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A DESOLAÇÃO TOTALITÁRIA:

DA NEGAÇÃO DA PLURALIDADE À ANIQUILAÇÃO DA SINGULARIDADE


Evandro F. Costa*

O texto que segue tem o propósito de demarcar a urgência de um exercício de memória, cada vez mais relevante
ante o quadro amnésico em que mergulham as contemporâneas sociedades de massas. Essas configurações
sociais, em sua não despropositada perda de memória, flertam cada vez mais perigosamente com as soluções
de viés totalitário, que insistem em emergir de sua obscuridade para a luminosidade do espaço público. Nesse
contexto, todo esforço que busca vislumbrar os traços de uma proposição ética para tempos tão sombrios deve
começar por um rememorar os significados da aterradora dominação totalitária, até mesmo porque toda
desmemoriação, no seio de um povo, acaba sempre por resvalar negativamente no ânimo dos que urgem por
uma ética da responsabilidade política pelo mundo.

A irrupção totalitária que, para Hannah imagens do inferno4 também serão a expressão
Arendt, é o acontecimento que trará à luz a mais inconteste do ineditismo da ruptura, uma vez
consciência e a percepção da ruptura da tradição e que torna caducos todos os referenciais e
revelará, por conseguinte, o anacronismo de seus parâmetros instituídos do razoável que não dão
padrões e parâmetros de avaliação, trata-se de um conta da não razoabilidade característica da
fenômeno político sem precedentes. O antiutilitária5 dominação total6.
totalitarismo define-se como uma nova forma de Recorrendo a uma outra imagem
governo e de dominação, que se baseia “no apoio metafórica do repertório arendtiano, talvez se possa
das massas”1 e na organização maciça, falar, aqui, do real perigo das tempestades de areia
burocraticamente articulada, de indivíduos que fazem com que o deserto nem sempre seja a
atomizados e isolados, “cuja essência é o terror e paragem da já temível paz de cemitério. Em sendo
cujo princípio de ação é a lógica do pensamento ele, o deserto, “o lugar onde, em última análise,
ideológico”2 e que se alicerça, em última instância, tudo [...] é possível”7, os movimentos totalitários
“na convicção de que tudo é possível, e não apenas podem bem ser a nefasta possibilidade daquelas
permitido” , configurando, assim, os campos de
3
tempestades que estendem o deserto e acossam os
concentração e de extermínio como ícones da oásis. Se se compreende os oásis como “‘o mundo
organização totalitária, uma vez que no qual podemos mover-nos em liberdade’, [que]
operacionalizam, ao máximo, a meta de dominação são criados pelas leis enquanto espaço e são por
total. Tais campos ou, mais apropriado seria dizer, elas protegidos, e [a considerar que] isso é válido

* Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de um lado para o outro. Aos olhos de um mundo estritamente
Pernambuco (UFPE), professor do IFPE – Campus Recife. utilitário, a evidente contradição entre esses atos e a
1
OT, 2000, p. 339. conveniência militar dava a todo o sistema a aparência de louca
2
Idem, p. 526. irrealidade”. O mesmo Arendt argumentara, páginas atrás de
3
EPF, 2016, p. 123. sua obra, em relação aos stalinistas (Ibid., p. 372): “Se
4
Cf. OT, 2000, p. 497. politicamente o extermínio de classes não fazia sentido, foi
5
Sobre esse traço antiutilitário da dominação totalitária, afirma simplesmente desastroso para a economia soviética”, referindo-
Arendt (Idem, p. 495): “A incredulidade dos horrores é se ao “desequilíbrio caótico” que se seguiu, entre outros fatores,
intimamente ligada à inutilidade econômica. Os nazistas à “liquidação [...] da classe de dirigentes e engenheiros das
levaram essa inutilidade ao ponto da franca antiutilidade fábricas”.
6
quando, em meio à guerra e a despeito da escassez de material Cf. LAFER, 2015, p. 27-8.
7
rolante e de construções, edificaram enormes e dispendiosas QP, 1999, p. 178.
fábricas de extermínio e transportaram milhões de pessoas de
2

