto foi selecionada para ilustrar a “vida
na Ilha da Guiné” pelo jornal, o emissor escolheu a imagem fotográfica de Augusto para
sintetizar sua experiência na Exposição e guardar aquele momento junto a sua irmã, pois
a criança era muito falada por aqueles que visitavam o certame e provavelmente a sua
irmã poderia ter ouvido falar sobre o “miúdo encanto da aldeia”. Assim se reunia afeto e
imagens típicas de lugares através de postais fotográficos a fim de proporcionar uma
experiência fotográfica que corroborava na identificação de lugares e eventos a partir de
algumas cenas específicas e extremamente controladas. Vale atentar-se para o fato que
as imagens fotográficas produzidas e publicadas por periódicos também passavam pela
censura do regime salazarista. Logo, seu deslocamento para um postal fotográfico não
apagava esta característica do documento fotográfico presente na sua produção,
tampouco o peso da representação.
Portanto, esses suportes não apenas mandavam notícias para outros lugares, mas
também ampliavam a divulgação das fotografias que passavam também a levar novos
significados com as mensagens afetivas presentes em seu verso. Além disso, elas também
promoviam a formação do espaço público visual compartilhado e experimentado
fotograficamente, pois ao observar o postal, o leitor promovia a sua identificação e
incorporação em uma categoria geográfica específica, como forma de situar no espaço de
onde aquela imagem fotográfica foi produzida. No entanto, como mencionado na
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922001, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 15

introdução, esta imagem fotográfica não deixa de possuir uma vida social na atualidade,
o que continua a nos promover questões para pensar a situação dessas imagens visuais
nos cenários pós-coloniais.

Considerações finais

A imagem de Augusto em um cartão postal se apresenta hoje dentro de outros


quadros de valores e percepções que não apenas aqueles presentes em 1934 e propõe a
construção de outros sentidos a partir do evento visual na atualidade. A sua presença em
duas coleções privadas (a coleção de Filipa Lowndes Vicente e a coleção de Hélder
Pacheco) nos convocam a inúmeras questões referentes à sua permanência no circuito
social e os sentidos atribuídos pelos colecionadores dentro dessa prática de colecionar
objetos do colonialismo. Esse circuito de colecionismo é intenso e marcado por feiras de
livres comércios, leilões na internet, alfarrabistas e fundos distintos presentes em
instituições públicas portuguesas (a coleção de Hélder Pacheco pertence ao Arquivo
Municipal do Porto, por exemplo) que apontam para a vida social das imagens visuais
na contemporaneidade.
Os sentidos e objetivos presentes na construção dessas coleções de objetos do
colonialismo, assim como sua deposição em um arquivo público, precisam ser
aprofundados num estudo histórico, pois também estão relacionados às discussões sobre
esse passado colonial na sociedade e os usos de objetos do passado.5 Mas já podemos
indicar que as imagens visuais ao longo de sua história nos convocam para diferentes
percepções e valores assumidos por elas dentro da cultura visual historicamente
determinada. Esse trânsito nos coloca questões em torno das diferentes problemáticas
assumidas pela visualidade na experiência contemporânea e reforça a necessidade de
pensá-la como um problema histórico. Mas também de circunscrever essa experiência
dentro dos quadros sociais que a investem de sentido, já que o seu circuito social não se
restringe a um espaço-tempo delimitado.
Pensar as imagens fotográficas em contexto colonial é colocar nos horizontes
essas questões que permitem compreender as imagens visuais dentro de um quadro
governamental, mas também fora dele. O colonialismo foi diverso, enquanto experiência
histórica, e assumiu diferentes estruturas sociais nos diferentes contextos coloniais.

5
As relações estabelecidas com o passado colonial e a constituição de coleções de seus objetos também
compõem o quadro de problemáticas que venho desenvolvendo no meu doutorado em História na
Universidade Federal Fluminense.
16 | “O ex libris da graça africana”: uma fotografia no... OLIVEIRA, M. V.

Logo, as suas visualidades também não deixaram de ter ligações com essas diferenças,
tampouco podem ser entendidas sem levar em consideração as relações sociais que as
construíram. Assim, a fotografia em contexto colonial nos convoca a refletir sobre uma
experiência histórica que marcou sociedades, as quais ainda guardam e consomem suas
cenas dentro de uma economia visual (TAGG, 1988) que vale dizer muito pouco
aprofundada pela historiografia.

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“THE EX LIBRIS OF AFRICAN GRACE”: A PHOTOGRAPH IN THE PORTUGUESE COLONIAL


CONTEXT

Abstract: This article seeks to think about the trajectory of a visual image within a set that integrates the
problems of photographic images in a contemporary colonial context. For this, it travels through the
meanings attributed to a photograph produced in the first Portuguese Colonial Exhibition of the child
named of Augusto. Its social circuit was intense and marked by different consumption spaces, persisting
today in the circuit of collectors of colonial objects. Therefore, the itinerary presented allows to outline
some uses and functions performed by the technical image in the Portuguese colonial context and to
address some important issues for the development of historical studies with photography in
contemporary colonialism.

.Keywords: Photography. Colonialism. Social circuit. Visuality.


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"EL EX LIBRIS DE LA GRACIA AFRICANA": UNA FOTOGRAFÍA EN EL CONTEXTO COLONIAL


PORTUGUÉS

Resumen: El artículo busca pensar en la trayectoria de una imagen visual dentro de un conjunto que
integra los problemas de las imágenes fotográficas en un contexto colonial contemporáneo. Para esto,
repasa los significados atribuidos a una fotografía producida en la Primer Exposición Colonial portuguesa
de un niño llamado después de Augusto. Su circuito social fue intenso y marcado por diferentes espacios
de consumo, persistiendo hoy en el circuito de coleccionistas de objetos coloniales. Por lo tanto, el
itinerario presentado permite delinear algunos usos y funciones realizadas por la imagen técnica en el
contexto colonial portugués y abordar algunos temas importantes para el desarrollo de estudios históricos
con fotografía en el colonialismo contemporáneo.

Palabras llave: Fotografía. Colonialismo. Circuito social. Visualidad.


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Referências

Fontes

GALVÃO, Henrique. O que será a Primeira Exposição Colonial Portuguesa. In:


Regulamento Geral da Primeira Exposição Colonial Portuguesa. Porto, 1933. p. 7
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922001, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 17

GALVÃO, Henrique. Dedicatória do álbum comemorativo da I Exposição Colonial


Portuguesa. Porto: Litografia Nacional, 1935. p. 2.

O COMÉRCIO DO PORTO, 25 de maio de 1934.

ULTRAMAR: ÓRGÃO OFICIAL DA I EXPOSIÇÃO COLONIAL, nº 16, 15 de


setembro de 1934.

Bibliografia

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Porto: Afrontamento, 2000.

APPADURAI, Arjum. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma Perspectiva
Cultural. Niterói: Eduff, 2009.

AZEVEDO, Ercílio. Porto 1934: A Grande Exposição. Porto: Edições do autor, 2005.

BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora da UFMG, 1998.

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SOBRE O AUTOR

Marcus Vinicius de Oliveira é mestre em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF).
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Recebido em 06/05/2020

Aceito em 17/06/2020
Produção, usos e apropriações de uma imagem: o
processo de iconização da fotografia da mulher
de turbante, de Alberto Henschel

Aline Montenegro Magalhães


Museu Histórico Nacional
Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
alinemontenegro@gmail.com

Maria do Carmo Teixeira Rainho


Arquivo Nacional
Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
mctrainho@gmail.com

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Resumo: O artigo tem por objeto o retrato de uma mulher negra portando um turbante, registrado por
Alberto Henschel, por volta de 1870, no Rio de Janeiro. Dentre as muitas imagens de “tipos de negros”
produzidos pelo fotógrafo alemão, ela é, certamente, uma das mais conhecidas e a que tem sofrido mais
apropriações na última década. Nosso objetivo, com a análise da produção, circulação e consumo desta
fotografia, é examinar a relação entre o seu uso maciço e a invisibilidade ou a subalternidade imposta a
negros e negras pelo racismo estrutural. Em especial, problematizamos a identificação anacrônica da
mulher retratada com Luísa Mahin, mãe de Luís Gama, que teria sido uma das lideranças da Revolta dos
malês, na Bahia, em 1835. A produção de sentidos que esta fotografia engendra, os efeitos que produz em
seus usos e deslocamentos, seu potencial de iconização, bem como sua agência, são algumas questões que
buscamos discutir, apostando, na trilha de Ana Mauad, na necessidade de tomar a imagem como agente
da história, não simplesmente como fonte de informação sobre o passado ou tema de um estudo histórico.
Palavras-Chave: Mulher negra. Alberto Henschel. Fotografia, século XIX. Cultura visual.
_____________________________________________________________________________________

Introdução

Num mundo em que as imagens se reproduzem e circulam tão amplamente nos


meios digitais, o que explica que algumas delas se sobressaiam, se tornem recorrentes e,
mais do que isso, sejam consumidas e apropriadas de formas diversas por diferentes
sujeitos e mídias? Por que estas imagens e não outras? O que faz com que elas ganhem
uma espécie de vida própria? Estas foram algumas das perguntas que nos fizemos ao
analisarmos a fotografia de uma mulher negra portando um turbante, produzida há 150
anos pelo fotógrafo alemão Alberto Henschel (Figura 1). A estas perguntas,
2 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.

acrescentamos outra: por que a mulher retratada é identificada anacronicamente como


Luísa Mahin1, uma das lideranças da Revolta dos malês, em 1835?

Figura 1: Mulher negra escravizada de turbante, Alberto Henschel. 1870 circa, 9,2 x 5,7.
Fonte: Brasil/Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro, RJ. Disponível em:
http://brasilianafotografica.bn.br/brasiliana/handle/20.500.12156.1/6847

A fotografia, que pertence à coleção Gilberto Ferrez, adquirida pelo Instituto


Moreira Salles2 em 1998, teve a sua divulgação ampliada, assim como muitos outros
registros de homens e mulheres, negros e negras, produzidos no século XIX, graças a

1
As principais informações que se tem de Luísa Mahin foram escritas por Luís Gama, que registrava ser
seu filho, em carta ao jornalista Lúcio de Mendonça, datada de 25 de julho de 1880. Não se sabe ao certo
se ela nasceu no continente africano, conforme consta na referida carta escrita pelo abolicionista, ou se
teria nascido em Salvador. Há relatos de que, liberta, trabalhou como quituteira e participou de levantes
de escravizados como a Revolta dos malês (1835) e a Sabinada (1837-38), embora sua participação não
tenha sido comprovada pela pesquisa documental sobre os levantes e nem reconhecida pela
historiografia contemporânea. Foi em romances históricos que a personagem ganhou maior
notabilidade como na obra de Pedro Calmon “Malês, a insurreição das senzalas”, de 1933 e, mais
recentemente, no livro de Ana Maria Gonçalves “Um defeito de cor”, de 2006. (BRAZIL e SCHUMAHER,
2000)
2
A fotografia pode ser encontrada também no Ethnologisches Museum, em Berlim, e na Fundação
Joaquim Nabuco (BARBOSA e COUCEIRO, 2018, p. 99-100).
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922002, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 3

três produtos culturais: o Dicionário Histórico-Fotográfico Brasileiro, de Boris Kossoy,


publicado em 2002; a obra O negro na fotografia brasileira no século XIX, organizada
por George Ermakoff, lançada em 2004; e, a exposição Emancipação, inclusão e exclusão.
Desafios do passado e do presente – Fotografias do acervo Instituto Moreira Salles, com
curadoria de Lilia Schwarcz, Maria Helena Machado e Sergio Burgi, inaugurada em
2013, no Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP, em São Paulo.
No Dicionário de Kossoy a fotografia da mulher negra de turbante é creditada da
seguinte forma: “Retrato de jovem (escrava?) não identificada. Rio de Janeiro, c. 1870.
Albúmen, carte de visite. Col. IMS”. A imagem, acompanhada da fotografia de um
homem negro (escravo?), não identificado; do retrato de uma jovem branca, da chamada
boa sociedade, também não identificada; e, de uma vista da Praça da Vila, de Nova
Friburgo, ilustram o verbete dedicado a Alberto Henschel. Ressalte-se que, das quatro
imagens selecionadas, duas são de “tipos de negros”, evidenciando a escolha do autor por
enfatizar essa modalidade de retratos produzida pelo fotógrafo alemão. De todo modo,
no texto essa questão é apenas mencionada, já quase ao final do verbete, quando Kossoy
comenta a pesquisa de Pedro Vasquez sobre as cartes de visite de homens e mulheres de
origem africana, registradas por Henschel, que se encontram em instituições da
Alemanha.
No livro de Ermakoff (2004), a imagem da mulher negra é creditada como
“ALBERTO HENSCHEL. Negra com turbante, c. 1870. Coleção Gilberto
Ferrez/Acervo Instituto Moreira Salles”. A obra propõe-se a apresentar o cotidiano dos
escravizados no Brasil imperial por intermédio das fotografias, visando a “montar um
panorama de época, cuja leitura, a despeito da pouca documentação e da dispersão do
material fotográfico disponível, contribua para a interpretação de como os negros
viveram nos cerca de cinquenta anos posteriores à chegada da fotografia no Brasil”
(ERMAKOFF, 2004, p. 10). Embora tenha realizado um extenso levantamento em
instituições públicas e coleções particulares, nacionais e internacionais, que culminou
com a publicação de 340 fotografias, muitas delas raras, o trabalho se ressente de uma
superficialidade no tratamento das questões, tanto as que se referem especificamente
sobre a escravidão quanto as atinentes à própria produção das imagens.
Em 2013, o retrato da mulher negra de turbante é apresentado pela instituição
que o detém, na exposição Emancipação, inclusão e exclusão. Desafios do passado e do
4 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.

presente – Fotografias do acervo Instituto Moreira Salles3, com 74 registros de negros


livres, escravizados ou libertos no Brasil, em um período em que vários fotógrafos
estrangeiros atuavam no país com trabalhos de forte elaboração estética e formal.
Conforme observam os curadores,

o registro fotográfico feito sobre negros – livres, escravizados ou libertos –


no Brasil é pautado por duas especificidades. De um lado a fotografia entrou
cedo no país, contando, já nos finais dos anos 1860, com clientela certa, que
dentre outros incluía o imperador d. Pedro II; ele próprio um imperador
fotógrafo. De outro lado a escravidão tardou demais a acabar, guardando ao
Brasil a triste marca de ser o último país do Ocidente a admitir tal tipo de
sistema. Dessa confluência, em certo sentido perversa, resultou um registro
amplo e variado desse sistema de trabalho e de seus trabalhadores
escravizados. Por vezes tomadas ao acaso, por vezes figurando como modelos
exóticos ou tipos para a análise da ciência; ora como parte do cenário, ora como
figuras principais, escravizados foram flagrados nas mais diversas situações
(SCHWARCZ; MACHADO; BURGI, 2013).

Essas situações, por mais variadas que fossem, assim como eram variados os tipos
de fotografias que lhes davam a ver – cartes de visites, paisagens, registros do trabalho
nas fazendas de café – tinham algo em comum: a representação naturalizada da
escravidão, questão que norteou a proposta curatorial.
A nosso juízo, a partir desses produtos culturais e graças ao alcance que
obtiveram, a imagem da mulher negra de turbante chegou a outros espaços – físicos e
virtuais – ganhando vida e, porque não dizer, autonomia. Por conta dos seus atributos
formais e da relevância dos seus aspectos estéticos se vocacionou para um processo de
iconização. Impregnada de sentidos, pôs-se à disposição daqueles que nela depositam
expectativas e desejos. Revela-se também como um somatório de diversas historicidades:
contém o tempo da sua produção mesma, por Henschel; o tempo ao qual se atribui ter
vivido a retratada; os dias de hoje, com os quais a imagem dialoga, quando seus usuários
tentam responder a angústias e pautas associadas ao racismo ou ao feminismo negro,
dentre outras. Neste sentido, e conforme Ana Mauad (2008, p. 21), ao tomar a fotografia
como fonte, ressaltamos a importância de discutir seu estatuto epistemológico,
entendendo que “toda fonte é também objeto de estudo na problematização do passado,

3
Na mostra, a imagem é creditada como “Escrava de turbante, c. 1867. Brasil. Fotografia de Alberto
Henschel/Coleção Gilberto Ferrez/Acervo IMS”. Aliás, chamou a nossa atenção as formas com que a
mulher é identificada nos créditos desses produtos culturais. Escrava como afirmação, escrava como
hipótese ou negra. Encontramos com recorrência a escravidão suplantar outras formas de identificação
da mulher negra nas instituições de guarda e preservação de acervo, seja fotográfico, pictórico ou
tridimensional. É como se o fato de ser negra, já indicasse a escravidão como única possibilidade de
condição social, negligenciando-se outras como as de negras forras e negras nascidas livres, por
exemplo.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922002, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 5

definindo-se também pelo problema proposto para a análise”. À maneira das foto-ícones4,
a imagem da mulher negra de turbante nos fala, ainda, da produção de sentido pelas
fotografias ou de como construímos o mundo visualmente em diferentes momentos da
história humana (MAUAD, 2016, p. 34).
Antes de traçar a biografia da imagem, examinando sua produção, trajetórias,
apropriações e agenciamento, é importante, inscrever nossas escolhas do ponto de vista
metodológico, visando contribuir para o estudo das imagens únicas. Para Ana Mauad
(2008, p. 24), “a análise de uma única foto deve partir dos indícios, dos rastros temporais
deixados dentro do quadro, resultantes do ato fotográfico e partir para o fora de quadro
rumo ao mundo no qual essa imagem se insere como narrativa sintética”. Ulpiano
Bezerra de Meneses, por sua vez, chama a atenção para os cuidados no uso de uma
imagem singularizada. Embora defenda o estudo de séries fotográficas para se chegar a
um resultado mais sólido, observa que as séries não devem constituir objetos de
investigação em si, mas “vetores para a investigação de aspectos relevantes na
organização, no funcionamento e na transformação de uma sociedade”. Sejam imagens
únicas ou séries, “deve-se formular problemas históricos para serem encaminhados e
resolvidos por intermédio de fontes visuais” (MENESES, 2002, p.150).
Seguimos, assim, a trilha aberta por Meneses (2002) em sua análise da fotografia
de Robert Capa que registra o momento da morte do miliciano Federico Borrell García
pelas forças franquistas em 1936. Alinhamo-nos também às propostas de Solange Ferraz
de Lima e Vânia Carneiro de Carvalho (2018), no estudo sobre o circuito e o potencial
icônico da fotografia do corpo do menino sírio Aylan Kurdi realizada por Nilüfer Demir,
em 2015, embora as imagens estudadas por elas, assim como a de Capa, objeto do
trabalho de Meneses, tenham sido geradas por fotógrafos vinculados à imprensa,
gozando de ampla e imediata publicização. Mas, do mesmo modo que estas imagens, a
fotografia da mulher negra de turbante, no nosso entendimento, também é dotada de
uma potência formal que a vocaciona para a iconização, suscitando debates que, quase

4
Conforme examina Mauad, “em âmbito internacional, Hariman e Lucaites por meio da publicação do
livro No Caption Needed (2007) contribuíram para a consolidação da noção de foto-ícone na análise das
imagens emblemáticas do fotojornalismo do século XX. Para a dupla de autores, os foto-ícones são
importantes artefatos da cultura pública por mobilizarem ao seu redor diferentes posições políticas e
aglutinarem expectativas em torno de determinadas situações ou eventos históricos. Definem foto-
ícones como imagens que circulam na imprensa, em mídias eletrônica e digital que são amplamente
reconhecidas e lembradas; são compreendidas por representarem eventos historicamente significativos,
por ativarem respostas ou identificação fortemente emocionais, e são reproduzidas por meio de um
conjunto variado de veículos” (MAUAD, 2018, p. 264).
6 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.

150 anos após a sua produção, vão muito além do referente ou da temática a que está
vinculada.

A fotografia e seu produtor: trajetórias das imagens de Alberto Henschel

Nascido em Berlim, em 1827, judeu, descendente de uma família de gravadores,


Alberto Henschel era já um fotógrafo experiente na altura em que chegou a Pernambuco,
em maio de 1866. Um dos primeiros e mais relevantes empresários do ramo da fotografia
no país no século XIX, Henschel manteve estabelecimentos nas cidades de Recife,
Salvador, Rio de Janeiro e São Paulo, a partir de 1866 até 1892, ano de sua morte.
Destacava-se pela qualidade dos estúdios, pelo domínio dos recursos e das técnicas
fotográficas e pela introdução no país de processos recém-lançados no mercado
internacional. (HEYNEMANN, 2018; HEYNEMANN e RAINHO, 2005; KOSSOY,
2002; VASQUEZ, 2000; WANDERLEY, 2015)
Henschel, assim como outros fotógrafos atuantes na Corte na segunda metade do
século XIX, foi fundamental à construção da autoimagem da chamada boa sociedade, em
particular, da família imperial. A ampla produção de retratos das elites brasileiras
combinada à sua circulação e trocas – para a qual contribuíram, naturalmente, as cartes
de visite – e a prática mesmo do colecionismo, evidenciada nos álbuns de família, são
elementos constitutivos da experiência fotográfica no oitocentos, mas, sobretudo, da
auto representação e da sociabilidade dessas camadas. Embora registrasse paisagens,
vistas – do centro do Rio de Janeiro, do Jardim Botânico, Itatiaia, Nova Friburgo, dentre
outras – e retratos ao ar livre, conforme observa Cláudia Heynemann (2018, p. 257), “foi
com as tomadas de estúdio que Henschel efetivamente se destacou”.
Analisando-se os acervos públicos e privados, nacionais e estrangeiros, que
conservam retratos produzidos por Henschel, destacam-se, no Brasil, aqueles
custodiados por instituições como a Fundação Joaquim Nabuco, a Biblioteca Nacional, o
Instituto Moreira Salles, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, o Museu
Histórico Nacional, o Arquivo Nacional. O Museu Imperial, o Museu Mariano Procópio,
a Fundação Casa de Rui Barbosa e a Fundação Gilberto Freyre são algumas das outras
instituições que guardam registros do fotógrafo. Deve-se ressaltar, também, as coleções
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922002, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 7

particulares de Ruy Souza e Silva, Emanoel Araújo e George Ermakoff, todas


contemplando retratos de negros e negras produzidos pelo fotógrafo alemão.5
Merecem atenção, na Alemanha, os acervos do Leibniz-Institutfür Länderkunde,
o Reiss-Engelhorn Museum, em Manhein e o Ethnologisches Museum, em Berlim. As
três instituições juntas detêm um dos mais representativos conjuntos de fotografias
assinadas por Henschel, particularmente o que se convencionou chamar de “tipos de
pretos” ou “tipos de negros”. É difícil precisar o número de imagens de pessoas negras
produzidas pelos seus estúdios preservadas no Brasil e no exterior; Margrit Prussat
(apud CARDIM, 2012, p. 30) arrisca que elas estariam em torno de cento e vinte. Desse
total de fotos, 37 estão no Leibniz-Institutfür Länderkunde, 43 no Reiss-Engelhorn
Museum e 29 no Ethnologisches Museum (FERRAZ, 2016, p. 218).
Conforme Vasquez (2000) coube aos cientistas Wilhelm Reiss (1838-1908) e
Alphons Stübel (1835-1904) a aquisição do material de Henschel que se encontra na
Alemanha. Em suas viagens pela América do Sul por quase uma década, a partir de 1868,
os dois constituíram um formidável acervo contemplando cenas urbanas, paisagens e, em
grande parte, as populações dos diversos países visitados por eles, incluindo o Brasil.
Além das coleções custodiadas pelo Leibniz-Institutfür Länderkunde e pelo Reiss-
Engelhorn Museum, consideramos fundamental referenciar as fotografias conservadas
pelo Ethnologisches Museum. Conforme Prussat, a instituição mantém em seu acervo
222 cartes de visite da América do Sul, das quais 173 são provenientes do Berliner
Gesellschaftfür Anthropologie, Ethnologieund Urgeschichte (BGAEU), incluindo 32
retratos de autoria de Alberto Henschel.6

Os “tipos de negros” de Henschel

Alberto Henschel não foi o único fotógrafo atuante no Brasil no século XIX
interessado nos “tipos de negros”, mas seus registros se distinguem pela quantidade
significativa; pelo emprego de uma variedade de repertórios visuais; pelas diferentes

5
O acervo dos três colecionadores constitui uma parte substantiva da obra de Ermakoff (2004).
6
Examinando o material das três instituições alemãs, chegamos a 78 registros atribuídos a Henschel, que
perfazem um total de 109 itens, dado que, em alguns casos, imagens similares são encontradas em duas
ou até nas três instituições. Quarenta e uma fotografias são retratos de mulheres; 33 de homens; há três
jovens do sexo masculino e uma fotografia de grupo de escravizados transportando um homem numa
liteira.
8 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.

motivações para a sua produção, sem esquecer, naturalmente, que foram feitos em
diferentes locais do país (seus estúdios de Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro).
Entende-se por “tipo” uma denominação classificatória das diferenças humanas
físicas e culturais, caras aos estudos de história natural dos séculos XVIII e XIX,
segundo os quais a humanidade é vista como parte da natureza, devendo ser estudada
conforme os mesmos critérios taxonômicos. “Assim, foi-se criando e se afirmando cada
vez mais […] um padrão imagético taxonômico cuja expressão mais evidente pode-se
chamar de documentação de espécimes – sejam botânicos, animais, ou tipos humanos
inseridos em universos sociais” (SELA, 2006. p.65). A classificação humana como “tipo”
foi muito adotada para identificação das populações das áreas colonizadas pelos europeus,
como a América e a África. Destinava-se não apenas, com base na biologia e na
antropologia física, ao conhecimento e ao estudo sobre o “outro”, que se distinguia pelo
seu fenótipo, mas, também, a subalternizá-lo e dominá-lo, sob a perspectiva de lidar com
uma “essência abstrata da variação humana” que é como o “tipo” é definido por Elizabeth
Edwards (apud HIRSZMAN, 2011, p. 48). O termo “tipo” está na base do racismo
científico, ancorado nas teses naturalistas de hierarquização social, objetificação do
“outro” e inferioridade de povos como os negros.
Tratando especificamente dos registros dos “tipos” e do uso das fotografias pela
antropologia na segunda metade do século XIX, Edwards observa que, a despeito da
reprodução em larga escala dessas imagens no final dos anos 1850 – graças à introdução
do negativo de vidro em colódio úmido e ao papel albuminado – o material antropológico
ainda era relativamente limitado nos anos 1860, com raras fotografias de campo. Poucos
fotógrafos possuíam conhecimentos antropológicos; as fotografias eram registradas para
satisfazer a curiosidade de turistas e dos colonizadores brancos em várias partes do
mundo. “Consequentemente muitas imagens representam os estereótipos do século XIX
dos ‘não civilizados’, retratando os sujeitos como o bom selvagem num cenário nebuloso
e romântico ou como um primitivo bárbaro” (EDWARDS, 1982, p. 257).
É difícil precisar se as fotografias de negros e negras feitas por Henschel foram
geradas por demanda de clientes, como os cientistas Stübel e Reiss e, em caso afirmativo,
quantas e quais imagens estariam nesse grupo, ou se foram vendidas a partir da escolha
em catálogos organizados por ele; possivelmente as duas coisas. Analisando-se os
registros de Henschel que se encontram na Alemanha7 e na direção do que aponta Sandra

7
Optamos aqui por centrar nossa análise nos registros dos “tipos de negros” que se encontram nas três
instituições alemãs por serem numericamente significativos e por termos tido acesso a integralidade
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922002, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 9

Koutsoukos (2006), podemos inserir estas fotografias na chave do “exótico”, aquelas


imagens vendidas como souvenir para estrangeiros, mas, não apenas estes, nas quais
escravizados e/ou forros pobres posam como modelos. Realizadas em estúdio, poucas
fotografias fazem referência ao trabalho e, mesmo nestas, não ficam evidenciadas
atividades exaustivas ou a exploração da mão de obra de homens e mulheres.
Alguns registros são de corpo inteiro; outros têm plano americano. Em muitos
casos, as poses repetem as tomadas realizadas com membros da boa sociedade, com
mulheres de pé apoiadas nos aparatos comuns aos estúdios fotográficos da época, como
os pilares e pilastras ou, ainda, sentadas, por vezes com algum detalhe da cadeira em
evidência. Em todos os retratos Henschel utilizava um fundo neutro.
Nesse conjunto de imagens, não há casais ou famílias negras; também se veem
poucas pessoas apresentadas em dupla – uma exceção é a fotografia de duas vendedoras
de frutas. Mulheres e homens não utilizam peças de roupas europeias: casacas, vestidos
com armações, tecidos escuros e pesados estão ausentes. A indumentária, incluindo os
panos da costa, chapéus, joias, turbantes, dentre outros itens, revela uma valorização por
Henschel de elementos que reforcem as origens africanas dos retratados, em especial
quando se tratam das mulheres. Em grande parte dos retratos as roupas femininas estão
limpas, sem manchas ou amassadas e, em geral, integram uma composição harmônica,
com uma expressiva variedade de acessórios. E embora haja poucas fotografias de corpo
inteiro, pés descalços, marca indelével da condição de escravizado, nunca estão visíveis,
evidenciando um desejo do fotógrafo de exibir aos estrangeiros uma escravidão
pacificada.
Práticas religiosas referentes ao candomblé se afirmam por meio de amuletos e
turbantes brancos. Por sua vez, joias pesadas evidenciam uma capacidade de amealhar
recursos e um lugar social distinto. O leque, item comum nos retratos das mulheres da
boa sociedade, é visto em um dos registros, um indicativo de que a moça poderia ser uma
forra.
Finalmente, não se pode perder de vista, a questão da objetificação feminina e do
apelo à sensualidade: em dois retratos as mulheres estão com os seios desnudos; em
dezesseis deles as mulheres exibem os ombros e/ou decotes profundos. Sobretudo nas

destas fotografias. Esse conjunto de imagens se constituiu, para nós, numa espécie de mapa para
adentrar as questões formais referentes à produção das fotografias de homens e mulheres de origem
africana por Henschel.
10 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.

imagens das moças com os seios à mostra é visível o desconforto associado a uma
vulnerabilidade.
Nesse breve exame dos retratos de negros e negras produzidos por Henschel, fica
clara a dificuldade de agrupá-los sob a denominação de fotos exóticas ou etnográficas.
Há, visivelmente, uma variedade de padrões de representação dos sujeitos e diferentes
propósitos na produção das imagens, sendo provável que fotos registradas como
souvenir tenham sido comercializadas como etnográficas e vice-versa (KOUTSOUKOS,
2006, p. 120). Isso nos obriga a deslocar a atenção da produção das fotografias para a sua
circulação e, sobretudo, para a sua agência, a capacidade das imagens, que são artefatos,
de provocar efeitos, produzir e sustentar formas de sociabilidade, tornar empíricas as
propostas de organização e sustentação do poder (MENESES, 2002, p.145). Em outras
palavras, não reduzir as fotografias às representações, mas buscar em seus
deslocamentos, sua potência de ação. Essa é, em nosso entendimento, a chave para
analisar os usos e as apropriações do retrato da mulher de turbante de Henschel.

A mulher negra de turbante: a iconização de uma imagem

No conjunto de quarenta e quatro imagens de mulheres negras produzidas por


Alberto Henschel localizadas por nós em instituições que se encontram na Alemanha,
vinte e cinco portam turbante. De tamanhos e amarrações variados, em tecidos claros,
lisos, estampados e bordados, os turbantes eram uma peça fundamental para as
escravizadas que trabalhavam nas ruas, uma forma de proteção contra o calor, um apoio
para os cestos que carregavam, um meio de evidenciar origens muçulmanas e práticas
religiosas como o candomblé.
Mas, entre tantos retratos de mulheres negras produzidos por Henschel e outros
fotógrafos da segunda metade do século XIX, cabe a pergunta: o que explica o fascínio
pela mulher de turbante estampado que faz desta uma imagem recorrente? E mais: por
que a associação entre esta fotografia e Luísa Mahin?
Na trilha do que aponta Meneses (2002, p. 133), consideramos importante
analisar os traços morfológicos desta fotografia, posto que indicam a especificidade da
informação imediata que ela pode fornecer. Contudo, há sempre o problema da produção
da imagem mesma, a começar pela dificuldade de analisar o referente, o que, neste caso,
se deve à inexistência de informações sobre a retratada (não se sabe seu nome, idade, se
era escravizada, as motivações para o registro, se foi paga para posar ou se pagou pelo
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922002, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 11

seu retrato). Até mesmo a data é uma inferência: como no cartão consta Rio de Janeiro
como local, supõe-se que tenha sido produzida no período em que Henschel atuou na
cidade – seu ateliê na Corte foi aberto em 1870.
De todo modo, é possível falarmos da pose, da indumentária, dos elementos
decorativos, do ângulo, dos enquadramentos. Daquilo que está presente, mas, também
do que está ausente. A partir destes traços temos as primeiras pistas para entender a
ampla circulação e as apropriações da imagem. No lugar do caráter informativo da
fotografia, buscamos um deslocamento para a sua difusão.
O retrato em fundo neutro apresenta uma mulher em meio busto, com vestido
escuro decotado e com uma espécie de bordado contornando o decote. Os ombros estão
à mostra, e de acessórios, apenas os brincos e o turbante estampado.8
Não há mobiliário, apoio, utensílio, instrumento de trabalho ou qualquer outra
referência que pudesse associá-la a alguma atividade ou condição social. Não há marcas
em sua pele. Seu rosto, como o da maioria das negras retratadas por Henschel, não porta
um sorriso, mas um olhar firme, quase desafiador. Sobre a fotografia, vemos o número
518, impresso sobre seu vestido, entre o busto e o ombro esquerdos. Deve ter sido
colocado ali para identificar a retratada ou o artefato em si, em alguma lógica de
arquivamento, muito provavelmente pelo próprio fotógrafo.
O anonimato da retratada, o fato de existirem poucos elementos na composição
da foto, seu olhar e a presença do turbante remetendo aos africanos de origem
muçulmana, que se rebelaram na Bahia em 1835, são indícios que podem nos ajudar a
entender as razões da identificação da mulher fotografada como sendo Luísa Mahin. Mas,
nos indagamos sobre como essa apropriação foi possível e tão largamente difundida
diante de uma inconsistência básica: quando da Revolta dos malês a fotografia ainda não
existia, o que inviabiliza qualquer relação entre o evento e o registro fotográfico de seus
participantes.9
Outro aspecto que inviabilizaria essa associação é o fato de que, segundo o
Instituto Moreira Salles, um dos detentores da imagem, sua produção teria sido realizada

8
Sobre o uso dos turbantes em Salvador no século XIX e as trocas culturais promovidas entre diferentes
etnias, como os praticantes do Islã e os praticantes do culto aos orixás, ver Bernardo (2005) e Lima (2017).
Para informações sobre os significados do uso dos turbantes pelas mulheres negras em uma perspectiva
de longa duração, cf. Silva (2017). A indumentária dos malês no levante de 1835, incluindo seus amuletos,
abadás e turbantes foi estudada também por Reis (2003).
9
O daguerreotipo, processo fotográfico desenvolvido por Joseph Nicèphore Niépce (1765-1833) e Louis
Jacques Mandé Daguerre (1787-1851) foi anunciado em Paris em 19 de agosto de 1839 por François Arago
(1786 – 1853).
12 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.

por volta de 1870, trinta e cinco anos após o levante. Neste sentido, a notável juventude
da retratada não corresponde à idade que Luísa Mahin poderia ter à época.
Na busca de explicações sobre o que possibilitou a atribuição anacrônica da
fotografia da mulher de turbante de Henschel a Luísa Mahin, encontramos na sua ampla
circulação e uso reiterativo um caminho para a reflexão e tentativas de respostas. Uma
rápida pesquisa na Internet com as palavras “Luísa Mahin”, “negra de turbante”, “escrava
de turbante” e, sobretudo, associando-se estas expressões a Henschel ou Alberto
Henschel, nos leva a inúmeros registros e usos desta fotografia – nem sempre
identificada como Luísa Mahin – na divulgação de eventos, especialmente sobre a
Revolta dos malês e Luísa Mahin como uma das principais lideranças;10 em capas de
livros, como a edição de O genocídio do negro brasileiro de Abdias Nascimento;11 em
divulgação de eventos, como o lançamento do livro Ocupação Luiza Mahin;12 impressa
na pele de pessoas como tatuagem;13 gravada em rótulos de cerveja;14 e presente em
obras de arte, como em uma colagem de Rosana Paulino,15 exposta na mostra “Costuras
da Memória” que esteve em cartaz na Pinacoteca de São Paulo e no Museu de Arte do
Rio.
Mas, o que justifica este processo de iconização? Que atributos induziram tal
processo? O fato é que este potencial independe das motivações que lhe deram origem.
Em outras palavras, os sentidos jamais se encontram nas imagens mesmas, “engastados

10
Ver, entre outros: o material de divulgação da palestra Autografias Luíza Mahin: um mito libertário no
Feminismo Negro, promovido pelo SESC, em São Paulo, em 2015. Disponível em:
https://centrodepesquisaeformacao.sescsp.org.br/atividade/luiza-mahin-um-mito-libertario-no-
feminismo-negro. Acesso em 10 jul. 2019; do Colóquio Internacional Subjectividades Escravas nos
Mundos Ibéricos (Séculos XV-XX), realizado em 2018, promovido pelo Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa, em Lisboa, Portugal. Disponível em:
https://www.ics.ulisboa.pt/sites/ics.ulisboa.pt/files/events/cartaz/diptico_subjective_hd1.pdf. Acesso
em 20 ago. 2019.
11
Disponível em: https://www.editoraufv.com.br/produto/o-genocidio-do-negro-brasileiro--processo-
de-um-racismo-mascarado-3-edicao/1784951. Acesso em 29 fev. 2020. Ver também a capa de Luiza
Mahin, romance de Armando Avena. Disponível em: http://geracaoeditorial.com.br/luiza-mahin/
Acesso em 19 mai. 2020; o cartaz do evento Sarau das Pretas – Luiza Mahin vive!. Disponível em:
https://www.londrinatur.com.br/agenda/sarau-das-pretas-luiza-mahin-vive/. Acesso em 20 ago. 2019.
12
Disponível em: http://www.sindipetroba.org.br/2017/noticia/8337/lancamento-do-livro-
%E2%80%9Cocupac%C3%A3o-luisa-mahin%E2%80%9D-tem-feijoada-e-m%C3%BAsica. Acesso em
20 ago. 2019.
13
Tatuagem apresentada como “Portrait de Luiza Mahin uma das figuras africanas mais importantes da
história”, disponível em: http://picdeer.org/thiago.maga.tattoo. Acesso em 20 ago. 2019.
14
Rótulo da cerveja Mahin. Disponível em
https://www.facebook.com/1984215361805614/photos/a.1985548531672297/1985548365005647/?type
=3&theater. Acesso em 20 ago. 2019.
15
Catálogo da exposição “Rosana Paulino: a costura da memória”, p. 134. Disponível em:
http://pinacoteca.org.br/wp-content/uploads/2019/07/AF_ROSANAPAULINO_18.pdf. Acesso em 18
mai. 2020.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922002, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 13

em atributos formais à espera de um gatilho universal que os detone”. (MENESES, 2002,


p. 143). Daí a necessidade de avançarmos do exame da produção da fotografia por
Henschel para a análise da sua ampla e variada apropriação, buscando entender de que
maneira e em que medida os aspectos estéticos colaboram para este processo, lembrando,
ainda, que os atributos formais agem como vetores potenciais de conteúdos afetivos
(MENESES, 2002, p. 143).
Uma vez entendido que a historicidade da fotografia não se esgota em sua origem,
e que a recepção da imagem não pode ser amalgamada em um único padrão, devendo-se
atentar para a sua circulação em diferentes épocas, lugares, produtos e mídias (impressas,
digitais), examinamos quatro “respostas visuais” produzidas com a fotografia da mulher
negra de turbante. Conforme propõem Carvalho e Lima na análise das diferentes
apropriações da fotografia de Aylan Kurdi, entendemos que estas “respostas visuais” –
em seus diferentes suportes – fornecem pistas para a compreensão, do ponto de vista dos
atributos formais, do potencial icônico das imagens, em outras palavras, sua capacidade
de gerar impacto (CARVALHO; LIMA, 2018, p. 49).
Na capa do romance Luiza Mahin, de Armando Avena (Figura 2), a fotografia da
mulher negra de turbante está centralizada, em primeiro plano, com destaque. Sua
escolha pode ser definida, por um lado, pela prática corrente da associação entre a
personagem e a fotografia, o que, do ponto de vista mercadológico, colabora para a
divulgação do livro. É como se a imagem estivesse amalgamada à Luísa Mahin. Por outro
lado, a sensualidade que o retrato dá a ver se coaduna com o perfil que o escritor busca
traçar para a biografada conforme ele deixa claro nas matérias de divulgação da obra.
Voltando à capa, em torno da imagem, que é a única fotografia e a única em preto
e branco, espalham-se fragmentos de registros iconográficos diversos, de tamanhos bem
inferiores ao da mulher negra de turbante. Estas imagens foram dispostas do pescoço da
retratada para baixo e localizadas, em especial, à altura dos seios. Extraídas de gravuras
de artistas do século XIX, com destaque para Debret e Rugendas16 são todas coloridas e
retratam temas como os castigos corporais, o trabalho e a capoeira. Na grande maioria
dos registros figuram homens negros, o que colabora para que não se confunda a
personagem com outras mulheres negras. O fato de ela ser praticamente a única mulher,
a posição da fotografia, acima de todas as outras representações visuais, as dimensões da

16
Entre as imagens que compõem a capa, identificamos alguns elementos das gravuras Roda de
capoeira, de Rugendas; Execução do castigo de açoite e O colar de ferro, castigo dos negros fugitivos, de
Debret.
14 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.

imagem, enfatizam a atuação da biografada, reforçam o seu protagonismo,


hierarquizando-a em relação aos homens e às outras mulheres.

Figura 2: Capa do livro Luiza Mahin, de Armando Avena.


Fonte: Geração Editorial, 2019. Disponível em: http://geracaoeditorial.com.br/luiza-mahin/

No título, o desenho de uma corrente arrebentada divide as palavras Luiza e


Mahin. Abaixo dele, a frase: “Os amores e a luta da líder da rebelião que reuniu todas as
etnias para libertar os escravos e fundar um Estado Islâmico no Brasil”. Vê-se, ainda, na
parte inferior, uma ilustração, rebaixada, representando o que seriam os revoltosos.
Ressalte-se a escolha das cores quentes para a capa, que começa com tons de vermelho
na parte superior, passando pelo alaranjado até chegar ao amarelo. Conforme observa
Michel Pastoreau (1993, p. 162) a simbólica do vermelho está quase sempre associada à
do sangue e à do fogo. É a cor do amor e do erotismo, cor da paixão e seus perigos; cor
da atração e da sedução; cor dos pecados, especialmente dos pecados da carne; cor dos
tabus e da transgressão dos tabus. Quanto ao amarelo, seus significados na cultura
ocidental, apresentam-se, entre outros, como a cor da luz e do calor; da energia; da
extravagância e do disfarce; da mentira e da traição (PASTOREAU, 1993, p. 19-20).
Em que pese o extenso repertório visual exibido e a opção por variados elementos
gráficos, o foco está na fotografia da mulher negra de turbante. Mas, esta atenção à
mulher registrada por Henschel não se deve apenas à posição que ocupa e ao fato de ser
a única imagem em preto e branco em uma capa que abusa das cores: a edição da
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922002, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 15

fotografia, ao cortar uma parte considerável da sua indumentária, desloca nossa atenção
para o colo e os seios da retratada, evidenciando uma sensualidade. A ênfase no erotismo
aparece também nas falas do autor do romance que descreve Luísa Mahin como “símbolo
da mulher livre”; “talvez amante do líder muçulmano de nome Ahuna”; “uma mulher que
traz no sangue a sensualidade das heroínas de Jorge Amado e a força das negras que
morreram lutando pela liberdade”.17 No resumo da obra os adjetivos utilizados para
qualificá-la são: “guerreira negra, linda e sensual”.18 Repetem-se aqui estereótipos
associados às mulheres negras, como o uso de atributos físicos e a sensualidade, também
revelados por Pedro Calmon, em 1933, no romance Malês: a insurreição das senzalas,
para definir a personagem. A frase que acompanha o título do livro de Avena, na capa,
ao hierarquizar “os amores” à frente da “luta da líder da rebelião”, reforça o peso atribuído
à vida privada da biografada. Ao insistir nestes atributos associados à Luísa Mahin,
teríamos aqui o que a filósofa Grada Kilomba (2019, p. 78-79) qualifica de racismo
cotidiano que:

refere-se a todo vocabulário, discursos, imagens, gestos, ações e olhares que


colocam o sujeito negro e as pessoas de cor não só como “Outra/o” – a
diferença contra a qual o sujeito branco é medido – mas também como
Outridade, isto é, como personificação dos aspectos reprimidos na sociedade
branca. [...] a pessoa negra é usada como tela para projeções do que a
sociedade branca tornou tabu. Tornamo-nos um depósito para medos e
fantasias brancas do domínio da agressão ou da sexualidade. É por isso que,
no racismo, a pessoa negra pode ser percebida como “intimidante” em um
minuto e “desejável” no minuto seguinte, e vice-versa; “fascinantemente
atraente” a princípio, e depois “hostil” e “dura”.

