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situação de Little Mo não vem do temor a Deus.

Assim sendo, de que maneira, se é que há


alguma, o drama de Little Mo seria uma repetição da tragédia de Antígona?

Na versão de Sófocles, o Mensageiro entra no palco para resumir o significado do relato, mas
também para antever, e responder, nossa pergunta. É uma questão que, diferentemente das
palavras usadas a fim de torná-la compreensível para os espectadores, não envelheceu — e não
envelhece: "O que é a vida do homem? Algo que não e orientado/ para o bem ou para o mal,
nem moldado para louvar ou censurar. A oportunidade leva o homem às alturas, a oportunidade
o arremessa para baixo/ e ninguém pode prever o que será a partir daquilo que é."

Assim é o futuro, assustadoramente desconhecido e impenetrável (ou seja, como insistia Levinas,
o epítome, o modelo, a mais completa encarnação da "alteridade absoluta"), e não a dignidade de
um passado que, embora venerável, se oculta por trás do dilema com que se confrontou Little
Mo, assim como Antígona. "Ninguém pode prever o que será a partir daquilo que é" — mas
ninguém pode suportar com leveza essa impossibilidade. No mar da incerteza, procura-se a
salvação nas ilhotas da segurança. Será que, aquilo que ostenta um passado mais longo tem
maiores probabilidades de ingressar no futuro intacto e incólume do que algo,admitidamente feito
e desfeito pelo homem, ostensivamente "de ontem ou de hoje"? Não se sabe, mas é tentador
pensar que sim. De qualquer modo, há pouco a escolher nessa interminável, eternamente infinda
e frustrante busca pela certeza...

Tendo ouvido o veredicto adverso do júri, será que é ao Pai que Little Mo dirige o seu
arrependimento?

Na língua alemã, afinidade é o termo adjetivado, em oposição a parentesco.

"Afinidade" é parentesco qualificado — parentesco, mas... (Wahlverwandschaft, expressão que


se costuma traduzir, errada e enganosamente, por "afinidade eletiva", um pleonasmo gritante, já
que nenhuma afinidade pode ser não-eletiva; somente o parentesco é, pura e simplesmente, quer
se queira ou não, uma coisa dada...) A escolha é o fator qualificante: ela transforma o parentesco
em afinidade. Mas também trai a ambição desta última: sua intenção é ser como o parentesco,
tão incondicional, irrevogável e indissolúvel quanto ele (no final, a afinidade vai acabar se
entretecendo com a linhagem e se tornar indistinguível do restante da rede de parentesco; a
afinidade de uma geração se transforma no parentesco da geração seguinte). Mas nem mesmo
os casamentos, ao contrário da insistência sacerdotal, são feitos no céu, e o que foi unido por
seres humanos estes podem — e têm permissão para —desunir, e o farão se tiverem uma
oportunidade.

Seria altamente desejável que o parentesco fosse precedido da escolha, mas que a conseqüência
desta fosse exatamente aquilo que o parentesco já é: indiscutivelmente sólido, confiável,
duradouro, indissolúvel. Essa é a ambivalência endêmica a toda Wahlverwandschaft — sua
marca de nascença (praga e encantamento, bênção e maldição) indelével. O ato fundador da
escolha é ao mesmo tempo o poder de sedução da afinidade e a sua perdição. A memória da
escolha, seu pecado original, tende a lançar uma longa sombra e a obscurecer até mesmo o
convívio mais glorioso, chamado "afinidade": a escolha, diferentemente da sina do parentesco, é
uma via de mão dupla. Sempre se pode dar meia-volta, e a consciência de tal possibilidade torna
ainda mais desanimadora a tarefa de manter a direção.

A afinidade nasce da escolha, e nunca se corta esse cordão umbilical. A menos que a escolha
seja reafirmada diariamente e novas ações continuem a ser empreendidas para confirmá-la, a
afinidade vai definhando, murchando e se deteriorando até se desintegrar. A intenção de manter
a afinidade viva e saudável prevê uma luta diária e não promete sossego à vigilância. Para nós,
os habitantes deste líquido mundo moderno que detesta tudo o que é sólido e durável, tudo que não
se ajusta ao uso instantâneo nem permite que se ponha fim ao esforço, tal perspectiva pode ser
mais do que aquilo que estamos dispostos a exigir numa barganha. Estabelecer um vínculo de
afinidade proclama a intenção de tornar esse vínculo semelhante ao parentesco — mas também
a presteza em pagar o preço pelo avatar na moeda corrente da labuta diária e enfadonha.
Quando não há disposição (ou, dado o treinamento oferecido e recebido, solvência de ativos),
fica-se inclinado a pensar duas vezes antes de agir para concretizar a intenção.

Assim, viver juntos ("e vamos esperar para ver como isso funciona e aonde vai nos levar") ganha
o atrativo de que carecem os laços de afinidade. Suas intenções são modestas, não se prestam
juramentos, e as declarações, quando feitas, são destituídas de solenidade, sem fios que prendam
nem mãos atadas. Com muita freqüência, não há congregação diante da qual se deva apresentar
um testemunho nem um todo-poderoso para, lá do alto, consagrar a união. Você pede menos,
aceita menos, e assim a hipoteca a resgatar fica menor e o prazo de resgate, menos
desestimulante. O futuro parentesco, quer desejado ou temido, não lança a sua longa sombra
sobre o "viver juntos". "Viver juntos" é por causa de, não a fim de. Todas as opções mantêm-se
abertas, não se permite que sejam limitadas por atos passados.

As pontes são inúteis, a menos que cubram totalmente a distância entre as margens — mas no
"viver juntos" a outra margem está envolta numa neblina que nunca se dissipa, que ninguém
deseja dissolver nem tenta afastar. Não há como saber o que se vai ver quando (se) a névoa se
dispersar — nem se de fato existe alguma coisa encoberta. A outra margem está mesmo lá, ou
será ela apenas uma fata morgana, uma ilusão criada pela neblina, uma fantasia da imaginação
que nos faz ver formas bizarras nas nuvens que passam?

Viver juntos pode significar dividir o barco, a ração e o leito da cabine. Pode significar navegar
juntos e compartilhar as alegrias e agruras da viagem. Mas nada tem a ver com a passagem de
uma margem à outra, e portanto seu propósito não é fazer o papel das sólidas pontes (ausentes).
Pode-se manter um diário de aventuras passadas, mas nele há apenas uma ligeira referência ao
itinerário e ao porto de destino. É possível que a neblina que cobre a outra margem —
desconhecida, inexplorada — se suavize e desapareça, que venham a emergir os contornos de
um porto, que se tome a decisão de atracar, mas nada disso é, nem deve ser, anotado nos
registros de navegação.

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