para o espaço da política [...], [no contraponto, o] coisas [...]. Uma vez destruído esse mundo de
relações, as leis da política [...] são substituídas
‘deserto’ é equivalente a dominação total”8, o que pela lei do deserto, que, como um ermo entre
os homens, desencadeia processos
reporta ao fenômeno totalitário e sua lógica de devastadores...14
extermínio. Este configura-se, pela via do terror,
...que carregam consigo o estigma da desmesura.
como o inóspito lugar em que a forçada deserção
Essa é a marca da pretensão totalitária de
da política chega ao extremo da negação da
eliminação da pluralidade e do domínio total sobre
pluralidade humana e, por conseguinte, da
o homem pelos meandros da ideologia e do terror,
singularidade da pessoa; e, assim, pelos
constituintes fundamentais da nova forma de
descaminhos da atomização e do isolamento9 dos
governo que é o totalitarismo. Este protagonizará,
indivíduos, solapa o mundo das relações humanas
em pleno século XX, “a negação mais radical da
e instaura-se como o aterrador deserto da
liberdade”15. Eliminando o espaço-entre os
10
desolação . Um tal estado de desolação é, segundo
homens, suprimirá, por decorrência, o “espaço da
Arendt, a desalentada expressão do
ação livre – que é, justamente, a concretização da
recrudescimento das ominosas experiências de
liberdade”16, resguardado pelas fronteiras da lei,
desarraigamento e de superfluidade,
contra as quais investe “o terror, servo obediente da
compreendendo que “não ter raízes significa não
Natureza ou da História e executor onipresente de
ter no mundo um lugar reconhecido e garantido
sua predestinação em movimento”17.
pelos outros; ser supérfluo significa não pertencer
A dominação totalitária, pela via do terror,
ao mundo de forma alguma”11. Em suma,
destrói, portanto, a pluralidade humana e, por
desenraizamento e superfluidade, amalgamados no
conseguinte, aniquila o espaço da política ao
sentimento de não-pertença ao mundo, “que é uma
“substitui[r] as fronteiras e canais de comunicação
das mais radicais e desesperadoras experiências
entre os indivíduos por um anel de ferro que prende
que o homem pode ter”12.
todos juntos com tanta força que parece fundi-los
Hannah Arendt, para a qual o pressuposto
entre si, como se fossem um único homem”18. Tal
de todo teorizar sobre a política é a pluralidade dos
dominação, “que procura sistematizar a infinita
homens13, compreende que a existência do espaço
pluralidade e diferenciação dos seres humanos
público circunscrito pelas leis é o lugar de
como se toda a humanidade fosse apenas um
expressão dessa pluralidade humana. Esta,
indivíduo, só é possível quando toda e qualquer
portanto, torna-se realidade na concretude do
pessoa seja reduzida à mesma identidade de
espaço-entre os homens que constituem
reações”19, ou seja, à miserável condição de ser tão
[...] o mundo das relações que surgem da ação somente um “exemplar da espécie”20. Esse objetivo
– a atividade política essencial do homem – [e
que] é consideravelmente mais difícil de é atingido pela doutrinação ideológica.
destruir do que o mundo manufaturado das

8 12
Idem, p. 182. Idem, p. 527.
9 13
Arendt é cuidadosa em esclarecer que isolamento e solidão Cf. QP, 1999, p. 176.
não são a mesma coisa. Interessa enfatizar, aqui, que “o 14
PP, 2016, p. 254.
15
isolamento é aquele impasse no qual os homens se vêem (sic) Ens-I, 2011, p. 347.
16
quando a esfera política de suas vidas, onde agem em conjunto Idem, p. 362.
na realização de um interesse comum, é destruída” (OT, 2000, 17
Ibidem.
18
p. 527). Ens-I, 2011, p. 361-2.
10 19
Cf. Ens-I, 2011, p. 367-8 OT, 2000, p. 488.
11 20
OT, 2000, p. 528. Ens-I, 2011, p. 362.
3

