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Ano I, Nº 03, Juiz de Fora, dezembro/2010 - março/2011

KROKER, Arthur & WEINSTEIN, Michael A., “Data


Trash: The Theory of the Virtual Class”, New York, St.
Martin’s Press, 1994, 165 pág.

Ronaldo Pimentel
Licenciado e Bacharel em Filosofia – UFJF
Mestre em Lógica e Filosofia da Ciência – UFMG
pimentelrp@yahoo.com.br

Data Trash é um livro que investiga o fetichismo por trás da realidade


virtual. O que leva um casal de adolescentes a postarem para o mundo virtual cenas
de sexo no TwitCam? O que leva a uma mulher traída a postar o knockout dado na
amante do marido no YouTube? O que leva as pessoas a consumirem tecnologia?
Entre outras barbaridades comuns no mundo virtual, o que está por trás de atos
como esses é o desejo de virtualização, aquilo que sustenta a cultura digital.

Data Trash é um livro de teoria crítica sobre a cultura digital que segue a
linha nietzschiana de pensamento. Aqui, Nietzsche tem um netbook e um modem.
Nietzsche pensava que o ideal ascético retirava o homem do mundo em que vive,
negando a vida em prol de algo que nem se sabe se existe como a vida eterna fora
do mundo. Na verdade, o ideal ascético é uma das utilidades da vontade de
potência. Se não podemos realizar os nossos desejos aqui nesse mundo trágico que
ao mesmo tempo nos dá prazer e dor, então projetamos a existência de um mundo
além através da vontade de potência, vivemos a ascese moral nesse mundo

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negando todos os prazeres da carne. Matando-nos, fazemos nossas malas e nos


mudamos para o mundo imaginário do além-vida. O mesmo acontece na era digital
em Data Trash. A vontade de potência aqui é isomorfa ao desejo de virtualização.

A frase da capa nos diz: “a cheirar as flores virtuais e a contar os mortos por
atropelamento da supervia digital”. Os mortos são aqueles que se matam em vida
para viver o ideal ascético proporcionado pela realidade virtual. A carne dos mortos,
o que tem de real, é aquilo que faz o asfalto do caminho que leva a todos para
dentro da realidade virtual, o paraíso do qual os histéricos partidários da experiência
telemática nunca querem sair. O mundo virtual é uma espécie de mundo
inexistente, produto de um emaranhado de fibra ótica e impulsos elétricos. O
mundo virtual está devidamente armazenado em bancos de dados espalhados pelo
mundo. O mundo digital progride no estado da arte de designers, computação e de
efeitos psicológicos feitos para nos determos cada vez mais dentro dessa realidade.

O papel do mundo virtual é proporcionar uma experiência, a experiência


telemática do corpo, um corpo sem corpo que pode realizar tudo o que quiser no
mundo virtual. Lá a pessoa pode ter prazeres que nunca teria na realidade, pode ter
milhares de amigos que nunca irá conhecer na vida real. Sexo sem contato... Redes
de amigos... Pseudônimos... Plataforma Moodle... Wikipedia... Na verdade, a pessoa
pode morrer em vida, desde que continuem vivas as suas experiências do corpo
telemático. A realidade virtual é o software. O nosso corpo, a nossa vida comum, é o
hardware. Curiosamente, o software nega a existência do hardware nesse caso,
matando-o metaforicamente.

Assim como o padre asceta, o tecnocrata digital é o responsável por nos


deter dentro do mundo digital. Existem dois tipos de tecnocratas digitais. Os
visionários que fazem o prospecto daquilo “que podem ganhar” com a realidade
virtual de modo a nos deter cada vez mais dentro dessa realidade em prol de “um
sistema operacional amigável” ou de uma rede social qualquer e os cientistas que

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criam os mecanismos para a sustentação de toda a realidade virtual, são aqueles


que fazem a manutenção da supervia digital. Bill Gates, Steve Jobs, todos vendem
uma ideologia, a tecnotopia: compre o novo Windows, o novo pacote Office, o novo
Mac Book ou o iPhone. Ou compre ou não terá acesso à realidade virtual. Os
tecnocratas detêm a ideologia: a tecnotopia.

Os tecnocratas são os detentores do poder hoje porque hoje tudo é


informação. A informação está armazenada em algum data wirehouse da Sun Micro
Systems, ou em algum Mac Book, ou foi processada no pacote Office ou
manipulada por um banco de dados criado por algum pacote de desenvolvimento
da Embarcadero Technologies, etc. Deter o conhecimento tecnológico para o lucro?
Não. Porque dinheiro é apenas mais um bit num campo de banco de dados.