A autora sustenta, ainda, que na “erotização o sujeito negro torna-se a


personificação do sexualizado, com um apetite sexual violento” (KILOMBA, 2019, p. 79).
Outra associação da imagem com Luísa Mahin aparece no rótulo da cerveja
“Mahin” (Figura 3), a primeira fabricada pela “Cerveja da Mulher Guerreira – Artesanal
e Feminista”, criada em 2015, no bairro do Riachuelo, zona norte do Rio de Janeiro, por
um grupo de mulheres que militam no feminismo, sob a liderança de Leinimar de Jesus

17
Conferir Avena, Armando. Heroína negra, Luiza Mahin é tema de livro de Armando Avena, A tarde, 12
de dezembro de 2019. Disponível em: http://atarde.uol.com.br/coluna/armandoavena/2112050-heroina-
negra-luiza-mahin-e-tema-de-livro-de-armando-avena-premium. Acesso em 12 dez. 2019.
18
Resumo do livro divulgado no site da Geração Editorial. Disponível em:
http://geracaoeditorial.com.br/luiza-mahin/. Acesso em 15 mai. 2020. Informações sobre a obra no site
da Livraria da Travessa. Disponível em: https://www.travessa.com.br/luiza-mahin-os-amores-e-a-luta-
da-lider-da-rebeliao-que-reuniu-todas-as-etnias-para-libertas-os-escravos-e-fundar-um-estado-
islamico-no-brasil-1-ed-2019/artigo/303c19db-7359-450b-a946-b02244bfce95. Acesso em 18 mai. 2020.
Resumo no site da Amazon. Disponível em: https://www.amazon.com.br/Luiza-Mahin-rebeli%C3%A3o-
libertar-escravos/dp/8581304311. Acesso em 20 mai. 2020.
16 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.

Alves Pires19. Neste caso, a imagem e a personagem ali referenciada assumem um papel
diferente daquele exibido na capa do livro de Avena. Como homenagem à Luísa Mahin,
a fotografia deveria agregar valor estético, ideológico e histórico ao produto a ser
consumido. Segundo o grupo de mulheres responsável pela marca,

A cada edição homenageamos uma mulher guerreira, de perfis distintos,


lutadoras a seu tempo, assim como nós. O resultado final e engarrafado é um
produto ideológico e, ao degustá-lo, é possível sentir no aroma, na
carbonatação, no corpo, na cor, no sabor a potência de quem produziu a bebida,
juntamente com a de quem está sendo homenageada. 20

Figura 3: Rótulo da cerveja Mahin.


Fonte: Cerveja Mahin. Disponível em: https://bityli.com/0Uadr. Acesso em 20 ago. 2019.

Percebe-se pela apresentação, o interesse dessas mulheres do presente em


vincular suas imagens e a de seu produto a referenciais de luta e protagonismo feminino
do passado. É por essa chave que o diálogo entre essas temporalidades se estabelece.
Além de marcar a filiação a uma tradição de luta feminina, se apropria dessas experiências
como ferramenta de ação no presente e no futuro seguindo a via pedagógica da
exemplaridade, que lembra a prerrogativa ciceroneana da História Magistra Vitae
(KOSELLECK, 2006). A sugestão, “harmoniza com luta”, quando geralmente a
harmonização é com algum tipo de comida, indica o caráter fortalecedor e encorajador

19
Leinimar de Jesus Alves Pires é Mestre e Doutora em Letras pela PUC-Rio (2006). Foi pesquisadora
convidada na Freie Universität (Universidade Livre de Berlin), Alemanha (2011). Atua com os seguintes
temas: Filosofia, Arte, Literatura e Cultura Brasileira. Dados retirados do Currículo Lattes, disponível em:
http://lattes.cnpq.br/4027767812830342. Acesso em 29 mai. 2020.
20
Apresentação do grupo de mulheres fabricantes da cerveja. Disponível em:
https://www.foodbevg.com/XX/Unknown/1984215361805614/Cerveja-da-Mulher-Guerreira---
Artesanal-e-Feminista. Acesso em 29 mai. 2020.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922002, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 17

da bebida para quem deseja brigar por seus direitos e contra a opressão, a exemplo do
que teria feito a personagem homenageada.
Depois de Luísa Mahin, as outras homenageadas foram Maria Clandestina,
representando as mulheres que combateram a ditadura militar e Vanda Ferreira,
liderança do movimento negro contemporâneo. Ao lado da imagem de cada
homenageada, o rótulo apresenta uma notícia biográfica. A que foi impressa no rótulo da
cerveja “Mahin” é a seguinte:

Luísa Mahin ou Kehinde foi uma mulher negra, talvez africana, talvez baiana,
escravizada no Brasil. Sua biografia, assim como a história do povo negro
brasileiro não foi devidamente preservada, nem valorizada e muitos dados de
sua complexa história de vida são uma combinação entre realidade, ficção e
construção de mitos heroicos negros. Guerreira, lutou nos levantes pela
abolição da escravatura no Brasil, na Bahia do século XIX, como na Revolta
dos malês e a Sabinada. Quituteira, pelas ruas, conseguia mais facilmente
enviar recados em árabe para companheirada articular os movimentos. A
cerveja da Mulher Guerreira lhe rende uma tão tardia quanto devida
homenagem com uma Red Ale, que oferece a partir da complexidade do
encontro de maltes variados e na lupulagem única, um intenso e peculiar sabor
de luta.21

O texto endossa a identificação da negra de turbante com Luísa Mahin. Mesmo


chamando a atenção para o fato de sua “complexa história de vida, ser uma combinação
entre realidade, ficção e construção de mitos heroicos negros”, nenhum questionamento
é feito em relação à sua imagem, exibida como uma evidência, um dado, contribuindo
para a disseminação dessa identificação equivocada. A imagem com sua legenda
biográfica tem um propósito claro de construção de identidade com quem irá degustar a
bebida, um público feminino e engajado.
Indo além da discussão em torno de um possível desconhecimento sobre a
história da fotografia, da Revolta dos malês e de Luísa Mahin, podemos entender a
apropriação desse retrato como um desejo de dar voz e corpo a uma personagem que se
tornou referência para as lutas contemporâneas. Se a própria existência de Luísa Mahin
é questionada pela historiografia e sua participação no levante deve ser problematizada,
como observa João José Reis (2003, p. 301-303), na mesma medida, verifica-se, nas
últimas décadas, um processo de mitificação que visa à manutenção de Luísa Mahin no
imaginário afro-brasileiro, seja pela via da valoração de seus atributos físicos e de sua
vida privada, conforme a perspectiva explorada no livro, seja por sua postura insubmissa

21
Disponível em: https://bityli.com/0Uadr. Acesso em 20 ago. 2019.
18 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.

e lutadora difundida nos rótulos da cerveja como uma referência para as mulheres,
especialmente, as mulheres negras da nossa sociedade.

Figura 4: As filhas de Eva, 2014 Colagem, lápis conté e acrílica sobre papel. Fotografia de
divulgação da exposição "A costura da memória" no Museu de Arte do Rio.
Fonte: Sopa Cultural, 5 de abril de 2019. Disponível em: https://bityli.com/THF8H. Acesso
em 20 ago. 2019.

Na exposição “Costuras da Memória” a artista negra Rosana Paulino trabalha


com uma diversidade de técnicas ao tecer memórias pessoais, memórias coletivas e
históricas, chamando a atenção para a violência, o silenciamento e a invisibilidade dos
negros, especialmente, mulheres negras. Seus pontos, bordados, fios e alinhavos unem
tecidos e histórias do presente e do passado, denunciando os estigmas da escravidão
como feridas não curadas que insistem em sangrar, principalmente em decorrência da
persistência do racismo estrutural, entendido por nós na chave de Silvio de Almeida
(2019), que identifica o racismo como estruturante de uma sociedade na qual são vistas
com naturalidade as desigualdades sociais, políticas e econômicas que favorecem e
reproduzem privilégios dos brancos em detrimento da população negra. Reforçamos,
ainda, que esse racismo é reproduzido na esfera individual e institucional.
O diálogo que a artista estabelece com o passado está presente, por exemplo, em
séries de trabalhos baseadas em diferentes apropriações de fotografias de negros e negras
do século XIX, como as de autoria de Auguste Stahl. É o caso das obras “Atlântico
Vermelho” (2017) e “Musa Paradisíaca” (2018) e das séries “Assentamento” (2012),
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922002, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 19

“Paraíso tropical” (2017), “Geometria à Brasileira” (2018), “¿História Natural?” (2016),


e “As filhas de Eva” (2014). Segundo Juliana Ribeiro da Silva Bevilacqua (2018, p. 155)
são

fotografias de pessoas escravizadas, cujos rostos só sobreviveram ao presente


porque passaram pelo horror de terem sido registrados para fins de
classificação e hierarquização da “raça negra” numa escala inferior; ou ainda
pelas suas características fenotípicas consideradas exóticas, ao mesmo tempo
repulsivas e atraentes. Ao se valer dessas fotografias de escravizados, cujos
nomes e histórias de vida se perderam, Paulino aproxima passado e presente,
possibilitando o (re)encontro da população negra com esses antepassados.

A fotografia da mulher negra de turbante de Henschel integra uma colagem da


série “As filhas de Eva” (Figura 4). Nessa composição aparece semicoberta por espécimes
de plantas tendo sua silhueta refletida ao lado, como se fosse uma sombra, também por
trás das folhagens. Segundo Bevilacqua (2018), essa sombra representa um vazio muito
presente na obra da artista. Diz tanto sobre a invisibilidade e a exclusão da mulher negra,
quanto sobre a possibilidade de reconhecimento daquela que olha a obra, como se
estivesse de frente a um espelho, se vendo em situações semelhantes às que foram vividas
pelas mulheres negras do passado. Do busto da mulher e de sua sombra toda negra saem
o esqueleto de duas mãos. Na interpretação desse conjunto de elementos que constituem
a obra, é possível identificar a relação que a autora estabelece entre ciência, escravidão e
comércio que marcou a história ocidental do século XIX. A ciência legitimava a
escravidão e coisificava vegetação, animais e seres humanos negros e indígenas como
mercadoria no desenvolvimento do sistema capitalista. E esse comércio ocasionou muitas
mortes que podem estar representadas na ossada das mãos ali colocada, simbolizando
também um objeto de estudo científico.
Da maneira com que foi disposta na composição da obra, a mulher negra de
turbante parece resistir e se impor à tentativa de ocultamento de sua face com o herbário
que ocupa o primeiro plano. Um olho semicoberto pela vegetação e o outro que parece
mirar o espectador pela brecha entre as folhas, além de demonstrar a força e a dignidade
da retratada, também evoca certa sensualidade que foi intencionalmente captada pela
lente do fotógrafo e ali, poderia estar relacionada ao arquétipo da Eva bíblica que seduziu
Adão e por isso teria sido julgada e penalizada. Outra interpretação possível entre a
imagem e o título da obra é que, segundo a Bíblia, todos descendemos de Eva e por isso,
deveríamos nos ver como “irmãos”, como iguais. Mas não é o caso. E o que respaldaria
essa subalternização das mulheres negras e indígenas? A ciência e os interesses
econômicos do século XIX, que ecoam até os dias de hoje. Neste caso, não há indícios de
20 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.

qualquer associação da retratada com uma personagem histórica específica, como Luísa
Mahin. A foto inserida na narrativa artística simboliza uma experiência comum a
mulheres negras do passado e do presente, como a objetificação do corpo.

Figura 5: Autoria desconhecida (colagem). Fotografia retirada da Internet.


Fonte: VIEIRA, 2017.

Uma potente resposta visual é construída em uma colagem (Figura 5) utilizando


a reprodução da fotografia da mulher negra de turbante, sobre a qual é aplicada outra
imagem. Nesta, vemos mãos segurando o que seria um livro ou apostila e, sobre o braço
direito, pendurado, um estetoscópio. Chama a atenção, ainda, que, nesta montagem a
mulher passa a vestir uma peça de indumentária branca, de mangas compridas –
possivelmente um jaleco – reforçando que a retratada poderia ser médica ou, o que nos
parece mais provável, em função do livro/apostila, uma estudante de medicina. Outro
elemento relevante é a unha que se destaca na mão esquerda, evidenciando os cuidados
de si. A manutenção do turbante – peça que voltou a ser usada nos últimos anos por
mulheres negras, sobretudo as jovens – reforça a afro descendência; por sua vez os
ombros à mostra funcionam como um traço de contemporaneidade.
Mas, para além desses elementos, ressaltamos aquilo que, a nosso juízo, é o
punctum barthesiano: a imagem sobreposta é aplicada exatamente no decote do vestido
da retratada, desidratando a fotografia do componente erótico explorado em outras
apropriações. Aqui, a mulher de turbante não é Luísa Mahin: ela é uma e todas as
mulheres negras, jovens, anônimas, que, no Brasil do século XXI, ocupam o espaço
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922002, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 21

público das ruas nos advertindo sobre questões como racismo e o direito à educação
superior.
Se a mulher negra de turbante é objetificada quando da produção da imagem e
em algumas apropriações recentes – quando seu corpo volta a ser uma commodity a
serviço de um produto – no caso específico da colagem, ela revela-se sujeito.22 Mas, o
que quer essa imagem? Que potência ela emana? A quem ela se dirige? Embora não
tenhamos localizado a data em que a montagem foi produzida é difícil não relacioná-la
às políticas de ações afirmativas na educação superior, voltadas para os estudantes afro-
brasileiros, iniciada em 2001, quando a Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF)
instituíram o sistema de cotas.23 A escolha pelo uso de atributos que associam a retratada
ao curso de medicina também não é acidental e a insere em um restrito grupo de
estudantes.

Considerações Finais

Ao tomar a fotografia da mulher negra de turbante como ingrediente das relações


sociais, devemos, a nosso juízo, considerar alguns aspectos quanto à sua agência. O
primeiro deles, a negociação inscrita no processo de sua produção mesma, aquilo que
Mauad (2008, p. 90) – escrevendo sobre fotografia e representação social de afro-
brasileiros na sociedade imperial – denomina de “índices de resistência, que podem se
concentrar num olhar fixo para a câmera, num pé descalço, ou num adorno investido de
marcas étnicas”. Conforme a autora, “entre a total sujeição aos estereótipos estabelecidos
pela sociedade escravista, como querem alguns historiadores e às possibilidades de
negociação e conflito, como querem outros, a construção de representações sociais de
afro-brasileiros na sociedade oitocentista desvenda-se como um processo dinâmico e
complexo” (MAUAD, 2008, p. 91).

22
Conforme Bell Hooks (1989 apud Kilomba, 2019, p. 28) os sujeitos são aqueles que “têm direito de
definir suas próprias realidades, estabelecer suas próprias identidades, de nomear suas histórias”.
23
A política de cotas, com o objetivo de ampliar o acesso de negros e pardos ao ensino superior, foi
estendida para as universidades federais apenas em 2012, com a Lei n. 12.711. Esta foi além da questão
racial, considerando também critérios sociais. Pesquisas sobre os impactos da política de cotas nas
universidades, tendo a UERJ como estudo de caso, revelam que a iniciativa foi bem-sucedida, tanto
porque democratizou o acesso aos cursos de graduação, que eram majoritariamente realizados por
estudantes brancos e com boas condições financeiras, quanto pelo fato de os alunos cotistas terem tido
desempenho semelhante e às vezes até melhor do que o dos não-cotistas (BEZERRA e GURGEL, 2011).
22 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.

Ao desafiar as convenções ou cânones do retrato fotográfico, com seu olhar fixo,


a fotografia da mulher negra de turbante, registrada por Henschel, diferente de tantas
outras de mulheres negras desse mesmo período, não apenas sobreviveu como, hoje, nos
busca, nos aciona e mobiliza. Seja dando voz e corpo a Luísa Mahin ou a uma jovem
anônima do século XXI, sua potência é amplificada.
A análise do percurso entre a sua produção e as diferentes formas de apropriação
revela o quanto a imagem ganhou autonomia. Descolou-se da figura do fotógrafo, nem
sempre referenciado nas diversas reproduções, e também se deslocou de seu contexto de
produção. Ao anonimato da mulher retratada são sobrepostas identidades que se tornam
referenciais para responder a questionamentos do presente, a exemplo do silenciamento
sobre protagonismos femininos negros na história e da persistência de formas de
opressão fundamentadas no machismo e no racismo. Nessa perspectiva, a pose altiva com
rosto firme e o olhar desafiador foram tomados como uma forma de preencher um vazio
habitado por mulheres negras, segundo Grada Kilomba (2019, p.97-98), um espaço que
se sobrepõe às margens da “raça” e do gênero, o chamado terceiro espaço. No nosso
entendimento, esta fotografia contribui, ainda, para a valorização de memórias e para
fundamentar lutas, especialmente no que tange às questões de intereseccionalidade, cuja
matriz conceitual é identificada na obra de Ângela Davis, Mulheres, raça e classe e que
consiste em uma “articulação metodológica proposta pelas feministas negras”, na luta
contra a interação de duas ou mais formas de opressão, tais como o machismo e o racismo
que oprimem a mulher negra ou a homofobia e a pobreza que oprimem mulheres lésbicas,
entre outras (AKOTIRENE, 2019).
Assim, ao transcender o regime visual (MENESES, 2003) no qual foi gerada,
atendendo a um sistema classificatório científico e mercadológico, baseado na
objetificação do “outro” e, dentro do qual, foi vista como o exemplar de um “tipo”, a
imagem ganha novos usos e sentidos tornando-se um ícone, com potência para difundir
ideias de emancipação e dar corpo a uma mulher negra e libertária, que subverte a
condição de “objeto” para se tornar sujeito.
A fotografia da mulher negra de turbante, tal como a de Aylan, estudada por
Carvalho e Lima (2018, p. 56) deixou rastros no meio eletrônico que permitem uma
avaliação de seus efeitos sobre diferentes segmentos sociais. De todo modo, a escala
monumental de circulação acaba sendo uma dificuldade que se impõe ao pesquisador da
imagem hoje, como observam as autoras. Com o exame de quatro apropriações do
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922002, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 23

registro de Henschel, esperamos ter contribuído para a análise das dinâmicas sociais
contemporâneas e de como as fotografias atuam como mediação.

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PRODUCTION, USES AND APPROPRIATIONS OF AN IMAGE: THE PROCESS OF ICONIZATION OF
THE PHOTOGRAPH OF THE WOMAN IN A TURBAN, BY ALBERTO HENSCHEL
Abstract: The article focuses on the portrait of a black woman wearing a turban, taken by Alberto
Henschel, around 1870, in Rio de Janeiro. Among the many images of black “types” produced by the
German photographer, this is certainly one of the best known and most appropriated in the last decade.
The analysis of the production, circulation and consumption of this photograph aims to examine the
relationship between its massive use and the invisibility or subordination imposed on black people,
especially black women, by structural racism. We problematize, in particular, the anachronistic
identification of the woman portrayed as Luísa Mahin, Luís Gama's mother, who would have been one of
the leaders of the malês Revolt, in Bahia, in 1835. The production of meanings that this photograph
engenders, the effects it produces in its uses and displacements, its potential for iconization, as well as its
agency, are some questions that we seek to discuss, following Ana Mauad’s analyses about the need to
take the image as an agent of history, not simply as a source of information about the past or the subject
of a historical study.
Keywords: Black woman. Alberto Henschel. Photography, XIX century. Visual Culture.
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PRODUCCIÓN, USOS Y APROPIACIONES DE UNA IMAGEN: EL PROCESO DE ICONIZACIÓN DE LA
FOTOGRAFÍA DE LA MUJER CON TURBANTE DE ALBERTO HENSCHEL
Resumen: Este artículo toma como objeto de análisis el retrato de una mujer negra con turbante registrado
por Alberto Henschel, alrededor de 1870 en Rio de Janeiro. Entre las muchísimas imágenes de "tipos" de
negros efectuadas por el fotógrafo alemán, esta es sin duda, una de las más conocidas y la que ha sufrido
más apropiaciones en esta última década. Nuestro objetivo con el análisis de la producción, circulación y
consumo de esta fotografía, es examinar la relación entre su uso masivo y la invisibilidad o subalternidad
impuesta a los negros y las negras por el racismo estructural. En particular, problematizamos la
identificación anacrónica de la mujer retratada como Luísa Mahin, la madre de Luís Gama, que habría sido
una de las líderes de la Revuelta de malês, en Bahía en 1835. El presente estudio busca discutir la
producción de sentidos que engendra esta imagen, los efectos que producen sus usos y desplazamientos,
su potencial de iconización, así como su agencia, siguiendo el camino de Ana Mauad, cuando habla sobre
la necesidad de mirar la imagen como agente de la historia, no simplemente como fuente de información
sobre el pasado o como el tema de una investigación histórica.
Palabras clave: Mujer negra. Alberto Henschel. Fotografía del siglo XIX. Cultura visual.
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Referências

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24 | Produção, usos e apropriações de uma imagem: o... MAGALHÃES, A. M.

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SOBRE AS AUTORAS
Aline Montenegro Magalhães é doutora em História Social pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ); técnica em assuntos culturais/história no Museu Histórico Nacional.

Maria do Carmo Teixeira Rainho é doutora em História pela Universidade Federal Fluminense
(UFF); pesquisadora do Arquivo Nacional.
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Recebido em 31/05/2020

Aceito em 26/06/2020
A fotografia na história do Museu de Arte
Moderna de São Paulo (MAM-SP)

Guilherme Marcondes Tosetto


Centro Universitário Belas Artes de São Paulo
São Paulo - São Paulo - Brasil
guilhermetosetto@gmail.com

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Resumo: Este artigo busca evidenciar a importância da fotografia na coleção do Museu de Arte Moderna
de São Paulo (MAM-SP), tanto por refletir os momentos históricos relativos às aquisições desse tipo de
obra de arte, quanto por evocar as relações que se estabelecem com os curadores, diretores e exposições
que legitimaram a presença da fotografia dentro do museu. A primeira aproximação do museu com a
fotografia acontece ao longo de exposições no final dos anos 1940, mas as primeiras incorporações de
obras em suporte fotográfico somente acontecem no começo dos anos 1980, através da realização de
eventos voltados exclusivamente para esse tipo de mídia. Nesse momento, estabelecem-se as bases da
coleção, atualmente em constante crescimento em razão das incorporações efetivadas pelo Clube de
Colecionadores de Fotografia, sempre em busca de dar conta da multiplicidade de imagens fotográficas
produzidas por artistas brasileiros.

Palavras-chave: Fotografia. Museu. Coleção. Museu de Arte Moderna de São Paulo.


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Introdução

O surgimento do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM-SP) está inserido


em um contexto sociocultural altamente movimentado no Brasil. A concretização da
proposta do museu acontece duas décadas após a Semana de Arte Moderna, realizada de
11 a 18 de fevereiro de 1922, no Theatro Municipal de São Paulo. Desde então,
intelectuais travavam discussões em textos publicados nos jornais da época, buscando
idealizar essa nova instituição de arte para o Brasil. Nesse período, na década de 1940,
também se verifica o acelerado crescimento da cidade de São Paulo como a maior
metrópole brasileira, com seus altos edifícios e novas vias, um progresso impulsionado
por empreendimentos patrocinados, dentre outros, por industriais instalados no
município, como Ciccillo Matarazzo, figura primordial na história do MAM-SP, como
será detalhado mais adiante.
No contexto internacional, o surgimento do museu acontece no período entre
guerras, quando os Estados Unidos buscam se impor como padrão sociocultural perante
os países periféricos latino-americanos, como o Brasil, e procuram estabelecer conexões
2 | A fotografia na história do Museu de Arte... TOSETTO, G. M.

estreitas com as novas instituições culturais do país, seja através do Office of the
Coordinator of Inter-American Affairs (Escritório do Coordenador de Assuntos
Interamericanos, ou CIAA na sigla em inglês) ou do MoMA (The Museum of Modern
Art), que integrava uma comissão para constituição de um museu de arte moderna em
São Paulo.
Importantes publicações no Brasil, entre livros, teses e dissertações, dedicaram-
se a contar a história da formação do MAM-SP (NASCIMENTO, 2003; BARROS,
2002). A maioria se ocupa da relação entre seu surgimento e a agitação cultural e o
crescimento da cidade de São Paulo a partir da década de 1930. Há também documentos
que analisam o período da criação efetiva do museu, em 1948, até a crise de 1963, quando
todo o seu acervo foi doado para a Universidade de São Paulo (USP) por Ciccillo
Matarazzo, o próprio fundador e primeiro presidente do MAM-SP. O empenho deste
artigo é resgatar esses antecedentes históricos no sentido de melhor compreender o
exato contexto e determinar, com maior precisão, em que período da historiografia do
museu teve início a formação da coleção de fotografias.
Parte-se do pressuposto de que as coleções constroem um discurso próprio,
caracterizado pelas intenções, escolhas e empenho do colecionador ou da instituição
colecionadora. São constituídas sobretudo pelo tipo de objetos que avivam seu interesse,
incluindo as visualidades e a história que cada peça pode revelar sobre as condições
materiais da cultura da qual procede. As coleções também são carregadas pelo desejo de
posse: o colecionador, indivíduo ou instituição, procura manter, consigo, uma amostra
das coisas do mundo que lhe interessam e, ao assumir este papel, constrói um discurso
peculiar, sem a obrigatoriedade de ser linearmente histórico, nem monotemático, basta
esses itens representarem parte de um universo de afinidade nos domínios estabelecidos
pela coleção.
Segundo Aurora León (2000), encontra-se, no colecionismo, a localização da
origem do museu e, para defender esse ponto de vista, a autora ressalta alguns aspectos
importantes: o primeiro deles é que o colecionismo afirma um mundo de preferências
ideológicas ao definir-se de acordo com as decisões dos participantes ativos, que possuem
intenções distintas em momentos históricos específicos. “Em segundo lugar, o
colecionismo incide na função ideológica da cultura. A clientela da arte representa uma
classe determinada que dirige, controla e instrumentaliza os objetos de cultura de acordo
com seus interesses e objetivos” (LEÓN, 2000, p. 48, tradução do autor).
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922003, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 3

A análise da formação da coleção de fotografia do MAM-SP se apoia em três


premissas básicas sobre coleções fotográficas inseridas em museus de arte. A primeira
delas é: toda coleção é um sistema, e os elementos que o compõem estabelecem relações
entre si e representam uma sucessão no tempo. Segundo Baudrillard (1994, p. 22), “a
coleção nunca pode existir sem uma sistemática interna”. É necessário, portanto,
identificar quais os sistemas criados pelas instituições para reunir fotografias em suas
coleções, considerando toda a complexidade histórica desta mídia no território da arte.
A segunda premissa é: as coleções, enquanto sistemas são formatadas pelas
escolhas do colecionador. Para Pearce (1994, p. 37, tradução do autor), distintos modos
de colecionar podem ser revelados, e cada um “representa uma maneira particular de
construir uma relação com o mundo”. Assim, é preciso reconhecer o perfil das pessoas
que assumiram a formação dessas coleções institucionais, como elas se posicionam em
relação à fotografia e como os conjuntos investigados se tornam um reflexo dessa
postura.
Na terceira premissa, tem-se que toda coleção está inserida em um contexto
histórico, social e cultural próprio, e aponta para o reconhecimento dos fatores de
influência externos na constituição dos conjuntos fotográficos.
Sobre a criação do MAM-SP, a ideia de um museu de arte moderna brasileiro foi
levantada por intelectuais ainda na década de 1930, que viam a necessidade de uma
instituição voltada mais para a formação cultural do que meramente conservacionista e
acadêmica, como o Museu de Belas Artes do Rio de Janeiro (NASCIMENTO, 2003, p.
104). Entre os favoráveis a uma instituição mais educadora, estava o escritor Mário de
Andrade, um dos mentores da Semana de Arte Moderna de 1922.
A primeira versão do museu, todavia, só foi concretizada em maio de 1947. A
então Galeria de Arte Moderna de São Paulo tinha Ciccillo Matarazzo, industrial e
colecionador de arte do século XX, como presidente vitalício, e foi ele quem deu o nome
à instituição (ESTEVES, 2005, p. 36). Logo em seguida, o estatuto foi alterado, ampliou
o quadro administrativo e incorporou intelectuais da área das artes no Brasil. Em janeiro
de 1948, nasceu a Fundação de Arte Moderna, de certo modo bastante influenciada pelo
MoMA, após a apreciação do estatuto brasileiro pelo musicólogo e estudioso da cultura
brasileira Carleton Sprague Smith, que na época era conselheiro do museu norte-
americano para o Brasil.
Essa Fundação é considerada o núcleo inicial do MAM-SP, que foi criado naquele
mesmo ano, em 15 de julho de 1948, como uma associação civil. Entre os artistas,
4 | A fotografia na história do Museu de Arte... TOSETTO, G. M.

intelectuais e industriais signatários da escritura do novo museu, estava Thomaz Farkas,


que viria a ser o primeiro fotógrafo a expor no MAM-SP, em 1949. Interessante notar
também que, nesse início, a criação de Comissões Artísticas foi inspirada na divisão de
departamentos do MoMA. No caso do museu brasileiro, estavam contempladas as áreas
de arquitetura, cinema, folclore, fotografia, design gráfico, música, pintura e escultura
(ESTEVES, 2005, p. 39).

As primeiras relações com a fotografia

O interesse pela fotografia já era demonstrado desde o princípio do MAM-SP,


devido principalmente à existência da Comissão de Fotografia, que, além de Farkas,
reunia Chico Albuquerque, Benedito Duarte e Eduardo Salvatore, todos fotógrafos
atuantes na época e considerados precursores da fotografia moderna no Brasil. Porém,
logo no mesmo ano da criação dessas comissões, elas foram destituídas, em decorrência
da falta de atividade de algumas delas. A partir de então, os integrantes passaram a fazer
parte do museu como conselheiros artísticos.
Antes de completar um ano da fundação do MAM-SP, foi realizada, em março de
1949, a exposição inaugural: Do figurativismo à abstração, com curadoria do crítico de
arte belga Léon Degand, que buscou trazer para o Brasil parte da produção moderna
francesa. Na sequência dessa primeira exposição, em julho de 1949, o museu apresentou
o trabalho de Thomas Farkas, em Estudos Fotográficos. Apesar de dar ênfase à
fotografia como uma vertente da arte moderna, o MAM-SP não incorporou, nessa
ocasião, nenhuma obra ao seu acervo. Nesse momento inicial, a instituição almejava
constituir um conjunto mais voltado para a pintura e a escultura, gêneros já consolidados
na arte e que dariam corpo significativo à sua coleção.
Mesmo assim, na primeira década da existência do MAM-SP, a fotografia teve
grande inserção na programação de exposições, demonstrando certo olhar moderno para
esse novo meio. Ao todo, aconteceram seis mostras de fotografia no período inicial, entre
1949 e 1957. Uma delas foi a do artista português recém-radicado no Brasil Fernando
Lemos, em 1953. Outro ponto importante, nessa relação do museu com a fotografia, foi
o envolvimento de nomes ligados ao circuito fotoclubista, já que quatro das primeiras
exposições de fotografia eram de associados do Foto Cine Clube Bandeirante (FCBB),
expoente máximo do movimento no país.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922003, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 5

As mostras 35 fotografias, de German Lorca (1952), e Fotografias Manarini, de


Ademar Manarini (1954), são exemplos de exposições de fotógrafos associados ao Foto
Clube Paulista. A mostra Otto Steinert e seus discípulos também foi realizada por
intermediação do grupo. Para ela, o fotógrafo alemão Steinert, de grande penetração no
circuito fotoclubista internacional, enviou, ao Brasil, cerca de 50 imagens suas e de seus
seguidores ligados ao movimento da Fotografia Objetiva. Essas ações estabeleceram,
naqueles anos iniciais, uma frutífera parceria do MAM-SP com o FCCB, que culminou
com a participação deste em uma sala exclusiva para fotografia na II Bienal de São Paulo,
em 1954, quando o evento ainda era organizado pelo MAM-SP. Importante ressaltar
que nenhuma das fotografias apresentadas, até essa data, foi incorporada à coleção do
museu.
A Bienal de São Paulo, inclusive, mantém forte ligação com a história do Museu
de Arte Moderna e com a reconstrução de sua coleção, principalmente pela crise que
praticamente o extinguiu em 1963. A Bienal surgiu em 1951, também por iniciativa de
Ciccillo Matarazzo, que buscava inserir a cidade de São Paulo no cenário artístico
mundial. Esta tornou-se a principal atividade do MAM-SP até 1961, quando aconteceu
a última edição realizada sob responsabilidade do museu.
Com o crescimento do evento, a Bienal separou-se do MAM-SP em 1962, e foi
criada a Fundação Bienal de São Paulo, que organiza o evento até hoje. Com essa
mudança, Ciccillo passou a ver o museu como um investimento menor (ESTEVES, 2005,
p. 39) e, somado ao desentendimento dele com outros diretores, o industrial doou, em
fevereiro de 1963, todo o acervo do MAM-SP para a Universidade de São Paulo1. O que
era para ser o fim da instituição serviu como alavanca para uma retomada e uma mudança
de direção e, nesse momento, sócios e amigos do MAM-SP se reuniram para reestruturar
as atividades do museu, discutir novos meios de financiamento para mantê-lo, e
incentivar doações públicas e privadas para formação de uma nova coleção. Ainda em
1963, foi aprovado um estatuto que incluiu, a partir daquele momento, o interesse pela
arte contemporânea, tanto na difusão quanto na constituição da coleção.
O primeiro artigo do regulamento deixava claro o objetivo principal do MAM-
SP, inclusive quanto à preferência pela arte nacional: “O Museu de Arte Moderna de São
Paulo, sociedade civil sem fins lucrativos, políticos ou religiosos, tem por objetivo

1
O Museu de Arte Contemporânea foi fundado para abrigar a coleção transferida para a Universidade de
São Paulo. Juntamente com a coleção Matarazzo, foram doados à USP não só as obras incorporadas ao
MAM-SP ao longo dos seus primeiros quinze anos de existência, mas também os prêmios da Bienal de
São Paulo conferidos até aquela data (COSTA, 2008, p. 146).
6 | A fotografia na história do Museu de Arte... TOSETTO, G. M.

constituir um acervo de artes plásticas modernas, principalmente brasileiras, incentivar


e difundir a arte contemporânea” (D'HORTA, 1995, p.34).

O início da coleção de fotografias

Apesar de assumir o interesse pela arte contemporânea, a fotografia ainda não


viria a fazer parte do acervo, nesses anos em que o MAM-SP se reerguia, pois a
prioridade era conseguir importantes obras de arte moderna para a coleção,
principalmente de artistas nacionais, que a instituição havia perdido. Talvez por esse
motivo, a fotografia tenha sido preterida, e reaparece somente em 1980, na exposição da
I Trienal de Fotografia do MAM, quando acontece a primeira aquisição de fotografias
para a sua coleção. Além dessa questão institucional, o ambiente político que se inicia
com o golpe militar de 1964 ocasiona o abrandamento na movimentação cultural e nos
investimentos feitos no museu.
No texto de apresentação da I Trienal, Moracy Rodrigues de Oliveira, integrante
da comissão de seleção e premiação, começa por questionar se, de fato, existe uma
fotografia brasileira. E acaba por fazer uma reflexão sobre a falta de divulgação do
trabalho dos fotógrafos atuantes naquele período:

(...) neste início de anos 80 a questão é polêmica. As esparsas tentativas de


discussão sobre esse tema quase sempre chegam à angustiante conclusão de
que falta um maior conhecimento da produção dos nossos fotógrafos, e de que
inexistem eventos significativos que possam reuni-los num conjunto que
permita as identificações e comparações necessárias (OLIVEIRA, 1980, p. 2).

Oliveira conclui o texto assumindo que a Trienal "permite uma visão, ainda que
incompleta, das principais tendências da produção fotográfica brasileira no momento",
que se reerguia no período final da ditadura militar. O Grande Prêmio da I Trienal, que
contou com a participação de 71 fotógrafos, foi dado ao fotógrafo Miguel Rio Branco,
pela série Coração, espelho da carne: Interiores, composta de seis imagens. Outros cinco
profissionais do ramo foram contemplados com o Prêmio Aquisição e, assim, formou-se
o núcleo inicial da coleção de fotografias do MAM-SP. Em 1980, apenas duas imagens
da série de Rio Branco entraram para a coleção do museu, e as outras quatro fotografias
premiadas na I Trienal foram doadas pelo artista, ao acervo, décadas depois, em 2007.
Os demais artistas que receberam o Prêmio Aquisição foram: Vera Albuquerque,
Orlando Brito, Caíca, Leonardo Tiozo Hatanaka e Anna Mariani, que apresentaram
trabalhos de caráter documental/fotojornalístico.
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As 14 fotografias de Orlando Brito que entraram para a coleção são expoentes


do fotojornalismo praticado nos anos 1970, quando o Brasil vivia sob o regime militar.
As imagens feitas em Brasília datam de 1977 e 1979, e mostram políticos e militares nos
bastidores do poder, antes da abertura democrática, no começo da década de 1980. No
catálogo da I Trienal, o fotógrafo descreve seu trabalho: "É um material colhido no
trabalho do dia a dia no Congresso, no Palácio do Planalto e noutras searas brasilienses
e que não pôde ser aproveitado pelos jornais, que exigem para o leitor uma linguagem
elementar mais acentuada" (OLIVEIRA, 1980, p. 3). Mesmo sendo consideradas
“sobras” do jornalismo, pode-se dizer que esse conjunto de imagens é o embrião do viés
fotojornalístico da coleção de fotografias do MAM-SP.
A importância da Trienal para o acervo de fotografias do MAM-SP não está na
tradição, enquanto evento, pois foi realizada apenas uma vez, mas é de extrema
relevância para o museu, pois ali está a gênese que orientou o crescimento de seu acervo
de fotografias nos anos subsequentes. Nota-se que esse conjunto produzido no final da
década de 1970 possui características documentais, pois foi influenciado pelo momento
de reorganização política da sociedade contra a censura e o autoritarismo. Em 1985, em
uma nova tentativa de se aproximar da fotografia, o MAM-SP realiza a I Quadrienal de
Fotografia, com curadoria de Paulo Klein e participação de 70 fotógrafos, entre eles
muitos dos que viriam a fazer parte do acervo após esse evento.
Logo na apresentação da I Quadrienal, o então presidente do museu, Aparício
Basílio da Silva, expôs os motivos políticos e econômicos para a interrupção da Trienal
de Fotografia e o desejo de se organizar, a partir dali a Quadrienal, o que também acabou
por não acontecer.

Há alguns anos, o Museu organizou uma exposição de fotografia, que naquele


tempo pretendia ser trienal. Devido à reconstrução do prédio e a outras
dificuldades, como a eterna falta de verbas, acentuada pela imensa crise que o
país atravessa, esse prazo não foi cumprido (SILVA, 1985, p.1).

Assim, a intenção do curador era apresentar e atualizar o panorama nacional de


fotógrafos, por meio dessa exposição, que aconteceu após o término da ditadura militar.
“Essa Quadrienal é um imenso painel das verdades brasileiras, pré e nova República,
reajeitando as pernas para um tempo novo, entre Belém e Maranhão, Porto Alegre e
Distrito Federal, Sampa, Rio e Bahia de Todos os Santos”, afirmou Klein no texto do
catálogo (SILVA, 1985, p. 1). A abertura política para um novo governo favoreceu
também uma brecha para se conhecer outros olhares dentro do território brasileiro.
8 | A fotografia na história do Museu de Arte... TOSETTO, G. M.

Ao contrário da Trienal, na Quadrienal não houve Prêmio de Aquisição, porém,


alguns dos fotógrafos acabaram por doar seus trabalhos, tornando esse evento também
fundamental na formação embrionária da coleção de fotografias do MAM-SP. Depois da
Quadrienal, que também só aconteceu uma vez na história do museu, poucas fotografias
entraram para a coleção e, após dez anos, no final de 1995, existiam apenas 140 obras
nessa categoria (CHIARELLI, 2002, p. 11).
Apesar de não haver incrementado o acervo de fotografias de maneira
significativa até a primeira metade de 1990, o museu deu início a uma série de exposições
voltadas especificamente para essa mídia, e promoveu uma ruptura com os trabalhos
documentais expostos e incorporados à coleção na década anterior, como a Iconógrafos,
14 Fotógrafos Hoje. Com curadoria de Eduardo Brandão, a "principal característica
desse evento, em que os participantes desenvolvem projetos independentes – formal e
conceitualmente –, é evidenciar o trabalho autor-artista que utiliza a fotografia como
instrumento de interferência e meio de expressão" (BRANDÃO, 1990, p. 2). Foram
apresentadas, na ocasião, fotografias de artistas que viriam a compor a coleção em anos
posteriores, como Rochelle Costi, Rosângela Rennó, Paula Trope e Rubens Mano.
A partir de meados da década de 1990, acontecem as primeiras exposições
fotográficas internacionais no museu, uma política favorecida pela estabilidade política e
econômica e pelas empresas que passam a dar apoio às instituições de arte brasileiras. Os
destaques foram a mostra The Self Which Is Not One, de Cindy Sherman, em 1995; e as
retrospectivas do fotógrafo norte-americano Robert Mapplethorpe, em 1996, e do artista
plástico/designer/escultor/fotógrafo russo Alexander Rodchenko, em 1997. Sobre
essas duas últimas exposições, o então curador Tadeu Chiarelli as menciona como dois
exemplos do esforço de trazer mostras internacionais para o programa do museu,
orientado por uma política de escolha das exposições internacionais do MAM que “se
ramifica em três linhas gerais – apresentar mostras substantivas de artistas ligados à
arte moderna; exposições significativas de artistas contemporâneos; e grandes mostras
ligadas a artistas latino-americanos do século XX” (CHIARELLI, 1998, p. 15). Na
primeira linha, está a exposição de Rodchenko, e, na segunda, a de Mapplethorpe, que
teve a curadoria do italiano Germano Celant.
Em 1999, o MAM-SP recebe uma exposição com 125 fotografias em preto e
branco do acervo do MoMA, retomando, de certo modo, o contato entre as instituições
que havia se perdido desde os anos 1950.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922003, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 9

Estas três exposições demonstravam o interesse da curadoria do museu pela


fotografia, questão que teria seus rebatimentos em exposições promovidas
pelo museu com fotógrafos brasileiros e pelo incentivo que foi dado à
ampliação da coleção de fotografia do MAM entre 1996 e 2000. Pelo menos
25% das 1.294 obras recentemente ingressadas no acervo nesses cinco anos
eram fotografias" (CHIARELLI, 2005, p.15).