O terror, que “é a realização da lei do explicativos da vida e do mundo que alegam


movimento” que rege a dinâmica totalitária e cujo
21
explicar tudo, no passado e no futuro, sem maiores
fim último é a eliminação dos indivíduos pelo bem relações com a experiência concreta”28. Daqui
da espécie, o sacrifício dos homens em prol da decorrem duas graves constatações, intimamente
fabricação de uma Humanidade única22, só realiza relacionadas, que Arendt articula na seguinte
completamente a sua funesta meta, num contexto afirmação: “Essa emancipação arrogante da
em que a dominação totalitária ainda não se realidade e da experiência, mais do que qualquer
estendeu por toda a terra, com o concurso de um conteúdo concreto, prefigura a ligação entre
princípio de ação capaz de supri-lo em sua ideologia e terror”29. Em primeiro lugar, essa
insuficiência “para inspirar e guiar o desconexão de toda experiência e consequente
comportamento humano” . Esse princípio, não
23
emancipação da realidade existente leva o
propriamente de ação, mas lógico-organizativo ou, pensamento ideológico ao “estranho menosprezo
mais precisamente ainda, esse “meio para preparar da fatualidade”30, esta assumida como mera
igualmente os indivíduos para os dois papéis, o de simulação, “e assim, deixa de ter qualquer critério
carrasco e o de vítima”24, num governo totalitário e confiável para distinguir entre verdade e
só nele25, é a ideologia, que, embora ambicione “ser falsidade”31. Em segundo lugar, chega-se à
uma filosofia científica [...] é bem literalmente o verificação de que o terror cumpre o papel de dar
que o seu nome indica: é a lógica de uma ideia” . 26
concretude à ideologia. Dessa forma, apoiados na
A presunção de totalidade, inerente às crença fundamental de que tudo é possível, os
ideologias, acaba por se converter, no interior dos movimentos totalitários inferirão logicamente:
movimentos totalitários, em uma pretensão Se não é verdade [...] que todos os judeus são
mendigos sem passaporte, mudaremos os fatos
totalizadora na medida em que aspiram a explicar
para tornar essa afirmação verdadeira. Quando
todo o curso da história através do os bolcheviques tiverem poder global de
mudar todos os textos de história, deixará de
desenvolvimento da lógica de uma ideia, seja a ser verdade que algum dia um homem de nome
Trótski foi comandante do Exército Vermelho
superioridade de uma raça ou a luta de classes27. – e assim por diante32.

Tratam-se, pois, as ideologias de “sistemas

21
OT, 2000, p. 517. históricos – a explanação total do passado, o conhecimento
22
Cf. Idem, p. 517; Ens-I, 2011, p. 361. total do presente e a previsão segura do futuro; 2 – ele,
23
OT, 2000, p. 519. libertando-se de toda experiência, emancipa-se da realidade e
24
Ens-I, 2011, p. 368. insiste numa realidade “mais verdadeira” que se esconde por
25
Cf. Idem. trás de todas as coisas perceptíveis, raciocinando a partir de
26
OT, 2000, p. 520-1. Na segunda parte dessa sua obra (II: uma lógica da conspiração; 3 – o pensamento ideológico
Imperialismo), Arendt já expressa, claramente, que a ideologia arruma os fatos sob a forma de um processo absolutamente
é, mais propriamente, uma pseudofilosofia e, enquanto tal, lógico, que se inicia a partir de uma premissa aceita
“difere da simples opinião na medida em que se pretende axiomaticamente, tudo mais sendo deduzido dela. Uma vez
detentora da chave da história, e em que julga poder apresentar que se tenha estabelecido a sua premissa, o seu ponto de
a solução dos ‘enigmas do universo’ e dominar o partida, a experiência já não interfere com o pensamento
conhecimento íntimo das leis universais ‘ocultas’, que ideológico, nem este pode aprender com a realidade. Resta
supostamente regem a natureza e o homem” (Idem, p. 189). desdobrar, dedutivamente, as suas consequências com força
27
Segundo Arendt (OT, 2000, p. 522), “todas as ideologias irresistível (Cf. Idem, p. 522-4).
28
contêm elementos totalitários, mas estes só se manifestam Ens-I, 2011, p. 369.
inteiramente através de movimentos totalitários”. Nessa linha, 29
Idem.
a autora elucidará que há “três elementos especificamente 30
EPF, 2016, p. 123.
totalitários, peculiares de todo pensamento ideológico”. São 31
Ens-I, 2011, p. 369.
eles: 1 – na pretensão de explicação total, o pensamento 32
Idem.
ideológico promete esclarecer todos os acontecimentos
4

