Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 2

do alcance, mas isso não é válido para o infinito mundo exterior (a menos que transmutado, por

um passe de mágica, no colóquio em busca do consenso de Jürgen Habermas). As ferramentas


do convívio eu-Vós, ainda que perfeitamente dominadas e impecavelmente manejadas, se
mostrarão vulneráveis à variação, à disparidade e à discórdia que separam e mantêm em pé de
guerra as multidões daqueles que constituem um "Vós" potencial: dispostos a atirar em vez de
conversar. Exige-se o domínio de técnicas muito diferentes quando a discordância é um
desconforto transitório que logo será dissipado e quando a discórdia (assinalando a determinação
de defender seus direitos) está aí para ficar por tempo indeterminado. A esperança de consenso
atrai as pessoas e as estimula a se esforçarem mais. A descrença na unidade, alimentando a
gritante inadequação dos instrumentos à mão e sendo por esta alimentada, impele as pessoas a se
afastarem umas das outras e estimula que elas se esquivem.

A primeira conseqüência da crescente descrença na possibilidade de unidade é a divisão do


mapa do Lebenswelt, o mundo da vida, em dois continentes amplamente destituídos de
comunicação. Um deles é onde se busca a todo custo o consenso (embora na maioria das vezes,
talvez o tempo todo, com as habilidades adquiridas e aprendidas no abrigo da intimidade) — mas
onde sobretudo se presume que ele já esteja "ali", predeterminado pela identidade
compartilhada, esperando para ser acordado e reafirmar-se. E o outro é onde a esperança de
unidade espiritual, e assim também qualquer esforço para revelá-la ou construí-la a partir do
zero, foi abandonada a priori, de modo que o único intercâmbio vislumbrado é o de mísseis, não
palavras.

Atualmente, porém, essa dualidade de posturas (teorizada para uso privado como a divisão da
humanidade) parece estar gradualmente recuando para o segundo plano da vida cotidiana —
juntamente com as dimensões espaciais da proximidade e da distância humanas. Tal como nas
vastas extensões da terra de fronteira global, também no nível popular, no domínio da política de
vida, o palco para a ação é um recipiente cheio de amigos e inimigos potenciais, no qual se
espera que coalizões flutuantes e inimizades à deriva se aglutinem por algum tempo, apenas para
se dissolverem outra vez e abrirem espaço para outras e diferentes condensações. As
"comunidades da mesmidade", predeterminadas, mas aguardando serem reveladas e preenchidas
com matéria sólida, estão cedendo vez a "comunidades de ocasião", que se espera serem
autoconstruídas em torno de eventos, ídolos, pânicos ou modas. Mais diversificadas como pontos
focais, porém compartilhando a característica de uma curta, e decrescente, expectativa de vida.
Elas não duram mais que as emoções que as mantêm no foco das atenções e estimulam a
conjunção de interesses — fugaz, mas não por isso menos intensa — a se coligar e aderir "à
causa".

Todo esse aproximar-se e afastar-se para longe torna possível seguir simultaneamente o
impulso de liberdade e a ânsia por pertencimento — e proteger-se, se não recuperar-se
totalmente, dos embustes de ambos os anseios.
Os dois estímulos se fundem e se misturam no trabalho extremamente absorvente e exaustivo de
"tecer redes" e "surfar nelas". O ideal de "conectividade" luta para apreender a difícil e irritante
dialética desses dois elementos inconciliáveis. Ele promete uma navegação segura (ou pelo
menos não-fatal) por entre os recifes da solidão e do compromisso, do flagelo da exclusão e dos
férreos grilhões dos vínculos demasiadamente estreitos, de um desprendimento irreparável e de
uma irrevogável vinculação.

Nós entramos nos chats e temos "camaradas" que conversam conosco. Os camaradas, como
bem sabe todo viciado em chat, vêm e vão, entram e saem do circuito — mas sempre há na
linha alguns deles se coçando para inundar o silêncio com "mensagens" No relacionamento
"camarada/camarada", não são as mensagens em si, mas seu ir e vir, sua circulação, que
constitui a mensagem — não importa o conteúdo. Nós pertencemos ao fluxo constante de
palavras e sentenças inconclusas (abreviadas, truncadas para acelerar a circulação).
Pertencemos à conversa, não àquilo sobre o que se conversa.

Não confundam a atual obsessão por confissões compulsivas com as confidências espalhafatosas
sobre as quais Sennett nos advertia 30 anos atrás. O propósito de produzir sons e digitar
mensagens não é mais submeter os recônditos da alma à inspeção e aprovação do parceiro. As
palavras vocalizadas ou digitadas não mais se esforçam por relatar a viagem de descoberta
espiritual. Como Chris Moss admiravelmente expôs (no Guardian Weekend )", por meio de
"nossas conversas em chats, telefones celulares, serviços de textos 24 horas", "a introspecção é
substituída por uma interação frenética e frívola que revela nossos segredos mais profundos
juntamente com nossas listas de compras". Permitam-me comentar, no entanto, que essa
"interação", embora frenética, pode não parecer tão frívola, uma vez que você perceba e tenha
em mente que a questão — a única questão — é manter o chat funcionando. Os provedores de
acesso à internet não são sacerdotes santificando a inviolabilidade das uniões. Estas não têm nada
em que se apoiar senão nossos papos e textos; a união só se mantém na medida em que
sintonizamos, conversamos, enviamos mensagens. Se você interromper a conversa, está fora. O
silêncio equivale à exclusão. De fato, 11 n'y a pas dehors du texte — não há nada fora do texto
—, embora não apenas no sentido pretendido por Derrida...

OM, a sofisticada revista encartada em um dos mais veneráveis, respeitados e amados jornais
de domingo, dirigida e avidamente lida e discutida pelo jet-set, as elites de Bloomsbury ou
Chelsea e todo o resto, ou quase, das classes tagarelas...

Peguemos ao acaso a edição de 16 de junho de 2002 — embora a data aqui não tenha muita
importância, pois o conteúdo, com pequenas variações, é imune às convulsões, reviravoltas ou
turbulências da grande história em construção, assim como a toda espécie de política, exceto a
política de vida. As acelerações ou reduções de ritmo do tempo das grandes políticas também
passam ao largo...

Você também pode gostar