Como mencionado por Chiarelli, na segunda metade da década de 1990


aconteceram importantes aquisições de fotografias para o acervo do MAM-SP, como em
1995, por ocasião do Panorama de Arte Brasileira – evento que ocorre a cada dois anos
no museu2.
Na edição de 1995, duas artistas que trabalham com fotografia foram premiadas
e suas obras incorporadas à coleção, mostrando o então crescimento do meio fotográfico
na arte contemporânea brasileira. Passaram a fazer parte do acervo a obra intitulada
Para as dúvidas da mente, da artista multimídia gaúcha Rochelle Costi, constituída de
fotografias coloridas e espelhos, e o tríptico de fotografias em cores da série Os meninos,
da artista visual carioca Paula Trope.
O ano seguinte, 1996, é marcado por uma mudança estrutural no museu. O cargo
de diretor técnico se transformou em curador-chefe, e Tadeu Chiarelli passa a ocupar
essa posição. Surge, com a alteração, o Departamento de curadoria e, segundo o novo
curador, "essa mudança possibilitou efetivar uma ênfase real na situação do acervo do
MAM, no sentido de estudá-lo, conservá-lo e ampliá-lo, através de uma política
determinada para a obtenção de doações e futuras aquisições" (CHIARELLI, 1998, p.
16).
Ainda em 1996, a coleção recebe a doação de três artistas – Carlos Freire (através
de Milú Villela, que de 1995 a 2019 foi presidente do MAM-SP e, ocasionalmente,
contribuiu com a ampliação da coleção por meio de doações); Rochelle Costi e Caio
Reisewitz, que "apontariam o caminho que a instituição iria seguir no tocante à
ampliação de seu acervo de fotografias: um caminho plural, interessado em sublinhar a
presença de grandes nomes da fotografia brasileira ‘pura’ e aquela ‘contaminada”
(CHIARELLI, 2002, p. 10).
Na categoria “pura”, estavam fotografias de Carlos Freire, dois retratos (Francis
Bacon e Carlos Drummond de Andrade), um registro do funeral de Glauber Rocha e
uma foto de escultura feita em Nápoles, na Itália. Todas essas imagens se aproximam do

2
O Panorama da Arte Brasileira, ou apenas Panorama, como é conhecido, foi criado em 1969 com o
propósito de reconstruir o acervo do MAM-SP. O evento é realizado a cada dois anos, como um espaço
de experimentação para curadores e de mapeamento da produção contemporânea em todas as regiões
do país.
10 | A fotografia na história do Museu de Arte... TOSETTO, G. M.

fotojornalismo. Entre as fotografias “contaminadas”, estão o trabalho de Rochelle Costi


50 horas: Autorretrato roubado, em que constrói um mosaico de pintura e fotografias,
feitas a partir de sua própria experiência como modelo vivo em uma classe de pintura; e
Caio Reisewitz, com a série 242-1, composta de 12 obras criadas a partir de fotografias
de arquivo.
Em 1997, o então curador-chefe do MAM-SP organiza uma exposição
totalmente dedicada à fotografia: Identidade/Não-Identidade: A Fotografia Brasileira
Atual, que contou com a participação de 18 artistas e tinha como um dos objetivos "trazer
para o acervo do Museu outros exemplares significativos desse novo momento da
fotografia do país, para que a coleção se tornasse rapidamente uma de suas referências
nacionais" (CHIARELLI, 2002, p. 10).
O título da exposição faz referência ao afastamento daquela nova produção frente
à tradição na fotografia brasileira, que, durante todo o século XX, procurou dar
visualidade às paisagens e identidades nacionais. Em oposição, foram escolhidos, para
essa mostra, artistas que buscavam novos valores para si, para a arte e para a fotografia.
Eram produções atuais da arte nacional contemporânea que tinham a fotografia como
elemento estrutural.
No folheto da exposição, consta a seguinte observação sobre a característica dos
artistas escolhidos: "dois grupos de artistas se destacam; um tem como base o corpo do
outro, e o outro grupo busca registrar a existência da fotografia no mundo". Nessa
mostra de 1997, misturaram-se obras que já faziam parte da coleção do MAM-SP, como
Rochelle Costi e Paula Trope; e outras pertenciam a diferentes coleções institucionais,
como o trabalho de Rosângela Rennó, oriundo da Galeria Camargo Vilaça. Havia, ainda,
obras de coleções particulares de artistas como Rafael Assef, Marcelo Arruda e Leila
Reinert, que as doaram por ocasião da exposição.
Uma importante publicação sobre a história e a formação da coleção do MAM-
SP foi lançada em 1998, com o apoio do Banco Safra e texto do curador Tadeu Chiarelli.
Ali, estão relatados os principais acontecimentos que envolvem o museu, desde sua
fundação até as primeiras doações após a restruturação em 1963. Em certo trecho do
texto, Chiarelli, que estava à frente do MAM-SP havia dois anos, faz um importante
comentário sobre constituição da coleção:

A política de ampliação do acervo de qualquer instituição não deveria estar


atrelada basicamente às circunstâncias de uma premonição (com todas as
implicações de momento que a envolve), e nem às propostas de doações vindas
em grande parte apenas dos artistas interessados... Uma política autônoma
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922003, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 11

para aquisições é a estratégia mais coerente para qualquer museu exercer um


processo de institucionalização de valores artísticos duradouros
(CHIARELLI, 2002, p. 12).

Após essa afirmação, no ano seguinte (1999), o MAM-SP recebe uma série de
doações de artistas e empresas que fazem crescer consideravelmente sua coleção de
fotografias. Um exemplo de doação empresarial foi a realizada após o Prêmio J.P.
Morgan de Fotografia, promovido pelo Banco J.P. Morgan, cujo júri (Eder Chiodetto,
João Paulo Farkas, Marcos Santilli e Paulo Klein) premiou 28 fotógrafos e os integrou
ao acervo do museu. Alfredo Gutierrez, presidente do J.P. Morgan, revelou, na ocasião,
as intenções dessa premiação: "É com satisfação, também, que doamos uma cópia dessa
coletânea ao acervo permanente do MAM – Museu de Arte Moderna de São Paulo para
a apreciação do público brasileiro". O banco, instalado no país na década de 1960, deu
início a uma importante coleção de arte brasileira, que inclui as fotografias desse prêmio.
Segundo Luiz Camillo Osorio, um dos curadores da coleção, "tem-se um núcleo de
fotografia ecoando a política do próprio acervo institucional, que na última década
apostou fortemente no meio fotográfico" (OSORIO, 2003, p. 168).
O tema da premiação foi O Brasil na virada do século e as perspectivas para o
novo milênio. Eustáquio Neves ficou com o Grande Prêmio; Ed Viggiani, Paulo
Fridman, João Urban e Penna Prearo receberam o Prêmio Ensaio e tiveram todas as
fotografias apresentadas incorporadas à coleção. Já o Prêmio Aquisição, em que apenas
uma fotografia de cada autor seria integrada ao museu, foi dado aos outros 23 fotógrafos
participantes, incrementando, de maneira significativa, o número de autores na coleção.
Esse foi o momento, no desenvolvimento da coleção brasileira, com maior número de
autores incorporados ao mesmo tempo, em sua grande maioria com produções
documentais, incluindo fotojornalistas. Entre os membros do júri, estava Eder
Chiodetto, editor ligado ao fotojornalismo e futuro curador de fotografia do MAM-SP,
reafirmando a potência da vertente documental na coleção fotográfica.
Os premiados com a aquisição foram: Alexandre Santana, Cássio Vasconcellos,
Claudia Jaguaribe, Claudio Edinger, Claudio Elisabetsky, Claudio Feijó, Cris
Bierrenbach, Eduardo Muylaert, Eduardo Simões, Egberto Nogueira, Fabiana
Figueiredo, Fausto Chermont, Gal Oppido, Iatã Cannabrava, Juvenal Pereira, Marcos
Prado, Marlene Bergamo, Maurício Simonetti, Monica Zarattini, Paula Simas, Rogério
Reis, Rubens Mano e Willy Biondani. Alguns desses fotógrafos tiveram outras obras
incluídas na coleção do MAM-SP nos anos seguintes, indicando continuidade em suas
produções.
12 | A fotografia na história do Museu de Arte... TOSETTO, G. M.

Segundo Tadeu Chiarelli (2002), desde que incorporou à coleção o conjunto


advindo da exposição Identidade/Não-Identidade: A Fotografia Brasileira Atual, criou-
se um abismo frente às que estavam lá há mais tempo, voltadas "para as especificidades
da linguagem e para os temas tradicionais da fotografia" (CHIARELLI, 2002, p. 11). A
partir daí a direção a ser estabelecida na constituição do conjunto de fotografias era
diminuir esse distanciamento entre o núcleo original e o adquirido no final da década de
1990. De certo modo, eram uma vertente documental nacional e outra mais conectada
com questões artísticas, como suporte e experimentação. As pontes para estreitar esses
dois grupos foram pensadas a partir do núcleo inicial que, por afinidade estética e
conceitual, deu origem a conjuntos que orientariam novas aquisições para o acervo, até
a criação do Clube de Colecionadores de Fotografia, em 2000. Um desses elos aconteceu
pela “metafotografia”, que era a reunião de fotografias que apresentavam como referente
outra fotografia ou mesmo um espelho ou janela.
Outra vertente bastante relevante e presente, desde o núcleo inicial da coleção,
são as imagens relacionadas à visualidade da cidade de São Paulo. No princípio, havia o
trabalho de Caíca sobre o viaduto Major Quedinho, na região central de São Paulo;
Carlos Fadon Vicente e a Avenida Paulista; e Leonardo Hatanaka, mostrando a
imponência de edifícios da grande metrópole sul-americana. Foi a partir daí que German
Lorca, um dos maiores nomes da história da fotografia brasileira, teve seu arquivo de
imagens de São Paulo revisitado, e parte de seu trabalho entrou para a coleção do MAM-
SP, com fotografias que retratam a cidade desde a década de 1940 até finais dos anos
1990. Chiarelli cita seu empenho pessoal nessa tarefa, de ter o "privilégio de escolher
várias dezenas de fotografias de German Lorca para ingressarem no acervo do Museu,
[razão pela qual] procurei sublinhar ao máximo a capacidade desse artista em flagrar
São Paulo" (CHIARELLI, 2002, p. 16).
Em 1999, foi realizada uma pequena retrospectiva no espaço MAM-Higienópolis,
em comemoração à doação que Lorca fez ao museu. "Essa mostra mobilizou o artista a
ampliar sua doação, o que levou a Instituição a realizar uma outra exposição sua em
2000." (CHIARELLI, 2005, p. 10). Intitulada São Paulo por German Lorca, a mostra
reuniu somente fotografias da cidade.
Em 2002, o fotógrafo volta a expor no MAM-SP, com German Lorca fotografias:
Acontece ou faz acontecer? A mostra ocorre 50 anos depois de sua primeira individual
no museu, e reúne 120 fotografias, sendo 33 da coleção do MAM-SP. Naquele ano,
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922003, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 13

entraram para a coleção outras cinco fotografias de Lorca, sendo uma através do Clube
de Colecionadores de Fotografia e as demais, por meio de aquisição.
O segmento de fotografias da cidade de São Paulo foi um dos que mais cresceram
no começo dos anos 2000, e trouxe, para a coleção, nomes importantes como o do
húngaro Thomaz Farkas. Esse fotógrafo, além de ter sido o primeiro a expor no MAM-
SP e um dos pioneiros da fotografia moderna no Brasil, foi também responsável, ao lado
de Geraldo de Barros, por estabelecer a base experimental para a fotografia brasileira, já
na década de 1940, o que se reflete em muitos trabalhos contemporâneos que entraram
para o acervo nos anos 2000. Outro pioneirismo relevante na biografia de Farkas foi em
1959, quando uma de suas imagens se tornou a primeira fotografia brasileira a entrar
para a coleção do MoMA, em Nova York.
De certo modo, essas aquisições também apontam para a postura curatorial do
MAM-SP à época, de seguir ampliando, não apenas o núcleo de obras ligado a uma
tradição da visualidade fotográfica, mas também o de viés experimental. Deixando,
assim, evidente que o museu seguia com o "propósito de transformar-se, de fato, num
importante centro de preservação, exibição e estudo da fotografia brasileira moderna e
contemporânea" (CHIARELLI, 2002, p. 16).
Entre 1999 e 2000, um dos programas desenvolvidos pelo MAM-SP para a
ampliação de sua coleção afetou diretamente a área da fotografia: o evento Imagem
Experimental, patrocinado pela empresa Telesp Celular.

Era composto por uma série de exposições simultâneas de jovens artistas que
trabalhavam com fotografia e novas mídias. O MAM-SP escolhia os artistas
e as obras a serem expostas, das quais selecionava uma ou mais, de cada
artista, para ser comprada pela empresa e doada para o Museu (CHIARELLI,
2005, p. 12).

Por meio desse programa pago pela iniciativa privada, entraram para a coleção
obras de Caio Reisewitz, Dora Longo Bahia, Paulo D'Alessandro e Helena Martins-
Costa.
Na sequência, em 2001, uma importante mostra faz uma análise sobre o acervo
de fotografias do MAM-SP, sob o título Fotografia/Não Fotografia e com curadoria
executiva de Rejane Cintrão. Essa exposição reuniu, principalmente, obras adquiridas
pelo museu nos anos anteriores, ainda sob gestão de Tadeu Chiarelli, propondo uma
reflexão sobre os limites, fronteiras e possibilidades expressivas que a fotografia
14 | A fotografia na história do Museu de Arte... TOSETTO, G. M.

apresenta. Além disso, essa exposição tornou explícitas "duas das grandes preocupações
da gestão anterior: a exibição e a catalogação da fotografia contemporânea"3.

O Clube de Colecionadores de Fotografia

A preocupação em mapear a fotografia contemporânea de maneira sistemática e


o incremento financeiro para o museu deram o impulso para a criação do Clube de
Colecionadores de Fotografia em 2000, que funciona até os dias atuais. O mecanismo do
clube funciona do seguinte modo: a cada ano, são selecionados cinco artistas que
trabalham com fotografia, para terem suas obras integradas à coleção, e cópias são
distribuídas entre os sócios. Essa ação surgiu motivada pela experiência bem-sucedida
do Clube de Colecionadores de Gravura, que já funcionava no museu brasileiro desde
1986. "Este tipo de Clube não foi criado pelo MAM e sabe-se que ele remonta desde a
experiência expressionista na Alemanha, no começo do século XX" (CHIARELLI, 2005,
p. 16).
Sobre a principal distinção entre os dois clubes do museu, Chiarelli (2005) faz
menção ao caráter mais conservador que predominava nos primórdios do Clube de
Fotografia:
Cumpre ressaltar que, se o Clube de Colecionadores de Gravura mantinha
uma atitude de caráter experimental perante a gravura, o Clube de
Colecionadores de Fotografia, possuiu desde sempre um viés mais
conservador. Nesse Clube, as obras escolhidas, a princípio, tinham dimensões
predeterminadas e deviam ser apenas em branco e preto (CHIARELLI, 2005,
p.16).

Segundo Chiodetto (2010, p. 80), um dos fatores que ajudaram na criação desse
clube "foi o trabalho que o museu estava fazendo no sentido de recuperar a fotografia de
uma maneira geral, investindo também nas vertentes mais experimentais", mesmo que
a princípio só fossem aceitas fotografias em suporte preto e branco.
Apesar de não ter sido partidário, inicialmente, da ideia de um Clube de
Fotografia, proposta pela então curadora assistente, Rejane Cintrão, Chiarelli acredita
que ele vem ajudando a ampliar o acervo do MAM-SP, e lembra, em entrevista de 2010,
seu envolvimento no projeto e com os artistas, a partir da visita que fez ao fotógrafo João
Luiz Musa "para convidá-lo a participar do Clube. Escolhemos juntos a fotografia".

3
MAM exibe a arte inspirada na foto. In Agência Estado, 2001. Disponível em:
http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,mam-exibe-a-arte-inspirada-nafoto,20010131p8740.
Acesso em 01 set. 2017.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922003, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 15

O intuito principal do clube ainda é "repertoriar e dar visibilidade à produção


fotográfica no Brasil (...) [o que] contribui para fomentar a reflexão em torno dessa
forma de arte, que se confunde com a história das sociedades modernas" (CHIODETTO,
2010, p. 10). Além de valorizar o trabalho de artistas e fotógrafos, o clube estimula o
colecionismo e traz renda à instituição, pois cada sócio paga um valor anual ao museu
(6.200 reais em 2020).
O Clube de Colecionadores de Fotografia, desde sua origem, funciona então como
um mecanismo que procura dar conta de ordenar a entrada de novas obras na coleção de
fotografias da instituição, que vinha se consolidando no cenário nacional desde a década
anterior. Segundo Eder Chiodetto (2010, p. 80), curador do clube desde 2006, a coleção
de fotografias do MAM-SP “tornara-se mais sistemática cerca de 20 anos antes. Em
meados dos anos 1990, quando o museu passou a apresentar, colecionar e discutir mais
efetivamente a fotografia contemporânea, a coleção foi incrementada de maneira
significativa”.
No primeiro ano do clube, em 2000, entraram, para a coleção, trabalhos de Tuca
Reinés, João Luiz Musa, Romulo Fialdini, Rochelle Costi e Vicente Mello. Destes,
apenas Musa ainda não possuía obras no acervo do museu. No mesmo ano, o fotógrafo
doou outros dois trabalhos seus ao MAM-SP. No terceiro ano do clube, em 2002,
passaram a fazer parte da coleção: Claudia Andujar, Arnaldo Pappalardo, German Lorca,
Gal Oppido e Nair Benedicto. Desta fotógrafa, existe apenas uma obra (Untitled, 1978)
na coleção do MAM-SP, e uma cópia da mesma imagem se encontra na coleção do
MoMA.
Em 2002, com a saída de Ivo Mesquita, foi constituída uma Comissão Curatorial
formada por Tadeu Chiarelli, Felipe Chaimovich e Maria Alice Milliet, sob a curadoria-
executiva de Rejane Cintrão. Em entrevista, Rejane explica que a situação do MAM-SP,
a partir daquele momento, ficaria como antes da gestão de Tadeu Chiarelli, portanto,
antes de 1996. "O Tadeu tinha o cargo de diretor, mas cada vez mais começou a tomar
um perfil mesmo de curador das exposições. Agora, a comissão curatorial terá esse papel,
e o Tadeu vai retomar suas atividades em relação ao acervo do museu, como a aquisição
de novas obras"4. A Comissão se reunia mensalmente e funcionava como apoio e

4
MAM define nova comissão curatorial. In: Agência Estado (2002). Disponível em:
http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,mam-define-nova-comissao-curatorial,20020813p7513.
Acesso em: 01 set. 2017.
16 | A fotografia na história do Museu de Arte... TOSETTO, G. M.

orientação para a execução de trabalhos propostos pelos membros da comissão e por


curadores externos ao museu.
No ano seguinte, em 2003, participaram do clube: Maureen Bisilliat, Amilcar
Packer, Ricardo Teles, Vania Toledo e Fausto Chermont, que doou outras duas obras,
para a coleção, naquele mesmo ano. Ainda em 2003, o museu inaugura a exposição Clube
de Colecionadores de Fotografia do MAM, com as 19 obras que haviam entrado na
coleção do MAM-SP por meio do clube. A mostra aconteceu no MAM Higienópolis,
espaço secundário instalado em outro edifício na cidade de São Paulo, em parceria com
um centro comercial, de 1999 a 2003.
Em 2004, os artistas escolhidos para terem suas obras na coleção através do clube
foram: Paulo D'Alessandro, Cristina Guerra, Penna Prearo, Cássio Vasconcellos e
Márcia Xavier. Em agosto de 2004, o MAM apresenta a exposição Fotografia e
Escultura no Acervo do MAM, com curadoria de Tadeu Chiarelli. Da parte da fotografia,
a mostra apresentou artistas e obras que já faziam parte da coleção e outros mais
recentes, como Juan Esteves, que havia doado 31 fotografias para o museu em dois
momentos anteriores (2003 e 2004); Pablo Di Giulio, que havia doado seis fotografias ao
MAM-SP, em 2002 e 2004; e Ding Musa, que em 2003 doou três fotografias para a
instituição.
Sobre esses casos específicos, Chiarelli (2005) tece um pequeno comentário:

Independentemente de doarem seus trabalhos para os clubes, outros artistas


– entendendo a importância da política da instituição de desenvolver um
trabalho consequente de ampliação da coleção – não se furtaram a doar
trabalhos para a instituição quando foram solicitados (CHIARELLI, 2005,
p.11).

Em 2005, o clube traz, para a coleção, obras de Rafael Assef, Thomaz Farkas,
Walter Firmo e Klaus Mitteldorf. Ainda naquele ano, dois acontecimentos na área da
fotografia merecem destaque: o primeiro é a exposição individual de Luiz Braga
intitulada Retratos Amazônicos, comemorativa de seus 30 anos de carreira, e com
curadoria de Tadeu Chiarelli. Foram exibidas 60 imagens, sendo seis delas pertencentes
à coleção do MAM-SP, doadas em 1999 pelo próprio artista. No ano seguinte, em 2006,
a coleção recebeu, através de doação do Banco Itaú, outras 50 fotografias do artista que
haviam integrado a exposição.
Em 2005, um ano antes de assumir a curadoria do Clube de Colecionadores de
Fotografia, Eder Chiodetto doou uma série de 25 retratos em preto e branco, feitos de
escritores brasileiros. No ano seguinte, em 2006, acontecem duas exposições de
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922003, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 17

fotografia simultaneamente no MAM-SP: O Brasil de Pierre Verger, com imagens


pertencentes à fundação do fotógrafo francês, e a posterior doação de três das obras
expostas; e Veracidade, com curadoria de Chiodetto e fotografias da coleção do MAM-
SP. Entre as obras participantes, estavam algumas recém-doadas por Alberto Bitar,
Fabio Okamoto, Julio Sannazzaro e Mariano Klautau Filho, em 2005; e por Paulo
D'Alessandro e Thomaz Farkas, através do Clube de Colecionadores também no mesmo
ano.
Segundo o curador Chiodetto (2006), essa exposição pretendia "investigar, a
partir do acervo de fotografias do MAM-SP, com obras realizadas entre a década de
1940 e as doações e aquisições feitas até 2006, como se deu a evolução do olhar sobre o
espaço urbano, reflexo direto das inquietações do homem contemporâneo". A mostra da
própria coleção, através de distintas leituras, montagens e diálogos com outras coleções,
tornou-se uma constante na programação do MAM-SP, no início dos anos 2000. Em
2006, por decisão do Conselho Consultivo de Artes, tanto o Clube de Colecionadores de
Fotografia, como o Clube de Colecionadores de Gravura, passou a ter curadores
específicos. Foi assim que Chiodetto (2010, s/p.) ficou encarregado "da função de
pesquisar, selecionar artistas e, junto com esses, escolher os trabalhos a serem
incorporados ao acervo do museu e às coleções particulares dos sócios".
A partir da curadoria de Eder Chiodetto, as obras que integram o clube
necessariamente se encaixaram em algumas das cinco frentes de pesquisa desenvolvidas
por ele, que são:

pautadas por vertentes da produção nacional que abarcam da fotografia


documental à experimental, explorando as imbricações da linguagem com o
real, suas fronteiras com a ficção e a fotografia como suporte do trabalho de
diversos artistas que passaram a cruzá-la com linguagens como a
performance, a pintura e a gravura, entre outras (CHIODETTO, 2010, s/p.).

Dentro desse pensamento investigativo, que busca ordenar e formar um conjunto


representativo da fotografia nacional, tanto para a coleção do MAM-SP quanto para as
coleções particulares dos sócios, as frentes de pesquisa foram divididas em: Identidade
Nacional, Documental Imaginário, Limites/Metalinguagem, Retrato/Autorretrato e
Vanguardas Históricas. Importante notar que a vertente documental, presente desde a
gênese da coleção de fotografias, aparece em frentes como resgate histórico, busca de
identidade e possibilidade de se aliar ao imaginário contemporâneo.
A frente Identidade Nacional se ocupa da tradição do fotodocumentarismo
relacionado à cultura e à história do Brasil. Enquanto Documental Imaginário busca
18 | A fotografia na história do Museu de Arte... TOSETTO, G. M.

incorporar, ao acervo, uma vertente renovada do documentarismo, que surge após a


década de 1990, tendo como base criativa, as novas tecnologias presentes em distintas
manifestações artísticas no período, acompanhadas de uma forte carga de subjetividade.
Limites/Metalinguagem envolve a questão da imagem fotográfica enquanto
ferramenta/suporte para outras obras de arte, que questionam o próprio estatuto da
fotografia como imagem técnica. Segundo Chiodetto (2010, s/p.), "é a frente exploratória
que mais trabalhos tem oferecido ao acervo e aos sócios do clube, justamente por travar
um diálogo mais abrangente com o restante da coleção de arte contemporânea do MAM-
SP".
Retrato/Autorretrato, por sua vez, reúne a produção do gênero de fotografia
mais presente em toda a história dessa mídia: "a representação do outro [, que] também
pode ser a livre criação de um ser imaginário que é a somatória da projeção dos devaneios
do fotógrafo e dos personagens à sua frente" (CHIODETTO, 2010, s/p.). Por fim, a
frente Vanguardas Históricas procura integrar ao acervo "autores e trabalhos que, em
diversos momentos da história da fotografia brasileira, tiveram uma importância
fundamental para renovar a produção e o pensamento do fazer fotográfico"
(CHIODETTO, 2010, s/p.). A partir dessas linhas, o curador do clube determina os
trabalhos que vão integrar a Coleção de Fotografia do MAM-SP, anualmente, de
maneira voluntária e, por não receber qualquer quantia em dinheiro do museu, recebe
como contrapartida uma cópia de cada obra inserida na coleção.
No primeiro ano do clube, com curadoria de Chiodetto, entraram para a coleção:
Lucia Koch, Fernando Lemos, Edu Marin, Eduardo Ruegg e Paula Sampaio. Em 2007 e
2008, o artista português Fernando Lemos doou outras sete fotografias feitas no final da
década de 1940 e começo de 1950. De 2007 a 2014, entraram para a coleção, através do
Clube de Colecionadores de Fotografia, os seguintes artistas: Adriana Varejão, André
Cypriano, Araquém Alcântara, Bárbara Wagner, Boris Kossoy, Breno Rotatori, Caio
Reisewitz, Cao Guimarães, Cia de Foto, Christian Cravo, Claudio Edinger, Delson
Uchôa, Eustáquio Neves, Felipe Cama, Flávio Damm, Guilherme Maranhão, Guy
Veloso, Hirosuke Kitamura, João Castilho, Jonathas de Andrade, Lenora de Barros, Luiz
Braga, Marcelo Silveira, Mídia Ninja, Miguel Chikaoka, Nelson Leirner, Odires
Mlászho, Paulo Nazareth, Pedro David, Pedro Motta, Regina Silveira, Rodrigo Braga,
Rosângela Rennó, Sandra Cinto, Sofia Borges, Thiago Rocha Pitta, Tony Camargo e
Vera Chaves Barcellos.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922003, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 19

Dentro desse período, merecem destaque duas exposições de fotografias


realizadas em 2007: Fotografia em Perspectiva, com curadoria de Carolina Soares, e
construída com itens da coleção do MAM-SP, e A Fotografia na Coleção do IVAM, fruto
de um intercâmbio entre obras fotográficas com o Instituto Valenciano de Arte
Moderna, na Espanha, que trouxe 59 fotografias de sua extensa coleção para o museu
brasileiro, incluindo nomes históricos como William Fox Talbot e Edward Steichen.
Naquele mesmo ano, acontece uma importante mudança no museu, quando Felipe
Chaimovich, então membro da Comissão Curatorial, torna-se o curador do MAM-SP,
recriando uma função que estava vaga desde a saída de Ivo Mesquita, em 2002. Antes
mesmo de assumir a posição, Chaimovich defendeu a implementação de uma política de
aquisições mais abrangente, cuja "ideia é tornar o acervo mais representativo"
(LONGMAN, 2006, s/p.).
Nessa mesma entrevista, o atual curador do museu faz menção aos riscos que os
programas de aquisição de obras do MAM-SP assumem, incluindo os Clubes de
Colecionadores: “O MAM assume a sua posição de risco, inclusive, adquirindo obras de
arte contemporânea no momento que estão sendo experimentadas, sem ter a perspectiva
de que determinada produção vai sobreviver na história ou não”. Essa postura é
intrínseca ao ato de colecionar, que a partir da incorporação de fragmentos de interesse,
constrói uma outra história, resultando em um mosaico de possibilidades visuais
agrupadas, como nos conjuntos de fotografias.
Em 2009, o museu sedia uma importante exposição intitulada Olhar e Fingir:
Fotografias da Coleção Auer, com curadoria de Eder Chiodetto e da historiadora
francesa Elise Jasmin. A mostra reuniu cerca de 290 fotografias da coleção do casal suíço
Michel e Michèle Auer. Ainda em 2009, o fotógrafo Caio Reisewitz, que já possuía obras
na coleção, através de doação nos anos 1990 e por meio do clube em 2008, foi convidado
a participar do Projeto Parede, ocupação que acontece duas vezes por ano no corredor
de acesso entre as salas principais do museu. A instalação construída pelo artista foi
composta de várias fotografias em preto e branco, em referência ao Muro de Berlim.
Nenhuma delas, porém, foi integrada à coleção permanente.
Em 2012, uma importante exposição fotográfica de âmbito internacional teve
lugar no MAM-SP: a individual do artista alemão Wolfgang Tillmans, com curadoria
de Felipe Chaimovich, Hans Ulrich Obrist, Julia Peyton-Jones e Sophie O’Brien. Foi a
primeira mostra individual de Tillmans na América Latina e contou com 300 obras de
seu acervo pessoal. Nenhuma delas, no entanto, foi incorporada ao acervo do museu. No
20 | A fotografia na história do Museu de Arte... TOSETTO, G. M.

ano seguinte, em 2013, o MAM-SP abrigou a mostra Lady Warhol, com curadoria e
fotos de Christopher Makos. As imagens foram feitas no início da década de 1980, com
Andy Warhol travestido de mulher, e deram origem à série Mistaken Identity.
De volta ao Clube de Colecionadores, Eder Chiodetto torna a explicar seu
funcionamento, após o anúncio dos artistas da edição de 20145:

A cada ano, submeto ao Conselho Consultivo de Artes e ao curador do museu


uma lista de fotógrafos ou artistas plásticos que utilizam fotografia em seus
processos criativos. Aprovamos cinco nomes, dentro de algumas linhas de
pesquisa que criei para dar maior consistência ao acervo e preencher lacunas
que ele ainda possui. Cada um desses cinco selecionados é convidado a doar
uma obra ao museu. Mas essa escolha é bastante debatida entre mim e o
fotógrafo convidado, para que ela seja bem representativa do trabalho dele e
dialogue de forma orgânica com o acervo.

Nessa mesma entrevista, Chiodetto aponta algumas razões para a inclusão de


diferentes tipos de obras e artistas ao longo dos últimos anos, como o trabalho da rede
descentralizada de mídia de esquerda Mídia Ninja, que ingressou no acervo em 2014 e
que se encaixa mais na esfera do jornalismo do que da arte, ao se apresentar como uma
alternativa à imprensa tradicional. "Significa que o museu segue na sua linha de
questionar e lançar perguntas sobre o estatuto da fotografia no contexto da arte
contemporânea”. Essa afirmação do curador se torna digna de nota por explicitar o
interesse do museu na arte contemporânea, ao correr riscos e questionar a função da
fotografia na contemporaneidade. A fotografia da Mídia Ninja foi feita durante os
protestos de junho de 2013 em várias cidades do Brasil, organizados a princípio para
manifestar contra o aumento do valor do transporte público, mas que se tornaram um
movimento contra o governo, com amplas reivindicações sociais.

De certo modo, algumas frentes de pesquisa do Clube de Colecionadores de


Fotografia são similares às orientações que o museu já seguia para incrementar sua
coleção de fotografias antes da própria existência do clube, entre 1996 e 2000, quando
Tadeu Chiarelli era o curador-chefe. A metafotografia, que era uma das pontes entre o
núcleo inicial do acervo e as aquisições do final da década de 1990, reaparece na frente
de pesquisa Limites/Metalinguagem. Ali, essa ideia se amplia e passam a ser incluídas
obras que ultrapassam o limite da representação mimética da fotografia, abrindo o
potencial da imagem técnica para um contexto maior da arte contemporânea.

5
Mídia Ninja fará parte do acervo do MAM-SP. Blog Entretempos, Folha de S.Paulo (2013). Disponível em:
http://entretempos.blogfolha.uol.com.br/2013/11/08/midia-ninja-fara-parte-do-acervo-do-mam-sp/.
Acessado em setembro de 2017.
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Outra frente de pesquisa do Clube de Colecionadores, que retoma uma das


preocupações do final da década de 1990, é o retrato. Sem desviar do conjunto formado
desde o núcleo inicial da coleção, que buscava constituir, através desse tipo de fotografia,
uma paisagem humana brasileira, a ideia dessa frente de pesquisa, segundo seu curador,
é pontuar a evolução e a complexidade dos retratos contemporâneos.
Em 2014, após o anúncio das obras do Clube de Colecionadores, aconteceu a
exposição Poder Provisório, com curadoria de Eder Chiodetto e exibição de 86 obras da
coleção que têm a fotografia como suporte. A mostra foi composta por obras realizadas
nos últimos 50 anos e buscava "provocar uma reflexão acerca das esferas de poder em
contraponto aos problemas sociais históricos do Brasil". Mais uma vez, a temática
política surge dentro do museu, tanto pelas características documentais da coleção de
fotografias quanto pela situação política do país, que voltava a se desestabilizar. Nessa
ocasião, foram apresentadas, pela primeira vez, as obras da Mídia Ninja, que antes
haviam trazido questionamento sobre sua presença na coleção do MAM-SP.

Considerações Finais

A partir das informações reunidas sobre a coleção de fotografias do MAM-SP, é


possível perceber sua formação em quatro períodos distintos. O primeiro deles é a
constituição do núcleo inicial, a partir das aquisições e dos prêmios da I Trienal e da I
Quadrienal de Fotografia, em 1980 e 1985, respectivamente.
Depois de uma relativa desaceleração na entrada de obras em suporte fotográfico
no MAM-SP, o segundo período começa em meados da década de 1990, notadamente
em 1996, quando Tadeu Chiarelli assume o cargo de curador-chefe e o museu realiza
suas primeiras exposições individuais de fotografia, incluindo nomes de relevância
internacional. Consequentemente, houve aquisições de algumas obras participantes
dessas exposições para a coleção. No final desse período, entre 1999 e 2000, marcado
pela saída de Chiarelli, acontecem novas e importantes doações de fotografias, através
de prêmios e programas promovidos em parceria com empresas privadas.
O terceiro momento vai de 2001 até 2005 e é marcado pelos anos iniciais do Clube
de Colecionadores de Fotografia, que proporciona a doação de obras para o acervo do
museu e seus sócios, porém, ainda sem um curador responsável. A partir de 2006, inicia-
se o quarto período, que vai até a atualidade e tem como marca o trabalho de Eder
Chiodetto como curador exclusivo para o Clube de Colecionadores de Fotografia. Desde
22 | A fotografia na história do Museu de Arte... TOSETTO, G. M.

2008, ele também trabalha em parceria com o curador do MAM-SP, Felipe Chaimovich.
Ao estabelecer frentes de pesquisa para o clube, a coleção de fotografias caminha no
sentido de preencher lacunas e ampliar a coleção de maneira coerente, sem deixar de lado
a possibilidade de correr riscos ao integrar artistas contemporâneos, que voltam seus
trabalhos para esse suporte artístico documental e de construção da memória coletiva.
Depois da gênese da coleção de fotografias do MAM-SP na década de 1980, em
consonância com a histórica aceitação da fotografia no âmbito internacional pelos
museus de arte, os movimentos internos foram guiados por ações do curador e,
posteriormente, pelo Clube de Colecionadores. Externamente, a coleção do museu foi
influenciada pelo documentarismo advindo do momento político no período de sua
formação. Essa característica ainda é evidente se notarmos as recentes aquisições e
exposições de trabalhos sobre questões políticas da atualidade.
Assim, é possível identificar na coleção do MAM-SP a existência de um sistema
para o colecionismo de fotografia, sinalizado já desde a sua gênese – quando das
tentativas de estabelecer exposições trienais e quadrienais voltadas à premiação e
incorporação de fotografias. A influência do colecionador em relação à fotografia também
fica evidente a partir da atuação dos curadores na década de 1990, e se consolida
atualmente com um curador exclusivo para esse suporte, Eder Chiodetto, nome com
experiência no fotojornalismo e que conduz as frentes de pesquisa para a coleção
fotográfica do museu.
Além disso, fatores históricos como a ditadura militar e a abertura política foram
decisivos na produção fotográfica no Brasil durante duas décadas, entre 1964 e 1985.
Muito ligada ao fotojornalismo, a imagem fotográfica se afasta dos movimentos de arte,
mas abre caminho dentro das coleções de museus como o MAM-SP.
Se o ato de colecionar é retirar as coisas de sua cronologia histórica e inseri-las
em um sistema próprio, o conhecimento sobre essa coleção provém tanto das relações
que os objetos estabelecem entre si, quanto da relação que estabelecem com aspectos
externos: mesmo que as coleções sejam arquitetadas por indivíduos (colecionadores,
curadores e diretores), elas são construções sociais.

Coleções são também formas de conhecimento complexas, pois contêm sua


identidade espelhada na qualidade dos objetos que as constituem. Não podem ser
percebidas de maneira isolada do contexto social e histórico em que foram desenvolvidas.
Desse modo, ao abordar coleções de fotografias pertencentes a museus de arte é
importante reconhecer que de algum modo as imagens ali reunidas são representativas
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922003, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 23

para conhecer determinado contexto cultural, e são também importantes para


reconhecer as relações que as instituições mantém com a fotografia. Abre-se assim a
possibilidade de aprofundar e renovar os significados desses objetos fotográficos e
alcançar uma nova função para a história.

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PHOTOGRAPHY IN THE HISTORY OF THE MUSEUM OF MODERN ART OF SÃO PAULO (MAM-SP)

Abstract: This article aims to highlight the importance of photography in the collection of the Museum
of Modern Art in Sao Paulo (MAM-SP), both in relation to the historical moments concerning the
acquisition of this type of work of art, and by evoking the links that are established with the curators,
directors and exhibitions that have legitimized the presence of photography within the museum. The
museum's first approach to photography took place through exhibitions in the late 1940s, but the first
incorporations of photography works did not take place until the early 1980s, through events focused
exclusively on this type of media. Currently, the foundations of the collection are established, and it
continues to grow thanks to the incorporations made today by the Club of Photography Collectors, always
in search of dealing with the multiplicity of photographic images produced by Brazilian artists.

Keywords: Photography. Museum. Collection. Museum of Modern Art of Sao Paulo.


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LA PHOTOGRAPHIE DANS L'HISTOIRE DU MUSEE D'ART MODERNE DE SÃO PAULO (MAM-SP)

Résumé: Cet article se propose de souligner l’importance de la photographie dans la collection du Musée
d’Art Moderne de Sao Paulo (MAM-SP), à la fois par rapport aux moments historiques liés à l’acquisition
de ce type d’œuvre d’art, et aux liaisons qui sont établies avec les conservateurs, les réalisateurs et les
expositions qui ont légitimé la présence photographie au sein du musée. La première approche du musée
à la photographie se déroule tout au long des expositions à la fin des années 1940, mais les premières
incorporations d’œuvres en image photographique n’ont eu lieu qu’au début des années 1980, à travers
des événements axés exclusivement sur ce type de média. En ce moment, les bases de la collection sont
établies, et elle ne cesse de croître grâce aux incorporations réalisées aujourd’hui par le Club des
Collectionneurs de Photographie, qui cherche constamment à s’occuper de la multiplicité des images
photographiques produites par des artistes brésiliens.

Mots-clés: Photographie. Musée. Collection. Musée d’ Art Moderne de São Paulo.


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Referências

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_________________. Memorial. Apresentado à Escola de Comunicações e Artes da


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LEÓN, Aurora. El museo -Teoría, praxis y utopía. 7. ed. Madrid: Ediciones Cátedra,
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http://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrad/fq1512200617.htm Acesso em 01 set. 2016.

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apresentada à Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo
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Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922003, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 25

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SOBRE O AUTOR

Guilherme Marcondes Tosetto é doutorando em Belas Artes pela Universidade de Lisboa (UL,
Portugal); docente do Centro Universitário Belas Artes de São Paulo e coordenador do
Bacharelado Técnico em Fotografia.
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Recebido em 30/05/2020

Aceito em 29/06/2020
Os negativos de vidro no fundo da gaveta (ou
como a Fotografia na escola não é arquivo)

Hugo Rodrigues Cunha


Escola Secundária de Camões
Lisboa - Portugal
hugorodriguescunha@gmail.com

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Resumo: A Escola é, pela sua natureza, uma instituição de memória pela forma como é obrigada a arquivar
inúmeros documentos. No entanto fotografias, apesar das memórias que transportam e do registo visual
que constituem, não são na maioria das vezes alvo de um arquivamento sistemático nas escolas. Neste
artigo utiliza-se como exemplo a Escola Secundária de Camões, e o acaso da descoberta de negativos
antigos em vidro no fundo de uma gaveta, como meio para refletir sobre o papel da fotografia nas escolas
em Portugal, mobilizando-se os conceitos de memória colectiva, individual e de história.

Palavras chave: Escola. Fotografia. Liceu de Camões. Arquivo. Memória.


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Introdução

A Escola Secundária de Camões é uma das mais antigas e prestigiadas escolas


públicas de Lisboa. O meu percurso no Liceu Camões, como é vulgarmente conhecida,
começa em setembro de 2015 quando lá comecei a dar aulas. Em conversa com colegas
percebi a existência, no segundo piso (local privado até 1974 por ser a casa do Reitor da
escola), de um laboratório de fotografia analógica desativado há alguns anos. Recebida a
chave, encontrei um espaço arrumado e pronto a ser reativado, com quatro ampliadores
dos quais apenas dois se encontram em funcionais. Nas gavetas e armários havia algum
material técnico (bobinas de revelação, espirais, pinças, objetivas para os ampliadores,
lupas de focagem, …), reagentes químicos fora de prazo, dossiês A4 com negativos de
35 mm, ampliações de fotografias a preto e branco feitas, certamente, naquele laboratório
por alunos do Clube de Fotografia1, e ainda objetos variados perdidos no passar do tempo
(canetas, apontamentos, recortes de revistas, batas velhas, molduras clip, …). Foi no

1
O Clube de Fotografia terá surgido no final dos anos 70 numa das divisões da antiga casa do Reitor.
Dado que não existia na escola qualquer disciplina relacionada com a fotografia, tudo leva a crer que o
Clube tenha sido criado por professores e alunos com o intuito de trabalhar a fotografia na escola
enquanto atividade extracurricular.
2 | Os negativos de vidro no fundo da gaveta (ou... CUNHA, H. R.

fundo de uma das gavetas que encontrei uma caixa de cartão fechada com fita cola muito
envelhecida contendo sete negativos em vidro 18x24 cm, sem data, mas evidentemente
bastante antigos. As imagens eram da escola. Mas onde se integram aquelas chapas de
vidro? O que mostram realmente e que significado têm?

Figura 1: Caixa de papelão contendo sete negativos de vidro 18x24 cm.


Fonte: Escola Secundária de Camões.

História e Memória

Pierre Nora (1993, p. 9), no seu artigo intitulado “Entre Memória e História”
distingue:

Memória, história: longe de serem sinônimos, tomamos consciência que tudo


opõe uma à outra. A memória é a vida, sempre carregada por grupos vivos e,
nesse sentido, ela está em permanente evolução, aberta à dialética da
lembrança e do esquecimento, inconsciente de suas deformações sucessivas,
vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e
de repentinas revitalizações. A história é a reconstrução sempre problemática
e incompleta do que não existe mais. A memória é um fenômeno sempre atual,
um elo vivido no eterno presente; a história, uma representação do passado.
(…) A memória emerge de um grupo que ela une, o que quer dizer (…) que
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922004, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 3

há tantas memórias quantos grupos existem; que ela é, por natureza, múltipla
e desacelerada, coletiva, plural e individualizada. A história, ao contrário,
pertence a todos e a ninguém, o que lhe dá uma vocação para o universal. A
memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto.
A história só se liga às continuidades temporais, às evoluções e às relações das
coisas. A memória é um absoluto e a história só conhece o relativo.

Distinguir melhor estes conceitos parece-me importante. De onde retiramos a


história e o que será simplesmente memória? Nora (1993, p. 14) clarifica:

[Quanto] Menos a memória é vivida do interior, mais ela tem a necessidade


de suportes exteriores e de referências tangíveis de uma existência que só vive
através delas. Daí a obsessão pelo arquivo que marca o contemporâneo e que
afeta, ao mesmo tempo, a preservação integral de todo o presente e a
preservação integral de todo o passado.

A ‘memória de papel’ da qual falava Leibniz tornou-se uma instituição


autônoma de museus, bibliotecas depósitos, centros de documentação, bancos
de dados. (…) Daí a inibição em destruir, a constituição de tudo em arquivos,
a dilatação indiferenciada do campo memorável, o inchaço hipertrófico da
função da memória, ligada ao próprio sentido de sua perda e o reforço
correlato de todas as instituições de memória (NORA, 1993, p. 15).

(…) um criticismo generalizado conservaria museus, medalhas e


monumentos, isto é, o arsenal necessário ao seu próprio trabalho, mas
esvaziando-os daquilo que, a nosso ver, os faz lugares de memória. Uma
sociedade que vivesse integralmente sob o signo da história não conheceria,
afinal, mais do que uma sociedade tradicional, lugares onde ancorar sua
memória” (NORA, 1993, p. 9).

Faço aqui uma reflexão partindo das chapas de vidro e considerando os


documentos reais como a base da história e as reminiscências pessoais como base da
memória.