No apego renitente à coerência ideológica, coerência, torna logicamente necessária a


que tudo deduz de uma única ideia, “o domínio destruição de todos os vestígios do que comumente
totalitário [que] é ‘sem lei’ na medida que desafia se chama de dignidade humana, encontrará o seu
o direito positivo, mas não é arbitrário, na medida ápice na desoladora e execrável concretude dos
em que obedece com rigor lógico e executa com campos de concentração e de extermínio. Estes
precisão compulsiva as leis da História ou da serão, indubitavelmente, a expressão máxima da
Natureza” , utilizar-se-á do expediente do terror
33
“crença [...] na superfluidade dos homens; [que] é
como “necessário para tornar e manter o mundo a crença de que tudo é permitido e, muito mais
coerente”34. Conferir realidade a um conteúdo terrível, tudo é possível”39.
ideológico por meio da desmesura do terror será, Para Hannah Arendt, que cunhou uma
pois, o propósito de toda organização totalitária em percepção arguta da ruptura trazida pela dominação
sua implementação da dominação total. Isso deixa totalitária, o “tudo é possível” é revelador de como
claro que, “para os regimes totalitários, a uma forma inédita de organização da sociedade
dominação total nunca é um fim em si mesma” . 35
assumiu – na contramão de todos os valores
A própria pretensão de um domínio mundial, que evocados por uma época moderna, que fizera do ser
suscitou a necessidade da expansão totalitária, e a humano um valor fundante – que os homens são
ambição de um domínio total, que “transformou o supérfluos e descartáveis. Nesse quadro, torna-se
homem, como ser de pensamento e ação compreensível o esfacelamento dos padrões e das
espontânea, numa coisa supérflua”36, mobilizadas categorias que integraram o conjunto da tradição
pela crença de que tudo é possível, concorriam ocidental que, na dinâmica mortal do sistema de
“para essa finalidade, ou seja, para a coerência de “campos concentracionários”40, encontrou os
uma falsa ordem do mundo, e não em nome do contornos da mais aterradora concretude para o
poder ou qualquer outro pecado humanamente hiato entre o passado e o futuro41. Verifica Arendt
compreensível”37. Disso decorre a compreensão de que os campos de concentração assistem “como
que laboratórios onde se demonstra a crença

[...] a agressividade do totalitarismo não fundamental do totalitarismo de que tudo é


advém do desejo de poder e, se tenta expandir-
possível”42 e, em função disso,
se febrilmente, não é por amor à expansão e ao
lucro, mas apenas por motivos ideológicos:
para tornar o mundo coerente, para provar que [...] destinam-se não apenas a exterminar
o seu supersentido estava certo38. pessoas e degradar seres humanos, mas
também servem à chocante experiência da
eliminação, em condições cientificamente
A dominação totalitária, que encontra no controladas, da própria espontaneidade como
expressão da conduta humana, e da
terror a sua essência e na ideologia o seu princípio transformação da personalidade humana numa
lógico de estruturação, em função de uma tal simples coisa, em algo que nem mesmo os
animais são43.
insanidade ou, noutro modo de dizer, em benefício
desse supersentido que, em sua completa

33 39
Ibid., p. 359. Ens-I, 2011, p. 373.
34 40
Ens-I, 2011, p. 369. Idem, p. 420.
35 41
Idem, p. 372. Cf. LAFER, 2015, p. 22.
36 42
Ibid., p. 373. OT, 2000, p. 488.
37 43
Ens-I, 2011, p. 374. Idem, p. 488-9.
38
OT, 2000, p. 509.
5