A supervia digital é como se fosse uma estrada. Tomamos uma estrada


porque estamos interessados em ir para algum lugar, o mesmo acontecendo com
quem entra na supervia digital. O endereço é a realidade virtual que não está em
lugar nenhum, é apenas produto de um circuito elétrico comandado pelo
tecnocrata. Aqueles que entram na supervia digital pagam o pedágio ao tecnocrata,
são atropelados e mortos, da sua carne é feito o asfalto que leva à realidade virtual.
Tomamos o rumo da realidade virtual pela supervia digital e nesse momento,
negamos a nossa existência enquanto seres reais e podemos ser o que quisermos
dentro do mundo digital. Por exemplo, o pedófilo pode ser a criança mais tenra. Lá,
o pedófilo mata a sua realidade de um adulto traumatizado e renasce dentro da
experiência do corpo telemático da criança sem traumas. Tudo devidamente
sustentado pelo desejo de virtualização, pela experiência telemática, pela
tecnotopia.

A tecnotopia vende a idéia de que existe uma grande comunidade virtual


onde todos se comunicam não importa onde estejam. Nessa comunidade virtual,
existem várias possibilidades de interações sociais virtuais. Há comunidades de

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desenvolvimento virtuais, etc. O que acontece aqui é que a pessoa pode ter várias
dessas experiências virtuais, mas pode ser que na realidade da pessoa seja
totalmente antissocial. Portanto, a tecnotopia vende a possibilidade de alguém ser
algo que não condiz com a sua realidade, e, portanto, não muda em nada a sua
realidade. A tecnotopia transforma as pessoas em esquizóides, vivem na borda de
um mundo irreal e de um mundo real que estão a negar a todo momento. E pagam
ao tecnocrata para isso.

A tecnotopia é contraditória. Tudo resulta em poder para o tecnocrata


enquanto que alguém tem uma experiência telemática ilusória. Por trás da
tecnotopia estão os ansiosos pela experiência telemática que não aceitam nenhum
tipo de crítica, ao mesmo tempo em que compram todas as idéias vindas dos
tecnocratas que sustentam a realidade virtual. A idéia é adaptar-se para a realidade
virtual e tornar-se um consumidor ávido dessa realidade. Morre-se numa supervia
digital que não existe, seduzido por uma elite que detém a informação.

Tudo que é real degrada-se perante a tecnotopia. Uma vez dentro das
experiências telemáticas proporcionadas pela realidade virtual, não há mais sentido
em realizar os desejos sexuais mais infantis no mundo real. Tudo está a um clique.
Tudo é infantilizado para sermos pegos pelos desejos mais infantis.

Não há, para a tecnotopia, fronteiras internacionais. A tecnotopia instalou a


economia virtual, o capitalismo a toda parte, o “capitalismo da Nintendo” em que
os mecanismos perversos do capitalismo real são mapeados em sistemas
capitalistas irreais do mundo virtual. Pague com o seu cartão Visa para ter acesso à
determinada informação ou realização do desejo ou não entrará na comunidade.
Tudo roda sobre o software do capitalismo virtual. Uma vez sobre o capitalismo
virtual, nenhum valor cultural é mantido, tudo é recombinado, implementado e
criptografado. Análises mais profundas sobre a economia virtual podem ser
encontradas no livro.

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O objetivo da tecnotopia é seduzir. Esse processo ocorre pelas imagens. As


imagens não possuem um valor artístico nesse caso. Elas apenas são propagandas,
para nos tomar por aspectos emocionais. Cada imagem é um link que nos leva para
dentro da realidade virtual. Qualquer coisa que venha a ser representada é
liquidificada em códigos, em rotinas de programação úteis para nos direcionar ao
caminho do pedágio do tecnocrata.

O livro termina com uma reflexão sobre história e a realidade virtual. A


história é um arquivo de dados virtual onde estão contidos os que foram seduzidos
pela experiência telemática. Nesse caso, a história é uma grande experiência
telemática. O corpo é capaz de ser recombinado através de códigos dentro dessa
história, recortado, copiado e colado. Na realidade, todos estão mortos
(metaforicamente). Porém, na realidade virtual, todos podem estar vivos. Tudo
acontece como se fosse na atualidade.

No arquivo da história virtual, não há tempo, já que o que está acontecendo


na realidade virtual pode ser reprogramado e recombinado infinitas vezes para
acontecer de novo e do modo como se quer que aconteça. Isso porque uma história
virtual nunca existiu, assim como uma realidade virtual nunca existiu. Porém, o
desenvolvimento das tecnologias e o poder sedutor da tecnotopia geram um “fim
da história” expresso numa grande realidade virtual atemporal, reprogramável pelo
tecnocrata.

Claro, isso é apenas um cenário filosófico, mas que nos chama a atenção
para lançarmos um olhar crítico para o que está acontecendo à nossa volta em
relação às barbaridades on-line que reverberam em nosso mundo real. Data Trash é
uma leitura obrigatória para filósofos, comunicadores e educadores ou para
qualquer um que lida com as tecnologias contemporâneas.

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