O Lyceu de Camões

Em 8 de novembro de 1909, e após vários adiamentos, é inaugurado o edifício do


Lyceu de Camões em Lisboa. Construído no local do antigo matadouro municipal, esta
escola foi projetada de raiz com particulares preocupações com os espaços pedagógicos
e a salubridade e higiene de todo o espaço. A notícia da abertura vem na primeira página
do jornal Diário de Notícias desse dia e é ilustrada com uma fotografia geral do edifício
onde se podem ver o alçado lateral e frontal sem identificação do fotógrafo
(ADAMPOULOS; FALCÃO DE VASCONCELOS, 2009, p. 48). Nos seus 110 anos de
existência, o Lyceu viveu a A Monarquia Constitucional, A 1ª República, O Estado Novo
4 | Os negativos de vidro no fundo da gaveta (ou... CUNHA, H. R.

e O Estado Democrático2 (“Historia do parlamentarismo”, [s.d.]) tendo atravessado


todos os grandes acontecimentos históricos portugueses do século XX após o regicídio
de 1908.
Em 2009, e a pretexto do centenário do edifício, é publicado o livro “Liceu
Camões – 100 anos 100 testemunhos” de Sarah Adamopoulos e José Luís Falcão de
Vasconcellos (ADAMPOULOS; FALCÃO DE VASCONCELOS, 2009). Este livro
constitui-se como um importante documento sobre a Escola Secundária de Camões, não
só numa dimensão abrangente da História dos seus cem anos, mas também na reunião
de depoimentos, muitos deles facultados em especial para serem integrados no livro, e
onde à recordação individual de memórias é dada a mesma importância que aos factos
históricos. Os testemunhos são de pessoas que passaram pela escola ao longo desse
tempo, desde alunos, a professores e a funcionários não docentes, muitos figuras públicas
prestigiadas de diversas áreas (política, desporto, cultura) outros completamente
anónimos da generalidade das pessoas, mas todas vivenciando o edifício diariamente
durante algum tempo.
A Escola é, pela sua natureza, uma instituição de memória na forma como arquiva
tudo: processos de alunos e professores, atas de reuniões, enunciados e resoluções de
exames, requisições de materiais e livros, livros de ponto, aluguer e empréstimo de
material e instalações, infindáveis normas burocráticas. Através destes pode-se construir
uma história de muitos factos. Numa instituição com mais de cem anos, e se não tivessem
existido acidentes, como incêndios (“Arquivo do Liceu Camões destruído por incêndio”,
[s.d.]), podia perceber-se, por exemplo, como foram evoluindo os livros de ponto, como
eram registados os sumários, como eram encarados os currículos. Podia fazer-se uma
história institucional de uma escola com inúmeras coisas em comum com todas as outras
da sua época.
Para além do arquivo burocrático, cada escola tem também o seu material físico
de mobiliário (armários, secretárias, quadros, estantes, …) e pedagógico (mapas, modelos
variados, manuais, equipamentos, …). No caso da Escola Secundária de Camões, esta
tem um importante espólio, parte dele guardado num pequeno Museu e o restante
espalhado um pouco por todo o edifício e à guarda dos diferentes grupos e departamentos
curriculares.

2
História do Parlamentarismo. Disponível em:
<https://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/historia-do-parlamentarismo.aspx>.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922004, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 5

Sobre o espólio da Escola, Marta C. Lourenço (2014, s/p.) refere, no seu Parecer
sobre o património e coleções da E.S. de Camões, Lisboa, que:

(…) deve ser assinalada a diversidade das coleções histórico-científicas.


Acumuladas ao longo de décadas para apoio ao ensino das ciências naturais,
física, geografia, química e matemática, entre outras, as coleções incluem
instrumentos científicos e de desenho, ferramentas e utensílios diversos,
rochas (magmáticas, metamórficas, sedimentares e ornamentais), fósseis,
minerais, areias, modelos (cristalográficos, geológicos, botânicos, anatómicos,
matemáticos, de arquitetura e artes decorativas), herbários, preparações
microscópicas, espécimes zoológicos taxidermizados, em esqueleto e em
coleção líquida (aves, mamíferos, anfíbios, répteis, peixes, insectos,
crustáceos), quadros parietais, globos, entre tantos outros. As coleções não se
encontram totalmente inventariadas (o inventário está em curso), mas estimo
que o total de exemplares ronde os 5 mil.

destacando ainda:

Algumas coleções possuem um significado histórico-científico e uma raridade


no contexto português que transcendem largamente o nível local. Assim, vale
a pena destacar o magnífico Herbário de São Tomé e Príncipe, a Coleção de
Modelos de Botânica Brendel – talvez uma das maiores do nosso país –, o
torso humano em cera (…).

Alguns desses exemplares (863 peças) estão registados e documentados com


fotografias no Inventário Online do Património Museológico da Educação (“Património
Museológico da Educação - Inventário online”, [s.d.]).

A Fotografia na E.S. de Camões

No Parecer sobre o Património…(LOURENÇO, 2014) a fotografia apenas é


referida como um dos “elementos patrimoniais individuais” da escola e no Inventário
Online… (“Património Museológico da Educação - Inventário online”, [s.d.]) surgem
apenas alguns elementos óticos (como um estereoscópio, cartões estereoscópicos, uma
câmara fotográfica) mas não fotografias da escola.
O livro de Adamopoulos e Falcão de Vasconcellos (2009) tem inúmeras
fotografias de diversa índole e origem: imagens atuais do edifício e feitas para a
publicação, fotografias do Arquivo Municipal de Lisboa | Fotográfico, da Direção-Geral
de Arquivos/Arquivo da Torre do Tombo, mas a maioria pertencente “ao arquivo do
Liceu de Camões, bem como a arquivos pessoais de antigos professores e alunos” não
identificados.
Na procura cruzada no acervo online do Arquivo Municipal de Lisboa |
Fotográfico, foi na busca por “Escola Secundária de Camões” (“Pesquisa - Arquivo
6 | Os negativos de vidro no fundo da gaveta (ou... CUNHA, H. R.

Municipal Lisboa - Sala Leitura”, [s.d.]) que surgiram mais entradas, treze, incluindo
três onde a escola aparece apenas em segundo plano. Das restantes dez, nove são vistas
exteriores do edifício e uma do interior do ginásio central numa ocasião especial, eleições
em 1911, onde se vê o edifício cheio de homens (fotografia de Joshua Benoliel)
(BENOLIEL, [s.d.]). Todas as dez fotografias têm um carácter bastante formal, ainda
que com qualidade variada. Apresentam-se os fotógrafos e as datas das fotografias:
Joshua Benoliel - 3 fotografias: 1909 (2), 1911 (1) - 9x12 cm – negativos em vidro;
Alberto Carlos Lisma - 3 fotografias: 1909 (1), s/data possivelmente 1909 (2) - 9x12 cm
– negativos em vidro; Arnaldo Madureira - 2 fotografias: 1960 - 6x6 cm – negativos em
acetato de celulose; Augusto Fernandes – 2 fotografias: 1967 - 6x6 cm – negativos em
acetato de celulose; Autor desconhecido – 1 fotografia: 1914 - 9x12 cm - negativo em
vidro.
As fotografias da Direção-Geral de Arquivos/ Arquivo da Torre do Tombo
reproduzidas no Livro de Adamopoulos e Falcão de Vasconcellos (2009) correspondem
todas a ocasiões oficiais (jantares de gala, reuniões oficiais, exames de admissão à
faculdade, discursos de personalidades, …) feitas, na sua maioria, com a carga formal que
cada um daqueles acontecimentos impunha, não sendo atribuída autoria às fotografias.
Ainda no mesmo livro, das imagens pertencentes a arquivos pessoais, a maioria
mostra retratos de grupo, com alunos e professores, feitos no espaço escolar ou em visitas
de estudo, mas que denotam alguma descontração e descompressão da formalidade e
austeridade que se sabia existir nas escolas antes do 25 de abril de 19743. É curioso
verificar que, após esta data, o conteúdo das fotografias evolui num sentido de mostrar
não só a descontração, mas também uma crescente informalidade e ousadia no dia-a-dia
e nas atividades extracurriculares de alunos e professores.
A realidade é que, na escola, não existe qualquer arquivo fotográfico organizado.
Os registos fotográficos sujeitos a catalogação encontram-se fora da escola, como os já
referidos Arquivo Municipal de Lisboa e a Torre do Tombo. É bastante provável que se
encontrem fotografias da escola organizadas em periódicos (como os jornais Diário de
Notícias ou o extinto O Século) mas tal não foi possível verificar para este artigo. Na
própria escola existem apenas algumas fotografias soltas espalhadas pelo espaço escolar.
Assim não é de estranhar que a maioria das imagens de Liceu Camões - 100 anos 100

3
O 25 de abril de 1974 foi a data da revolução que pôs termo a mais de quatro décadas da Ditadura do
Estado Novo em Portugal. Ficou conhecida como a Revolução dos Cravos pois os militares que ocupavam
as ruas tinham cravos vermelhos nos canos das espingardas como símbolo da revolta sem violência
armada.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922004, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 7

testemunhos pertençam a arquivos particulares, ou seja, aos álbuns nas prateleiras da


estante ou no fundo das cómodas.
Regresso agora ao início do artigo, e às chapas que encontrei na gaveta. São sete
negativos em vidro, 18x24 cm. Todas as fotografias são de interiores, quatro de
Laboratórios (possivelmente de Física, Química e Biologia) duas salas (Geografia e
Física) e uma de uma planta da escola (que não corresponde na íntegra a qualquer
edificação efetivamente concluída) presa a uma parede com parafusos. As fotografias
devem ser da segunda metade da década de 1920, talvez durante a construção dos
Gabinetes de Física e de Química em 1927.4 Enquanto documento histórico, a fotografia
(tirando os retratos de identificação dos alunos) não pertence aos arquivos oficiais: não é
ata, não é processo, não é exame, não é livro de ponto. Daí talvez estes negativos em
vidro aparentem estar esquecidos literalmente no fundo de uma gaveta.

Figura 2: Um dos negativos de vidro encontrados no Laboratório de Fotografia


Fonte: Escola Secundária de Camões.

4
Os laboratórios de Física e Química das fotografias são os anteriores à construção dos Gabinetes em
1927. Sendo de prever que as fotografias dos sete negativos tenham sido feitas em momentos próximos,
haver uma planta aparentemente de obra indicia poder a escola estar a ser alvo de obras.
8 | Os negativos de vidro no fundo da gaveta (ou... CUNHA, H. R.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922004, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 9
10 | Os negativos de vidro no fundo da gaveta (ou... CUNHA, H. R.
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Figuras 3 a 9: Provas de contacto das sete chapas encontradas no Laboratório de Fotografia


(impressão sais de prata sobre papel fotográfico - fevereiro 2020).
Fonte: Escola Secundária de Camões.
12 | Os negativos de vidro no fundo da gaveta (ou... CUNHA, H. R.

A verdade é que, seguindo a visão de Nora (1993), estas fotografias podem ser
fontes históricas, podem até ser vistas enquanto pertencentes a uma memória coletiva
do edifício, mas não são a memória de um indivíduo (aluno, professor, …) nem remetem
para um acontecimento concreto. São imagens materiais (vidro e emulsão fotográfica
exposta à luz) que me transmitem a agitação de estar a viver um pouco da história do
que foi o Lyceu, mas não me fazem recordar nem remetem para um acontecimento
histórico concreto. A memória daquelas fotografias não está no passado, mas está no
futuro, no meu futuro, sempre que as recordar, sempre que recordar o Camões.
Quando recordo o passado, quando evoco uma memória e uma memória pelas
fotografias, evoco a minha memória. Ainda que possa fazer a história pela fotografia, a
recordação do aluno, do professor ou de outro qualquer funcionário que tenha passado
pelo Liceu Camões não será feita por estas fotografias, mas pelas suas próprias
fotografias, ou dos seus colegas, ou dos seus amigos. Se um profissional pode pensar que
está a fazer uma fotografia para a história, o residente Camoniano (como por vezes são
referidas as pessoas que passaram pelo Liceu) foi sempre fazendo as fotografias para si.
Enquanto instituição de memória, a fotografia de Escola, da escola de cada um de
nós, na escola que cada um de nós frequentou, é a sua fonte de memória, mesmo que não
o seja para mais ninguém. O retrato da turma da 1ª classe que o fotógrafo foi à escola
fazer é, em si, uma instituição da memória coletiva daqueles alunos e daquele ou aquela
professora. Se conseguisse ter todas as fotografias de todas as turmas do 1º ano de
Portugal num determinado ano letivo, continuava a não ter as memórias de ninguém.
Podia ver e comparar as roupas, os penteados, os cenários, mas nada sabia sobre cada
uma daquelas pessoas, e não podia fazer história só por si. Enquanto fotografia, todas as
imagens que encontrei nas gavetas dos exercícios dos alunos do Clube de Fotografia,
todos os negativos nos dossiês, têm muito mais memórias do que eu poderei alguma vez
suspeitar. Posso ver como eram antigamente as caves, ou como campos de jogos se
tornaram parques de estacionamento, e agora monoblocos de aulas durante as obras de
requalificação, mas nunca posso adivinhar o que a pessoa que fez a imagem sentiria se a
voltasse a ver.
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Figura 10: Dossiê contendo negativos do antigo Clube de Fotografia E.S. Camões (fotografia atual).
Fonte: Escola Secundária de Camões.
14 | Os negativos de vidro no fundo da gaveta (ou... CUNHA, H. R.

Figura 11: Gaveta com ampliações feitas por elementos do antigo Clube de Fotografia E.S. Camões
(fotografia atual).
Fonte: Escola Secundária de Camões.

Figura 12: As Caves da E.S. Camões (assinado no verso Alexandra – s/data – arquivo da gaveta).
Fonte: Escola Secundária de Camões.
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Figura 13 e 14: O mesmo espaço enquanto campo de jogos (assinado no verso: Susana
Fonseca – s/data – arquivo da gaveta) e com monoblocos (fotografia atual – 2020).
Fonte: Escola Secundária de Camões.

Mas a escola, o Lyceu, é mais do que um espaço físico com materiais e recursos
pedagógicos com caráter histórico. É um local de relações, emoções e sentidos onde se
ensina e aprende um pouco de tudo. A memória da história de uma escola é, primeiro que
tudo, uma memória individual, de cada aluno, de cada professor, de cada funcionário.
Destas as mais importantes são, sem dúvida, as memórias dos alunos. São em muito
maior número, mais intensas, mais puras e mais emocionais pela idade dos seus
intervenientes. É também para e pelos alunos que a escola existe. Não faz sentido pensar
e fazer história da escola sem alunos. Pela idade com que frequenta a escola, o aluno não
a vê pensando no filtro da História, não é essa a sua preocupação primeira. Mesmo em
adulto, o ex aluno recorda a sua escola tal como a via enquanto aluno, no tempo e no
espaço, pois é na vivência da experiência individual que reside a sua a memória.

Considerações Finais

Mas qual o papel da Fotografia numa instituição educativa e, em particular, na


Escola Secundária de Camões? Pela ausência de arquivismo fotográfico nas escolas, o
papel da fotografia terá forçosamente de ser memória, e ainda bem que o é. É pela
memória de cada um que se constrói a memória coletiva da escola; é pelas histórias de
sucessivas gerações nos mesmos espaços que se adensa a história, se constrói e reforça o
Lugar.
Acabando como comecei, as chapas de negativos encontradas podem constituir-
se como memórias do Lyceu, do seu espaço, dos materiais e mobiliário dos laboratórios
16 | Os negativos de vidro no fundo da gaveta (ou... CUNHA, H. R.

e salas, da sua organização. São, neste aspeto, documentos históricos que contribuem
para o conhecimento da história do edifício. Mas para mim foram memória da Fotografia,
descobrir documentos originais, imagens feitas diretamente no espaço que mostram, foi
poder sentir de que forma uma câmara de grande formato terá sido colocada num tripé,
as chapas carregadas no escuro e tratadas com o cuidado que uma preciosidade de vidro
exige, quer antes, quer depois de expostas. À minha frente tinha o Camões fixado numa
forma de fotografia que nunca tinha tocado. Foi como encontrar um tesouro. Aquelas
chapas, ainda que sejam história da escola, são para mim um mais a acrescentar a tudo,
são a memória da Fotografia. Eduardo Lourenço e Souza (2016, p. 237) escrevem:

O ‘sentido’ pode pois oferecer-se sob duas modalidades diferentes: o sentido


patente e o sentido latente. Se nós nos confinamos ao sentido patente de um
texto, se ele parece não possuir senão essa potência, essa leitura que o esgota
sem resíduo ou que como tal vive, nós estamos no domínio da prosa (…). Mas
se todo o texto manifesta o triunfo do latente nele sobre o patente, se este
patente – sempre primeiro na ordem do sentido – de si manifesta uma
impotência que é sinal de encoberta riqueza, então a realidade poética
sobrevém e impõe-se como sendo a sua verdadeira realidade.

Ainda que aquelas chapas tenham começado por ser prosa, rapidamente se
revelaram em mim como poesia.

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THE GLASS NEGATIVES AT THE BOTTOM OF THE DRAWER (OR AS THE SCHOOL PHOTOGRAPHY
IS NOT AN ARCHIVE)

Abstract: School is, by its nature, a memory institution due to the way it is obliged to archive numerous
documents. However, photographs, in spite of the memories they bring and the visual record they
compose, are most often not the target of systematic archiving in schools. In this article, we use the
circumstance of discovering old glass negatives in the bottom of a drawer in Escola Secundária de Camões
as an example, and a mode to reflect on the role of photography in schools in Portugal, mobilizing the
concepts of collective memory, individual and history.

Keywords: School. Photography. Liceu de Camões. Archive. Memory.


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Referências

ADAMPOULOS, S.; FALCÃO DE VASCONCELOS, J. L. Liceu de Camões: 100 anos,


100 testemunhos. Lisboa: Quimera Editores, 2009.

ARQUIVO do Liceu Camões destruído por incêndio. Disponível em:


https://www.publico.pt/2005/01/30/jornal/arquivo-do-liceu-camoes-destruido-por-
incendio-3395. Acesso em 13 jun. 2020.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922004, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 17

BENOLIEL, J. Eleições em Lisboa. Disponível em: https://bityli.com/nxJE2. Acesso


em 13 jun. 2020.

HISTORIA do parlamentarismo. Disponível em:


https://www.parlamento.pt/Parlamento/Paginas/historia-do-parlamentarismo.aspx.
Acesso em 13 jun. 2020.

LOURENÇO, E.; SOUSA, C. M. DE. Obras completas de Eduardo Lourenço. Lisboa:


Fundação Calouste Gulbenkian, 2016. v. III-Tempo e Poesia.

LOURENÇO, M. C. Parecer sobre o Património e Coleções da E.S. de Camões, Lisboa,


maio 2014.

NORA, P. Entre Memória e História - A problemática dos lugares. Projeto História, n.


10, p. 7–28, dez. 1993.

PATRIMÓNIO Museológico da Educação - Inventário online. Disponível em:


http://edumuseu.sec-geral.mec.pt/default.aspx. Acesso em 13 jun. 2020.

PESQUISA - Arquivo Municipal Lisboa - Sala Leitura. Disponível em:


http://arquivomunicipal2.cm-lisboa.pt/sala/online/ui/SearchBasic.aspx. Acesso em 13
jun. 2020.

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SOBRE O AUTOR

Hugo Rodrigues Cunha é doutorando em Arte Contemporânea pela Ar.Co - Centro de Arte e
Comunicação (Lisboa); docente da Escola Secundária de Camões, Liboa - Portugal.
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Recebido em 02/05/2020

Aceito em 06/07/2020
Um tesouro austro-brasileiro: compartilhando
responsabilidades sobre a Coleção Mario Baldi

Marcos de Brum Lopes


Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil
marcosfblopes@gmail.com

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Resumo: O texto apresenta a trajetória da herança documental do fotógrafo Mario Baldi (1896-1957),
dividida entre Áustria e Brasil, e os esforços bilaterais para reunir as informações que complementam as
duas coleções. São expostos alguns dados básicos sobre a obra do fotógrafo, além das formas como sua
produção foi veiculada ao público, durante sua vida e postumamente. Enfatiza-se a passagem de uma
coleção cindida em duas partes incomunicáveis, para uma proposta de compartilhamento de
responsabilidades.

Palavras-chave: Fotografia. Museus. Mario Baldi.


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Introdução

O propósito do texto é apresentar um histórico do fotógrafo Mario Baldi e da


formação do que, hoje, é seu legado documental. Seu espólio foi dividido entre Brasil e
Áustria, no começo dos anos 1960, após a morte de seu produtor. Atualmente, os dois
conjuntos de documentos se encontram no Weltmuseum Wien (WMW) e no Serviço de
Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural de Teresópolis (SPHAC), que buscam
compartilhar as responsabilidades sobre as coleções, reunir os documentos e preencher
as lacunas através do intercâmbio de informações.1
Mario Baldi (1896-1957) nasceu na Áustria, na cidade de Salzburg, e emigrou
para o Brasil em 1921, depois de participar da I Guerra Mundial como pirotécnico e
reconhecedor de campo, nas fileiras da Liga Austro-Húngara. Em solo brasileiro, Baldi
desenvolveu sua trajetória fotográfica e jornalística entre 1921 e 1957 (com um
interregno de seis anos, entre 1928 e 1934), atuando como fotógrafo itinerante e

1
Nas referências das imagens, utilizamos “WMW, Coleção Mario Baldi” seu para indicar os documentos
do Weltmuseum Wien, e “SMCT/SPHAC, Coleção Mario Baldi” para indicar aqueles que pertencem ao
Serviço de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultura da Secretaria Municipal de Cultura de Teresópolis.
Da perspectiva arquivística, os dois conjuntos constituem “Fundos” documentais, entretanto as duas
instituições usam a nomenclatura “Coleção”.
2 | Um tesouro austro-brasileiro: compartilhando... LOPES, M. B.

freelance, documentarista de D. Pedro de Orleans e Bragança (filho da Princesa Isabel),


fotógrafo do jornal A Noite e do Ministério de Educação e Saúde, durante o Estado Novo
(1937-1945) (BALDI, s/d)2. Pode-se dizer que um dos focos principais das lentes de Baldi
foi a diversidade cultural brasileira, campo no qual ele valorizou as fotografias dos povos
indígenas brasileiros (LOPES, 2014).
A formação intelectual do fotógrafo, que vinha de uma família da burguesia
endinheirada e comercial da Áustria, foi marcada pelos estudos da geografia física e da
antropologia do princípio do século XX. Na época em que estudou no seminário St. Paul,
no Sul de seu país natal, Baldi relata que tinha interesse, por influência de seu pai, pela
Völkerkunde, ou seja, Etnologia (BALDI, s/d). Esse dado foi registrado na autobiografia
do fotógrafo, escrita já no Brasil e depois de ter passado alguns anos em viagens pelo
país. Assim, o interesse de seu pai pela Etnologia, herdado pelo filho, é um fato
reconhecido, mas reenquadrado pela mediação das experiências com a alteridade, já na
fase adulta.
Quando chegou ao Brasil, em março de 1921, o imigrante foi lançado num mundo
diverso, ao qual lutaria para se adaptar, motivado pela busca de novas bases materiais
para a vida e pela noção de fronteira aberta. Durante os primeiros anos em terras
tropicais, Baldi trabalhou em fazendas executando todo tipo de trabalho braçal. Neste
tempo, juntou-se a outros imigrantes que compartilhavam com ele os desafios de compor
a mão-de-obra rural no entorno do Rio de Janeiro, uma capital que se desenvolvia
justamente na passagem para uma nova ordem capitalista burguesa. Após acumular
algum dinheiro, Mario Baldi passou a percorrer o interior do Estado do Rio de Janeiro,
a Região Serrana e a Baixada Fluminense, entre outras partes do Brasil, anotando suas
observações que, mais tarde, se tornaram relatos publicados nos jornais da sua pátria
(BALDI, s/d).
Os textos, publicados principalmente no diário de sua cidade natal, o Salzburger
Volksblatt, descreviam as fazendas, os diferentes tipos de cultivo e o modo de vida rural.
Um dos periódicos que abriam suas páginas às palavras de Baldi publicou uma
interessante nota introdutória ao relato sobre os tropeiros de Teresópolis, na qual é
mencionado o interesse etnográfico do austríaco:

2
Este documento consiste num projeto de livro genealógico da família Baldi, com o título Stammbaum
(Árvore Genealógica). Há biografias escritas pelo fotógrafo e por alguns de seus parentes. É um conjunto
de originais datilografados, sem paginação e sem data precisa, compilado ao longo de vários anos.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922005, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 3

Um salzburguês no Brasil: O tenente Mario Baldi, oriundo de uma família


conhecida de Salzburg, é um dos poucos emigrados austríacos que conse-
guiram estabelecer-se e, com sucesso, começar uma vida nova em terra
remota. Cheio de amor à vida e vitalidade, ele sabe bem acomodar-se às
condições locais. Os seus animados relatos de viagens são bem conhecidos,
especialmente para os leitores do Salzburger Volksblatt. Tendo sido
voluntário do exército desde o início da Guerra Mundial, Baldi foi para o
Brasil em 1920. Até agora trabalhou num rancho (São Sebastiano de
Teresópolis) e se prepara para uma expedição ousada por todo o Brasil,
seguindo o Rio Paraná até Buenos Aires. Entre os motivos da viagem estão
os estudos científicos e a investigação pormenorizada dos povos indígenas da
região (BALDI, 1924, s/p.).

Figura 1: Mario Baldi com duas moradoras do interior do Estado do Rio de Janeiro. Ca 1921-22.
Fonte: SMCT/SPHAC, Coleção Mario Baldi. Fotógrafo não identificado.

Ao longo do século XIX, a prática fotográfica foi fortemente marcada pela


itinerância dos fotógrafos, que se deslocavam em busca de clientela. Mas isso não se
extinguiu completamente com a chegada do século XX, quando novos aparatos e
técnicas já tornavam a fotografia mais versátil, e as práticas fotográficas mais diversas.
Em texto de 1923, Mario Baldi relata, caracteristicamente, que depois de algum tempo
trabalhando em fazendas, descobriu uma nova fonte de renda: “Eu fotografo, por muito
dinheiro, os nativos” diz o fotógrafo, com alguma ironia (BALDI, 1923). É que, segundo
Baldi, qualquer cliente, por mais pobre que fosse, estaria disposto a pagar o preço mais
alto. As imagens preservadas no arquivo do fotógrafo, correspondentes a esse período
inicial, são muito esparsas (Figura 1). Podemos supor que boa parte delas tenha ficado
4 | Um tesouro austro-brasileiro: compartilhando... LOPES, M. B.

em posse dos clientes, e é quase certo que os negativos (possivelmente de vidro) tenham
se perdido.
Depois dessa fase de itinerância, Mario Baldi se tornou o fotógrafo particular de
D. Pedro de Orleans e Bragança, neto de D. Pedro II. Com o fim do exílio à família
imperial, no início dos anos 1920, o príncipe voltou ao Brasil. Pouco tempo depois, Baldi
foi trabalhar em Petrópolis como copeiro em sua casa. Como a família Baldi possuía
relações com a nobreza austríaca na Europa, uma carta de recomendação da grã-duquesa
da Toscana promoveu o copeiro a fotógrafo e secretário de D. Pedro. Baldi, então, pode
documentar as viagens do seu novo e inesperado mecenas, num tempo em que a
monarquia ainda gozava de algum prestígio no país (BALDI, s/d.).
Em 1928, Baldi retornou à Europa, ainda a serviço do príncipe. Em 1932,
participou de uma expedição científica ao norte da África, produzindo fotografias e
artigos jornalísticos sobre a Líbia e outras regiões próximas. A volta ao Brasil só
aconteceu em 1934, na companhia de Emmy Baldi, com quem havia se casado pouco
tempo antes. O retorno gerou a primeira participação efetiva num projeto com indígenas,
entre os Bororo. Como contratado pela missão salesiana no Mato Grosso, Baldi produziu
um filme e muitas fotografias do processo histórico e cultural vivido pelos índios e pelos
religiosos. Depois do projeto, realizado no Mato Grosso, o fotógrafo voltou ao Sudeste
com material suficiente para garantir espaço em algumas revistas ilustradas do período,
como Rio Ilustrado, Espelho e Ilustração Brasileira. Em 1936, D. Pedro retornou ao
Brasil e, mais uma vez, Mario Baldi fotografou a visita dos imperiais (agora com D. Pedro
Gastão) aos Bororo e à Ilha do Bananal, onde conviveram com os índios Karajá. Começou
neste tempo o contato mais próximo com a imprensa brasileira (LOPES, 2014).
Vale destacar aquela que pode ser considerada a primeira iniciativa de
agenciamento de fotografias destinadas à imprensa, no Brasil: a Yurumí. O termo vem
do Tupi e é um dos nomes do tamanduá. Baldi já usava a imagem e o nome desse animal
tropical como identidade visual de seu trabalho de fotógrafo. Aproximadamente entre
1935 e 1937, ele e Harald Schultz – que viria a se especializar em Etnologia –
trabalharam juntos e assinaram reportagens, no Brasil e na Alemanha, produzidas no
âmbito da Yurumí, denominada brasilian press-photo (BALDI; SCHULTZ, s/d.).
A segunda rodada de viagens com D. Pedro, em 1936, valeu ao fotógrafo uma
série de reportagens em A Noite Illustrada (BALDI, 1936) e, consequentemente, um
contrato com A Noite, do Rio de Janeiro, que publicava a revista (Figura 2). Para esta
que era uma das maiores empresas de comunicação do Brasil, o fotógrafo fez a cobertura
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922005, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 5

da filmagem de Doralice Avellar entre os Karajá, em 1938 (Figura 3), entre vários outros
trabalhos.

Figura 2: “Sentimento de morte entre os Karajás”. Parte da reportagem de Mario Baldi, publicada
em A Noite Illustrada, e preservada pelo fotógrafo em seu arquivo pessoal.
A Noite Illustrada, 5 de janeiro de 1937.
Fonte: SMCT/SPHAC, Coleção Mario Baldi. Periódicos Avulsos.
6 | Um tesouro austro-brasileiro: compartilhando... LOPES, M. B.

Figura 3: BALDI, Mario. Cobertura fotográfica, para A Noite Illustrada, da filmagem de Doralice
Avellar entre os índios Karajá. Ilha do Bananal. 1938.
Fonte: SMCT/SPHAC, Coleção Mario Baldi, n. 4935.

Destacamos, também, os trabalhos feitos para o Ministério de Educação e Saúde,


sob a direção de Gustavo Capanema. No final da década de 1930, o ministro idealizou
um grande projeto editorial que iria comemorar os dez anos de Getúlio Vargas a frente
do país (1930-1940). Para a Obra Getuliana, como o projeto foi nomeado, Capanema
mobilizou vários fotógrafos, na maioria germânicos, entre os quais estava Mario Baldi,
que deveria cobrir os Estados do Norte brasileiro. Pesquisadores que se dedicaram ao
estudo desse projeto não localizaram as imagens que Baldi produziu para Gustavo
Capanema, na coleção hoje preservada pelo Centro de Pesquisa e Documentação de
História Contemporânea do Brasil (CPDOC) (LACERDA, 1994). Entretanto, nos
conjuntos existentes no Brasil e na Áustria, podem-se encontrar os negativos e os
contatos fotográficos desses trabalhos, que representam vários aspectos daquela região
do país, como paisagens urbanas, mercados populares, obras e prédios públicos.
Nos anos 1940, Baldi atuou em conexão com o Serviço de Proteção ao Índio (SPI)
que, mobilizando a imprensa brasileira, incorporava aos seus esforços fotógrafos,
jornalistas e cinegrafistas. Ele já se interessava por etnologia e diversidade cultural desde
os estudos da juventude e, mesmo antes de se dedicar aos trabalhos com o SPI, já
demonstrava inclinação em direção aos povos indígenas brasileiros. Como fotógrafo de
A Noite Mario Baldi foi destacado para acompanhar o SPI nas incursões colonizadoras
e, como as chamavam naquele tempo, pacificadoras dos índios do Brasil (Figura 4).
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922005, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 7

Somam-se às imagens dessas viagens, aquelas produzidas também em expedições


autônomas empreendidas por Baldi ao interior do Brasil; aquelas feitas para outros tipos
de cobertura para o jornal A Noite; as fotografias do cotidiano familiar, entre outras
séries de imagens que ainda aguardam pesquisa.

Figura 4: BALDI, Mario. Raymond Maufrais, jornalista da France-Presse desaparecido no Brasil,


tem o rosto pintado por uma índia Karajá. 1946-47.
Fonte: WMW, Coleção Mario Baldi, n. 12.302.

O caminho para Viena e a redescoberta de Baldi no Brasil

Durante os anos de 1954 e 1956, Etta Becker-Donner, então diretora do Museu


de Etnologia de Viena (atual Weltmuseum Wien), visitou o Brasil a fim de fazer
trabalhos de campo etnográficos, linguísticos e arqueológicos no Território de
Rondônia. Na ocasião, conheceu o fotógrafo Mario Baldi, de quem adquiriu trinta
fotografias produzidas entre os Bororo, Karajá e Tapirapé. Quando Etta Becker-Donner
retornou a Viena, levou para lá a primeira fração da produção de Baldi.
Entre 1959 e 1961, poucos anos depois da morte do fotógrafo, iniciou-se o
processo por meio do qual o museu vienense receberia mais uma parte da herança de
Baldi. Hans Rudolf Gewert, viúvo de Doralice Avellar (a quem Baldi havia acompanhado
8 | Um tesouro austro-brasileiro: compartilhando... LOPES, M. B.

nas filmagens dos Karajá), tornara-se o depositário do espólio do fotógrafo, que não
deixou descendentes. Após consultas judiciais, inventários e negociações de preço,
Gewert vendeu o material, que era composto por um acervo de 386 objetos etnográficos
Karajá e o que parecia ser seu arquivo fotográfico: quatorze caixas contendo ampliações
ordenadas tematicamente, folhas-contato organizadas em cartões, mais de dez mil
negativos e uma quantidade pequena de diapositivos. A quase total falta de informações
documentais escritas fez com que a coleção fosse catalogada primariamente, ainda que o
seu valor e interesse tenham sido prontamente reconhecidos.
Assim, parte da produção de Mario Baldi juntava-se a várias outras coleções, no
museu que, hoje, preserva o maior conjunto de documentos, imagens e objetos brasileiros
fora do Brasil.
Depois de mais de duas décadas, e sem o conhecimento do museu vienense, o
Serviço de Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural (SPHAC) da Secretaria Municipal
de Cultura de Teresópolis recebeu a outra parte da herança de Mario Baldi. A doação foi
feita pelo médico, escritor, artista e político Arthur Dalmasso (1920-2006). Desta vez, o
material incluía não só ampliações fotográficas, mas também artigos ilustrados, cartas e
demais documentos pessoais referindo-se ao fotógrafo e suas atividades.
Nesta época, o SPHAC estava ainda começando suas atividades no campo da
preservação dos acervos históricos da cidade de Teresópolis. O órgão nasceu no final dos
anos 1980, como uma repartição da área cultural da municipalidade teresopolitana
responsável pela preservação da memória e dos acervos locais. Atualmente, o SPHAC
encontra-se instalado na Casa da Memória Arthur Dalmasso, prédio tombado pelo
Instituto Estadual do Patrimônio Cultural do Rio de Janeiro (INEPAC). O conjunto de
documentos de Mario Baldi, que teve relações próximas com a cidade ao longo da vida e
onde residia por ocasião da sua morte, foi o primeiro a compor as coleções da instituição.
A professora Regina Rebello, responsável pela recepção da doação e pela organização
imediata do material, observou que o acervo se tratava de uma preciosidade, pois
continha relatos sobre a região serrana do Estado do Rio de Janeiro, sua produção
agrícola e descrições urbanas feitas na década de 1920 por Baldi (REBELLO e MUNIZ,
2006). Além disso, a diversidade cultural brasileira representada em milhares de
fotografias de diversas regiões do país e um inédito diário da Primeira Guerra Mundial
completavam o tesouro histórico e cultural que seria doravante preservado. Hoje
sabemos que, no Brasil, entre contatos fotográficos e ampliações, existem mais de 7.000
documentos visuais, além dos escritos.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922005, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 9

Entre a morte de Baldi e a doação de Dalmasso, pouco ou nada se sabe sobre a


trajetória dos documentos. É certo que Dalmasso conhecera Baldi. O fotógrafo tornou-
se figura pública na cidade de Teresópolis, onde recebeu menções honrosas na Câmara
de Vereadores, além de ter fotografado os famosos Cursos Internacionais de Férias da
Pró Arte, organizados pelo artista Theodor Heuberger. Dalmasso fora membro
fundador da Pró Arte em Teresópolis e, mesmo se não sabemos exatamente como a
herança de Baldi acabou em suas mãos, podemos imaginar, com segurança, que ele sabia
do que se tratava e do valor da coleção. Se esses documentos alguma vez estiveram em
posse de Hans Rudolf Gewert, ainda são nebulosos os motivos pelos quais ele não os
enviou para Viena, já que eram indispensáveis para a identificação dos negativos e
fotografias que passaram a compor a coleção vienense.
Seja como for, foi apenas no século XXI que, tanto Teresópolis como Viena,
descobriram que guardavam as duas metades de um tesouro austro-brasileiro, o qual
possibilitaria conceder a Mario Baldi seu merecido lugar na história da fotografia
brasileira. Isso ocorreu de forma inusitada. Em 2006, “tropecei” na Coleção Mario Baldi,
em Teresópolis, quando buscava informações para outra pesquisa histórica. Logo percebi
a riqueza da documentação e passei a garimpar tudo o que havia disponível, no arquivo
do fotógrafo e na historiografia sobre fotografia e fotojornalismo. Foi então que achei
uma nota publicada na internet, que anunciava a palestra de Kurt Weinkamer (2000),
proferida na Salzburger Landeskunde (Sociedade Salzburguesa de Estudos Regionais),
sobre a história da família Baldi. Weinkamer (2000) foi um historiador diletante dedicado
à memória de Mario Baldi, uma vez que sua avó, após ter ficado órfã, foi adotada por um
membro da família Baldi. Fiz contato com o autor, que me instruiu, por correspondência,
a pesquisar no Weltmuseum Wien, onde eram preservados os artefatos dos índios
Tapirapé e Karajá coletadas por Baldi, além de muitas fotografias suas. Assim teve início
uma indispensável cooperação, primeiramente com Margit Krpata, que trabalhava com
a coleção fotográfica, posteriormente com o antropólogo Christian Feest, então diretor
daquele museu.
Em 2009, o Foto Rio (Encontro Internacional de Fotografia do Rio de Janeiro)
deu acolhida a uma mostra fotográfica com 60 imagens feitas por Baldi, além de
documentos do acervo teresopolitano. Foi a primeira vez em que as duas coleções se
uniram, depois da separação entre 1959 e 1961. O evento ocorreu no Arquivo Nacional
e teve uma publicação de catálogo (LOPES; FEEST, 2009). Foi nessa publicação que
apresentamos, pela primeira vez, o Projeto Baldi, que tem como objetivo preencher as
10 | Um tesouro austro-brasileiro: compartilhando... LOPES, M. B.

lacunas existentes nas duas partes da coleção e proporcionar maiores possibilidades de


pesquisa.

Memória e acervos: compartilhar responsabilidades

“Os museus têm a responsabilidade de ir ao encontro da história” (POPESCU,


2020, s/p.). Essas foram as palavras de Tyree Boyd-Pates, curador do Autry Museum of
the American West. Boyd-Pates se referia ao processo de coleta de testemunhos
históricos sobre a pandemia do coronavírus, em 2020. Mas sua observação se aplica a
qualquer contexto em que se trate de museus, testemunhos e história humana.
Não é de hoje que o problema da internacionalização da cultura material gera
polêmicas e discussões acaloradas. Um dos relatos mais antigos sobre isso delineia com
contornos trágicos o complexo processo de identidade que envolve a cultura material e
a geografia imaginativa dos povos humanos. Trata-se da história bíblica na qual os
filisteus tomam a Arca da Aliança do povo israelita e a levam para o seu território. Como
se lê na narrativa do livro de I Samuel, para o sacerdote hebreu Eli, a tomada da Arca e
seu rapto para uma terra estranha era como se a glória divina abandonasse seu próprio
povo (I Samuel 4:1-19). Essa história demonstra que um objeto que, a despeito de sua
materialidade, se distingue do resto da matéria por seu conteúdo eminentemente
espiritual e simbólico. Neste caso, a materialidade fora substituída por uma espécie de
imaterialidade, já que ninguém poderia tocar no objeto e permanecer vivo. A proibição,
cuja quebra redundaria numa penalidade máxima, transformava o objeto em um não-
objeto, muito mais real e poderoso do que a matéria visível.
As discussões sobre repatriamento de acervos, objetos e material mortuário
nunca cessaram de ocorrer, exatamente por se relacionarem com dimensões simbólicas
e culturais das sociedades humanas. O próprio termo “repatriamento” não é ingênuo. Ele
articula as ideias de pátria, pertencimento, filiação, memória e origem, muitas vezes
através de uma perspectiva estática e não processual da história, outras vezes de maneira
crítica, construtiva e democrática. Os museus têm papel relevante neste aspecto, na
medida em que podem – por vezes, devem – mediar esses processos.
Ao longo do século XX, as instituições museais vivenciaram uma transformação
significativa. É uma história, digamos, de preposições. Nos Estados Unidos da América,
Stephen E. Weil (2002, p. 28) identifica a mudança através da ideia de que os museus
deixaram de ser sobre algo e passaram a ser para alguém. Ser para alguém implica em
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trazer à discussão as práticas sócias históricas da instituição e identificar como elas,


ontem e hoje, se articulam com as demandas dos públicos interessados na instituição,
representados nas coleções e, também, excluídos delas. Nos últimos anos, no Brasil, o
Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM) liderou o notável esforço coletivo para criar
uma política de educação museal que, indo além do sobre e do para, pensa o museu,
principalmente, com diferentes agentes históricos. Aqui entram em cena iniciativas como
as curadorias coletivas, as construções horizontais e a-hierárquicas de sentido, e os
planejamentos participativos

como instrumentos de luta contínua, mediação e transformação da realidade


social dentro de uma estrutura viva com lentes multifocais que contemplem
suas singularidades, considerando caso a caso os riscos de contaminação
microfascista presentes nas relações humanas (IBRAM, 2018, p. 92).

Nesse conjunto de fatores, a noção de responsabilidade interinstitucional


compartilhada é uma forma de mediação das discussões, conflitos e reivindicações sobre
acervos que são internacionalizados. O seu deslocamento de um lugar para outro é fruto
das práticas sociais de sujeitos históricos que, a partir de demandas culturais específicas,
escolheram coletar, juntar, colecionar e, também, conquistar objetos, como é o caso dos
despojos de guerras. Com destaque para os museus de Etnologia, todas as instituições
museais produzem algum tipo de deslocamento geográfico da cultura material humana.
De acordo com o antropólogo Christian Feest (2011, p. 27),

os artefatos preservados em um museu de etnologia são diferentes e devem


ser vistos como documentos que retratam duas culturas diferentes: a cultura
de origem, de onde as coleções foram alienadas, e a cultura dos colecionadores,
os quais a visão de mundo e suas práticas levaram à sua preservação, e por
isso são igualmente incorporadas nas coleções.

No caso da Coleção Mario Baldi, o interesse pelo material especificamente


etnológico deslocou para Viena todos negativos produzidos e os artefatos coletados pelo
fotógrafo, abandonando o material de caráter mais pessoal, cartas e artigos que, hoje, se
mostram indispensáveis para a identificação e estudo da parte austríaca da coleção.3
O Weltmuseum Wien está situado no complexo cultural vienense. A localização
do prédio, às margens do Burgring, na Heldenplatz, e as suas temáticas culturais e
etnológicas podem ser consideradas de um ponto de vista discursivo. Tomado não
isoladamente, mas na sua relação frontal, distinta e complementar com outro museu,
temos aquele que trata da cultura artística e canônica do Ocidente, o Kunsthistorisches

3
Durante o processo de traslado dos documentos de Mario Baldi para Viena, Etta Becker-Donner tentou
recuperar os cadernos de campo do fotógrafo, sem sucesso.
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Museum (Museu de Arte), e do outro lado da Maria-Theresien Platz, ergue-se o museu


dedicado à alteridade cultural, ao exotismo e ao etnográfico, o Weltmuseum Wien.
Trata-se, em certa medida, de uma grande metanarrativa museológica e histórica.
Em que pese a carga histórica desse tipo de construção discursiva e visual, que
não deve ser negligenciada pelo olhar crítico, a instituição assume, atualmente, uma
posição engajada no diálogo. Pelo menos é o que lemos na descrição do museu sobre seu
papel no mundo contemporâneo:

Como muitos outros museus etnográficos do mundo, o Weltmuseum Wien


deve encarar seu passado para forjar seu futuro, já que, nos séculos passados,
aquilo que pode ser visto em nossas salas foi, por vezes, compilado em
condições questionáveis. Por isso buscamos o diálogo aberto, somo
autocríticos e nos constituímos como um fórum no qual o maior número de
vozes possível deve ser ouvido. Sempre em foco: o nosso público
(WELTMUSEUM WIEN, 2020, s/p.).