Já no final de sua análise sobre “O domínio Como recorda, acima, a pensadora, essa
total” em Origens do totalitarismo – Parte III, a tresloucada fabricação em massa de cadáveres
autora, mesmo compreendendo que seja “inerente vivos é sem razão ou sentido, mas não sem método.
a toda a nossa tradição filosófica que não possamos Ela segue uma preparação logicamente
conceber um ‘mal radical’”44, discernirá e se concatenada. Há toda uma orquestração de
permitirá dizer, referindo-se a essa realidade fatores48 que a antecede, embora não a explique. A
devastadora para a qual não há parâmetro instituído destruição da pessoa humana em sua
de análise, que “esse mal radical surgiu em relação espontaneidade ou em sua genuína capacidade de
a um sistema no qual todos os homens se tornaram dar início a alguma coisa nova não é algo que
45
igualmente supérfluos” . Além disso, mais de uma “possa ser explicado à base de reação ao ambiente
década antes de deparar-se com o caso Eichmann, e aos fatos”49 e que aconteça sem uma preparação.
ela afirmará que “ao tornar-se possível, o Uma insanidade de tal magnitude implica uma
impossível passou a ser o mal absoluto, impunível preparação metódica e logicamente estruturada.
e imperdoável, que já não podia ser compreendido Segundo Arendt, o domínio total de uma pessoa é
nem explicado pelos motivos malignos do um caminho que se trilha em três passos cruciais.
egoísmo, da ganância, da cobiça, do ressentimento, São eles: “O primeiro passo essencial [...] é matar
do desejo do poder e da covardia”46. E é por isso a pessoa jurídica do homem”50. O totalitarismo, em
que a mesma Arendt, em conversa com Günter seu desprezo pelo direito51, nega o homem como
Gaus, em outubro de 1964, lembrará que, mais do cidadão, no seu direito a ter direitos, obrigando-o a
que o ano de 1933, quando sai da Alemanha e dá viver “em seu próprio país como os apátridas e os
início à sua errante vida de apátrida, para ela refugiados”52. Solapam-se, dessa forma, as

[...] o decisivo foi o dia em que soubemos de condições de vida na esfera pública e nega-se o
Auschwitz. [...] Foi em 1943. E no começo a
homem em sua capacidade de agir politicamente.
gente não acreditou [...] porque militarmente
era desnecessário e gratuito. [...] Foi como se “O próximo passo decisivo [...] é matar a pessoa
um abismo se escancarasse. [...] Isso não devia
ter acontecido. E não me refiro apenas ao moral do homem”53. Ao implicarem os internos dos
número de vítimas. Eu me refiro ao método, à
fabricação de cadáveres e assim por diante campos de concentração em seus crimes, os
[...]. Ali ocorreu alguma coisa com a qual a
gente não podia se conformar. Nenhum de nós soldados da SS acabavam por forçar as vítimas ao
pode, jamais47.
dilema desesperador de escolher não mais “entre o

44 50
Ibid., p. 510. Ibid., p. 498.
45 51
OT, 2000, p. 510. Um governo legal preza pelo corpo de leis positivas que
46
Idem. traduz, para o âmbito da realidade política de um país, as
47
Ens-I, 2011, p. 43. referências do justo e do injusto, do certo e do errado. Observa
48
Hannah Arendt (OT, 2000, p. 498) vai lembrar que “o Arendt, no entanto, que “no corpo político do governo
incentivo e, o que é mais importante, o silencioso totalitário, o lugar das leis positivas é tomado pelo terror total,
consentimento a tais condições sem precedentes resultam que se destina a converter em realidade a lei do movimento da
daqueles eventos que, num período de desintegração política, história ou da natureza” (OT, 2000, p. 516). Daí, ponderará, a
súbita e inesperadamente tornaram centenas de milhares de autora, que “se a legalidade é a essência do governo não-
seres humanos apátridas, desterrados, proscritos e indesejados, tirânico e a ilegalidade é a essência da tirania, então o terror é
enquanto o desemprego tornava milhões de outros a essência do domínio totalitário” (Idem, p. 517). Do que se
economicamente supérfluos e socialmente onerosos. Por sua deduz, por fim, que o “principal objetivo [do terror] é tornar
vez, isso só pôde acontecer porque os Direitos do Homem, possível à força da natureza ou da história propagar-se
apenas formulados mas nunca filosoficamente estabelecidos, livremente por toda a humanidade sem o estorvo de qualquer
apenas proclamados mas nunca politicamente garantidos, ação humana espontânea” (Ibidem).
perderam, em sua forma tradicional, toda a validade”. 52
OT, 2000, p. 498.
49 53
Idem, p. 506. Idem, p. 502.
6