O fato desse compromisso aparecer logo no primeiro parágrafo da autodescrição


do museu, no seu sítio eletrônico, indica a urgência da questão e a necessidade imposta
aos museus pelos grupos sociais. Entre esses, está o público visitante, em si muito plural,
que tem direito à informação precisa e transparente sobre a formação das coleções. Tal
transparência só pode ser garantida pelo protagonismo dos agentes históricos
produtores dos objetos musealizados, representados objetivamente pelos indivíduos
contemporâneos às exposições, mas igualmente pela memória social e histórica que eles
constroem, através das conexões subjetivas entre os objetos e os ancestrais das
comunidades de origem.
Uma das vantagens da Coleção Mario Baldi é o seu caráter aparentemente mais
documental e arquivístico e menos museológico. É claro que há documentos que sofrem
musealização, uma prática comum em muitos museus. Além disso, uma coleção
fotográfica sempre tem um fotógrafo produtor e, nesse caso, com exceção dos artefatos
indígenas colecionados por Baldi, podemos julgar os conteúdos fotográficos, suas
escolhas e enquadramentos, mas não podemos aplicar automaticamente a noção de rapto,
roubo e deslocamento da cultura material das comunidades de origem. Isso torna a
intenção de compartilhar as responsabilidades muito menos conflitivas e é isso que temos
feito até o momento. É claro que não podemos desconsiderar que qualquer fotografia é,
também, um suporte de relações sociais. Muitas vezes essas relações são estruturadas de
maneira assimétrica e violenta, e dão origem a imagens que testemunham – mesmo
dissimulando – os processos históricos dos quais fazem parte. Fotografias produzidas em
contexto colonialista, de pesquisa etnográfica, e de expansão territorial do Estado, para
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citar alguns exemplos clássicos, colocam desafios importantes para a pesquisa e para a
crítica histórica (SCHWARTZ; RYAN, 2006; HIGHT; SAMPSON, 2004).
Por outro lado, exatamente por serem suportes de relações sociais, as fotografias
precisam ser recolocadas no fluxo multitemporal do evento da fotografia, como sugere
Ariella Azoulay (2010; 2012). Nós, hoje, que olhamos, criticamos, preservamos,
digitalizamos e admiramos as fotografias, também fazemos parte desse fluxo. O
engajamento historiográfico com as imagens enriquece o evento da fotografia, por meio
da crítica e da exposição das assimetrias sociais que marcaram a produção da imagem,
mas também através do reconhecimento de que há passados que só chegam até nós,
visualmente, porque foram fotografados.
Como um arquivo pessoal, o conjunto de documentos preservados no Brasil
colocam desafios de outra natureza, para pesquisadores: a tarefa de valorizar a
construção do sujeito-fotógrafo, sem cair na fácil armadilha da ilusão biográfica
(BOURDIEU, 2006). As cartas e fotografias, artigos e desenhos, cartões-postais e
diários, são conjuntos que visam, seletivamente, entre palavras e imagens, dar um “rosto”
para a figura “Mario Baldi”. Não é sem razão que as coletâneas de jornais e revistas para
os quais Baldi contribuiu como jornalista e fotógrafo tem o título Brazilien: são conjuntos
de informações sobre a atuação – e sucesso – de um imigrante austríaco no Brasil. A
primeira série de textos do autor chama-se Nach Brasilien, que pode significar tanto Para
o Brasil quanto Depois do Brasil, ou seja, assume a condição de imigrante como
transformadora, espécie de rito de passagem. Assim, desde muito cedo Mario Baldi
cuidou da sua autoimagem por meio de seus textos e fotografias.
A maioria das suas reportagens é dedicada às suas expedições, quase sempre de
caráter aventureiro, elemento que Baldi sempre cultivou sobre seu próprio caráter. Boa
parte da sua autobiografia também destaca esse “traço sertanista”. É comum a todas as
pessoas a construção de memórias. Seja qual forem os meios utilizados, o resultado final
é sempre complexo e subjetivo. A memória é algo fluido e sempre passível de ser refeita,
reorganizada. Ângela Gomes (1998), quando tratou da memória construída através de
arquivos pessoais, atribuiu a essas coleções o caráter de feitiço. Isso porque, por se tratar
de documentos pessoais, revelariam a figura do produtor de forma verdadeira e real. Esta
“ilusão de verdade” é, entretanto, um esforço de construção de uma imagem para si e
para os outros (GOMES, 1998, p. 7). Dialoga, portanto, com identidades, status e
memória.
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O encontro com arquivos inéditos é para o historiador como um oásis para o


viajante no deserto. Como bem colocou Christophe Prochasson (1998, p. 3-4), as fontes
desses

arquivos que os historiadores sempre sonham em revelar, como que para


melhor assentar sua legitimidade de “pesquisador” (o “pesquisador” torna-se
então um descobridor”, ou melhor, um “explorador” no sentido arqueológico
do termo), são numerosas: correspondências, diários íntimos, cadernetas e
agendas, dossiês de trabalho e dossiês de imprensa, notas de toda espécie etc.
Essa documentação deve constituir uma base arquivística útil para a história
da construção de uma obra ou de uma personalidade. Ela constitui aquilo com
que sonha todo historiador da cultura.

Mesmo que os arquivos privados não necessariamente sejam criados para que,
um dia, se façam públicos, o autor afirma que

existem cartas ou documentos privados cujo autor mal disfarça o desejo,


talvez inconsciente, de torná-los, o quanto antes, documentos públicos. A
conservação sistemática da correspondência recebida por um intelectual e às
vezes mesmo as cópias de algumas de suas próprias cartas (...) sempre me
intrigaram (PROCHASSON, 1998, p. 10).

Por vezes encarei a documentação da Coleção Mario Baldi como um exemplo do


que Prochasson diz em seu interessante artigo. Baldi organizou com um cuidado
meticuloso papeis e fotografias, bem como guardou cópias de cartas que ele mesmo
escreveu. O fotógrafo via em sua produção fotográfica e textual parte de sua própria vida,
espelho de sua própria imagem. Baldi tinha o costume de sublinhar seu nome sempre que
este aparecia num texto e de dar a si mesmo créditos pela autoria de textos e fotografias,
quando isso não era feito pelas revistas e jornais. Isso auxilia a pesquisa documental,
facilita a localização de imagens e informam sobre o posicionamento e luta quanto à
autoria, mas desperdiçaríamos parte do potencial das fontes se considerássemos essas
atitudes recorrentes do autor como mero pragmatismo.
Na verdade, o fotógrafo está constantemente se autoconstruindo e se projetando
na sua própria obra, poderíamos dizer, num colecionismo de si. É uma forma de ter
sempre por perto aquilo que é importante, como colecionar fotografias num álbum – ou
nas paredes e livros do próprio lar, como vemos na fotografia abaixo (Figura 5).
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Figura 5: Fotógrafo não identificado. Mario Baldi trabalhando na sua coletânea de artigos, no
escritório da rua São Clemente. Rio de Janeiro, década de 1940.
Fonte: WMW, Coleção Mario Baldi, n. 10.005.

Juntando as partes da Coleção Mario Baldi

Inicialmente, o Projeto Baldi foi uma cooperação a quatro mãos, eventualmente


sendo acrescido de outros colaboradores em Viena, através de estagiários e
pesquisadores da parte austríaca. Nunca houve formalização de parcerias, com
assinaturas de acordos bilaterais, mas sim diálogo direto, compartilhamento de
demandas e intercâmbio de informação documental. As necessidades aparecem no
decorrer da pesquisa e do tratamento dos acervos: catalogação, descrição, inventário e
acondicionamento. Assim, identificamos a ordem original de produção dos documentos,
tarefa facilitada pela numeração dada por Mario Baldi a seus negativos, em ordem
crescente, que correspondem aos contatos e às ampliações fotográficas. Os resultados
foram organizados em planilhas com campos específicos para a inclusão de dados já
descobertos e a descobrir.
Ainda que as duas instituições de guarda tenham seus códigos específicos de
catalogação, convencionamos que o identificador das imagens seria o número original
produzido pelo fotógrafo. Assim, a imagem “Baldi nº 4866”, que existe apenas em Viena
na forma de negativo, entra na planilha antes da “Baldi nº 4867”, existente apenas no
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Brasil na forma de ampliação. As duas imagens possuem indicação de propriedade,


registrada na planilha. A união das imagens numa só planilha permite o preenchimento
desses campos, por comparação das imagens, numeração consecutiva etc. É, como se vê,
um procedimento muito simples e lógico, mas crucial para que se tenha um quadro
completo da produção do fotógrafo. Deve-se lembrar, no entanto, que o procedimento é
adequado à natureza das coleções em questão, e não serviria, necessariamente, a outros
tipos de conjuntos documentais, fotográficos ou não.
Estas planilhas são para uso das instituições e, em princípio, não de
pesquisadores. Elas foram pensadas para possibilitar a inclusão de informações
descobertas ao longo das pesquisas. Para o público interessado na Coleção Mario Baldi,
os resultados da cooperação deverão ser disponibilizados num espaço virtual, que já
começou a ser construído. Como se vê na ilustração, utilizamos a forma como Mario
Baldi se apresentava ao público brasileiro: “o photoreporter do Brasil” (Figuras 6 e 7).
Estão previstos textos e imagens sobre o fotojornalismo, etnologia, os dois conjuntos
documentais e um banco de dados que, a partir das planilhas, unirá o material brasileiro
ao austríaco, preservando a ordem original dos documentos e seu contexto de produção
sem, contudo, comprometer os direitos de copyright e de propriedade das instituições
envolvidas, bem como a gestão dos acervos e das formas de organização física e
acondicionamento escolhidas por cada uma delas.

Figura 6: Página de abertura do sítio virtual da Coleção Mario Baldi. Design de Ricardo Guarilha.
Fonte: Sítio virtual da Coleção Mario Baldi.
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Figura 7: Página de apresentação do sítio virtual da Coleção Mario Baldi. Design de Ricardo Guarilha.
Fonte: Sítio virtual da Coleção Mario Baldi.

Nos últimos anos, o museu austríaco investiu na digitalização de todos os


negativos produzidos por Baldi, que ainda existem na sua Fotosammlung (Coleção
Fotográfica). Muitos deles são de nitrato, o que oferece risco para a preservação. Esse
material já foi transferido para o Brasil, em formato de cópias digitais. Praticamente todo
o material escrito, publicado ou não, existente no Brasil, também foi enviado para a
Áustria. A última aquisição, por parte do museu europeu, foi parte do espólio documental
de Kurt Weinkamer, o primeiro colaborador da pesquisa, que mencionei anteriormente.
Os documentos de Weinkamer são importantes para a recomposição biográfica e
genealógica da família Baldi. Eles são compostos, também, pelas várias cartas que Mario
Baldi escreveu a seus tios Anna e Fritz Baldi, as quais contêm valiosas informações sobre
os projetos editoriais do fotógrafo.

Considerações finais

Penso que o Projeto Baldi seja um bom exemplo de compartilhamento de


responsabilidade sobre um conjunto de documentos. Certamente ele não enfrenta certos
conflitos de identidade e memória, mais agudos em casos de restos mortuários e despojos
de guerra. Entretanto, a questão deve ser analisada caso a caso, sempre de forma que as
partes possam expor seus posicionamentos abertamente e sem censuras.
18 | Um tesouro austro-brasileiro: compartilhando... LOPES, M. B.

Com certeza a Coleção Mario Baldi constitui um tesouro cultural, uma vez que
contém documentação inédita sobre a Europa, África e América do Sul (Além do Brasil,
Baldi também produziu uma série fotográfica no Peru). Os processos históricos
contemplados pela documentação são bastante variados e merece destaque a Primeira
Guerra Mundial, representada por um diário com narrativa e fotografias; os complexos
encontros de sociedades e diversidade étnica no Brasil, representados pelas séries
fotográficas sobre a atuação do Serviço de Proteção ao Índio e Fundação Brasil Central;
desenvolvimento da linguagem fotojornalística no Brasil, sendo Baldi um dos primeiros
fotógrafos modernos da imprensa no país.
Atualmente, tanto o Weltmuseum Wien quanto o Serviço de Patrimônio de
Teresópolis vivem momentos distintos em relação ao contexto do início do projeto.
Algumas pessoas já não fazem parte das equipes originais, tanto no Brasil como na
Áustria. Portanto, o Projeto Baldi passa por um momento chave, no qual as duas
instituições de guarda devem buscar os apoios necessários e manter o diálogo aberto
para que continuem preenchendo as lacunas de seus conjuntos documentais. Para tanto,
se faz necessário ir adiante: só assim será garantida a preservação e união virtual do que
chamamos de Coleção Mario Baldi, um tesouro de milhares de imagens sobre a
diversidade cultural brasileira.

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AN AUSTRO-BRAZILIAN TREASURE: SHARING RESPONSIBILITIES FOR THE MARIO BALDI


COLLECTION

Abstract: The text presents the trajectory of the documental estate of the photographer Mario Baldi
(1896-1957), divided between Austria and Brazil, and the bilateral efforts to bring together the
information needed to supplement both collections. We expose some basic data about the work of the
photographer, along with the ways through which his production was brought to the public, both during
his life and posthumously. Finally, we emphasize the passage from a collection split into two
incommunicable halves, to a proposal of shared responsibility.

Keywords: Photography. Museums. Mario Baldi.


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Referências

Fontes

BALDI, Mario. Stammbaum. SMCT/SPHAC, Coleção Mario Baldi, s/d.


Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922005, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 19

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WELTMUSEUM WEN. Über uns. Disponível em:


https://www.weltmuseumwien.at/ueber-uns/. Acesso em: 25 jun. 2020.

_____________________________________________________________________________________

SOBRE O AUTOR

Marcos de Brum Lopes é doutor em História Social pela Universidade Federal Fluminense
(UFF); professor visitante do Departamento de História da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) e Técnico em Assuntos Culturais - História do Museu Casa de Benjamin
Constant, Ibram (Licenciado).
_____________________________________________________________________________________

Recebido em 29/05/2020

Aceito em 01/07/2020
Os olhares de Fatumbi: o lugar da fotografia na
Fundação Pierre Verger

Marilécia Oliveira Santos


Universidade do Estado da Bahia
Alagoinhas - Bahia - Brasil
leciasantos@bol.com.br

Thiago Machado de Lima


Universidade Federal Fluminense
Rio de Janeiro - Rio de Janeiro - Brasil
thiago_machado20@hotmail.com

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Resumo: O presente texto tem como objetivo compreender o lugar da fotografia na Fundação Pierre
Verger a partir de uma perspectiva histórica. Analisamos o processo de construção do acervo, seu
tratamento técnico, sua disponibilização para o público e alguns dos seus usos sociais. A investigação
destes pontos está permeada ainda pela apreciação de aspectos biográficos do fotógrafo e da estrutura de
funcionamento e financiamento da Instituição.
Palavras-chave: Fundação Pierre Verger. Fotografia. Bahia
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Introdução

Em 1988 o fotógrafo francês Pierre Verger criou uma Fundação com seu nome
na cidade de Salvador, capital da Bahia. A Instituição teve como objetivo ser um espaço
de guarda de todo seu acervo produzido ao longo de uma rica trajetória profissional
marcada por intensas viagens e imersões culturais. O projeto foi instalado na casa do
próprio criador no bairro do Engenho Velho de Brotas e contou com sua direção até o
ano do seu falecimento em fevereiro de 1996, tendo o trabalho prosseguido pelas mãos
de outros colaboradores, a exemplo do pintor Carybé, Solange Bernabó e Gilberto de
Freitas Sá.
Permanecendo em atividade atualmente, e com uma estrutura que foi ampliada
para incluir um centro cultural, a Fundação Pierre Verger tornou-se uma instituição
importante para estudiosos de diferentes áreas. Além de expressar uma narrativa sobre
a história do fotógrafo, o espaço reúne vasta documentação composta por películas,
objetos de arte e uso pessoal, manuscritos, fichas, livros e mais de sessenta mil negativos
e doze mil ampliações reunidas pelo fotógrafo entre as décadas de 1930 e 1970. Todo
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esse material tem servido de base para trabalhos acadêmicos e artísticos com temáticas
marcadas, principalmente, pelas conexões atlânticas da cultura negra baiana e de regiões
do continente africano, com destaque para o Golfo do Benin.
O presente texto tem como objetivo compreender o lugar da fotografia na
Fundação Pierre Verger, a partir de uma perspectiva histórica. Analisamos o processo
de construção do acervo, seu tratamento técnico, sua disponibilização para o público e
alguns dos seus usos sociais. A investigação destes pontos está permeada, ainda, pela
apreciação de aspectos biográficos do fotógrafo e da estrutura de funcionamento e
financiamento da Instituição.

A pesquisa com fotografia e os espaços de guarda

Nas últimas décadas a fotografia “consolidou-se, no campo dos estudos históricos


como fonte de pesquisa e objeto de análise”, transcendendo os estudos iniciais focados
nos processos técnicos e de gênero fotográfico, passando a incorporar “as dimensões da
prática social e de experiência histórica associadas aos modos de ver, dar a ver e
representar fotograficamente o mundo social” (MAUAD; MONTEIRO, 2018, p.3). Os
estudos históricos que tomaram a fotografia como objeto central em suas investigações
resultam dos processos da renovação historiográfica vivenciada no final dos anos 1970 e
início de 1980 e foram intensificados a partir da década de 1990 com a virada pictórica e
um maior investimento acadêmico nos estudos culturais (MAUAD, 2016).
Em 1994, Vânia Carvalho, Solange Ferraz Lima, Maria Cristina Rebelo Carvalho
e Tânia Francisco Rodrigues organizaram um ensaio bibliográfico cujo propósito foi
levantar “obras de autoria nacional que fizeram uso da fotografia numa perspectiva
histórica”. O trabalho partiu inicialmente das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo e foi
estendido para outros espaços, porém foi reconhecida a dificuldade de cobrir toda a
produção em território nacional. As autoras chamam a atenção para a grande diversidade
da produção bibliográfica que se vale da fotografia como fonte para produzir
conhecimento sobre os “fenômenos passados, sejam estes ligados à história social,
história da visualidade, história do cotidiano, história urbana, história do próprio suporte
fotográfico, da atividade de seus profissionais” além de “histórias internas de
personalidades, grupos étnicos, profissionais, empresariais, políticos etc” (CARVALHO
et al., 1994, p. 254).
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As possibilidades de pesquisa com fotografias são grandes e desafiadoras. É


preciso atentar para as questões de natureza técnica da produção fotográfica e o “circuito
social” da fotografia que envolve o ato de fotografar e consumir imagens. Importa
também conhecer a “biografia” da fotografia incluindo seu itinerário, “as condições
históricas de sua produção, os percalços de sua circulação, as formas como foi apropriada
pelos diferentes circuitos sociais, os endereçamentos a que se destinou, os arquivos que
visitou e a situação em que foi encontrada” (MAUAD, 2016, p.46).
Entendendo a fotografia como uma mensagem visual, procurar conhecer os
sentidos e propósitos da produção, consumo e circulação dessa mensagem requer um
diálogo da História com outras áreas do conhecimento a exemplo da Antropologia,
Sociologia, Semiótica, Arquitetura e Arte. Esse diálogo enriquece uma abordagem
metodológica transdisciplinar e ilumina a crítica à fotografia como fonte histórica.
Desde sua invenção na primeira metade do século XIX até os dias atuais, a
fotografia, em seus mais variados suportes e por meio de fotógrafos profissionais ou
amadores, em atividade itinerante ou em estúdios fixos, registrou o cotidiano de famílias,
celebrações públicas e privadas, ritos fúnebres, conflitos, guerras, atividades laborais,
espaços citadinos e ao longo desse tempo o material produzido e acumulado teve
diferentes fins. A utilização das “fontes fotográficas para a pesquisa histórica” deve
considerar que “tamanha diversidade de seus usos gerou arquivos e coleções que podem
ser encontrados não somente em instituições de guarda (arquivos, museus, bibliotecas,
etc.), mas também nos seus locais de origem de produção ou no final do caminho de sua
circulação” (CARVALHO; LIMA, 2011, 34-35).
O intuito de perenizar momentos cotidianos e entes queridos, tornou comum a
prática de tirar e guardar retratos nas famílias. Por vezes, quando os familiares
retratados ficam muito distantes temporalmente dos vivos, as novas gerações fazem
doações das fotografias a museus ou arquivos. Muitas, contudo, são descartadas por seus
guardiões acreditarem que não são de interesse das instituições uma vez que não
retratam personalidades consideradas importantes para a sociedade em geral. Por outro
lado, quando se trata de um antepassado que tenha ocupado um cargo público ou tenha
se destacado em alguma ação política e econômica, seus descendentes procuram doá-las
inclusive com outros registros pessoais do retratado. São ações que buscam perenizar
aspectos solenes de seus ancestrais e algumas vezes tentando trazer para os mais jovens
o prestígio vivenciado no passado por aquele integrante da família.
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Entre os propósitos dos doadores e da instituição que recebe, por vezes, se


estabelece um impasse e “nesta sobreposição entre uma história crítica e uma história
memória, ao curador cabe, antes de tudo, tomá-la como objeto de conhecimento”
historicizando sobre sua trajetória. Deste modo, é necessário que o “laudo” deixe de ser
um mero “instrumento administrativo para funcionar como documento de campo”
(CARVALHO; LIMA, 2013, p. 105).
É preciso considerar que embora a fotografia “tenha sempre integrado coleções e
arquivos pessoais (ao lado de correspondências, diplomas, diários e demais documentos
textuais)”, não havia por parte dos responsáveis por esses lugares de memória “a
preocupação de dispensar a elas quaisquer tratamentos específicos de descrição e tão
pouco de conservação”, gerando inúmeros impasses aos pesquisadores (CARVALHO;
LIMA, 2011, p. 39). Muitas exposições e ordenamentos das fotografias coletadas por
esses espaços de guarda alteram a organização inicial das imagens como, por exemplo,
desmontando álbuns de família ou retirando-as das molduras originais. Essas ações
acabam por comprometer o uso da fotografia como instrumento de pesquisa para alguns
projetos específicos e a observância desses aspectos é fundamental.
Em diversos arquivos muitas fotografias têm tão somente o registro do local
fotografado e, por vezes, a data como únicos elementos de identificação. Isso porque no
ato de recolhimento por doações ou aquisições não se priorizava inventariar a trajetória
da fotografia até o momento da sua chegada àquele local como um artefato. Foi a
crescente procura pelas fotografias por pesquisadores de diversas áreas de interesse que
fez com que elas passassem a integrar as políticas de organização de memória e centros
culturais. Sobre o tratamento secundário que a fotografia recebeu nesses lugares ao
longo do século XX, Carvalho e Lima (2011, p.39) afirmam que “seria simplista justificar
tal situação como fruto do descaso ou incompetência dos profissionais dos museus” e nós
acrescentamos também aos demais espaços de guarda. Para elas, esse tratamento
decorreu “do estatuto que a fotografia gozava no âmbito das ciências humanas, que viam
a imagem como expressão periférica de fenômenos sociais produzidos na dimensão
política e econômica”.
Cabe destacar que as fotografias de Pierre Verger que integram a Fundação não
sofreram com os problemas relatados acima e isso porque o próprio Verger teve o
cuidado de organizá-las, catalogá-las e elas sofreram os desgastes naturais em função do
tempo. A consolidação da Fundação Pierre Verger como um espaço de guarda da
produção imagética de um fotógrafo, esteve em sintonia com as mudanças de status que
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a fotografia teve nas sociedades ao longo do século XX, assim como as transformações
nos paradigmas das diferentes áreas acadêmicas.
Verger demonstrou ter consciência da importância da sua obra e do seu papel
para legá-la ao futuro. Além de organizar suas fotografias e seus escritos publicados em
diferentes suportes como jornais e livros, ele se empenhou em catalogar sua
correspondência fazendo inclusive cópia de cartas emitidas. Ângela de Castro Gomes
(1998, p.125) chama a atenção para os problemas enfrentados pelo historiador na análise
específica de materiais oriundos de arquivos privados, pois eles geram uma suposta
“ilusão da verdade” que acaba exercendo um encantamento no pesquisador, processo que
ela denomina como o “feitiço do arquivo privado”. A marca da pessoalidade dessa
documentação induz o pesquisador a imaginar que ela revelaria seu produtor de maneira
mais “verdadeira”. Além disso, é preciso ter cuidado com uma possível condução da
pesquisa que corre o risco de ser orientada por quem deixou a documentação organizada
e hierarquizada de acordo com sua própria expectativa. Para a autora o pesquisador deve
deixar claro para o leitor que foi ele quem conduziu a fonte, e não foi “por ela
conduzido/possuído”.
Hoje a Fundação Pierre Verger é uma importante referência para os estudos da
e com a fotografia. Atende a pesquisadores de áreas distintas e tem a fotografia na
centralidade dos projetos e ações que desenvolve. Seu acervo possibilita investigações
sobre seu fundador, suas práticas fotográficas, considerando as técnicas empregadas ao
longo do vasto período de sua atuação como fotógrafo bem como sobre as diferentes
culturas e experiências que viu e deixou registros.

Notas biográficas sobre Pierre Verger

Pierre Eudoard Leopold Verger nasceu em Paris no ano de 1902, membro de uma
família socialmente abastada. Com quase trinta anos de idade, tinha perdido seus pais e
irmãos e diante da desagregação do seu núcleo familiar, resolveu sair do ambiente
parisiense e se aventurar em viagens exploratórias pelo mundo. Nesse período, tinha
iniciado seu fascínio pela arte fotográfica e começou sua caminhada fora da França com
uma Rolleiflex1 usada nas mãos (MARTINI, 1999, p.13).

1
A câmera Rolleiflex, de produção alemã, surgiu no fim da década de 1920 e tornou-se um modelo
inovador para a arte fotográfica no século XX. Ao contrário das tradicionais máquinas, a Rolleiflex tinha
um peso leve, era de tamanho compacto e, através de duas lentes objetivas, possibilitava uma melhor
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Segundo relata o próprio Verger, no início de seus trabalhos fotográficos, ele não
tinha um estilo definido. Sua ação se dava pelo encantamento dos detalhes que a
Rolleiflex lhe permitia captar de tão curta distância. Assim, ele podia “valorizar o
contraste do rugoso e do liso, do brilhante e do fosco, o veio da madeira, a espuma de
uma onda vindo morrer na areia granulosa de uma praia”. Captava “as gotas do orvalho
sobre um talo de erva, um canto de calçada asfaltada, alguns paralelepípedos e um bueiro”
e, até mesmo, “um lagarto engolindo uma mosca” (VERGER, 2011, p.12).
As pretensões iniciais de Verger era ter a fotografia como um hobby. Contudo,
os primeiros aprendizados técnicos que teve com seu amigo e reconhecido fotógrafo
francês, Pierre Boucher, o levou para um interesse mais profissional da arte de clicar.
Munido de material e conhecimentos básicos, seu aperfeiçoamento se deu num processo
de imersão nas primeiras viagens que realizou aliado ao estudo de noções de antropologia
e etnografia. Ainda no início da década de 1930, Verger fotografou em países como
Rússia, Itália e Taiti. Este último, onde permaneceu por alguns anos, foi onde registrou
uma das suas imagens mais conhecidas e que deu projeção ao seu nome na ocasião, Pesca
e Arpão (MARTINS, 2019, p.15-16).
Sua relação com o Brasil começou nos anos quarenta, quando já acumulava uma
vasta experiência de viagens e trabalhos fotográficos incluindo passagens pelas Antilhas,
Polinésia Francesa, Estados Unidos, Japão, China, Argentina e Peru (LUHNING, 1998-
1999, p.317-318). Na cidade de São Paulo, Verger estabeleceu contato como o sociólogo
francês Roger Bastide que lhe fez relatos sobre a cultura negra na Bahia e a influência
africana. Verger já era interessado pelo tema e tinha lido anos antes o livro Jubiabá do
escritor Jorge Amado. Com desejo de conhecer o que tanto já tinha ouvido falar, decidiu
ir para a cidade de Salvador. Antes de se instalar na capital baiana, o fotógrafo ainda
passou um curto período no Rio de Janeiro, onde prestou os primeiros serviços para a
revista O Cruzeiro por intermédio da professora Vera Pacheco e estabeleceu vínculo para
atuar como correspondente da Revista na Bahia (ROLIM, 2009, p.2). De acordo com o
documentário Fotografação (2020), Verger atuou como repórter da Revista de 1946 a
1959 e neste período teria realizado mais de 200 matérias jornalísticas e suas fotografias
também acompanharam textos de outros profissionais. O documentário enfatiza que, por
meio das fotografias de Verger, muitos aspectos da cultura do Nordeste, particularmente
da Bahia e dos cultos afro-brasileiros, passaram a ser mais conhecidos nacionalmente. A

nitidez nos cliques. Pensada exclusivamente para o uso de profissionais da fotografia, os fabricantes da
Rolleiflex acabaram criando outras linhas de qualidade para uso amador, popularizando a marca.
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revista O Cruzeiro, indica Ana Maria Mauad (2005), foi um dos periódicos que mais
contribuiu para a difusão e a instituição de um padrão para o fotoperiodismo no Brasil.
Pierre Verger chegou a Salvador em agosto de 1946 e se deparou com uma cidade
que foi um marco na sua carreira fotográfica e trajetória de vida. Em solo baiano,
estabeleceu relações com um grupo de artistas formado por Jorge Amado, Dorival
Caymmi e Carybé. Conforme analisa Washington Drummond (2009, p.10), seja na
literatura, na música ou na pintura, tais artistas criticavam o processo de modernização
urbana e desenvolviam suas produções “explorando as ruas, a arquitetura colonial e a
cultura negra da cidade na contramão do gosto oficial”. Em sintonia com essa visão,
Verger iniciou sua peregrinação fotográfica pelas ruas da capital da Bahia, depois
seguindo para o interior. Drummond identifica que esse “deambular pelas ruas, o fascínio
pela vida urbana prestes a desaparecer, as ruínas arquitetônicas do centro histórico e a
iluminação antropológica”, são traços da influência do surrealismo no olhar de Verger,
Amado, Caymmi e Carybé, embora na “forma estética” não se assemelhassem ao
“surrealismo clássico”.
Fascinado com a dinâmica local que encontrou em Salvador e seu entorno, Pierre
Verger passou a registrar o cotidiano da população negra centrando o foco de suas lentes
nas festas populares e na atividade laboral de trabalhadores e trabalhadoras pobres, a
exemplo das imagens intituladas Festa do Bonfim (1947) e Festa dos navegantes (1948).
O fotógrafo fez uma imersão na religiosidade afro-baiana passando a visitar terreiros e
documentar cerimônias e rituais. Dentre os mais frequentados estava o Ilê Axé Opô
Afonjá, de Maria Bibiana do Espírito Santo, conhecida como Mãe Senhora. Nesse
período, Verger passou a aprofundar seus conhecimentos sobre o Candomblé (COELHO,
2006, p.90).
Ainda no fim dos anos quarenta, o fotógrafo conseguiu uma bolsa pelo Institut
Français d'Afrique Noire (IFAN) para estudar na África por um ano. Com a
oportunidade, passou a estabelecer conexões entre a cultura negra baiana e a cultura
africana. Foi nesse período que Verger teve que se dedicar não só ao campo da fotografia,
mas também da escrita mais sistemática e investigativa. O IFAN não aceitou apenas o
volumoso número de dois mil negativos que ele clicou e entregou como resultado de
todo o projeto de pesquisa. Foi necessário que o artista escrevesse sobre tudo que tinha
visto (LIMA, 2008, p.58). Seguindo nas suas investigações, em 1949 encontrou uma
documentação do século XIX correspondente ao tráfico de escravos entre o Golfo da
Guiné e a Bahia, o que levou a aumentar seu interesse pelo tema (GUARIGLIA, 2020).
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Entre as décadas de 1940 e 1950, Verger trabalhou para diversos jornais e


revistas internacionais sem ter, muitas vezes, contratos de exclusividade, a exemplo da
Unesco Courier (LUHNING, 1998, p.318). Nesse período, o francês também atuou como
colaborador do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN),
enviando fotos de regiões da Bahia, a exemplo da Casa de Câmara e Cadeia da cidade de
Rio de Contas, região da Chapada Diamantina (ABE, 2008, p.58). Nesse período, o
fotógrafo encaminhou setenta e uma fotos registradas oficialmente no órgão. Entre 1937
e 1947, foram tombados cento e vinte e três bens na Bahia e Verger foi um dos fotógrafos
que atuou nestes processos (FONSECA; CERQUEIRA, 2008, p.15-32). A criação do
IPHAN, originalmente SPHAN, no ano de 1936 instituído pelo decreto Decreto-Lei
nº25 se insere no propósito de implantar “medidas mais concretas para a construção e
definição de um referencial simbólico e imagético próprio da cultura nacional” pelo
governo de Getúlio Vargas. O Arquivo Fotográfico da instituição teve papel importante
tanto no processo de tombamento do patrimônio brasileiro, quanto no desenvolvimento
de pesquisas diversas (COSTA, 2015, p.90).
Em 1968 Pierre Verger, mesmo autodidata, recebeu da Sorbonne, em Paris, o
título de doutor em Estudos Africanos, especificamente pelo reconhecimento da
publicação de Flux et reflux de la traite des nègres entre le golfe de Bénin et Bahia de
Todos os Santos du dix-septième au dix-neuvième siècle. O livro só saiu publicado em
português no ano de 1987. Quando recebeu o título de Doutor, Verger já tinha publicado
muitos outros trabalhos escritos, a exemplo de Dieux d’Afrique em 1954, seu primeiro
sobre a cultura Iorubá. Como aponta Ângela Luhning (1998, p. 316-333), a tônica de
toda sua obra escrita “concentra no universo das culturas e religiões afro-americanas,
especialmente o contato entre a África Ocidental e o Brasil” e muitas vezes, “outros países
do Novo Mundo, como Cuba, Haiti, Suriname e Guiana Francesa”.
Nesse processo de profunda imersão na religiosidade negra que tinha iniciado na
Bahia e em outros estados como Recife, onde teve contato com o culto a Xangô, e em
São Luís do Maranhão onde conheceu a Casa dos Vodus, Pierre Verger foi acolhido ao
Candomblé. Mãe Senhora, reconhecendo-o como “mensageiro entre dois mundos”
consagrou sua cabeça à Xangô. Em período na África, no Daomé, Verger foi iniciado
Babalaô, sacerdote do Ifá, e recebeu o nome de Fatumbi, que significa renascido pelo Ifá.
Assim, passou a ser chamado de Pierre Fatumbi Verger (LUHNING, 1998, p.320-321).
Entre os anos setenta e início dos oitenta, já com fama mundialmente
reconhecida, o artista seguiu seus caminhos transatlânticos e ministrou aulas na
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Universidade Federal da Bahia (UFBA) e na Universidade de Ifé, na Nigéria (COELHO,


2006, p.91). Nesse período, após cerca de cinquenta anos de trabalho e experiências
culturais diversas, Verger fez seus últimos cliques. O fotógrafo se dedicou então a reunir
todo seu acervo e a publicar os materiais fotográficos, a exemplo de Retratos da Bahia
(1980), Centro Histórico de Salvador (1989) e Le messager (1993). Sua vasta obra
contava com diversos livros e artigos, além de fotografias que foram estampadas em
jornais, revistas, catálogos e exposições do mundo inteiro. Toda sua catalogação resultou
na Fundação Pierre Verger, local que dedicou energia até seus últimos dias.
Apesar da riqueza do seu trabalho e do seu fascínio pela relação Bahia e África,
Verger não ficou livre de críticas quanto a alguns aspectos da sua obra. Uma delas foi
feita pelo seu amigo Jorge Amado em livro intitulado Navegação de Cabotagem –
Apontamentos para um livro de memórias que jamais escreverei. Em trecho que recebeu
o título de “Purismo”, o escritor baiano indica como o fotógrafo francês tinha voltado
seu olhar para encontrar na Bahia a pureza dos rituais africanos, e “desdenha” do projeto,
colocado em prática por Verger e outros parceiros, da criação em Salvador de uma Casa
de Santo que fosse a reconstituição exata dos candomblés da Costa da África Ocidental:

Não sei que espécie de babaquice atacou Verger, padre François e os demais
velhinhos filhos-de-santo, ogãs, babalaôs, sábios titulares do candomblé
baiano, mestres de tudo quanto se refere às seitas afro-brasileiras, ao
sincretismo religioso e cultural, estudiosos das relações África x Brasil,
conhecedores das similitudes e das diferenças, sabendo que elas existem e
porque existem, de repente, sem prévio aviso, se fazem puristas africanos,
negros imaculados. Pretendem que cerimônias, rituais, designações, a língua
ioruba, o culto a nagô, o candomblé enfim se processe na Bahia igualzinho ao
da África, sem tirar nem pôr: muito se tirou, muito se pôs (AMADO, 2006,
p.334).

Mesmo com críticas pontuais, Jorge Amado considerava a obra fotográfica e


escrita de Verger algo “incomensurável” e “venerável”, e indicou isto no mesmo livro em
que fez a crítica. Além das relações com Amado, Carybé e Caymmi, o fotógrafo francês
ainda tinha a amizade e admiração de nomes como Gilberto Freyre, Walter Smetak,
Odorico Tavares e Mãe Menininha do Gantois. Sua arte fotográfica influenciou outros
fotógrafos como Sebastião Salgado, Adenor Gondim e Mário Cravo Neto.
Após seu falecimento em 1996, além da continuidade do trabalho da Fundação,
que perpetua sua memória, Verger recebeu várias homenagens. Em 1998, o fotógrafo foi
celebrado no carnaval do Rio de Janeiro pela escola de samba União da Ilha do
Governador, que contou na avenida sua trajetória de vida. Tempos mais tarde, no ano
2000, foi homenageado no documentário dirigido por Lula Buarque de Holanda que teve
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o título Pierre Verger: mensageiro entre dois mundos e contou com a narração de
Gilberto Gil. A Fundação Cultural do Estado da Bahia também promove, anualmente, o
Prêmio Nacional de Fotografia Pierre Verger que está na sétima edição e explora as
categorias Ancestralidade e Representação, Fotografia Documental, e Trabalhos de
Inovação e Experimentação.

A estrutura da Fundação e a organização do seu acervo

Apesar de reunir uma diversidade material de documentos, a fotografia tem lugar


central na Fundação Pierre Verger. No início, diante das limitações de financiamentos e
da estrutura da casa do fotógrafo, onde era a sede da própria Fundação, as centenas de
negativos foram organizadas em caixotes de madeira. Já as ampliações foram arquivadas
em pastas de poliéster, “e os contatos em arquivos de ferro” (FPV-Memórias, 2015, p.39-
89).2 Além de Verger ter reunido um vasto tesouro imagético sobre a cultura negra
baiana e africana, a versatilidade do seu olhar também incluiu cliques que representam
cenas cotidianas de comunidades nos cinco continentes, registrando as mudanças
ocorridas ao longo do século XX.
Nos anos 2000, o desenvolvimento do projeto intitulado Une mémoire enfouie
procedeu um inventário de todo o acervo da Fundação. A ação permitiu a reclassificação
de muitos documentos e a reacomodação de forma temporária visando um melhor acesso
naquele momento. O projeto ainda resultou na criação de um banco de dados que
possibilitou a consulta de toda a obra de Verger que se encontra sobre a guarda da
Fundação. Os trabalhos realizados identificaram alguns problemas na conservação do
acervo relacionados tanto à questão do desgaste pelo tempo, quanto pelas condições de
arquivamento. Cerca de quinhentos negativos estavam com avarias. Alguns estavam
queimados, outros tinham a imagem danificada por falta da emulsão e outros acabaram
grudados nos envelopes usados para protegê-los (SITE-FPV, Digitalização do Acervo,
2020).3
Em 2011 um passo importante foi dado pela Fundação no sentido de maior
organização e preservação do acervo. Com o financiamento da Petrobrás e da Odebrecht,

2
A referência indicada remete ao livro intitulado “Memórias de Pierre Verger”, publicado pela Fundação
Pierre Verger no ano de 2015. A partir deste ponto, toda citação do material no texto aparecerá com a
sigla FPV-Memórias. A referência completa encontra-se no final do texto.
3
Tais informações foram retiradas do site oficial da Fundação Pierre Verger no corrente ano de 2020. A
partir deste ponto, todas as citações de dados do site aparecerão no texto referenciadas com a sigla SITE-
FPV e a respectiva janela digital. A referência completa encontra-se no final do texto.
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por meio da Lei Rouanet, foi posto em prática o projeto intitulado Memórias de Pierre
Verger. O objetivo foi restaurar e digitalizar para melhorar a guarda e a disponibilidade
do acervo. Toda a operacionalização do projeto contou com o trabalho de técnicos,
compra de equipamentos específicos e ação de outras instituições de pesquisa e
preservação no Brasil além de ampliação do espaço físico da instituição (FPV- Memórias,
2015, p.9-49).
O trabalho de digitalização das centenas de negativos foi coordenado pela
fotógrafa espanhola Fernanda Sanjuan, que contou com o apoio de César Barreto e
Tassia Novaes, além de outros técnicos. Ao longo do processo, cada técnico digitalizou
cerca de quarenta negativos por dia. O método de digitalização em alta qualidade
permitiu que a Fundação percebesse erros de classificação que existiam no acervo, assim
como identificar datações específicas de certos negativos e informações complementares
dos lugares onde de fato teriam sido tiradas. Tudo isso foi feito pela técnica de análise
das bordas dos negativos digitalizados, que permitiu determinar com qual Rolleiflex a
imagem foi clicada. O estudo das bordas dos negativos e do enquadramento das imagens
possibilitou ainda aos técnicos do projeto uma compreensão mais aprofundada sobre a
maneira pela qual Pierre Verger operava suas máquinas fotográficas, chegando-se a
conclusão que ora o fotógrafo optava por clicar com a câmera na frente da barriga ou em
cima da cabeça (SITE-FPV, Digitalização do Acervo, 2020).
Já o processo de restauração dos negativos danificados ficou a cargo, a partir do
ano de 2014, do Instituto Moreira Salles. A técnica Maria Nazareth foi enviada pelo
instituto para formar profissionais em Salvador que puderam proceder todo o trabalho.
Cada negativo teve que ser tratado de forma específica de acordo com os danos existentes
(FPV-Memórias, 2015, p.53). O referido Instituto é um espaço de excelência no trato de
imagens, além de possuir um amplo acervo de música, cinema e literatura. Criado no
início dos anos noventa, a instituição tem sedes nos estados do Rio de Janeiro, Minas
Gerais e São Paulo.
Igualmente no ano de 2014, o projeto deu início à elaboração de um novo
inventário das ampliações fotográficas e dos trabalhos de melhoria da acomodação desses
materiais. O esforço foi no sentido de adquirir armários adequados, pastas especiais,
envelopes de poliéster e caixas do tipo portfólio com material de PH neutro. Todo o
material, após higienizado e reconfigurado, foi recondicionado em salas que receberam
também equipamentos como ar-condicionado, desumidificador e sensores. Essa nova
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estruturação possibilitou o controle de temperatura e umidade, aspectos fundamentais


para a manutenção da conservação do acervo (FPV-Memórias, 2015, p.53-54).
O projeto Memórias de Pierre Verger foi finalizado em 2015. Além de todo o
resultado de recuperação e otimização do acervo, um aspecto crucial do projeto foi o
estabelecimento exato da amplitude da obra do fotógrafo que se encontra nos domínios
da Fundação. Nos dados que foram apresentados em livro que levou o mesmo nome do
projeto, a Instituição indicou a quantidade de cliques que Verger fez relacionando
continentes, países e cidades/localidades.
Sobre a África constam 16.127 imagens com destaque para países como
Daomé/Benin com 5.669 e Nigéria com 2.541. Das América do Norte e Central,
registraram-se 8.896 fotos, sendo a maioria do México com 3.950, Cuba com 1.621 e
Estados Unidos com 1.110. Da Ásia constam 11.097 cliques, destacando-se a China com
3.910, Filipinas com 1.838 e Vietnã com 1.471. Sobre a Europa constam 3.874
fotografias, principalmente da Itália com 2.152 e França com 868. Sobre a Oceania tem-
se arquivado 668 cliques, sendo 630 da Polinésia Francesa. O foco principal ficou na
América do Sul, que registra 21.984 fotografias, sendo 13.387 do Brasil e 5.400 do Peru
(FPV-Memórias, 2015, p.157-213).
Analisando os dados disponibilizados pela Fundação, podemos chegar a uma
estimativa de que Pierre Verger, em suas passagens pelos cinco continentes, retratou
mais de sessenta países, trilhando por mais de seiscentas cidades/comunidades. Nesse
quadro, o país de maior registro do fotógrafo foi o Brasil, com destaque para a cidade de
Salvador. Os cliques do fotógrafo arquivados na Fundação correspondem a 7.033
imagens da capital da Bahia (FPV-Memórias, 2015, p.157-213). Frisa-se que a realização
do projeto Memórias de Pierre Verger também permitiu uma melhor circulação das
imagens do fotógrafo em exposições, assim como uma ampliação das condições de
pesquisa para estudiosos interessados em sua obra e na multiplicidade de temas que ela
permite explorar.
Além do acervo fotográfico, a Fundação possui uma biblioteca formada por livros
que o próprio Verger utilizava nas suas pesquisas. A coleção reúne volumes sobre o
Benin, a Nigéria, o Brasil e também sobre a expansão da cultura africana no mundo. Um
material que permite pesquisadores compreenderem o itinerário de leitura do fotógrafo
e os diálogos intelectuais que ajudavam a referenciar também as análises dos seus cliques.
Na biblioteca constam ainda periódicos e obras adquiridas pela Fundação após a morte
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922006, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 13

de Verger com destaque para as que tratam sobre ele ou que trazem suas fotografias. O
acervo livresco computa cerca de quatro mil títulos (SITE-FPV, Biblioteca, 2020).
A partir dos anos 2000, em meio ao processo de investimento nas condições do
acervo fotográfico, a Fundação Pierre Verger também ganhou um espaço de
atendimento à comunidade e realização de cursos de aprendizagem ligados a expressões
artísticas assim como a promoção de diversos eventos que ajudam a perpetuar a memória
do fotógrafo. Em 2005 foi inaugurado um centro cultural ao lado da Fundação e no ano
de 2008 o local virou um Ponto de Cultura mediante projeto do Ministério da Cultura
no governo Dilma Rousseff, algo que passou a sofrer impacto com a extinção do
ministério nos governos que se seguiram. Contudo, A Fundação e o Centro Cultural
ainda contam com o apoio do Fundo de Cultura da Secretaria de Cultura do governo do
estado da Bahia (SITE-FPV, Espaço Cultural, 2020).