bem e o mal, mas entre matar e matar”54, caminho de resposta para a questão acima.
corrompendo todo possível laço de solidariedade Segundo Jerome Kohn,
entre os homens, ferindo letalmente a dignidade O principal deles, talvez, é a perda do senso
comum. Quando os indivíduos, quais que
humana e, com ela, todo e qualquer resquício de
sejam as razões, são rejeitados pela pluralidade
autoestima, tornando, enfim, sua consciência dos homens, passando a não ter mais interesses
comuns e a ficar jogados à própria sorte, então
impotente. o mundo comum começa a entrar em colapso.
[Tornar aos homens supérfluos] [...] é
Aniquilada a pessoa político-jurídica e justamente uma outra maneira de designar a
perda de senso comum61.
destruída a pessoa moral, o golpe fatal que
transforma “uma personalidade sem direitos e sem Com tal perda, abre-se guarida para uma

consciência”55 em um verdadeiro morto-vivo é a crescente funcionalização dessubstancializadora

destruição da individualidade. Destruir a do humano, onde o homem fica reduzido a mera

individualidade é anular, no ser humano, a função da sociedade e perde a referência do “senso


espontaneidade56, a capacidade de singularizar-se, que nos orienta no mundo”62. Numa privação desse

seja pelo exercício de um pensar próprio seja pelo nível, o totalitarismo engendrará, pelas tentativas

discurso afirmativo de sua presença única ou pela calculadas por uma racionalidade lógica em sua

ação, o começar algo novo por si mesmo, que dá coerência dedutiva, “uma espécie de inferno na
lugar ao imprevisto, ao que surpreende e não se terra”63. Esta conjunção infernal de ausência de

enquadra. Manifesta Arendt que “o ato de matar a mundo comum é implementada pela busca de
individualidade do homem, de destruir a sua erradicação da pluralidade humana e pela
singularidade [...], cria um horror que de longe concomitante redução dos seres humanos à horrível

ultrapassa a ofensa da pessoa político-jurídica e o igualdade primal da simples vida biológica, essa

desespero da pessoa moral”57. Eis o hediondo “monstruosa igualdade sem fraternidade nem

aviltamento: “morta a individualidade, nada resta humanidade”64. Conectam-se, pois, ao

senão horríveis marionetes com rostos de desenraizamento e estranhamento do homem no

homem”58. mundo, as provações da superfluidade e do

Como compreender esses campos de desespero do isolamento, ambas implicando

fabricação de cadáveres vivos em “sua desumanização 65. É nesse quadro de desolação –

antiutilidade cinicamente confessada”59, eles que para cuja construção contribuem,

foram a “mais essencial [das instituições] para sistematicamente, os campos de concentração –


preservar o poder do regime”60 totalitário? Numa que se encontram os indivíduos na condição de ser
primeira aproximação, ao se indagar sobre os dominados por completo66.

possíveis significados, na abordagem arendtiana, Uma outra aproximação compreensiva do

do que é supérfluo, pode-se vislumbrar um papel essencial dos campos de concentração e de