O acesso ao acervo fotográfico e seus usos público

A Fundação Pierre Verger permite amplo acesso do público ao seu acervo


fotográfico. Este acesso, entretanto, segue uma lógica interna de ordenamento. O mesmo
ocorre para a utilização do Centro Cultural e da Biblioteca. A Fundação funciona de
segunda à sexta e disponibiliza, por meio de site oficial, todas as orientações necessárias
para que os interessados otimizem o trabalho que querem realizar seguindo os
parâmetros exigidos.
Para acessar o acervo, a Instituição orienta que os pesquisadores façam um
contato prévio esclarecendo sobre o material que pretendem examinar e definindo as
modalidades da consulta para posterior efetivação da autorização. Sem essas medidas
prévias, nem sempre os visitantes, brasileiros ou estrangeiros, conseguem ter suas
expectativas atendidas. A alegação da Fundação é que, mesmo com todo processo de
recuperação, o acervo é composto basicamente por originais e muitos se encontram
fragilizados pelo tempo, sendo necessário restringir o seu manuseio. Outro ponto é que
o processo de separação para o pesquisador também leva um tempo, mediante a grande
quantidade de documentos imagéticos disponíveis (SITE-FPV, Acervo pessoal de
Verger, 2020).
A Fundação possui um Guia de Consulta que permite ao público ter um contato
prévio com os dados do acervo. O Guia está organizado em nove tópicos que dão uma
dimensão dos documentos correspondentes à vida e obra de Verger que estão sobre
14 | Os olhares de Fatumbi: o lugar da fotografia na... SANTOS, M. O.

guarda da Instituição. Os tópicos estão assim divididos: 1) O fotógrafo; 2) O pesquisador;


3) Artes e museus; 4) As correspondências; 5) Residências e estadias; 6) Sobre Pierre
Verger; 7) Contabilidade, impostos e aposentadoria; 8) Saúde; 9) Outros. Este material
pode ser acessado na própria Fundação, assim como todo seu sumário foi disponibilizado
no site.
Por meio da internet, os pesquisadores podem também ter um acesso prévio a
negativos que foram digitalizados através do projeto Memórias de Pierre Verger. No
site da Fundação constam cerca de seis mil imagens timbradas que permitem uma visão
ampla da obra do autor. Entretanto, o acesso à totalidade do acervo só pode ser feito no
banco de dados existente na sede da Instituição.
A publicização de todas as atividades da Fundação, assim como qualquer evento
relacionado à Pierre Verger, é feita por meio de Boletins Informativos que são publicados
bimestralmente. Muito desse material também se encontra digitalizado e disponível no
site. Os Boletins são bem detalhados e contam com reproduções de imagens vergeanas
nas capas e no interior do material.
Se, por um lado, o acesso ao acervo fotográfico de Pierre Verger é amplamente
garantido pela Fundação, mediante regras de conservação, por outro, os usos da
documentação por parte de pesquisadores e demais interessados esbarram em algumas
restrições. A Fundação é detentora dos direitos autorais das imagens produzidas pelo
francês, e amparada por lei, exige que todo uso público seja previamente autorizado
oficialmente.
No campo das ciências humanas, por exemplo, existe hoje uma grande quantidade
de artigos, monografias, dissertações e teses que utilizam as fotografias de Pierre Verger
como documentos para a análise dos mais variados temas. A Fundação libera a utilização
e reprodução das imagens para esses trabalhos acadêmicos. Contudo, quando os
pesquisadores buscam partir para outra etapa, que é a publicação em formato de livros
ou revistas, ou mesmo a reprodução em outros meios, a Instituição faz a cobrança
financeira para o uso de cada imagem específica. Tal situação acaba travando a publicação
de muitos estudos, pois os pesquisadores, muitas vezes, não possuem condições de bancar
o preço de cada imagem e as editoras ou produtoras não aceitam assumir os custos.
Para além do acesso do público ao acervo, outro aspecto fundamental para
analisarmos são os usos públicos que a própria Fundação Pierre Verger faz das imagens
clicadas pelo fotógrafo, assim como essa memória fotográfica é ressignificada por
diferentes agentes de diversas formas. A Fundação promove uma série de ações públicas
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922006, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 15

que divulgam a obra de Verger fora dos muros da sua Instituição. Estas ações se
configuram em exposições de séries fotográficas, venda de artefatos com reproduções de
fotos, além da organização, edição e reedição de livros com imagens e textos do artista
francês.
No que concerne às exposições, a Fundação mantém um calendário intenso que
contempla tanto a cidade de Salvador, quanto outras regiões do Brasil e outros países.
As exposições são feitas em parceria com instituições financiadoras, assim como museus
e centros culturais. Podemos destacar uma que foi realizada no ano de 2018. Intitulada
Janela para o mundo: a mídia e Verger nos anos 30, o projeto foi composto por fotografias
de Verger que foram publicadas em diferentes mídias impressas europeias antes da
chegada do fotógrafo na cidade de Salvador. As publicações originais foram ampliadas e
permitiram aos visitantes conhecer a relação entre texto verbal e texto visual nas
mesmas. O curador da exposição, Alex Baradel, afirmou que Verger foi muito publicado,
mas que muitas vezes não controlava o resultado final do trabalho. Isso porque algumas
fotografias ganhavam legendas pejorativas que desqualificavam as culturas fotografadas
o que não coadunava com os escritos do próprio fotógrafo. Baradel afirma que Verger
não trabalhava com exclusividade para um jornal e que seu vínculo com a agência de
fotografia Alliance Photo lhe deu liberdade para fazer as viagens que desejava, e a
agência, por sua vez, também tinha liberdade para negociar suas imagens com jornais e
revistas sem interferência do artista. Essa e outras exposições podem ser visitadas
virtualmente pelo site da Fundação (SITE-FPV, Exposições, 2020).
A respeito da venda de artefatos com reproduções fotográficas de Verger, o site
oficial da Fundação possui uma loja online onde é possível ter acesso a livros, CDs,
DVDs, pôsteres, canecas, camisetas e bolsas estampadas com os cliques vergeanos. No
centro histórico de Salvador, cartão portal da capital da Bahia tantas vezes retratado por
Verger, também existe uma Galeria no Portal da Misericórdia que funciona como um
anexo da Fundação. O espaço fica aberto todos os dias e atende um grande contingente
de visitantes, entre pesquisadores e turistas, que podem comprar os diferentes produtos.
Além disso, a Galeria conta com exposições temporárias e o público pode conhecer ou
revisitar fotografias de Verger.
No que diz respeito a organização, edição e reedição de livros, a Fundação
promove um intenso trabalho, principalmente após o falecimento do fotógrafo em 1996.
São livros bem produzidos, com alta qualidade de impressão e que permitem uma grande
circulação dos cliques de Verger. Podemos citar os seguintes: Olhar viajante de Pierre
16 | Os olhares de Fatumbi: o lugar da fotografia na... SANTOS, M. O.

Fatumbi Verger (2002); O Brasil de Pierre Verger (2006); Carybé & Verger: gente da
Bahia (2008); e a reedição de Retratos da Bahia (2005), proporcionado em parceria com
a editora Corrupio.
Todos esses usos públicos que a Fundação Pierre Verger faz das imagens do
fotógrafo para além da guarda do acervo, seja com exposições, venda de artefatos com
estampas fotográficas ou publicação de livros, tem a importância de permitir o acesso
das novas gerações à obra do francês, expor trabalhos menos conhecidos do artista e
preservar e apresentar olhares sobre diferentes culturas ao longo do século XX. Numa
época em que a prática de fotografar foi transformada num ato cotidiano ao alcance de
todos sem exigência de profissionalização e sem uma reflexão sobre a mesma, o papel da
Fundação também ajuda a preservar uma memória da fotografia e dos profissionais da
fotografia.
Por outro lado, muitos estudiosos que analisam a obra de Verger e a circulação
das suas imagens, principalmente desde os anos oitenta até os tempos atuais, atentam
para a problemática da reprodutibilidade da obra do fotógrafo, o que resulta muitas vezes
em transfigurar a própria lógica que o artista dava às suas produções, a maneira como
estabelecia suas sequências fotográficas e como criava suas narrativas (DRUMMOND,
2009, p. 99-100).
Para Walter Benjamin (1994, p.167-169), “mesmo na reprodução mais perfeita,
um elemento está ausente: o aqui e o agora da obra de arte, sua existência única, no lugar
em que ela se encontra. É nessa existência única, e somente nela, que se desdobra a
história da obra”. Para o pensador alemão, “a esfera da autenticidade, como um todo,
escapa à reprodutibilidade técnica, e naturalmente não apenas à técnica”. Ele entende
que “a técnica da reprodução destaca do domínio da tradição o objeto reproduzido”. No
momento “em que ela multiplica a reprodução, substitui a existência única da obra por
uma existência serial. E, na medida em que essa técnica permite à reprodução vir ao
encontro do espectador, em todas as situações, ela atualiza o objeto reproduzido”.
A Fundação Pierre Verger, ao intensificar uma “reprodutibilidade técnica” das
imagens do fotógrafo para além do seu espaço de guarda, acaba “atualizando” a obra. Seja
estampando séries fotográficas em roupas ou canecas, seja reeditando ou produzindo
novos livros, a Instituição interfere na autenticidade, nos sentidos, nos traços
característicos das escolhas feitas por Verger no seu período de atuação. Há, nesse
processo, uma ação que rompe uma tradição técnica e artística construída numa
trajetória profissional de mais de cinquenta anos.
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Um exemplo desse processo pode ser destacado com a reedição de Retratos da


Bahia. Publicado pela primeira vez em 1980, o livro/álbum ganhou outra edição em 2005
na qual recebeu uma nova configuração. Para o original, Verger reuniu 251 dos seus
cliques produzidos entre 1946 e 1952 e que davam uma dimensão do seu olhar para a
Bahia. Na recente reedição, uma primeira observação das mudanças feitas pelos
organizadores foi a troca da foto que estampava a capa. O tamanho do livro também foi
modificado, saiu do formato retangular para quadrado, o que alterou as dimensões das
imagens originais. O tipo de página escolhido para impressão foi outro, assim como
ocorreu a inserção de outros textos escritos que dão uma nova dinâmica ao material.
Portanto, não é mais o álbum fotográfico criado, selecionado e autorizado por Verger em
1980. Trata-se de outro objeto, algo atualizado, mas que usa o mesmo nome do que foi
concebido originalmente.
Um relato de Analdo Grebler, que participou dos trabalhos da primeira edição do
livro, nos permite ter uma ideia do quanto Verger era criterioso no seu processo de
escolha das imagens que iriam compor o trabalho.

Ele sabia muito bem o que queria. Nosso papel era o de ficar acompanhando e
dando alguns palpites. Às vezes, aceitava uma ideia ou outra, mas acho que ele
sabia muito bem o que queria. Apesar de ter milhares de negativos, sabia
especificamente os que queria, em qual sequência, com qual casamento de
página. Parece que a coisa estava pronta na cabeça dele, e dificilmente ele
acatava alguma outra solução. Às vezes a gente dizia: “Verger, vamos botar
esse daqui?” Ele respondia: “É, pode ser”. Mas dali a pouco ele encostava a
mão sorrateiramente e tirava a foto fora (NOBREGA; ECHEVARRIA, 2002,
p. 298).

Analdo Grebler fazia parte do Grupo ZAZ de Fotografia e Planejamento Visual


e Verger editava e revelava parte das fotografias produzidas pelo grupo, que também era
composto por nomes como Cida Nobrega e Regina Echevarria. Este grupo, com apoio
da prefeitura municipal de Salvador, organizou no ano de 1970 uma exposição com
algumas das primeiras fotografias que Verger fez da cidade de Salvador e outras do
período realizadas por fotógrafos contemporâneos, destacando as transformações
urbanas vivenciadas pelo espaço citadino. Depois da exposição buscaram publicar fotos
de Verger e não encontraram editoras interessadas porque eram muitas fotografias de
negros e a resposta que receberam na ocasião das empresas que procuraram era que não
tinham interesse porque o assunto não vendia (NOBREGA; ECHEVARRIA, 2002, p.
298).
Foram os integrantes do grupo ZAZ, juntamente com Arlete Soares, amiga do
escritor Jorge Amado, que criaram a editora Corrupio com o intuito de publicar a obra
18 | Os olhares de Fatumbi: o lugar da fotografia na... SANTOS, M. O.

de Verger (BATISTA, 2012). Mesmo aqueles que participaram do projeto original da


primeira edição e relatam os critérios do artista na escolha das fotos, deram aval e
coordenaram a reedição com novas intervenções em parceria com a Fundação.

Considerações finais

Os estudiosos que buscam o acervo de Verger encontrarão além da variedade e


versatilidade das suas fotografias um material etnográfico que ele produziu e pesquisou
e que hoje potencializa novas investigações e diálogos. Seu legado permite ao
pesquisador acessar um material que possibilita refletir sobre o que se consolidou de
memória da cidade e de seus moradores a partir das fotografias e aspectos que permitem
problematizar sobre as ligações da Bahia com a África.
Cabe destacar que a obra de Verger disponibilizada na Fundação e também o que
está disperso em outros espaços de guarda, pela sua riqueza e versatilidade, permite
muitos usos. Seu legado permite também muitas e diversificadas reflexões sobre ele e
seus trabalhos que vão além dos relacionados no site da Fundação e que se encontram
em estágios diferenciados de investigação como teses, dissertações e TCCs, produzidos
em muitos programas de pós-graduação e cursos de graduação no Brasil e em outros
países.
Apesar do seu aparente “realismo fotográfico” (KOSSOY, 2001, p.117), o
significado mais profundo das imagens não está naquilo que ela evidencia e é facilmente
perceptível, afinal ela é resultado de interações sociais e de uma “seleção de possibilidades
de ver, optar e fixar” (p.107). É preciso buscar acessar o que não podemos visualizar, as
articulações do conteúdo interno das fotografias com o externo às mesmas (LEITE,
2001, p.44).
Muitos que vão a um arquivo, museu, fundação ou biblioteca ainda lidam com o
material fotográfico que encontram de modo a sacralizar o achado inclusive buscando
nas imagens uma maneira de validar textos verbais. O desafio que se coloca ao
pesquisador na discussão de textos e imagens é estabelecer conexões explorando as
possibilidades combinatórias e criativas que os acervos permitem e esperamos com esse
texto ter despertado o leitor para novos investimentos sobre Verger e sua documentação.
Seus registros sensíveis documentaram experiências distintas e sua longa vida permitiu
algumas ressignificações dessas experiências.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922006, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 19

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FATUMBI'S LOOKS: THE PLACE OF PHOTOGRAPHY AT THE PIERRE VERGER FOUNDATION
Abstract: This text aims to understand the place of photography in the Pierre Verger Foundation from a
historical perspective. We analyzed the collection construction process, its technical treatment, its
availability to the public and some of its social uses. The investigation of these points is also permeated
by the appreciation of the photographer's biographical aspects and the Institution's operating and
financing structure.
Keywords: Pierre Verger Foundation. Photography. Bahia-Brazil.
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EL ASPECTO DE FATUMBI: EL LUGAR DE LA FOTOGRAFÍA EN LA FUNDACIÓN PIERRE VERGER
Resumen: Este texto tiene como objetivo comprender el lugar de la fotografía en la Fundación Pierre
Verger desde una perspectiva histórica. Analizamos el proceso de construcción de la colección, su
tratamiento técnico, su disponibilidad al público y algunos de sus usos sociales. La investigación de estos
puntos también está permeada por la apreciación de los aspectos biográficos del fotógrafo y la estructura
operativa y financiera de la institución.
Palabras clave: Fundación Pierre Verger. Fotografía. Bahia-Brasil.
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_____________________________________________________________________________________

SOBRE OS AUTORES

Marilécia Oliveira Santos é doutora em História pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG); professora adjunta do curso de Licenciatura em História da Universidade do Estado
da Bahia (UNEB-Campus II Alagoinhas).

Thiago Machado de Lima é doutorando em História pela Universidade Federal Fluminense


(UFF); professor substituto de História na Universidade do Estado da Bahia (UNEB- Campus
IV/ Jacobina).
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Recebido em 29/06/2020

Aceito em 07/07/2020
Instituições de memória e acervos fotográficos: a
experiência do Centro de Memória Cultural do Sul
de Minas

Marcos Ferreira de Andrade


Universidade Federal de São João del-Rei
São João del-Rei - Minas Gerais - Brasil
marcos.andrade.ufsj@gmail.com

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Resumo: O objetivo deste artigo consiste em discutir a importância das instituições universitárias na
constituição de centros de memória e de documentação, particularmente daquelas que detêm acervos
fotográficos e que envolvem políticas de preservação, catalogação, acesso público e produção de pesquisas a
partir dos fundos sob sua custódia. A experiência aqui relatada se reporta à criação do Centro de Memória
Cultural do Sul Minas, inaugurado em maio de 2000, na unidade da Universidade do Estado de Minas Gerais
– UEMG, na cidade de Campanha/MG, com atenção especial ao acervo fotográfico Paulino de Araújo Ferreira
Lopes.

Palavras-chave: História. Memória. Acervos fotográficos. Centro de Memória Cultural – UEMG/Campanha.


________________________________________________________________________________________

Introdução

Este artigo pretende contribuir para as reflexões relacionadas às universidades e o


seu papel científico e social na constituição de centros de memória e de documentação, a
partir do relato da experiência de criação, em 2000, do Centro de Memória Cultural do Sul
de Minas (CEMEC), na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras Nossa Senhora de Sion
(FAFI-Sion), na cidade de Campanha (MG). Em 2013, a referida instituição foi estadualizada
sendo incorporada pela Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), bem como o
espaço de memória foi renomeado para Centro de Memória Cultural Desembargador
Manoel Maria Paiva de Vilhena, sem mudança de sigla1. Será dado especial destaque ao

1
Durante o tempo que trabalhei na Instituição (1995 a 2005), a antiga FAFI-Sion pertencia à Universidade do
Estado de Minas Gerais na condição de unidade associada, uma situação jurídica bastante indefinida, uma
vez que, do ponto de vista acadêmico estava submetida às orientações e normas da reitoria da UEMG,
localizada em Belo Horizonte, mas do ponto de vista financeiro era mantida pela Fundação Cultural
Campanha da Princesa (FCCP). As primeiras unidades a serem incorporadas foram as unidades de Belo
Horizonte. A unidade de Campanha foi uma das últimas, o que ocorreu no ano de 2013, com a absorção do
2 | Instituições de memória e acervos fotográficos: a... ANDRADE, M. F.

acervo fotográfico Paulino de Araújo Ferreira Lopes, suas características e as possibilidades


de pesquisa, incluindo referência a algumas teses e dissertações que já tiveram o acervo como
fonte complementar ou mesmo como objeto central de pesquisa. Mas antes de adentrar na
discussão propriamente dita, é importante refletirmos, ainda que brevemente, sobre a
distinção entre História, Memória e Documentação e que tipo de relação e interconexão
podem ser estabelecidas entre estes três conceitos. Essa reflexão não diz respeito somente
às formas de se escrever a História, mas principalmente de se pensar qual o lugar e o papel
do historiador numa sociedade pouco preocupada com a preservação do passado, de olho
num futuro sem maiores conexões com a cultura herdada.

História, Memória e Documentação

Para compreender o significado da História e sua relação com a memória e os


documentos partirei das reflexões clássicas propostas por Jacques Le Goff (1994) e Pierre
Nora (1990), quando estes autores estabelecem uma distinção entre memória coletiva e
memória histórica. A princípio é necessário perceber a distinção entre os conceitos para
depois perceber as interconexões entre ambos e como um não exclui o outro. Segundo Le
Goff (1994, p. 98), “a memória coletiva é o que fica do passado no vivido dos grupos, ou o
que os grupos fazem do passado”. A memória coletiva pode atingir várias formas: pode
representar um ideal e imagem de nação que se tenta passar ou impor ou pode servir aos
interesses de determinados grupos sociais que procuram preservar o seu passado. Como
afirma Jacques Le Goff (1994, p. 46), a memória coletiva “faz parte das grandes questões das
sociedades desenvolvidas e das sociedades em vias de desenvolvimento, das classes
dominantes e das classes dominadas, lutando todas pelo poder ou pela vida, pela
sobrevivência e pela promoção”. Não resta a menor dúvida de que a memória coletiva
representa uma conquista e uma necessidade para os indivíduos e a sociedade, mas é, ao
mesmo tempo, um instrumento e objetivo do poder.
Já a memória histórica, segundo Pierre Nora (1990, p. 450) “é fruto de uma tradição
sábia e 'científica', é ela própria a memória coletiva do grupo dos historiadores". A memória
histórica tem função analítica e crítica. Se considerarmos a definição de Jacques Le Goff

passivo trabalhista da FCCP. Disponível em: http://www.uemg.br/unidades-2019/154-campanha. Acesso em:


11 jun. 2020.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922007, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 3

(1994, p. 95), a História é a memória coletiva em sua forma científica, aplicando-se ambas a
dois tipos de materiais: os documentos (escolha do historiador) e os monumentos (herança
do passado). Nesse sentido, apesar da necessidade de se opor termo a termo para
percebermos cada um na sua especificidade é importante destacar a interconexão entre
ambos e percebermos qual o papel social dos profissionais científicos da memória
(historiadores, antropólogos, sociólogos, etc.). Como afirma o autor estes devem “fazer da
luta pela democratização da memória social, um dos imperativos prioritários da sua
objectividade científica” (LE GOFF, 1984, p. 47).
É indiscutível a importância que têm os documentos para a realização de qualquer
investigação histórica sobre indivíduos, grupos sociais ou nações e os seus significados estão
intimamente ligados aos tipos de concepções da História. O triunfo do documento,
especialmente o texto escrito, ocorre com a escola metódica. O documento era condição
indispensável para estabelecer os fatos históricos e a sua crítica residia principalmente nos
aspectos que permitiam verificar a sua autenticidade (SILVA, 2006). Com os historiadores
dos Annales a noção de documento se ampliou, uma vez que todo e qualquer tipo de registro
deixado pelo homem poderia e deveria ser matéria-prima para a escrita da história (BURKE,
1991). Segundo Lucien Febvre (apud LE GOFF, 1984, p. 98), em texto escrito em 1949,

A história se faz com documentos escritos, sem dúvida. Quando estes existem.
Mas pode fazer-se, deve fazer-se sem documentos escritos, quando não existem.
Com tudo o que a habilidade do historiador lhes permite utilizar para fabricar o
seu mel, na falta das flores habituais. Logo, com palavras. Signos. Paisagens e
telhas. Com as formas do campo e das ervas daninhas. Com os eclipses da lua e a
atrelagem dos cavalos de tiro. Com os exames de pedras feitos pelos geólogos e
com as análises de metais feitas pelos químicos. Numa palavra, com tudo o que,
pertencendo ao homem, depende do homem, serve o homem, exprime o homem,
demonstra a presença, a actividade, os gostos e as maneiras de ser do homem.

Ainda que a ampliação do conceito de documento tenha influenciado


significativamente na forma de escrever e conceber a História, verificada pela pluralidade de
temas, objetos e abordagens, o papel do historiador reside principalmente no fato de
promover uma reflexão crítica sobre a sociedade de seu tempo a partir do estudo do passado.
Vivemos numa sociedade na qual o domínio da informática é uma realidade e a utilização de
recursos da tecnologia multimídia é cada vez mais frequente (SCHAFF, 1995). A velocidade
e o volume de produção de informações são espantosos. Por outro lado, a preocupação com
a preservação da memória, seja na sua forma científica ou coletiva é tarefa de poucos. Como
4 | Instituições de memória e acervos fotográficos: a... ANDRADE, M. F.

bem nos lembra o historiador inglês Erick J. Hobsbawn (1995, p. 13), ao refletir sobre o
século passado, mas que é extremamente atual, vivemos numa sociedade em que

A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa


experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais
característicos e lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje
crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o
passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é
lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes do que nunca no
fim do segundo milênio. Por esse mesmo motivo, porém, eles têm de ser mais que
simples cronistas, memorialistas e compiladores.

Portanto, pensar o papel social e intelectual do historiador na atualidade significa


não só estabelecer a distinção entre memória e História, além de destacar importância dos
documentos para a compreensão e análise do passado. Ulpiano Menezes (1992), ao refletir
sobre a problemática da memória nas ciências sociais faz uma alerta importante nesse
sentido, que considero oportuno ampliar para a infinidade de registros históricos que são
utilizados na produção de determinada representação historiográfica do passado. Segundo
o autor, “o historiador não pode abandonar sua função crítica; a memória precisa ser tratada
como objeto da História” (MENEZES, 1992, p.23).

As universidades e a criação de centros de memória e de documentação

Desde a primeira era Vargas (1930-1945) iremos encontrar um aparato institucional


público em relação à preservação do patrimônio documental, embora as ações concretas
neste campo sempre foram muito insuficientes, fazendo com que parte desta tarefa fosse
gradativamente sendo absorvida pelas universidades. Esse processo teve início no começo
dos anos 1970 e se intensificou nas últimas décadas. Atualmente, várias universidades
brasileiras possuem centros de documentação e de memória, vinculados principalmente aos
cursos das áreas de ciências humanas, letras e artes (CAMARGO, 1999, p. 55-60). Muitos
desses centros estão voltados para o desenvolvimento de pesquisas envolvendo o corpo
docente e discente, mas também exercem atividades de extensão universitária na medida em
que disponibilizam seus acervos para a comunidade e os resultados das pesquisas2.

2
A título de exemplo cito algumas iniciativas muito bem-sucedidas e que se tornaram referência em termos
de centros de documentação e de pesquisa para a história do Brasil, como o Centro de Memória da Unicamp
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922007, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 5

O campo de atuação do historiador tem ampliado cada vez mais. Isso está
diretamente ligado à profissionalização na área. A consolidação e ampliação dos cursos de
pós-graduação em História no país têm contribuído para a conscientização e o
desenvolvimento de ações concretas na preservação do patrimônio documental, matéria-
prima de extrema importância para novas investigações e olhares sobre inúmeros aspectos
da história brasileira. É cada vez mais comum observarmos historiadores atuando junto a
instituições públicas (prefeituras) e privadas (empresas), ONGs, sindicatos, grupos
organizados da sociedade civil, na implementação de centros de documentação e de memória
(ANPUH-BRASIL, 2012).
Mas conforme indicam os arquivistas há distinções importantes a fazer em relação
às três entidades responsáveis pela custódia de acervos os mais diversos: arquivos, centros
de documentação e centros de memória. Os arquivos estão diretamente relacionados às
atividades de gestão de sistemas arquivísticos. Os centros de documentação têm a função de
apoiar a pesquisa científica, acadêmica e individual, sendo geralmente de caráter híbrido,
pois “representa uma mescla das entidades de custódia do patrimônio documental, sem se
identificar com nenhuma delas. Reúne, por compra, doação ou permuta, documentos únicos
ou múltiplos de origens diversas” (TESSITORE, 2017, p. 20). Já os centros de memória
podem ser definidos como um “arquivo ampliado, com largo espectro de abrangência e alto
poder informativo” (CAMARGO; GOULART, 2015, p. 107 apud TESSITORE, 2017, p.
24). Os especialistas ainda chamam atenção para o fato de que essas distinções, muitas vezes,
não são tão claras e muitos centros de memória são também centros documentação.
Possivelmente essa observação se aplica à maioria dos centros de memória das instituições
de ensino superior no Brasil.
Em relação aos centros de documentação e de memória pertencentes às
universidades, a constatação de Célia Reis Camargo (1999) é bastante pertinente. Eles têm
uma função social importante e

surgem, exatamente, com a finalidade de dar ênfase à memória regional. A


precariedade e inexistência de arquivos públicos, sobretudo nos municípios,
acarretavam perdas escandalosas de fontes de pesquisa. A universidade, então,
começa a bancar esta tarefa, incorporando-a às suas atividades-fim (CAMARGO,
1999, p. 59).

– CMU, o Arquivo Edgar Leuenroth – AEL, também da Unicamp e o Centro de Pesquisa e Documentação em
História Contemporânea do Brasil – CPDOC, da Fundação Getúlio Vargas – FGV.
6 | Instituições de memória e acervos fotográficos: a... ANDRADE, M. F.

O grande desafio para a implementação desses centros está relacionado com a sua
manutenção. A produção do conhecimento científico de qualquer natureza demanda
investimentos e recursos que só apresentam resultados no médio e longo prazo. A captação
de recursos, seja nos órgãos de fomento públicos ou na iniciativa privada, é bastante
irregular e, muitas vezes, limita as ações e os objetivos para os quais estes centros são
criados. Embora essas dificuldades sejam de conhecimento de todos os profissionais
envolvidos na área, muitos desses centros têm prestado contribuições relevantes para a
preservação da história, cultura e memória do país, tanto na divulgação dos resultados de
pesquisa em inúmeras publicações, quanto na preservação dos documentos originais.
O relato da experiência de constituição do Centro de Memória Cultural da unidade
da UEMG, em Campanha, que trato a seguir, demonstra não só o esforço de estabelecer
garantias de preservação do patrimônio documental, mas também do papel essencial das
universidades no levantamento dos acervos de natureza histórica e cultural, de criação de
centros de documentação e de memória, da garantia do acesso público e da produção de
pesquisas a partir dos conjuntos documentais sob sua custódia. E que, nas dimensões desse
artigo, a ênfase será dada ao acervo fotográfico Paulino de Araújo Ferreira Lopes.

A experiência de criação do CEMEC

O trabalho de pesquisa na antiga FAFI-Sion teve início em 1996, quando tive


oportunidade de realizar um primeiro mapeamento dos acervos documentais mais
importantes da cidade, que serviu de base para a elaboração do Projeto Memória Cultural
do Sul de Minas3, posteriormente encaminhado à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de Minas Gerais (FAPEMIG). Em novembro de 1996, o curso de História recebeu o seu
primeiro conjunto documental (processos criminais), doado pelo Fórum da cidade, que hoje
constitui um dos vários acervos do CEMEC.

3
O Projeto foi desenvolvido em parceria com a Universidade Federal de São João del-Rei e contou com a
seguinte equipe: os professores coordenadores Marcos Ferreira de Andrade, Maria Tereza Pereira Cardoso e
Rachel de Souza Rocha e aos bolsistas Marília Ferreira Pinto, Andréa Silva Adão, Selma de Souza Carvalho,
Ana Lúcia Alves (Aperfeiçoamento), Reinaldo Alves, Vanila Aparecida Alves, Ivanilda Vilela Vilas Boas e
Luziara Aparecida Goulart dos Santos (Iniciação Científica) e Agnamari Marçano da Cunha (secretária do
CEMEC).
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922007, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 7

O trabalho de higienização e catalogação dos processos criminais transcorreu


durante os anos de 1996 e 1997. O projeto encaminhado à FAPEMIG foi aprovado em 1997,
com a assinatura do Termo de Outorga. Dado o alcance muito amplo e diversificado do
projeto, as atividades só puderam ser iniciadas no início do ano seguinte, quando foram
liberadas as bolsas de aperfeiçoamento e de iniciação científica.
Entre o período de janeiro de 1998 a março de 2000 foi realizado o Projeto Memória
Cultural do Sul de Minas. O projeto compreendeu três frentes de trabalho distintas, a saber:
localização e mapeamento dos acervos documentais da região; organização e estudo do
acervo fotográfico Paulino de Araújo Ferreira Lopes; organização e estudo da documentação
pertencente aos antigos Colégio N. Sra. de Sion e São João. Dentre os resultados desse
trabalho destacam-se o mapeamento de diversos acervos históricos de Campanha e de
algumas cidades vizinhas, a elaboração de catálogos analíticos da documentação arrolada e
a criação do Centro de Memória Cultural do Sul de Minas, inaugurado no dia 19 de maio de
20004.
O CEMEC mantém sob sua custódia uma documentação diversificada e bastante
representativa, correspondente aos séculos XVIII, XIX e XX como: Inventários
Campanhenses (1768-1888), Atas da Câmara de Campanha (1830-1896), Livros de
testamentos (1822-1897), Livros de registros de compra e venda de escravos, Processos
criminais (1882-1980), Documentação do antigo Colégio N. Sra. de Sion (1906-1965),
Documentação do antigo Colégio São João (século XX) e o Acervo Fotográfico Paulino de
Araújo Ferreira Lopes. Os conjuntos documentais foram catalogados e os instrumentos de
busca foram amplamente divulgados e disponibilizados, através da produção de um CD-
ROM intitulado Campanha da Princesa: fontes para a história do Sul de Minas (ANDRADE
& CARDOSO, 2000).
Ainda no ano 2000, pouco tempo depois de sua inauguração, o CEMEC recebeu, sob
a forma de doação, a documentação de natureza histórica do Fórum de Lavras,

4
Conforme indicado na nota 1, no ano em que foi inaugurado, o Centro de Memória Cultural do Sul de Minas
estava vinculado à FAFI-Sion, unidade associada à UEMG. É importante destacar que a criação do Centro
esteve diretamente ligada ao Programa Memória e Identidade Regional, lançado pela reitoria da UEMG, em
setembro de 1996. Um dos objetivos do Programa consistia na criação de centros de memória nas unidades
pertencentes à UEMG, mesmo que na condição de associadas. A primeira experiência bem-sucedida ocorreu
na unidade associada de Diamantina, com a realização do Projeto Memória Cultural do Vale do Jequitinhonha,
financiado pela FAPEMIG e iniciado em 1997.
8 | Instituições de memória e acervos fotográficos: a... ANDRADE, M. F.

correspondentes aos séculos XVIII, XIX e XX. Milhares de processos criminais, cíveis,
documentação cartorial (inventários, testamentos, divisão de terras, etc.) foram higienizados
e catalogados. Em 2002, o CEMEC foi uma das instituições contempladas no primeiro edital
de digitalização de documentos de natureza histórica e cultural lançado pela FAPEMIG. O
projeto foi desenvolvido em parceria com o Arquivo Público Mineiro (APM) e resultou na
produção de 14 CDs relativos aos à documentação da Câmara Municipal de Campanha –
século XIX, existentes no CEMEC e no Centro de Estudos Campanhenses Monsenhor
Lefort. Também foram digitalizados os livros de testamentos de Campanha e Baependi,
pertencentes ao CEMEC, que foram lançados em 2006, juntamente com um CD-ROM
contendo banco de dados do acervo do Fórum de Lavras. Essas produções ficaram assim
intituladas: a) Acervos digitalizados do Sul de Minas: Documentação da Câmara Municipal
de Campanha e Livros de Testamentos de Campanha e Baependi; b) Fontes cíveis e criminais
do Fórum de Lavras: séculos XVIII e XIX5.
O processo de estadualização da unidade de Campanha ocorreu a partir da aprovação
da Lei nº 20.807, de 26 de julho de 2013. Quanto à mudança no nome do CEMEC, a mesma
ocorreu no dia 28 de novembro de 2013, com objetivo de homenagear o Desembargador
Manuel Paiva de Vilhena, idealizador e criador da antiga FAFI-Sion e de sua entidade
mantenedora, a Fundação Cultural Campanha da Princesa (FCCP)6.

Acervo fotográfico Paulino de Araújo Ferreira Lopes (1890-1960)

Atualmente, a gestão do CEMEC está a cargo do curso de História da instituição. O


acervo fotográfico em questão foi objeto de identificação, catalogação e conservação no
primeiro projeto de pesquisa executado no CEMEC, entre os anos de 1998 a 2000.

5
Esse trabalho foi realizado pela seguinte equipe: Marcos Ferreira de Andrade (coordenador geral), Ana
Cristina Pereira Lage, Patrícia Vargas Lopes de Araújo (professores); Raphaela Aparecida Ferreira, Elizabete
Sales de Paulo, Adrimara Rodrigues, Cássia de Souza, Cristina Yuri Jisenji, Alessandra Milne Adão e Luciana
Cláudia Oliveira de Souza (bolsistas); professora Sílvia Maria Jardim Brügger (consultora); Álvaro José de
Paiva Ribeiro e Mariangela da Silva Tapia (sistema de busca); Rachel de Souza Rocha e Agnamari Marçano
da Cunha (colaboradoras).
6
Ver Projeto Pedagógico do curso de História – unidade de Campanha. Campanha, maio de 2016, p. 81-83.
Disponível em: http://intranet.uemg.br/comunicacao/arquivos/Arq20161223154713PP.pdf. Acesso em: 11
jun. 2020.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922007, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 9

Paulino de Araújo Ferreira Lopes nasceu na cidade de Campanha (Minas Gerais) no


dia 22 de junho de 1891 e faleceu aos onze dias do mês de dezembro de 1971. Era filho de
Eulálio da Veiga Ferreira Lopes e Clara de Araújo Ferreira Lopes. Fez seus estudos no
Colégio São Luiz, dirigido por padres Jesuítas, na cidade de Itú, São Paulo. Depois de uma
rápida atuação como funcionário dos Correios tornou-se fotógrafo profissional, exercendo a
profissão até falecer. Segundo informações de seu neto7, o aprendizado da arte de fotografar
se deu com o fotógrafo francês Etienne Farnier. Este fotógrafo foi responsável por algumas
fotos raras datadas do final do século XIX, que fazem parte do acervo original da família.

Figura 1: Vista parcial da Cidade Campanha/MG – década de 1930.


Fonte: Acervo Paulino de Araújo Ferreira Lopes – CEMEC/UEMG – Unidade de Campanha/MG.

7
O acervo original pertence ao neto do Sr. Paulino, Almir de Araújo Ferreira Lopes, que deu continuidade à
profissão do avô, na casa comercial Photo Araújo. Almir, gentilmente, possibilitou o acesso para fins de
higienização, catalogação e pesquisa. O acervo de negativos em vidro e celuloide foram doados ao CEMEC e
foram reproduzidos por ele. As reproduções também fazem parte do acervo do CEMEC.
10 | Instituições de memória e acervos fotográficos: a... ANDRADE, M. F.

Amante da fotografia, também colecionou fotos e daguerreótipos. Teve vários


trabalhos publicados na revista Alvorada (1928 – 1980) e em diversos jornais da região. O
fato de residir em Campanha não o impediu de atuar em outras cidades próximas e registrar
o cenário social e arquitetônico de diversas cidades do Sul de Minas. Como fotógrafo atuou
nos mais diversos seguimentos: portrait, fotografia social, festas religiosas e cívicas,
reportagens, entre outras. Segundo informações de seus descendentes, especialmente de seu
neto, Almir Ferreira Lopes, Paulino de Araújo teria iniciado na arte de fotografar aos 18
anos, em 1907. E mais tarde teria a sua casa fotográfica, a Photo Araújo (ANDRADE &
CARDOSO, 2000, p. 224; REIS, 2013, p. 49-76; REIS, 2015).
Em 1998, quando foi realizado primeiro contato com acervo original, verificou-se a
existência de cinco daguerreótipos, datados de 1850, bastante raros e em bom estado de
conservação, centenas de negativos em vidro e de fotografias antigas que compreendiam o
período de 1890 a 1960.
Primeiramente, foi necessário fazer um reconhecimento de todo o acervo,
higienizando os negativos e as fotos, acondicionando-os adequadamente, agrupando as fotos
por assunto, considerando algumas áreas temáticas como: arquitetura urbana e rural,
famílias, pessoas, festas cívicas e religiosas, clérigos, colégios, entre outras.
A fim de possibilitar a organização de todo esse material, elaborou-se uma ficha de
catalogação8 considerando vários campos que possibilitassem a localização de cada
documento do acervo, bem como informações sobre cada registro fotográfico. As
informações contempladas foram as seguintes: autor/fotógrafo, título da foto, local, data,
tipo de material (foto, negativo em vidro, celuloide), descrição física, estado de conservação,
legibilidade, descrição e histórico da foto, descritores, procedência do original, dentre
outras. Trata-se de um acervo raro e valioso que abre inúmeras possibilidades de estudo
sobre múltiplos aspectos da história da cidade e região, que já foram objeto de investigação
em alguns estudos acadêmicos, como se verá mais adiante. Os negativos em vidro foram
reproduzidos. Portanto, tanto as fotos reproduzidas quantos os negativos fazem parte do

8
Para fins de catalogação, adaptou-se uma ficha elaborada pela Profa. Jussara Frissera, em um projeto de
catalogação de fotografias executada no ano 1989, intitulado “Memória Histórico-Fotográfica de Minas
Gerais 1870/1930” desenvolvido pelo Centro Audiovisual da Universidade Federal de Minas Gerais em
convênio com a Diretoria de Assessoramento e Programas Especiais - DAPE - da Fundação João Pinheiro.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922007, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 11

conjunto documental intitulado Acervo Fotográfico Paulino de Araújo Ferreira Lopes.


Atualmente fazem parte do CEMEC 625 negativos em vidro e 797 fotos9.
Além de algumas fotos bastante representativas do cotidiano das fazendas e da vida
urbana de Campanha e das cidades vizinhas é preciso destacar a raridade e a riqueza dos
poucos daguerreótipos10. Trata-se de fotos de membros da família do Sr. Paulino,
produzidas no Rio de Janeiro, pouco tempo depois da invenção do primeiro processo de
fotografia e que pertence aos seus descendentes11.
Desde a criação do CEMEC e da organização e reprodução do acervo fotográfico
Paulino Araújo Ferreira Lopes e de sua divulgação, ele vem sendo objeto de pesquisas
acadêmicas. A primeira divulgação de algumas fotos do acervo se deu com a produção da
mostra Minas: Minas - Memorial e Contemporânea realizada no Museu de Imagem e Som
de São Paulo, quando das celebrações do IV Mês Internacional da Fotografia. Foram
selecionadas algumas fotos e daguerreótipos originais que ficaram expostos no MIS-SP, no
período de 27 de maio a 18 de julho de 1999 (MAGALHÃES, 1999).
Sem a pretensão de fazer um levantamento completo dos trabalhos acadêmicos que
se utilizaram do acervo, destaco pelo menos quatro: duas teses de doutorado e duas
dissertações de mestrado. As teses de doutorado e uma dissertação de mestrado utilizaram
as reproduções fotográficas do acervo como fontes complementares em suas investigações.

9
Informações disponíveis no Projeto Pedagógico do Curso de História – Unidade de Campanha/MG, maio de
2016, p. 83. Disponível em: http://intranet.uemg.br/comunicacao/arquivos/Arq20161223154713PP.pdf.
Acesso em: 11 jun. 2020.
10
A invenção da fotografia foi anunciada no dia 19 de agosto de 1839, em Paris. Embora a daguerreotipia
derive do nome de Louis Jacques Mandé Daguerre, a invenção só foi possível a partir da parceria estabelecida
com Joseph Nicèphore Niépce, que, em 1826, já havia experimentado um processo fotográfico. Após o
falecimento de Niépce, em 1833, Daguerre prosseguiu com os experimentos que permitiram a invenção do
daguerreótipo (KOSSOY, 2019, p.128). O sucesso do primeiro processo de fotografia se explica pelo seu
preço não tão caro, embora não estivesse ao alcance de muitos grupos sociais, mas também pelo fato de
proporcionar “uma representação precisa e fiel da realidade, retirando da imagem a hipoteca da
subjetividade; a imagem, além de ser nítida e detalhada, forma-se rapidamente” (FABRIS, 2008, p. 13).
11
A história da fotografia no Brasil, nos séculos XIX e XX, foi objeto de abordagem de diversos autores.
Algumas obras tornaram-se referências obrigatórias (FERREZ & NAEF, 1976; KOSSOY, 1980; KOSSOY,
2002; VASQUEZ, 2003; MAUAD & SERRANO, 2015). Para Minas Gerais oitocentista também temos alguns
estudos relevantes como o de Maraliz Christo, que analisa a fotografia em Juiz de Fora a partir dos anúncios
de jornal, e o de Rogério Arruda, que investiga a expansão da fotografia na província de Minas Gerais,
também a partir dos anúncios fotográficos em jornais do século XIX, além de reconstruir a trajetória de vários
fotógrafos, como por exemplo: Francisco Manoel da Veiga, Guilherme Liebenau, Luiz Costa e Ehrhard Brand
(CHRISTO, 2000, p. 127-146; ARRUDA, 2013 e 2014, p. 231-256).
12 | Instituições de memória e acervos fotográficos: a... ANDRADE, M. F.

O primeiro estudo a divulgar e analisar algumas dessas imagens se dedicou a investigar o


papel das elites regionais na construção do estado imperial brasileiro, tendo como escopo
geográfico de análise a cidade de Campanha e a região do Sul de Minas (Figura 1). Utilizei
algumas imagens que atestavam o processo de urbanização crescente da cidade
(ANDRADE, 2014). O segundo trata-se de uma investigação sobre a história do antigo
colégio Nossa Senhora de Sion e de seu impacto socioeconômico e político entre as elites
sul-mineiras no início do século XX (Figura 2). Como Paulino de Araújo Ferreira Lopes foi
o fotógrafo oficial da cidade durante boa parte do século XX, no acervo existem muitas
imagens relativas ao prédio (externas e internas), os eventos e as representações do
cotidiano do referido colégio (LAGE, 2006). O terceiro estudo teve como objeto de
investigação a vila/cidade de Campanha e abordou aspectos relativos ao ordenamento
urbano e à civilidade de seus habitantes, preocupações recorrentes das autoridades e das
elites que compunham a urbe (ARAUJO, 2016).

Figura 2: Vista do Colégio Nossa Senhora de Sion – Campanha/MG – década de 1930.


Fonte: Acervo Paulino de Araújo Ferreira Lopes – CEMEC/UEMG – Unidade de Campanha/MG.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922007, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 13

O quarto estudo se trata de uma dissertação de mestrado, defendida em 2013, que


merece uma exposição um pouco mais detalhada, pois foi a primeira investigação que teve
como objeto central de pesquisa o acervo Paulino Araújo como um todo, revisitando não só
o do CEMEC, mas também o arquivo particular da família, inclusive as câmeras fotográficas
e os objetos de estúdio fotográfico que continuam em mãos de seu neto, o fotógrafo Almir
de Araújo Ferreira Lopes. Raquel Reis (2013) faz uma investigação detalhada de todo o
conjunto documental existente e acrescentou novos elementos à biografia de Paulino Araújo
a partir de entrevistas realizadas com seus descendentes. O contato com o acervo particular
da família e o uso fontes orais enriqueceu sobremaneira o trabalho, pois lhe permitiu
adentrar no universo do fotógrafo e tratar um pouco mais do que teria sido o seu cotidiano
na arte de fotografar, o que ocorreu em boa parte de sua vida (Figuras 3 e 4). Merece
destaque o último capítulo, especialmente quando se discute a função social dos retratos e
das representações neles contidas, analisando as fotografias por temáticas e uma atenção
especial em relação àquelas que retratam pessoas, famílias e grupos sociais. Também
analisou algumas fotografias que tinham como cenário a cidade de Campanha (REIS, 2013).
14 | Instituições de memória e acervos fotográficos: a... ANDRADE, M. F.

Figura 3: Paulino de Araújo Ferreira Lopes montado a cavalo. Segunda década do século XX. Coleção
Paulino Araújo.
Fonte: REIS, 2013, p. 56

O arquivo particular é de propriedade de Almir Ferreira Lopes, que compreende não


só fotografias avulsas, álbuns de fotografias, mas também os equipamentos de fotografia e
todo o mobiliário do estúdio fotográfico. Além de denominá-lo “Fundo Paulino Araújo”,
Raquel Reis organizou-o por séries documentais, considerando as seguintes categorias:
“objetos de uso pessoal; objetos de uso profissional; fotografias em álbum; fotografias
avulsas” (REIS, 2013, p. 60). Em relação ao acervo do CEMEC, a autora apresenta a
seguinte descrição:

Já a outra série é formada por uma coleção de fotografias datadas do século XX,
mais precisamente estas vão de aproximadamente 1903 a 1970, cujo volume
expressivo se refere à primeira metade do século XX. Consistem num conjunto de
negativos em vidro, fotos originais e suas respectivas reproduções, sendo que
algumas fotografias anteriores à 1907 não são de autoria de Paulino,
possivelmente são de Etienne Farnier, seu mestre de ofício (REIS, 2013, p. 78).
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922007, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 15

A autora destaca que esse acervo possui cerca de 1300 imagens e historiciza parte do
processo, quando esses negativos em vidro foram doados ao CEMEC, no final da década de
1990, ressaltando que “a ausência de registros sobre os procedimentos de organização e
contexto que envolveu a doação da coleção de imagens, impossibilitou que se tivesse um
conhecimento claro sobre sua organização prévia em arranjos” (REIS, 2013, p. 79).
Conforme relatado nesse tópico, a organização e catalogação do acervo fotográfico Paulino
de Araújo Ferreira Lopes foi um dos subprojetos desenvolvidos e que compunha o projeto
Memória Cultural do Sul de Minas. Na época havíamos produzido um sistema de arranjo e
classificação com base em experiências de projetos semelhantes. É importante destacar que,
antes de ser incorporada definitivamente à UEMG, a unidade de Campanha passou por
sérios problemas administrativos e financeiros, como a própria autora ressalta. Creio que o
mais relevante a ser destacado é a importância desse acervo para a história da fotografia em
Minas Gerais, particularmente da região sul, e como as imagens registradas por Paulino de
Araújo são fundamentais para compreender as representações de inúmeros aspectos do
cotidiano dos indivíduos, famílias, grupos sociais, a paisagem urbana e rural, além da história
do próprio fotógrafo.
16 | Instituições de memória e acervos fotográficos: a... ANDRADE, M. F.

Figura 4: Paulino Araújo Ferreira Lopes por volta dos 80 anos. Acervo Particular da família.
Fonte: REIS, 2013, p. 76.

As potencialidades de pesquisa ainda são inúmeras, como atesta a própria autora,


dada a diversidade e a riqueza do acervo. Embora não tenha aprofundado na questão da
atuação de Paulino Araújo na prestação de serviços como fotógrafo na imprensa, caso haja
fontes, certamente esse é um aspecto que merece uma análise mais minuciosa em
investigações futuras e poderá trazer novos elementos acerca da sua atuação como fotógrafo
no município de Campanha e cidades vizinhas.

Considerações Finais

Pudemos constatar que a experiência de criação do CEMEC foi e é grande


importância para a investigação do passado sul-mineiro, especialmente porque mantém sob
sua custódia fundos documentais de natureza diversa e que têm sido objeto de investigação
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922007, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 17

por vários pesquisadores e a comunidade do Sul de Minas. Em relação ao acervo fotográfico


Paulino de Araújo Ferreira Lopes, não resta nenhuma dúvida de que o mesmo é de grande
relevância para história da fotografia de Minas Gerais e seu nome já se encontra inscrito
nos verbetes no Dicionário histórico-biográfico dos fotógrafos e da fotografia no Brasil,
projeto que continua em andamento e é desenvolvido pelo Laboratório de História Oral e
Imagem da Universidade Federal Fluminense – LABHOI/UFF (MAUAD & SERRANO,
2015).
Também foi destacada a preocupação do grupo de pesquisadores que o constituiu e
de seu neto, Almir Ferreira Lopes, pela garantia não só da preservação e acondicionamento
adequados, mas também do acesso para a produção de estudos que tenham como fonte os
registros fotográficos. As pesquisas realizadas a partir do acervo e brevemente apresentadas
atestam o potencial, a diversidade e a riqueza das fontes iconográficas. Espero que o
CEMEC possa expandir o seu trabalho, uma vez que a unidade de Campanha já faz parte da
Universidade do Estado de Minas Gerais desde 2013. Que os professores/pesquisadores do
curso de História de Campanha possam desenvolver novos projetos e sempre com a
perspectiva democrática de socialização do conhecimento e de garantia do acesso aos
pesquisadores, de quaisquer naturezas. Esses foram os objetivos norteadores de criação de
CEMEC e que perdurem e sejam ampliados.

________________________________________________________________________________________

MEMORY INSTITUTIONS AND PHOTOGRAPHIC COLLECTIONS: THE EXPERIENCE OF THE CENTRO


DE MEMÓRIA CULTURAL DO SUL DE MINAS

Abstract: The main goal of this paper is to examine the relevance of universities in the establishment of
institutions for the preservation of memory and documentation, especially the ones that house photographic
archives and deal with preservation policies, listing, classification and that grant access to their catalogs to
the public and researches. Here we describe the establishment of the Centro de Memória do Sul de Minas,
founded in May of 2000 in a unity of the Universidade do Estado de Minas Gerais – UEMG, in the city of
Campanha, MG, with special attention to the Paulino de Araújo Ferreira Lopes house photographic archive.

Keywords: History. Memory. House photographic archives. Centro de Memória Cultural –


UEMG/Campanha.
________________________________________________________________________________________
18 | Instituições de memória e acervos fotográficos: a... ANDRADE, M. F.

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________________________________________________________________________________________
SOBRE O AUTOR
Marcos Ferreira de Andrade é doutor em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF);
docente do curso de História da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
________________________________________________________________________________________

Recebido em 22/05/2020

Aceito em 22/06/2020
Imagens de povos indígenas: das fotografias do
século XIX às fotografias de Claudia Andujar

Laila Zilber Kontic


Universidade de São Paulo
São Paulo - São Paulo - Brasil
laila.kontic@usp.br

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Resumo: Este artigo tem como objetivo analisar o modo como as fotografias de Claudia Andujar rompem com
um determinado repertório imagético e discursivo consolidado ao longo dos séculos XIX e XX acerca da
representação de povos indígenas. A construção de um discurso sobre povos indígenas no século XIX é analisada
através da produção fotográfica de missionários que participavam das expedições organizadas para explorar o
território brasileiro. No que se refere à produção fotográfica do século XX, a investigação parte das imagens
produzidas pela Comissão Rondon e pelas fotorreportagens da revista O Cruzeiro. A partir de 1970, Claudia
Andujar introduz um modo inovador de produzir essas fotografias: resultado de uma longa relação de afeto e
engajamento com os Yanomami, seu trabalho concilia a estética das imagens a uma tentativa de tradução da
experiência xamânica, central para a existência do povo yanomami.

Palavras-chave: Fotografia. Claudia Andujar. Yanomami. Povos indígenas.


__________________________________________________________________________________________

Introdução

Desde a chegada dos portugueses no Brasil no século XVI, as inúmeras representações


iconográficas de povos indígenas conjugaram uma extensa documentação visual que foram ou
ainda são utilizadas para diversos fins1. Neste artigo, serão explorados três momentos dessa
tradição: 1) o início de uma política cultural de incentivo à exaltação da imagem do indígena
pela pintura durante o Segundo Reinado, que tinha como objetivo a conformação de uma
identidade nacional, e o começo da tímida produção de fotografias de povos indígenas no
século XIX; 2) a produção imagética da Comissão Rondon e a fotorreportagem da revista O
Cruzeiro durante a primeira metade do século XX, que enfatizavam o discurso de "civilização"
dos povos indígenas com vistas à sua incorporação na nação brasileira; 3) as fotografias que
Claudia Andujar fez do povo yanomami produzidas nos anos 70, como uma maneira inovadora
de fotografar povos indígenas, que escapa do repertório da tradição fotográfica ocidental.

1
Ver a catalogação realizada por Moura (2012) das representações iconográficas de mais de 220 povos
indígenas do século XVI ao século XX.
2 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.

O corpus dessa análise foi constituído pela pesquisa de material fotográfico em acervos
dos fotógrafos E. Thiesson, Albert Frisch, Marc Ferrez, José Medeiros, Claudia Andujar e da
Comissão Rondon. A documentação textual, audiovisual e fotográfica da Comissão Rondon é
abrigada pelo Museu do Índio, instituição de preservação e promoção do patrimônio cultural
indígena da Fundação Nacional do Índio (Funai). As imagens utilizadas neste artigo foram
acessadas no banco de dados do acervo online do museu, aberto para livre consulta2. As
fotografias de Albert Frisch encontram-se no acervo digital da Biblioteca Nacional, que conta
com mais de dois milhões de documentos digitalizados também de livre acesso3. Os acervos
de Marc Ferrez e José Medeiros estão sob responsabilidade do Instituto Moreira Salles, uma
das principais referências de preservação de acervos fotográficos do Brasil. O acervo digital
pode ser consultado no site do instituto, embora disponibilize online apenas parte das coleções
dos fotógrafos4. O acervo do Museu do Quai Branly, em Paris, abarca antigas coleções de
etnologia do Museu do Homem e do Museu Nacional de Artes da África e da Oceania. Hoje
utilizado para auxiliar pesquisadores que se dedicam à pesquisa em etnologia, antropologia e
estéticas não ocidentais, o acervo iconográfico do museu está digitalizado e disponível para
livre consulta online5.
Por fim, as imagens digitalizadas de Claudia Andujar me foram concedidas pela
Galeria Vermelho, responsável pela conservação dos negativos e pelas negociações de venda
das imagens. Para cada fotografia vendida, um terço do valor é voltado para uma associação
dos Yanomami, um terço para Andujar e um terço para a galeria. A seleção do corpus deste
artigo tem como objetivo mostrar as principais tendências das fotografias de cada época e em
que sentido as fotografias de Andujar podem ser consideradas uma maneira inovadora de
registro.
Pretende-se mostrar a confluência dessas imagens que vêm sendo produzidas desde o
século XIX com a construção de um discurso sobre as populações indígenas do Brasil, tendo
em vista o potencial do trabalho de Claudia Andujar para propor novas formas de utilizar a
fotografia para tratar de um povo com costumes e valores outros. O trabalho de Andujar entre
os Yanomami evidencia a possibilidade de mobilizar novas formas de produção dessas
imagens, que levam em conta o próprio regime de realidade do povo yanomami.

2
Disponível em: https://bityli.com/PZoSC. Acesso em 09 jul. 2019.
3
Disponível em: http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.html. Acesso em 09 jul. 2019.
4
Disponível em: https://bityli.com/SWAS4. Acesso em 09 jul. 2019.
5
Disponível em: https://bityli.com/hLKno. Acesso em 09 jul. 2019.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922008, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 3

Iconografia indígena no século XIX: pintura e fotografia

Nos âmbitos artísticos e historiográficos, o século XIX pós-independência do Brasil


foi marcado pela tentativa de criação de uma identidade nacional desvinculada da coroa
portuguesa. Nesse contexto, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) foi fundado
em 1838 pela elite carioca, contando com o financiamento e ativa participação de D. Pedro II.
Importante centro de estudos para a elaboração de um projeto político e cultural nacional, o
IHGB, em associação com a Academia Imperial de Belas Artes, incentivava a produção de
trabalhos historiográficos, literários e artísticos para a construção de uma identidade
propriamente brasileira. Schwarcz (2003, p. 25) destaca que

através do financiamento direto, do incentivo ou do auxílio a poetas, músicos,


pintores e cientistas, D. Pedro II imiscuía-se em um grande projeto que implicava
não só o fortalecimento da Monarquia e do Estado, como a própria unificação
nacional, que seria obrigatoriamente uma unificação cultural.

Em um concurso elaborado pelo IHGB em 1844 para incentivar projetos que


propusessem a construção de uma historiografia do Brasil, o programa escrito por Karl Von
Martius foi selecionado e passou a influenciar a literatura e a pintura produzidas ao longo do
Segundo Reinado (1840-1889). O projeto demonstrava a relevância da convergência das três
raças para a formação do país, tanto no sentido da miscigenação como das relações
estabelecidas: o branco europeu/português, o indígena nativo e o negro africano. Sob a
alegação de que as características únicas de cada uma delas formaram o povo brasileiro, o
programa de Von Martius enfatizava a importância de tratar dessa formação como uma
particularidade da história do Brasil6.
A tese de Von Martius influenciou as produções seguintes desenvolvidas pelo IHGB,
principalmente com a consolidação do romantismo brasileiro enquanto gênero literário e
pictórico, que contribuíram para o desenvolvimento de uma nova formação discursiva e de
uma nova sensibilidade estética da cultura nacional. As concepções do projeto romântico
permitiam a criação de particularidades que constituíssem a imagem da nação brasileira,
baseadas principalmente na representação de uma natureza "exuberante" e "tropical"
enquanto patrimônio nacional e na figura do indígena genérico, passivo e amigável, tratado
menos como um tipo étnico do que como um tipo racial.
Assim, muitas pinturas produzidas na época, de vertentes românticas e idealistas,
passaram a retratar a natureza e o indígena exótico dos trópicos, selecionando, de um lado, a

6
Uma discussão sobre a influência do programa de Von Martius para os estudos de historiografia encontra-se
em Guimarães (2000).
4 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.

imagem do nativo passivo e vulnerável e, de outro, ocultando a condição dos negros


escravizados e violência do contato entre brancos e indígenas.

A pintura indianista brasileira não mostra o passado pré-cabralino, tampouco cenas


de conflito. Para alguns historiadores, como Varnhagem, a História do Brasil
começava com o descobrimento, em 1500, sendo o período anterior domínio da
etnografia (CHRISTO, 2009, p. 1158).

Nesse período, além da pintura, a fotografia de povos indígenas foi gradualmente


introduzida como uma nova forma de registro. Mas, diferentemente da pintura, que estava
articulada com um processo de produção historiográfico e selecionava a imagem do indígena
enquanto ícone nacional, a fotografia, em um contexto de grandes expedições organizadas
para explorar o território brasileiro, lançou um olhar predominantemente científico para a
imagem dos indígenas. Instrumento apropriado pela antropologia física, essas fotografias
dialogavam diretamente com as teses de vieses racistas, evolucionistas e positivistas que
predominavam na época (MOREL, 2001).
Ainda assim, tal qual em muitas pinturas produzidas durante o Segundo Reinado, a
imagem do indígena era captada pela fotografia como um tipo racial, uma figura cuja
generalidade permitia reconhecê-lo enquanto "botocudo" ou, simplesmente, índio,
desvinculando e descartando de sua identidade questões étnicas, linguísticas e ontológicas7.
Se “num retrato, pode-se ser visto e pode-se dar a ver, alternativas que estão francamente
ligadas à relação do retratado com o retratante” (CUNHA, 1988, p. 23), os indígenas
retratados a partir do século XIX não se dão a ver, mas são vistos, isto é, estavam
condicionados a uma pose e a um olhar situado em um contexto único e específico, moldados
pelos fotógrafos – em sua grande maioria, europeus – que criaram tipos genéricos a serem
contemplados em museus, consumidos na forma de cartões postais e analisados pelos moldes
científicos.
Fernando de Tacca (2011) destaca três momentos distintos no modo como essas
imagens foram produzidas a partir do século XIX em diante. O primeiro momento é marcado
por uma parca produção fotográfica de povos indígenas, realizadas principalmente por
viajantes europeus que, atraídos pela imagem do Brasil tropical, alimentava os curiosos
olhares estrangeiros. Em um momento no qual predominavam ideologias positivistas e
evolucionistas, os indígenas eram retratados como tipos exóticos e, nas ciências humanas,

7
O termo Botocudo foi utilizado pelos portugueses durante o século XIX para nomear os indígenas que usavam
botoques labiais e auriculares. Entretanto, eles podiam pertencer a etnias diversas. Para uma discussão mais
aprofundada sobre o assunto, ver Paraíso (1998).
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922008, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 5

essas fotografias eram utilizadas para coletar e comprovar dados científicos, o que contribuía
para os discursos racistas da época.

Figura 1: Índios Botocudo, 1844, foto de E. Thiesson.


Fonte: Acervo Musée du Quai Branly.

As primeiras imagens foram feitas pelo daguerreotipista francês E. Thiesson, que


fotografou dois indígenas identificados como "botocudo" em seu estúdio, levados para a
França por volta de 1840. No Institut de France, eles foram o centro do debate científico, no
qual propunha-se que fossem estudados no campo da zoologia, negando-lhes a própria
condição de humanidade. Além de terem sido submetidos a análises de cientistas positivistas
– foram medidos, apalpados, comparados e catalogados – os cinco daguerreótipos produzidos
por Thiesson enquadraram os indígenas com dorso nu, do quadril para cima, de frente e de
perfil, de forma que as imagens possam servir como instrumentos antropométricos. Conforme
destaca Morel: "o clima de curiosidade em torno desses índios expressava significativa mistura
de espetáculo atraente e seriedade científica: a tênue fronteira entre o exato e o exótico" (2001,
p. 1044).
Aproximadamente vinte anos depois, o fotógrafo alemão Albert Frisch fez uma
expedição durante cinco meses pelo rio Amazonas e seus afluentes, fotografando diversas
etnias indígenas ao longo do percurso. As imagens de Frisch foram as primeiras a serem
registradas ao ar livre e não em estúdios, o que exigia uma colaboração dos indígenas para se
manterem parados em pose por um longo tempo para que as placas de colódio úmido pudessem
ser sensibilizadas durante o período de exposição. Suas fotografias mostravam os indígenas
6 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.

posando individualmente ou em grupo, em meio ao ambiente natural ou em frente à maloca,


dando destaque aos elementos materiais, como lanças, facões, colares, adornos, arcos, flechas,
canoas e cabaças.

Figura 2: Alto Amazonas ou Solimões (du Brésil), 1867, foto de Albert Frisch.
Fonte: Acervo digital da Biblioteca Nacional.

Somado a isso, as legendas das imagens buscavam informar o nome dos objetos que
compunham o ambiente e o parentesco dos indígenas fotografados, com a finalidade de
comunicar ao público europeu a respeito da região amazônica, ainda pouco conhecida pelos
brancos. Tanto os elementos que compõem as imagens como as legendas estavam em
conformidade com o compromisso científico de Frisch, cujas fotografias foram distribuídas
pela Europa para mostrar uma Amazônia exótica e selvagem para os olhares estrangeiros
(MOURA, 2012).
Em 1874, o principal fotógrafo brasileiro da época, Marc Ferrez, foi contratado pelo
Império para acompanhar uma expedição científica pelo Brasil para a elaboração de um mapa
geológico do território. Conhecida como Comissão Geológica do Império (1875-1878), a
expedição percorreu diversos estados do sudeste e do nordeste brasileiro, adentrando pela
região amazônica, e permitiu a Ferrez elaborar uma documentação fotográfica significativa.
Em 1876, entrou em contato com os indígenas conhecidos como "botocudo", do sul da Bahia,
produzindo as primeiras imagens desses indígenas, retratados de perfil e de frente, com o
dorso nu e com uma régua de medição antropométrica posicionada ao lado direito,
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922008, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 7

demonstrando uma possível intenção do fotógrafo de utilizar as imagens para pesquisa


científica.

Figura 3: Índio Botocudo, 1875, foto de Marc Ferrez.


Fonte: Acervo de fotografia do Instituto Moreira Salles.

Nesse primeiro momento o olhar ocidental retratou gestos, expressões e cenários


moldados conforme tradições propriamente europeias de conceber e construir a imagem,
fossem elas de base idealista romântica, ou realista cientificista. Assim como em algumas
pinturas produzidas no Segundo Reinado, que selecionaram a imagem do indígena enquanto
tipo para inflamar o discurso de construção de uma identidade nacional brasileira, essas
fotografias selecionaram elementos corporais, materiais e paisagísticos – ainda que artificiais
– para compor uma visão do indígena como inferior, não civilizado e menos desenvolvido.
Esse olhar, situado em um contexto muito específico e distante da realidade desses povos, era
legitimado pelos pensamentos positivista e evolucionista que vigoravam então, permitindo a
classificação, desqualificação e catalogação do indígena, ora utilizando sua imagem para
subjugá-lo, ora para exaltá-lo, a depender do interesse político.

O século XX: a imagem do indígena na Comissão Rondon e na revista O Cruzeiro

O segundo momento destacado por Tacca (2011) é a influência da Comissão Rondon


e da revista O Cruzeiro para uma mudança no trato fotográfico com as populações indígenas.
A Comissão Rondon foi um conjunto de expedições chefiadas pelo marechal Cândido Mariano
da Silva Rondon no início do século XX, com o objetivo de reconhecer e ocupar regiões
8 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.

desconhecidas do território brasileiro. Integrando uma equipe de botânicos, zoólogos,


geógrafos, topógrafos, etnógrafos e fotógrafos, a comissão fazia parte de um projeto de nação
pautado pelo interesse na expansão e no desenvolvimento territorial, principalmente em
regiões pouco populosas.
A expedição percorreu mais de 50 mil quilômetros do interior oeste do Brasil e entrou
em contato com diversos grupos indígenas – muitos dos quais nunca haviam tido contato com
brancos até então. Como desdobramento da expedição, Rondon fundou no ano de 1910 o
Serviço de Proteção ao Índio (SPI), órgão ligado ao Ministério da Agricultura que promovia
o discurso de integração das populações indígenas ao processo de desenvolvimento nacional
(MOURA, 2012). Um dos principais nomes incumbido de produzir materiais visuais dos
nativos era o tenente cinegrafista e fotógrafo Luiz Thomaz Reis (1878-1940), que produziu
em conjunto com outros fotógrafos enormes quantidades de materiais fotográficos e
filmográficos de povos indígenas, dando origem à coleção "Índios do Brasil", organizada em
três volumes.
O primeiro volume, publicado em 1943 e produzido entre indígenas do Mato Grosso,
é composto por imagens legendadas que remetem a um contato pacífico e amigável entre os
indígenas e os expedicionários. As imagens dos indígenas e de sua cultura material
evidenciam, por um lado, um registro etnográfico dos costumes nativos e, por outro, aludem
a uma concepção do nativo primitivo, genérico e permissível ao contato com os brancos. Em
contraste, a figura de Rondon aparece de maneira icônica e quase heroica, representando o
homem que trouxe a civilização ao dar-lhes presentes e roupas, possibilitando sua
incorporação à nação brasileira.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922008, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 9

Figura 4: Distribuição de brindes aos Paresi, 1900-1922, foto de Luiz Thomaz Reis.
Fonte: Acervo digital do Museu do Índio.

Publicados dez anos depois, o segundo e o terceiro volume são compostos por imagens
de indígenas supostamente "civilizados", isto é, dóceis e pacíficos, vestindo roupas, escutando
atentamente os discursos de Rondon sobre a República e sobre os fatos históricos do Brasil e
assumindo funções na construção das linhas telegráficas. Fernando de Tacca, em um extenso
comentário sobre um filme produzido por Luiz Thomaz Reis sobre os rituais e festas Bororo,
questiona para quem se destinava a produção dessas imagens:

(...) certamente não era para os próprios Bororo daquela época mas para olhares
distantes comprobatórios que se deixavam seduzir pela ideia da catequização dos
índios e de sua conversão aos valores cristãos, portanto rebatidos como os valores
de uma sociedade civilizada. (TACCA, 2002, p. 204).
10 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.

Figura 5: Rondon entre os índios Jaru, 1915, foto de José Louro.


Fonte: Acervo digital do Museu do Índio.

As imagens da Comissão Rondon enquadraram os indígenas no projeto nacionalista


em andamento no Brasil, enaltecendo-os enquanto figuras que passariam por um processo de
"aculturação" para serem integrados à nação brasileira. Com forte influência positivista,
Rondon estimulava a ideia da "domesticação" dos povos indígenas para que eles pudessem
atuar como aliados no projeto de desenvolvimento e ocupação nacional.
Esse material visual – produzido pelo Estado e para o Estado – era publicado nos
principais jornais brasileiros e visava principalmente as elites urbanas, importante grupo
formador de opinião, com o intuito de mostrar o processo de integração do indígena à nação
brasileira, alimentando, assim, o espírito nacionalista ambicionado pela comissão (TACCA,
2011). Se antes as fotografias tinham um objetivo antropométrico e comprobatório de teorias
evolucionistas e racistas, no contexto da Comissão Rondon elas constroem uma visão do
universo indígena que figura principalmente indivíduos, agrupamentos e a cultura material,
com a intenção de mostrar o processo e o suposto êxito dos missionários em ordenar e integrar
os indígenas, antes selvagens e agora civilizados, à nação brasileira, o que resultou na gênese
de uma política indigenista e em um tipo de pensamento sobre os povos indígenas que perdura
até hoje.
Ainda em um sentido de construção da imagem do indígena no contexto civilizatório
durante o século XX, Tacca (2011) enfatiza também o engajamento das fotorreportagens da
revista O Cruzeiro, fundada em 1928, para alimentar e divulgar o imaginário coletivo do
nativo em processo de integração à nação brasileira. Isso aconteceu principalmente entre as
décadas de 1940 e 1950, quando a revista adotou o modelo da fotorreportagem e passou a dar
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voz à fotografia enquanto formadora de discurso. A edição das matérias contava também com
pequenas legendas que acompanhavam as fotos, direcionando a leitura e constituindo uma
narrativa própria à imagem, que materializava a visão de mundo construída e selecionada pelo
editor. Neste período, a revista O Cruzeiro atuou como um amplificador da valorização das
políticas de desenvolvimento introduzidas pelo Estado Novo de Getúlio Vargas, refletindo o
ideário de modernização do Brasil que o governo tanto prezava (COSTA, 2012).
Dentre as temáticas abordadas pela revista, as fotorreportagens sobre os povos
indígenas brasileiros eram recorrentes, principalmente devido à crença de que a imagem do
indígena era um empecilho para o progresso da civilização brasileira e, portanto, incompatível
com o modelo de nação incitado e divulgado pelas reportagens (COSTA, 1994). A construção
de um discurso em torno do processo de aculturação desses povos ganhou destaque sobretudo
com o projeto de interiorização do Brasil – conhecido como a "Marcha para o Oeste" –
concebido em 1943 pelo governo de Getúlio Vargas, contexto no qual foi criado o Parque
Nacional do Xingu. Nessas reportagens, as fotografias passavam a ideia da superioridade da
"civilização" – simbolizada pela tecnologia, pela ciência e pela cultura – em contraposição a
uma cultura indígena que tinha arcos e flechas, mas não armas; malocas, mas não casas;
adornos, mas não roupas. Pressupunha-se que o indígena não só deveria ser civilizado, mas
era propriamente uma vontade dele. Como destaca Moura (2012, p. 90), nesse processo de
construção de um outro, “os índios são apresentados como recursos naturais disponíveis a
serem utilizados em benefício da modernização do Brasil”, sendo subjugados a uma
interpretação imposta pelas fotorreportagens, sujeita a edições que procuravam estabelecer
uma relação entre imagem e legenda.
Um fotógrafo importante da revista O Cruzeiro foi José Medeiros, cujas fotografias
ganharam destaque não só por seu reconhecimento como um dos principais especialistas em
reportagens sobre povos indígenas, mas também pela qualidade da composição de suas
imagens. Ele produziu uma série de fotografias durante a expedição Roncador-Xingu, em
1941, que fazia parte do projeto de interiorização do Brasil desenvolvido pelo governo de
Getúlio Vargas. Além delas estarem em conformação com o discurso civilizatório de O
Cruzeiro, sua estética chama a atenção para uma questão central da fotografia de povos
indígenas: por que essas imagens são consideradas belas aos olhos ocidentais?
12 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.

Figura 6: Índio Iaualapiti, 1949, foto de José Medeiros.


Fonte: Acervo de fotografia do Instituto Moreira Salles.

A imagem fotográfica não é somente um resultado estético, mas sobretudo um


processo social e cultural. As escolhas do fotógrafo sobre o que fotografar, como compor os
elementos que constituirão o retângulo fotográfico, como explorar os recursos tecnológicos
da câmera e qual tratamento estético será dado a imagem constituem a realização de uma
fotografia. Além de influenciar no resultado final, esses fatores delimitam a atuação do
fotógrafo enquanto "filtro cultural", na medida em que ele é imbuído de um ponto de vista
situado em um contexto particular, com valores e costumes específicos. Assim, “toda fotografia
é um testemunho segundo um filtro cultural, ao mesmo tempo que é uma criação a partir de
um visível fotográfico” (KOSSOY, 2003, p. 50).
Medeiros estava evidentemente inserido em um contexto no qual acreditava-se na
importância de um processo de "aculturação" dos povos indígenas e na relevância de mostrá-
lo em imagens. Além disso, a estética de suas fotografias também se situa em um campo da
fotografia no qual valorizava-se o retrato, as formas geométricas que compõem o retângulo
fotográfico e a plasticidade do próprio sujeito que está sendo fotografado, elementos que
coadunam com um tipo de estética da imagem que valoriza não só a composição, mas também
– e sobretudo – a representação do “outro”, do diferente, do exótico, do não-branco que é
fotografado pelo branco e para o branco.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922008, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 13

As fotos de Medeiros lançam um olhar advindo de uma tradição visual específica,


através de uma linguagem propriamente ocidental – a fotografia. Assim como as fotografias
de povos indígenas produzidas ao longo do século XIX, os indígenas nas imagens de Medeiros
não se dão a ver, mas são vistos. Ao mesmo tempo que as imagens estão condicionadas a uma
estética e a um discurso construídos para sustentar e difundir um projeto de identificação
nacional, elas ocultam os conflitos e tensões que envolveram o contato com os brancos durante
os projetos de interiorização do governo Vargas, além das próprias particularidades étnicas e
culturais desses povos, subjugando-os a um ponto de vista que não o seu.

As fotografias de Claudia Andujar à luz do xamanismo yanomami

O marco de um terceiro momento no registro de povos indígenas para Tacca (2011),


no sentido de imagens não apenas documentais e científicas, mas que são capazes de
contemplar uma realidade outra, é o trabalho de Claudia Andujar com os Yanomami. Tacca
diferencia o trabalho fotográfico de Andujar dos registros produzidos até então a partir de
dois aspectos fundamentais da transformação iconográfica referente aos povos indígenas: o
contexto político de quando as fotografias foram realizadas e as convenções artísticas que
influenciaram a artista. Se durante os séculos XIX e XX as imagens faziam parte
respectivamente de um projeto de construção da nacionalidade brasileira e de assimilação dos
povos indígenas à civilização, o trabalho de Andujar envolve não só um contexto social e
político distinto, mas também uma trajetória de vida muito particular.
Claudia Andujar nasceu em 1931, em Neuchâtel, Suíça, e passou a infância na cidade
de Oradea, atualmente localizada na Hungria. De origem judaica, seu pai e a família paterna
foram deportados em 1944 e mortos em campos de concentração. Momentos antes dos russos
ocuparem a Hungria, voltou com sua mãe para Suíça e, dois anos depois, passou a morar como
refugiada em Nova York. Chegou ao Brasil em 1955 e passou a viver em São Paulo, onde mora
até hoje. Com pouco domínio da língua portuguesa e muito interesse pela população nativa,
Andujar fotografava as pessoas com quem cruzava em suas viagens pelo litoral paulista e
países da América do Sul. Segundo a fotógrafa, “essa ligação de fotografar e mostrar o trabalho
para os fotografados ajudava a me identificar com essas pessoas, aprender o português, me
comunicar” (ANDUJAR, 2015, p. 241).
De 1958 a 1971, Andujar trabalhou como fotorrepórter para diversas revistas
nacionais e estrangeiras, por meio das quais teve o primeiro contato com uma etnia indígena,
os Karajá da Ilha do Bananal. Atuando como freelancer para a revista Realidade, foi convocada
14 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.

para realizar uma reportagem sobre a Amazônia em 1970, entrando em contato pela primeira
vez com o povo yanomami. Nesse contexto, Andujar viveu entre os Yanomami da região do
Catrimani, oeste do estado de Roraima, e decidiu largar o fotojornalismo. Subsidiada por duas
bolsas da Fundação Guggenheim (em 1971 e 1974) e uma da Fapesp (em 1976), morou entre
os Yanomami do Catrimani de 1971 a 1977.
A partir de 1970, o investimento do governo em políticas de ocupação demográfica e
desenvolvimento econômico estimulou a exploração das terras para a obtenção de recursos
naturais, resultando na invasão da parte sul do território yanomami, localizado no oeste de
Roraima. Somado a isso, em 1974, o governo militar começou a construção da rodovia
Perimetral Norte (BR-210), que fazia parte do investimento em políticas de ocupação
demográfica e desenvolvimento econômico, cuja intenção era introduzir a indústria na
Amazônia pela conexão entre os estados do Amazonas, Roraima, Pará e Amapá. Os conflitos
com os garimpeiros e a construção da rodovia no território Yanomami – que, até então, tinham
tido pouco contato com os brancos – teve como resultado a devastação de parte dessas terras
e a disseminação de epidemias, causando a morte de muitos indígenas8.
Em 1977, a proximidade de Andujar com os Yanomami fez dela uma persona non grata
pelo governo civil-militar, sendo expulsa de Roraima pela Funai e enquadrada na Lei de
Segurança Nacional. Como resposta, criou um grupo de estudos em defesa do território
indígena e, um ano depois, tornou-se integrante fundadora da Comissão pela Criação do
Parque Yanomami (CCPY)9, uma ONG cuja principal pauta era o reconhecimento e
demarcação das terras Yanomami. Nos anos 80, auge da campanha pela demarcação de terras,
Andujar conheceu Davi Kopenawa, mediador intercultural de seu povo, com quem viajou pelo
Brasil e pelo exterior fazendo campanha em prol da demarcação de terras10 (ALBERT, 1995).
A parceria entre Andujar e Kopenawa em defesa do território yanomami contava, de
um lado, com a divulgação das fotografias em âmbito nacional e internacional e, de outro, com
a ênfase no discurso sobre a importância da floresta para os Yanomami, cujos fatores
ambientais e cosmológicos estão intrinsecamente entrelaçados para a sobrevivência desse
povo. Para os Yanomami, a floresta é considerada uma entidade viva que possui um princípio

8
Os primeiros contatos diretos dos Yanomami com os brancos ocorreram entre 1910 e 1940. Entre 1940 e 1960,
alguns postos do Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e missões católicas e evangélicas marcaram o primeiro
contato permanente em seu território. Mas a submissão dos Yanomami a formas de contato maciço ocorreu
em meados da década de 1970 e na década de 1980 com os projetos de desenvolvimento do governo e com a
"corrida do ouro", principalmente no oeste de Roraima.
9
Hoje conhecida como Comissão Pró-Yanomami.
10
Fernando Collor assumiu a presidência em 1990. Após uma visita à região – e sob pressão nacional e
internacional – assinou o decreto de homologação da Terra Indígena Yanomami, em 1992. Mesmo assim, as
invasões garimpeiras clandestinas continuaram acontecendo.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922008, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 15

de fertilidade inerente a ela e um sopro vital muito longo ou, em outras palavras, um ciclo de
vida muito maior do que o período de vida e morte dos seres humanos. A floresta “é um ser
vivo composto de incontáveis seres vivos, um superorganismo constantemente renovado pela
atividade de seus guardiões invisíveis, os xapiri” (CASTRO, 2015, p. 13).
A história da origem dos Yanomami gira em torno de Omama, pai do primeiro xamã
e criador dos espíritos auxiliares dos xamãs, os xapiri. Omama deu para os Yanomami e para
suas gerações a floresta dos seres humanos (yanomae thëpë urihipë), regida por uma série de
fenômenos de ordem cosmológica: nas colinas e nos rios, vivem os seres maléficos que
provocam doenças e mortes; no topo das montanhas, vivem as imagens dos ancestrais que se
transformaram em espíritos xapiri, criados para proteger os humanos; no fundo das águas,
moram os espíritos yawarioma, cujas irmãs seduzem os caçadores yanomami (ALBERT,
1995).
Através da inalação do pó alucinógeno yãkoana – resina ou fragmentos da casca
interna da árvore Virola sp. seca e pulverizada – os xamãs chamam os xapiri para protegerem
seu povo dos poderes perversos humanos e não humanos, e de forças que movem a ordem
cosmológica. Cobertos de penugem branca e emitindo cantos melodiosos, eles descem por
caminhos resplandecentes de luz que se ramificam por todos os lados para se alimentar da
yãkoana inalada pelo xamã. Como não se deslocam pela terra, fazem sua dança para o xamã
em cima de espelhos – descritos por Davi Kopenawa como uma espécie de solo transparente
que brilha muito – que ficam espalhados por toda extensão da floresta.
Segundo Kopenawa em A queda do céu: palavras de um xamã yanomami, os xapiri são
visíveis somente aos xamãs sob o efeito da yãkoana. Eles aparecem primeiro através de cantos;
aos poucos, os olhos enxergam luzes cintilantes vindas do céu e os espíritos vão se revelando,
dançando lentamente, minúsculos e pintados de cores brilhantes. De súbito, os xapiri
provocam uma série de rasgos no corpo e levam o princípio vital consigo – ou, como Kopenawa
denomina, “as partes imateriais do corpo” – para as costas do céu e, mais tarde, recompõe o
corpo, mas “virado do avesso”, isto é, juntam a cabeça no lugar do traseiro e as pernas no lugar
dos braços. Passado o estado de transe, o Yanomami que passou pelo ritual de iniciação torna-
se xamã, podendo responder aos espíritos e imitar seus cantos.
O papel do xamã entre os Yanomami é central para a manutenção da vida,
principalmente no que diz respeito às relações estabelecidas com os xapiri, seres responsáveis
por auxiliar os xamãs tanto na ordem da vida cotidiana como da extra-humana. Mas, se os
xapiri são visíveis somente aos xamãs sob o efeito da yãkoana, como fotografar um regime de
realidade invisível aos olhos comuns?
16 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.