54 62
Ibid., p. 503. Idem.
55 63
OT, 2000, p. 504. Ens-I, 2011, p. 403. Sobre essa metáfora, cf. também, nessa
56
Cf. Idem, p. 507. mesma coletânea, os ensaios “A imagem do inferno” (Idem, p.
57
Ibid., p. 506. 227-8); e “Uma réplica a Eric Voegelin” (Ibid., p. 420).
58 64
OT, 2000, p. 506. Ens-I, 2011, p. 227.
59 65
OT, 2000, p. 507. Cf. Idem, p. 377.
60 66
Idem. Cf. Ibid., p. 375.
61
KOHN, 2001, p. 20.
7

extermínio na implementação da dominação total flertar com seus pressupostos, há, em Hannah
almejada pelos regimes totalitários, diz respeito à Arendt – que não deixou de encarar de frente esse
alucinada persecução, pela via do terror, da meta de fenômeno, buscando sondar as suas mais
“dominar os seres humanos até que percam a subterrâneas significações –, uma aposta na lei da
espontaneidade e, com ela, a imprevisibilidade pluralidade humana, sem a qual “o mundo pode
especificamente humana do pensamento e da tornar-se um deserto”72, e uma esperança na
ação”67. Ela é reveladora de que “os dois grandes capacidade do homem de ser ele mesmo, pelo fato
obstáculos no caminho dessa transformação [da do nascimento e pela ação que o confirma, o
estrutura da realidade de acordo com os postulados começo de algo novo73. É à luz dessa esperança no
ideológicos totalitários] são a imprevisibilidade, a milagre do ser, pelo qual as ideologias nunca se
inconfiabilidade fundamental, do homem e a interessam74, que, com a pensadora, se pode
curiosa incoerência do mundo humano”68. A concluir que
considerar, como diz Hannah Arendt em Origens [...] nosso empenho em compreender algo que
do totalitarismo, que ideologia alguma que “vise à arruinou nossas categorias de pensamento e
nossos critérios de julgamento se afigura
explicação de todos os eventos históricos do menos temerário. Embora tenhamos perdido
os metros para medir, e as regras de subsunção
passado e o planejamento de todos os eventos do particular, um ser cuja essência é o iniciar
pode trazer dentro de si origens suficientes
futuros pode suportar a imprevisibilidade que para compreender sem categorias
preconcebidas e julgar sem o conjunto de
advém do fato de que os homens são criativos, de regras habituais em que consiste a
moralidade75.
que podem produzir algo novo que ninguém jamais
previu”69, fica ressaltada a função estratégica A análise arendtiana do fenômeno
assumida pelos campos de concentração nos totalitário revelou que este, ancorando-se na crença
regimes totalitários. Esses regimes são cientes do de que tudo é possível, ultrapassou todos os limites
perigo real que “as ameaças da imprevisibilidade que, respeitados, resguardam a mundanidade do
subjetiva do homem e da contingência do mundo mundo, garantem o espaço da ação livre e
humano, que sempre deixa certo espaço para o conformam a condição humana. Essa nova forma
acaso”70, representam para “o mundo fictício às de governo, que se estruturou como uma
avessas de um regime totalitário”71, que a ideologia organização burocrática de massas, baseou-se no
projeta, e o terror implementa, enquanto este não terror e na ideologia e engendrou a desolação,
compõe, pela via da expansão global do sistema, implementou uma dominação totalitária, cuja
uma totalidade coerente. perversidade, apesar de atroz, nem sequer grandeza
Face ao totalitarismo, cuja emergência teve, conforme apontará Arendt ao averiguar a
configurou a ruptura aqui analisada, e ante o risco banalidade do mal no relato que fez do processo
de reconstituição da dominação totalitária no Eichmann76.
contexto de uma sociedade de massas, sempre a

67
Ens – I, 2011, p. 369. 72
KOHN, 2001, p. 31.
68 73
Idem, p. 371. Cf. OT, 2000, p. 531.
69 74
OT, 2000, p. 509-10. Cf. Idem, p. 521.
70 75
Ens-I, 2011, p. 371. Ens-I, 2011, p. 344-5.
71 76
Idem. Cf. LAFER, 1979, p. 58.
REFERÊNCIAS:
ARENDT, H. A promessa da política. Tradução de Pedro Jorgensen Jr. 6. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2016.
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