Segundo Tacca (2011, p. 217), o trabalho de "Claudia Andujar é um exemplo de obra


fotográfica diferenciada, realizada ao final do século XX, que adentra um campo situado entre
as artes visuais e o etnográfico". O campo situado entre a fotografia e a etnografia no qual o
trabalho de Andujar transita é indissociável de um entendimento sobre como o aspecto ético
e o estético devem convergir, tendo em vista todo um cuidado cultural e histórico que envolve
fotografar outros povos, bem como assumir o papel de mediador entre uma cultura e outra.
Nesse sentido, as reflexões de Bruce Albert a respeito de sua parceria com Davi
Kopenawa durante a escrita de A queda do céu são interessantes para pensar o campo
etnográfico que o trabalho de Andujar tangencia. No post-scriptum da obra, Albert narra seus
primeiros anos entre os Yanomami e seu posterior encontro com Kopenawa, cuja convivência
e parceria mútua abriram caminho para o desenvolvimento do livro. Enfatizando a influência
das experiências sensíveis e corporais em sua convivência entre os Yanomami para a forma
como lidou com o trabalho etnográfico, Albert discute uma maneira de posicionamento do
etnógrafo através de um “pacto tácito”: de um lado, a relação etnográfica entre etnógrafo e
seus interlocutores, baseada em um engajamento no processo de auto-objetivação, ou seja, em
sua presença em campo enquanto pessoa que é afetada e ao mesmo tempo afeta as pessoas e
os elementos ao seu redor. De outro, o engajamento político e simbólico do etnógrafo
enquanto representante de seu próprio mundo, cujo papel é de mediador entre sua realidade e
de uma realidade outra e, ao mesmo tempo, a curiosidade intelectual latente que, por vezes,
sustenta a eficácia dessa mediação.
O campo da etnografia engloba esse aspecto sensível do estar em campo, mais
instintivo do que intencional, no qual o etnógrafo é instigado pela sensação de estranhamento
e curiosidade daquilo que não é familiar (PEIRANO, 2014). Menos do que um instrumento de
conhecimento que pode ser medido e quantificado, estar em campo é estar sujeito a interações
involuntárias e constantes com as pessoas e com o espaço, nas quais todos os sentidos são
aguçados: "é um processo de ser afetado por esses elementos sensíveis e, ao mesmo tempo,
afetar aquilo que está a sua volta, cujo resultado é a comunicação desprovida de
intencionalidade, (...) e que pode ser verbal ou não" (FAVRET-SAADA, 2005, p. 159).
A comunicação intercultural é um dos maiores propósitos da Antropologia. No meio
acadêmico, os resultados do trabalho etnográfico e da experiência em campo são
fundamentalmente transpostos em termos linguísticos, em uma tentativa de traduzir em
palavras essa esfera do sensível que é vivida em campo. Mas explicitar esse plano sensível por
meio do inteligível não é tarefa fácil; ainda que a mais sofisticada escrita possa ter um potencial
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922008, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 17

enorme de transmitir experiências, certos elementos e sentidos empíricos da realidade só


podem ser explicitados no plano das formas sensíveis (NOVAES, 2010).
A imagem é caracterizada justamente por esse aspecto híbrido de contemplar tanto a
esfera do sensível como a do inteligível. Na medida em que a fotografia ganha forma no papel
fotossensível ou em uma tela digital, alguns elementos são imediatamente apreendidos – cores,
objetos, formas, ambientes. Esses elementos compõem a dimensão visual que estamos
acostumados a lidar, baseada em conhecimentos socialmente estabelecidos e a uma
determinada forma de operar o pensamento que são o plano de fundo para significar aquilo
que está sendo visto. Ao mesmo tempo, a imagem fotográfica tem o potencial de despertar
sensações que não estão no campo das significações, semelhante ao punctum, aquilo que na
foto punge, estimula, lateja; aquilo que, afinal, não está na ordem do intelecto (BARTHES,
2015).
É nesse sentido que o trabalho fotográfico de Andujar entre os Yanomami transita
entre o campo da etnografia e da fotografia. Seu gradual envolvimento com os Yanomami
despertou nela um enorme interesse por seus costumes e crenças, culminando em uma forma
de envolvimento e de militância política pelos direitos indígenas que não só a manteve em
constante contato com as lideranças indígenas, mas que também permitiu-lhe explorar os
potenciais da linguagem fotográfica em uma tentativa de aproximar a experiência cosmológica
e xamânica em forma de imagens.
Pode-se dizer que a experiência de Claudia Andujar entre os Yanomami afetou o modo
como ela produziu suas imagens. As penugens brancas, os rastros de luz das malocas e da
floresta, as cintilâncias, os movimentos, os borrões, a luminescência são elementos que
constituem o diferencial estético e a marca registrada de suas fotografias, presentes
principalmente nas séries "O Invisível"11 e "Sonhos Yanomami".

11
A série "O Invisível" compõem o livro "Yanomami: a casa, a floresta, o invisível", de Claudia Andujar, publicado
em 1998.
18 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.

Figura 7: Da série "O Invisível" (1971-1977), foto de Claudia Andujar.


Fonte: Galeria Vermelho.

Na série "O invisível", Andujar utilizava filmes de alta sensibilidade e velocidade de


1/8s e 1/15s, com abertura de f3.5 no diafragma para conseguir captar as imagens na floresta,
ambiente de baixa incidência de luz devido às copas das árvores que filtram a luminosidade.
Passava vaselina nas bordas da lente, criando um desfoque radial e, principalmente durante os
rituais, utilizava do flash para congelar os corpos dançantes, e da alta velocidade do obturador
para captar ou dar movimento aos feixes de luz filtrados pelas folhagens da floresta, pelas
tramas do telhado das malocas ou provenientes de lamparinas por ela espalhadas:

A parte da mostra chamada "O invisível", e que trata do xamanismo, reflete o mundo
dos espíritos, que é muito importante para os yanomami. O que me interessava era
recriar esse sentido deles de se dar com o mundo sobrenatural. (...) Eu tentei criar
uma linguagem que correspondesse ao que eu sentia de como eram os yanomami
(ANDUJAR apud CYPRIANO, 2001, p. 1).

Anos depois, Andujar produziu a série “Sonhos Yanomami” para integrar a exposição
Yanomami, l'esprit de la forêt, na Fundação Cartier, em Paris, entre maio e outubro de 2003.
As imagens que compõem a série são sobreposições coloridas de fotografias produzidas
durante a convivência de Andujar com os Yanomami no início da década de 1970, cujo
processo de intervenção técnica consiste em refazer em preto e branco as cópias das fotografias
coloridas, retrabalhar essas fotos em novo colorido com projeção de luz e, por fim, refotografá-
las (HERKENHOFF, 2005).

O trabalho cresceu conforme eu conheci melhor os Yanomami e a espiritualidade


deles. É isso que eu posso dizer. Por exemplo, a série de superposições nasceram por
causa disso. Não é que eu vi outras superposições no trabalho de outras pessoas. As
superposições que eu chamo de sonhos, sonhos, são os sonhos dos xamãs. Eles
chamam isso de sonhos, de viagens. Eles dão esse nome para isso, não as minhas
fotos, o estado de ser deles. Isso acontece quando eles entram em contato com os
espíritos. [...] Eu sempre faço questão de colocar a questão da luminosidade, porque
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faz parte das crenças deles [...] Eu diria, eu uso a tecnologia nossa, ocidental, isso
sim. Mas tentando manipular as coisas com o que eu conheço da tecnologia ocidental.
Mas entrando no universo deles. [...] Mas, o que me dá uma certa satisfação é que
quando eu mostro esse trabalho aos Yanomami eles percebem isso. Eles fazem o que
faziam com os desenhos, ele vê essa imagem com toda essa invasão de luz e ele
começa a contar a sua história (ANDUJAR apud MAUAD, 2012, p. 139).

O sonho e a luz são elementos constantes no percurso narrativo de Davi Kopenawa


para descrever e ilustrar experiências relativas à cosmologia e ao xamanismo yanomami. Em
primeiro lugar, o sonho é considerado um estado de ausência temporária da imagem (utupë)
do sonhador, que é levada pelos xapiri. No sonho, há uma mudança de perspectiva na e pela
qual o xamã “torna-se outro” e, assim, adquire conhecimento; conduzido pelas palavras dos
xapiri, por eventos míticos e por todos elementos que compõem a floresta, o fenômeno permite
aos xamãs estabelecer a manutenção da vida cotidiana, como curar doenças e impedir que os
seres maléficos façam mal (CASTRO, 2012). Em segundo lugar, a luminosidade, a cintilância,
a resplandecência são elementos na narrativa de Kopenawa que indicam o devir-xapiri, a
presença desses seres múltiplos e luminosos, demarcando a qualidade visual primeira da
experiência xamânica.

Figura 8: Êxtase, da série “Sonhos Yanomami”, 1974, foto de Claudia Andujar.


Fonte: Galeria Vermelho.

É inegável que as fotografias de Andujar e a narrativa de Kopenawa em A queda do


céu: palavras de um xamã yanomami sobre as experiências xamânicas têm uma relação clara.
Menos uma tentativa de representar a experiência invisível e tridimensional do regime de
realidade dos xamãs e dos xapiri, as fotografias de Andujar – com as muitas intervenções
técnicas que trazem uma enorme complexidade visual – imprimem a experiência do efeito da
yãkoana em um plano bidimensional, que depende da visão para ser contemplado. As
20 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.

fotografias da série “O invisível” e “Sonhos Yanomami” contêm rastros que remetem a


elementos dos sonhos xamânicos narrados por Kopenawa, como os feixes de luz – os xapiri
descem por caminhos resplandecentes de luz que se ramificam por todos os lados – e os corpos
estirados – de súbito, os xapiri provocam uma série de rasgos em seu corpo e levam seu
princípio vital consigo para as costas do céu. Além disso, as superposições de imagens sugerem
uma forma de compreensão dos sonhos xamânicos, pelos quais a mudança de perspectiva se
dá quando a imagem do xamã é carregada pelos xapiri por toda extensão da floresta, até a
abóbada do céu.

Figura 9: Floresta Amazônica, da série “Sonhos Yanomami”, 1971, foto de Claudia Andujar.
Fonte: Galeria Vermelho.

Impregnadas de agências de um regime de realidade não visível aos olhos não


investidos pelo alucinógeno, as imagens de Andujar são atravessadas pelo xamanismo. Ainda
que a incidência de luz, o movimento e o desfoque presentes em muitas das fotografias não
sejam necessariamente registros dos rituais que envolvem a iniciação e os sonhos xamânicos,
constituem características visuais em constante analogia com a relação dos Yanomami com os
mundos visível e invisível. A estética das fotografias de Andujar é, assim, menos uma
representação dessa cosmologia do que uma tentativa de torná-la presente por meio de rastros,
possíveis traduções visuais análogas à experiência xamânica, revelando uma estética
continuamente por vir: “trata-se menos de ver o invisível do que de ver por meio do invisível”
(BRASIL, 2016, p. 144).
A potência e relevância do trabalho de Andujar está nesse constante deslocamento do
regime de realidade fotográfica e do regime de realidade xamânica. Potente, porque se utiliza
de dispositivos técnicos para viabilizar uma possível tradução da experiência visível somente
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922008, jul./dez. 2020 DOSSIÊ| 21

sob o efeito da yãkoana; relevante, porque impele um entendimento de um mundo outro, que
opera por uma lógica outra e cujas soluções para a sobrevivência e resolução de conflitos são
outras. Na medida em que os conteúdos das fotografias de Claudia Andujar transbordam os
limites do retângulo fotográfico, o movimento entre visível e invisível, humano e não humano
rompe com a tradição fotográfica ocidental que utiliza as imagens de povos indígenas para
construir e sustentar um discurso que não lhes diz respeito.

Figuras 10 e 11: Da série "O Invisível", 1971-1977, fotos de Claudia Andujar.


Fonte: Galeria Vermelho.

Não à toa, a beleza das fotografias de Andujar está menos associada a um tipo estético
do que a um jogo de luzes e movimentos análogos à beleza dos xapiri e aos sonhos xamânicos.
Em um contexto no qual a ontologia que envolve o conceito de imagem de um povo é tão
diferente da noção que permeia a história da fotografia, as imagens de Andujar introduzem
um novo paradigma na fotografia de povos indígenas ao conciliar a beleza estética de suas
imagens a uma tentativa de tradução da experiência xamânica, absolutamente central para a
existência do povo yanomami. A longa relação de afeto e de engajamento com os Yanomami
permitiu a ela conhecer seus costumes e crenças para mostrar por meio de uma linguagem
ocidental – a fotografia – o eixo central que envolve a vida desse povo, possibilitando um
vislumbre de ontologias distantes do entendimento hegemônico ocidental e de uma forma
outra de pensar o mundo.
22 | Imagens de povos indígenas: das fotografias do... KONTIC, L. Z.

Considerações finais

A produção iconográfica de povos indígenas ao longo do século XIX, incentivada e


financiada pelo IHGB, colocou a figura do indígena como elemento central constitutivo da
nacionalidade brasileira. Tanto a pintura como a fotografia contribuíram para inflamar um
discurso do indígena genérico, exótico e selvagem, desconsiderando suas particularidades
étnicas e culturais e ocultando a violência do contato com os brancos. No século XX, a
produção imagética da Comissão Rondon e as fotorreportagens da revista O Cruzeiro
incorporaram o discurso sobre a importância de agregar o indígena a um projeto de
nacionalidade, pautado na modernização e progresso da nação.
Alguns anos depois, as fotografias de Claudia Andujar não só introduzem um novo
paradigma na fotografia de povos indígenas, mas instigam um questionamento sobre como
esses povos eram retratados e como essas imagens podiam muitas vezes estar alinhadas a um
discurso político, social e cultural contrários às suas vontades e reivindicações. Resultado de
uma longa relação de afeto e de engajamento, Andujar concilia a beleza estética de suas
imagens a uma tentativa de tradução da experiência xamânica, absolutamente central para a
manutenção do povo yanomami. Suas fotografias não só subvertem o repertório estético e
discursivo que constituíam as imagens de povos indígenas, mas servem como instrumento
político de reivindicação pelos direitos dos Yanomami até hoje.

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INDIGENOUS PEOPLES IMAGES: FROM THE 19TH CENTURY'S PHOTOGRAPHS TO CLAUDIA


ANDUJAR'S PHOTOGRAPHS

Abstract: This article aims to analyze the way Cláudia Andujar's photos break with a certain image and
discursive repertoire consolidated over the 19th and 20th centuries about the representation of indigenous
peoples. The construction of a discourse on indigenous peoples in the 19th century is analyzed through the
photographic production of missionaries who participated in expeditions organized to explore Brazilian
territory. Regarding the photographic production of the 20th century, the investigation starts from the images
produced by the Rondon Commission and by the photo reports from the magazine O Cruzeiro. In 1970, Claudia
Andujar starts to introduce an innovative way of producing these photographs: result of a long relationship of
affection and engagement with the Yanomami, her work combines the aesthetics of images with an attempt to
translate the shamanic experience, central to the existence of the Yanomami people.

Keywords: Photography. Claudia Andujar. Yanomami. Indigenous peoples.


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IMAGES DES PEUPLES INDIGÈNES: DES PHOTOGRAPHIES DU XIXE SIÈCLE À LA PHOTOGRAPHIE DE


CLAUDIA ANDUJAR

Resumé: Cet article se propose d'analyser comment les photographies de Cláudia Andujar se démarquent d'un
certain répertoire iconographique et discursif consolidé tout au long des XIXe et XXe siècles sur la
représentation des peuples indigènes. La construction d'un discours sur les peuples indigènes au XIXe siècle est
analysée à travers la production photographique des missionnaires qui ont participé aux expéditions destinées à
prospecter le territoire brésilien. En ce qui concerne la production photographique du XXe siècle, l'enquête
commence par les images produites par la Comissão Rondon et les photoreportages du magazine O Cruzeiro.
Depuis 1970, Claudia Andujar a introduit une manière innovante de produire ces photographies: résultat d'une
longue relation d'affection et d'engagement avec les Yanomami, son travail concilie l'esthétique des images à une
tentative de traduire l'expérience chamanique, centrale à l'existence du peuple Yanomami.

Mots-clés: Photographie. Claudia Andujar. Yanomami. Peuples indigènes.


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Referências

ALBERT, Bruce. O ouro canibal e a queda do céu: uma crítica xamânica da economia política
da natureza. Série Antropologia, n. 174. Brasília, 1995.

ANDUJAR, Claudia. Yanomami: A Casa, a Floresta, o Invisível. São Paulo: DBA, 1998.

______. Entrevista com Claudia Andujar. In: No lugar do outro. Organização e textos:
Thyago Nogueira. São Paulo: IMS, 2015.

BARTHES, Roland. A câmara clara. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, [1980] 2015.

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SOBRE A AUTORA

Laila Zilber Kontic é graduanda em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo (USP).
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Recebido em 26/05/2020

Aceito em 18/06/2020
Entrevista com Joaquim Marçal Ferreira de
Andrade, pesquisador da Biblioteca Nacional
(BN) e curador do portal Brasiliana Fotográfica

Rogério Pereira de Arruda


Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
Diamantina - Minas Gerais - Brasil
r.p.arruda@uol.com.br

Joaquim Marçal Ferreira de Andrade


Foto de Larissa Santos

Introdução

Como parte do dossiê “A fotografia em instituições de memória: experiências no


Brasil e em Portugal” entrevistamos Joaquim Marçal Ferreira de Andrade, para trazer
aos leitores e leitoras algumas reflexões sobre uma instituição brasileira que é referência
no trato com os acervos fotográficos: a Biblioteca Nacional (RJ). Ela tem sua origem
vinculada à chegada da Corte portuguesa no Brasil, que trouxe entre 1808 e 1810 o
acervo inicial da instituição, que atualmente conta com cerca de 9 milhões de itens e tem
como missão a coleta, registro, salvaguarda e viabilização do acesso à produção
intelectual brasileira, de modo a assegurar o intercâmbio com instituições nacionais e
internacionais e a preservação da memória bibliográfica e documental do país. Ela se
constitui como uma referência para pesquisadores de diversas áreas, principalmente de
humanidades, ciências e artes interessados nas mais diversas temáticas. Hoje, a BN tem
o grande desafio de continuar a exercer suas atividades com excelência em meio ao
2 | Joaquim Marçal Ferreira de Andrade ARRUDA, R. P.

desprestígio da área cultural, intensificado desde 2019, com a extinção do Ministério da


Cultura e a falta de uma política cultural baseada em princípios democráticos.
Para falar da BN e de sua trajetória na instituição, tivemos a honra de entrevistar
o pesquisador e professor Joaquim Marçal Ferreira de Andrade. Ele é bacharel em
Desenho Industrial (ESDI/UERJ), mestre em Design (PUC-Rio) e doutor em História
Social (IFCS/UFRJ). Joaquim Marçal é funcionário da BN há trinta e nove anos,
instituição na qual ingressou em 1981, como técnico em Programação Visual. De lá para
cá, ele transitou por alguns outros cargos, entre eles chefiou a Seção de Promoções
Culturais, a Divisão de Fotografia e a Divisão de Iconografia. Ele possui uma trajetória
de trabalho muito rica na BN que inclui sua participação no projeto de digitalização do
acervo da instituição que resultou na criação da Biblioteca Nacional Digital (BND) e na
coordenação do projeto de resgate das fotografias da Coleção D. Thereza Christina
Maria, primeiro conjunto documental brasileiro a integrar o Programa Memória do
Mundo da UNESCO. Além de seu trabalho na BN, Joaquim Marçal tem atuação como
curador de exposições, professor e escritor, todas as atividades no campo da fotografia e
das artes gráficas. Atualmente, ele é curador do portal Brasiliana Fotográfica, um dos
principais projetos de fotografia desenvolvido pela BN com o Instituto Moreira Salles, e
que conta com a parceria de instituições congêneres do país e do exterior.
Na sua entrevista Joaquim Marçal detalha alguns aspectos do trabalho realizado
pela BN junto aos acervos fotográficos, nos conta alguns desafios enfrentados pela
instituição e faz uma síntese dos seus trinta e nove anos de dedicação à fotografia.

Entrevista

Rogério Pereira de Arruda: Qual o balanço, mesmo que breve, pode ser feito sobre o trabalho
realizado pela BN, em relação aos arquivos fotográficos nos últimos anos?

Joaquim Marçal Ferreira de Andrade: Desde quando a consciência sobre a validade e a


importância do uso de documentos fotográficos na escrita da história começou a disseminar-se
pelo mundo, entre as décadas de 1970 e 1980, a Biblioteca Nacional foi instada a envolver-se
nesse processo. Eram novas demandas de pesquisa que surgiam, de pesquisadores brasileiros e
estrangeiros. A exposição Pioneers of Photography in Brazil, realizada no The Center of Inter-
American Relations em 1976, curada por Weston Naef e Gilberto Ferrez, serve de exemplo; a
nossa BN emprestou acervo para aquela mostra realizada em Nova Iorque. Já estava claro,
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922009, jul./dez. 2020 ENTREVISTA| 3

portanto, que a coleção de fotografias do imperador d. Pedro II ali depositada – e que seguia, em
sua maior parte, sem qualquer tratamento de identificação e catalogação e, portanto, inacessível
aos pesquisadores – precisava receber uma atenção especial.
Nesse sentido e inspirados pelo Programa Nacional de Preservação e Pesquisa da
Fotografia, instituído no recém-criado Núcleo de Fotografia da Funarte e capitaneado por
Solange Zúñiga, iniciamos estudos, na primeira metade dos anos 1980, visando resgatar e
disponibilizar aquele tesouro fotográfico. Trata-se, sem dúvida, da mais abrangente coleção de
fotografias reunidas por qualquer governante do século XIX, cobrindo os principais campos do
conhecimento que a fotografia foi capaz de adentrar, naqueles tempos.
O projeto interdisciplinar e interinstitucional foi desenvolvido ao longo de alguns anos,
envolvendo intenso debate, pesquisa e viagens de estudo; sua realização iniciou-se ao final
daquela década. De lá até aqui, passaram-se mais de três décadas de atividades ininterruptas,
envolvendo todos os setores da instituição. Tornamo-nos uma referência inescapável sobre o
tema em nosso continente e cultivamos, sempre, as relações com os principais centros
disseminadores de conhecimento da matéria. Ademais, seguimos ampliando o acervo através da
aquisição, sempre por doação, de importantes conjuntos autorais. Hoje, já estamos tratando da
entrada do primeiro acervo nato-digital.

RPA: Em linhas gerais, quais são os parâmetros institucionais que balizam o trabalho de gestão
do acervo fotográfico da BN, no que tange à guarda, conservação e preservação das imagens?

JMFA: A Biblioteca Nacional desenvolveu e implantou, ao longo das últimas décadas, uma
extensa política de conservação preventiva, de preservação e de guarda de seu acervo fotográfico.
Isto inclui desde a identificação, catalogação e indexação automatizadas (que possibilitam a
melhor gestão das coleções além de otimizar o seu uso); a reprodução digital (que minimiza o
manuseio dos originais, além de ser medida essencial de preservação de memória); o
acondicionamento individual dos itens, sempre guardados com um ou dois níveis de proteção
além do mobiliário específico; as regras para o acesso e o manuseio; o monitoramento permanente
do clima e as medidas de prevenção de desastres. Sobre todos estes temas, há farto material
disponível no portal da Fundação Biblioteca Nacional, em https://www.bn.gov.br.

RPA: Nos últimos anos, a digitalização dos acervos históricos em arquivos e instituições
congêneres tem sido uma forma de preservação dos documentos originais e uma maneira de
viabilizar a ampliação do acesso. Tendo isso em vista, o senhor poderia nos explicar como esse
trabalho tem sido realizado na BN e quais têm sido os maiores desafios enfrentados pela
instituição?
4 | Joaquim Marçal Ferreira de Andrade ARRUDA, R. P.

JMFA: Desde a época da idealização do projeto de preservação do acervo fotográfico da BN, a


questão da reprodução dos documentos fotográficos (dos quais não dispomos dos negativos
originais) visando a geração de matrizes de segunda geração (analógicas, inicialmente) para
atender à demanda dos usuários, mas também como medida de preservação, foi um assunto que
ocupou muito de nossas preocupações. Durante mais quinze anos fotografamos em filme. Neste
período, diversas tecnologias alternativas foram surgindo e sendo adotadas por instituições ao
redor do planeta; algumas se mostraram ineficazes em pouco tempo enquanto outras foram mais
duradouras. Realizamos projetos experimentais, sempre patrocinados, com os acervos
fotográficos e cartográficos. Conscientes de nossas dificuldades e limitações, no entanto,
soubemos esperar até que as tecnologias digitais se estabilizassem minimamente, antes de
investirmos em equipamentos para adentrar com firmeza a era digital, no campo das imagens.
Fizemos viagens de estudo e um estágio no exterior, patrocinados pela Fundação
Mellon, antes de idealizarmos o projeto de nosso primeiro laboratório digital, patrocinado pela
Finep e inaugurado em 2001. A partir daquele momento, a instituição passou a investir na
capacitação de suas equipes e a implantar um trabalho mais consistente de digitalização que
abrangesse todos os gêneros de acervo – começando por um projeto para digitalização de mapas
de grande formato. Vale lembrar que ao digitalizar, há de se gerar os metadados, sem os quais o
trabalho não faz qualquer sentido. Ao mesmo tempo, a BN implantou um intenso trabalho de
reconversão de suporte – para digitalizar seus milhares de microfilmes.
A Biblioteca Nacional Digital do Brasil foi lançada em 2006 e desde então, seguimos
ampliando o nosso escopo e desenvolvendo projetos inovadores. Já a World Digital
Library/Biblioteca Digital Mundial foi lançada em 2009, tendo a nossa BN entre as instituições
fundadoras. Até hoje, mantemos assento no Comitê Executivo da WDL.
Quanto aos desafios, todo o trabalho realizado ao longo destes últimos quatorze anos
vem gerando uma massa documental digital considerável. Isto implica em investimentos
constantes na infraestrutura necessária (de hardware e software) para armazenar e gerenciar tal
conteúdo. Há de se investir mais e mais nas atividades concernentes à preservação digital, num
contexto de constante evolução tecnológica. A participação nas redes de preservação digital (p.
ex. Rede Cariniana e Rede Sudeste) torna-se primordial. Por último, vale mencionar que a BN
vem se preparando com vistas a receber os arquivos nato-digitais em larga escala, através do
depósito legal e de doações. Considera-se, ainda, a possibilidade de virmos a cuidar, no futuro,
da memória das páginas web.

RPA: Um assunto que pode ser destacado da pergunta anterior, que aborda a digitalização de
acervos, é o projeto “Brasiliana Fotográfica”, do qual o senhor é curador. O senhor poderia nos
apresentar como o projeto funciona e como ele tem contribuído para os avanços das pesquisas
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922009, jul./dez. 2020 ENTREVISTA| 5

acadêmico-científicas no país? E, ainda, em que medida ele colabora na formação de um público


mais amplo que tem interesse por temas histórico-culturais?

JMFA: O portal Brasiliana Fotográfica é, como afirmamos na sua apresentação, um espaço para
dar visibilidade, fomentar o debate e a reflexão sobre os acervos deste gênero documental,
abordando-os enquanto fonte primária, mas também enquanto patrimônio digital a ser
preservado. Durante uma consulta aos acervos, o usuário pode salvar o resultado de sua pesquisa
no próprio portal, retomando-a em outro momento. Pode, ainda, compartilhá-lo em suas redes
sociais.
Vale enfatizar que esse portal, além de conter um blog, é também um repositório voltado
à preservação digital, desenvolvido em DSpace – um software livre, largamente utilizado por
entidades públicas e privadas em todo o mundo. Para interoperar com outros sistemas de
bibliotecas digitais, foi adotado o protocolo da Iniciativa dos Arquivos Abertos (Open Archives
Initiative Protocol for Metadata Harvesting/OAI-PMH), um mecanismo para transferência de
dados entre repositórios digitais.
A iniciativa surgiu em 2015, a partir da união de esforços da Fundação Biblioteca
Nacional e do Instituto Moreira Salles, responsáveis pela curadoria e gestão. Na sequência,
outras instituições do Brasil e do exterior, públicas e privadas, detentoras de acervos originais
de documentos fotográficos referentes ao Brasil, foram aderindo ao portal, num processo que
segue até hoje. No presente momento somos onze instituições e há outras em processo de adesão.
As instituições participantes contribuem com arquivos digitais e respectivos metadados, tudo em
concordância com os padrões adotados internacionalmente. Acreditamos que assim, estamos
contribuindo para maior a conscientização e avanço desse campo.
Já são mais de seis mil fotografias de onze instituições, no portal. Ao longo desses cinco
anos, foram mais de trinta e cinco milhões de visualizações; hoje, a média mensal gira em torno
de um milhão e trezentas mil. Já tivemos publicações no blog – onde são postadas semanalmente
novas publicações relacionadas ao seu conteúdo, escritas pelos membros das instituições
participantes ou por convidados externos – com mais de três milhões de visualizações. Muitas
dessas publicações trazem, nos textos, links para páginas da Hemeroteca Digital Brasileira –
hoje, o site mais acessado da Biblioteca Nacional Digital, ficando o portal Brasiliana Fotográfica
em segundo lugar. Sem dúvida, há um público crescente e de todas as idades, que vamos
cativando através de publicações variadas e que se prestam aos mais variados usos.

RPA: O senhor esteve à frente de trabalhos de grande relevância para o patrimônio fotográfico
do país, entre eles o projeto junto ao acervo fotográfico de D. Pedro II, que compõe a Coleção D.
Thereza Christina Maria. O senhor poderia nos explicar no que consistiu esse trabalho? E
acredita que no Brasil há acervos fotográficos de relevância ainda não revelados?
6 | Joaquim Marçal Ferreira de Andrade ARRUDA, R. P.

JMFA: As fotografias de nosso último imperador integram a Coleção D. Thereza Christina


Maria, nome dado por ele à sua biblioteca particular composta também por livros e periódicos,
estampas e impressos efêmeros, mapas e atlas, partituras e libretos, etc. Foi a maior doação da
história da Biblioteca Nacional. Mas vale lembrar que uma parcela desse acervo foi encaminhada
ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do qual d. Pedro II era patrono.
A iniciativa de resgate das fotografias depositadas na BN há mais de um século (em 1892)
foi viabilizada através do Projeto de Preservação e Conservação do Acervo Fotográfico da
Biblioteca Nacional/Profoto, patrocinado pela Fundação Banco do Brasil – à época, o maior apoio
financeiro jamais dado a um projeto fotográfico no país.
O projeto previa o desenvolvimento de atividades de pesquisa histórica para a
identificação das imagens, catalogação e indexação automatizadas, higienização e conservação,
acondicionamento e guarda, além da reprodução fotográfica de todos os originais (cerca de
35.000) para geração dos negativos de segunda geração, pois a BN nunca teve qualquer negativo
original. Foram preparados diversos editais para a contratação de todos os profissionais externos
necessários à consecução das atividades e muito investiu-se na capacitação daqueles profissionais.
O Profoto foi uma escola; não seria exagero dizê-lo! Todas as decisões tomadas pelo corpo
técnico da instituição eram registradas em ata e tudo o que foi feito ficou consignado em mais de
uma centena de processos administrativos.
Uma iniciativa interinstitucional, capitaneada pela Funarte, gerou o Manual para
Catalogação de Documentos Fotográficos coeditado com a BN. Internamente, produzimos e
publicamos manuais para indexação e para acondicionamento e guarda. Ademais, nosso sistema
para catalogação e indexação automatizadas foi desenvolvido a partir de consultoria contratada,
em Micro CDS-Isis – um programa gratuito desenvolvido pela Unesco e distribuído no Brasil
pelo IBICT – e guardava total compatibilidade com o formato de catalogação automatizada
(MARC/CALCO) então utilizado pela BN para os livros.
Tudo isso era novo e desafiador. Graças a uma estrutura técnica e administrativa
exemplar, implantada dentro da Biblioteca Nacional e dotada de autonomia, perpassando a
hierarquia sem qualquer conflito, sempre à base de muito diálogo e integração, esse projeto foi
ativo durante duas décadas e, finalmente, suas atividades foram integralmente absorvidas pelas
rotinas da instituição, transformando-o em uma espécie de programa, mesmo que não
oficializado como tal.
Entre outros resultados daquele projeto, além dos já mencionados, está a exposição
itinerante A coleção do imperador – fotografia brasileira e estrangeira no século XIX, montada
no Rio de Janeiro, São Paulo, Buenos Aires, Porto e Lisboa, entre 1997 e 2000. Já em 2003,
realizou-se em São Paulo a exposição De volta à luz – fotografias nunca vistas da coleção do
imperador.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922009, jul./dez. 2020 ENTREVISTA| 7

Com relação à pergunta sobre a possibilidade de ainda haver, no Brasil, acervos


fotográficos de relevância ainda não revelados, eu estou certo que sim. Do Caburaí ao Chuí há,
sim, muita coisa perdida, mas também muita coisa a ser revelada. Da primeira metade do século
XX, então, há incontáveis tesouros desconhecidos ou esquecidos por aí. Eu mesmo, há três anos,
envolvi-me numa pesquisa junto com a Professora Doutora Helouise Costa, Livre Docente do
MAC-USP, que resultou na exposição Kurt Klagsbrunn: faces da cultura, retratos de um tempo,
realizada em São Paulo. O acervo do Kurt está guardado com um herdeiro em Araras, distrito
de Petrópolis RJ e serve de exemplo. Dele, já se havia feito um livro e em nosso projeto buscamos
explorar um outro aspecto muito específico, relacionado ao circuito social no campo das artes
visuais, nas décadas de 1940-50, entre o Rio e São Paulo. Há muito, demais mesmo por se revelar!

RPA: Nos últimos anos temos visto discursos negacionistas e propostas de revisionismo
histórico, negando, por exemplo, a existência de ditadura civil-militar de 1964 e, até mesmo, os
aspectos nefastos da escravidão no Brasil. Como o senhor vê o lugar das instituições de memória
frente a estas perspectivas de negação do conhecimento cientificamente referenciado? Esse
processo fragiliza as instituições públicas de memória?

JMFA: As instituições de memória podem, e devem desempenhar um papel capital nestes


momentos palpitantes. Afinal, são elas as guardiãs das fontes para a pesquisa e a escrita da
história. Ali estão guardadas as chaves para abrirmos as portas que nos levarão para fora destes
períodos obscuros que, de tempos em tempos, teimam em ressurgir.
No momento em que respondo a este questionário, assisto – entre outros episódios
preocupantes – ao que se passa com a Cinemateca Brasileira e com o IPHAN, que vêm tendo
algumas de suas funções questionadas e não têm recebido das autoridades a merecida e necessária
atenção. Isto, para mencionar apenas duas das instituições de memória já profundamente
abaladas. Mas não podemos esmorecer nem perder as esperanças. E nestas horas, mais que
nunca, a união dos bem intencionados faz a força necessária – pois resistir é preciso.

RPA: O senhor é um servidor com longa trajetória de trabalho na BN, que se iniciou no começo
dos anos 80, já são quase quarenta anos de dedicação. De certa forma, poderíamos dizer que sua
trajetória profissional revela não somente os desafios pessoais, mas também os desafios, ações e
projetos da própria BN. Como o senhor avalia os caminhos trilhados?

JMFA: São trinta e nove anos de BN, quarenta no Serviço Público Federal – onde iniciei minhas
atividades como fotógrafo, atuando junto à Secretaria de Assuntos Culturais do MEC bem antes
da criação, em 1985, do agora já extinto Ministério da Cultura. Desde quando cheguei à BN em
1981 (então integrante da administração direta e subordinada ao MEC) defrontei-me com uma
8 | Joaquim Marçal Ferreira de Andrade ARRUDA, R. P.

série de desafios, não apenas internamente, mas também no plano nacional e, por que não o dizer,
internacional. Participei/participamos dos muitos momentos importantes havidos ao longo
deste percurso, quando as questões de patrimônio e de memória foram intensamente pensadas,
discutidas e importantes avanços foram conquistados. A própria Biblioteca Nacional ganhou
relativa autonomia e viveu momentos muito positivos. Valeu a pena cada dia dedicado à nossa
instituição, com certeza. Mas apesar das vitórias, muito deixou de ser conquistado, infelizmente.

Figura 1: Sala Aloísio Magalhães. Divisão de Iconografia, Biblioteca Nacional (RJ).


Foto de Joaquim Marçal.

Preocupa-me, hoje, o fato de não haver uma rotina de concursos públicos para preencher
as muitas vagas abertas pela aposentadoria dos colegas da minha geração que estão saindo. A
crescente terceirização dos serviços é feita de maneira que eu considero danosa aos interesses da
instituição, pois a presença de servidores de carreira, que se disponham a dedicar suas vidas
profissionais à instituição, é ponto essencial para o sucesso da missão. Trata-se de uma instituição
de estado e não de governo, com objetivos muito claros e que não podem sofrer solução de
continuidade. As décadas de experiência e de conhecimento acumulado é que asseguram a
preservação de uma certa cultura sem a qual, a instituição pode sucumbir. Ademais, a
terceirização é uma prática injusta uma vez que servidores e terceirizados desempenham funções
iguais embora trabalhando sob condições contratuais muito diferenciadas.
Ademais, já passa da hora de investirmos, a sério, no projeto de nova edificação – para
uma Biblioteca Nacional do século 21. Em pleno 2020, e apesar de dispormos de um prédio anexo,
já quase lotado, seguimos sediados em uma edificação inaugurada há cento e dez anos, no início
do século 20. São constantes os investimentos de nossos dirigentes na manutenção predial, que
vem sendo bem realizada, apesar das restrições orçamentárias e financeiras. Mas não há mais o
que esperar; não podemos seguir adiando este projeto. Afinal, a Biblioteca Nacional é a
representação maior da memória da cultura brasileira, com suas portas abertas para o mundo.
Rev. Hist. UEG - Morrinhos, v.9, n.2, e-922009, jul./dez. 2020 ENTREVISTA| 9

_____________________________________________________________________________________

SOBRE O AUTOR

Rogério Pereira de Arruda é doutor em História pela Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG); professor Adjunto III na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri
- Campus JK-Diamantina.
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Recebido em 26/05/2020

Aceito em 13/07/2020
Entrevista com Alexandra Encarnação,
coordenadora do Arquivo de Documentação
Fotográfica (ADF), Lisboa - Portugal

Ana Gandum
Universidade Nova de Lisboa
Lisboa – Portugal
anagandum@gmail.com

Introdução

Em conversa com Alexandra Encarnação, tivemos a oportunidade de melhor


conhecer a ampla esfera de ação e intervenção do Arquivo de Documentação Fotográfica
(ADF). Do registo do patrimônio à guarda de espólios históricos fotográficos próprios,
e passando ainda pela conservação de coleções com diferentes proveniências, o ADF
afirma-se como uma instituição essencial para a relação entre memória e fotografia em
Portugal.
Alexandra Encarnação é licenciada em História pela Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Curso técnico de Conservação e
Restauro de Fotografia e Fotografia Documental de Património. Foi chefe de Divisão
do Arquivo de Documentação Fotográfica, é coordenadora do ADF/ Direcção Geral
do Património Cultural desde 2012.
Tem desenvolvido funções na área da Conservação em diversos projetos de
âmbito nacional, como os trabalhos de inventário e conservação do Estúdio de Carlos
Relvas na Golegã, Inatel etc. Foi a responsável na área da Conservação da Coleção de
Fotografia Contemporânea da Ellipse Foundation. Participou no grupo de trabalho
que realizou os trabalhos de Preservação e Conservação do Arquivo Fotográfico da
Fundação Mário Soares de 2000 a 2010. Tem desenvolvido uma atividade regular
enquanto consultora para projetos de investigação ou apoio técnico, na área da
Conservação e Restauro de Fotografia, a diversas instituições públicas e particulares.
2 | Alexandra Encarnação GANDUM, A.

Entrevista

Figura 1: Coimbrões. Pinheiros mansos. Autor: Frederick William Flower, 1849 -


1859. Calotipo / Calotipo 20,9 x 16,6cm.
Fonte: Colecção Particular. Fotógrafo: Luísa Oliveira, 2015.

Ana Gandum: Em traços gerais pode descrever a atividade do Arquivo de Documentação


Fotográfica?

Alexandra Encarnação: O arquivo de Documentação Fotográfica tem duas áreas


fundamentais de intervenção:

- O Inventário Fotográfico Nacional no âmbito do qual realiza o levantamento


fotográfico do património móvel e imóvel dos acervos dos Museus, Palácios e outros
imoveis à guarda da Direção Geral do Património Cultural (DGPC). Assegura,
assim, toda a produção de imagens desde a captura, pós-produção e inventário,
segundo parâmetros técnicos específicos no registo de obras de arte, para o referido
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Inventário, mas também para exposições, catálogos, plataformas online e outras


atividades dos próprios Museus. Gere e disponibiliza os pedidos de imagens do
patrimônio nacional, pedidos efetuados por entidades particulares nacionais e
internacionais.
- Arquivo Histórico tem igualmente à sua guarda um vasto conjunto de espólios
históricos fotográficos, pertencentes à DGPC, com um arco cronológico da segunda
metade do século XIX ao século XX, que abrangem diversas temáticas, autores e
técnicas fotográficas. Fazem também parte desta coleção histórica, equipamentos
diversos, biblioteca e documentação. Para além disso, coordena e gere a preservação
de diversos espólios fotográficos pertencentes aos museus e palácios nacionais, assim
como presta apoio técnico nesta área ao conjunto das entidades tuteladas pela DGPC.

Nesta dupla vertente o ADF é responsável pela elaboração das normas e


regulamentos de cedência de imagens, procedimentos relativos ao processo de recolha,
processamento e digitalização das imagens do património nacional, e pela preservação,
inventário, tratamento e restauro dos acervos fotográficos de caracter histórico que
integram estes serviços ou outros que aí estejam depositados.
A equipa do ADF dispõe assim de técnicos especializados em fotografia documental
de obras de arte, inventário, e conservação e restauro de fotografia.

Figura 2: Lisboa. Museu do Carmo. Autor: Carlos Relvas [1838-1894] / Lisboa, 1870 - 1880.
Fonte: Arquivo de Documentação Fotográfica / DGPC. Papel montada em cartão / Albumina,
imagem:7,6 x 7,6 cm; montagem: 8,4 x 17,5 cm Fotógrafo: José Paulo Ruas, 2016.
4 | Alexandra Encarnação GANDUM, A.

AG: Que outros acervos fotográficos e fundos esta instituição tem em depósito?

AE: Ao longo da sua existência o ADF foi constituindo uma coleção histórica, fruto de
aquisições e doações diversas, mas tem igualmente à sua guarda documentação
fotográfica de Museus, Palácios e Institutos dependentes da DGPC. Sendo o único
departamento daquela Direção Geral com competências técnicas na área da conservação
e restauro de fotografia, faz parte da sua missão o apoio técnico regular neste âmbito.

AG: Quais as principais preocupações de conservação relacionadas a estas colecções e


acervos?

AE: Dada a diversidade de técnicas e de suportes, bem como a heterogénea natureza


documental dos seus acervos e dos depositados, a principal preocupação se relaciona a
questões de conservação e restauro. A estratégia principal é a avaliação prévia do estado
de conservação e da importância da natureza documental de todos os espólios, para
determinar depois ações de triagem, estabilização, acondicionamento, inventário e
eventualmente restauro. O ADF possui nas suas instalações três depósitos climatizados
com controle de temperatura e umidade apropriados para as espécies fotográficas, um
primeiro onde se encontram acondicionadas as coleções não tratadas, um segundo para
as tratadas e finalmente um terceiro onde estão acondicionadas as espécies a cores.
Assegurar um correto controle de temperatura e umidade nos depósitos, bem
como uma política de intervenção ao nível do restauro baseada na perecidade dos
mesmos, aliada à importância histórica dos acervos é uma das minhas principais
preocupações.
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Figura 3: Retrato de estúdio. Almada Negreiros. Autor: Vitoriano Braga, séc. 20. Vidro / Gelatina sal
de prata, 13x18cm.
Fonte: Arquivo de Documentação Fotográfica / DGPC. Fotógrafo: Luísa Oliveira, 2017.
6 | Alexandra Encarnação GANDUM, A.

AG: Há medidas específicas para a sua disponibilização ao público e investigadores, de


forma online, para melhor divulgação e conhecimento dos materiais em arquivo?

AE: Sim, a preocupação do ADF é disponibilizar o maior número possível de espécies


dos seus acervos aos utilizadores, quer sejam investigadores quer ao público em geral.
Focalizamos todo o nosso trabalho no inventário, tratamento e reprodução, com o
objetivo de disponibilizar esta documentação, tentando ao mesmo tempo fomentar o
estudo das nossas coleções através de parcerias com os museus e outras entidades
culturais e acadêmicas. A DGPC possui igualmente uma importante plataforma digital
de divulgação do seu património, o MatrizPix, que é inteiramente constituído com
imagens produzidas pelo ADF.

AG: Poderia destacar e descrever alguns exemplos de coleções em acervo?

AE: O ADF tem à sua guarda importantes acervos da história da fotografia portuguesa.
Destacaria no século XIX, os autores Carlos Relvas, João Francisco Camacho, Francisco
Rocchini, Emílio Biel, Alfredo Fillon, e ainda temáticas como a Fotografia Colonial,
Patrimonial, Retrato e Paisagem. No século XX destaque para os espólios de Silva
Nogueira, Manuel Alves San Payo, João Martins, Adelino Furtado.
Especial relevo para o espólio de um dos pioneiros da fotografia portuguesa,
apesar de origem escocesa, o calotipista Frederick William Flower. O ADF tem
igualmente sob a sua responsabilidade outros espólios, ao nível da sua preservação e
conservação, como é o caso das coleções e espólios de instituições como a Biblioteca da
Ajuda, Museu Nacional de Arte Antiga, Museu Nacional de Arte Contemporânea e
Instituto José de Figueiredo.
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SOBRE A AUTORA
Ana Gandum é doutora em Estudos Artísticos - Artes e Mediações pela Universidade Nova de
Lisboa (UNL); pesquisadora da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova
de Lisboa, Portugal.
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Recebido em 26/05/2020

Aceito em 13/07/2020
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Figura 4: Expedição África central. Acampamento de Serpa Pinto. Teodolito geodésico sobre tripé.
Autor desconhecido, 1877. Positivo digital a partir de negativo em suporte de vidro / Gelatina sal de
prata, 13 x 18 cm.
Fonte: Arquivo de Documentação Fotográfica / DGPC. Fotógrafo: Luísa Oliveira, 2018.

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