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Justiça Prevalente: A subjetividade imposta pela classe dominante sobre a

forma e função da ideia.


Resenha Crítica: One Piece – Eiichiro Oda

Discente: Thiago Emanoel dos Santos Nascimento


Matrícula: 20240027937

1. Contextualização:
One piece é uma série de mangá escrita e ilustrada pelo quadrinista
japonês (mangaká) Eiichiro Oda. Iniciada em 1997, a obra conta a história
do pirata Monkey D. Luffy em um mundo original formulado pelo autor em
que aproximadamente 98% da sua superfície é tomada por água, com
apenas algumas ilhas presentes, algumas delas, mais relevantes,
consideradas países. Decorrente dessa geografia única, a trama
apresenta 2 divergentes poderes principais: os piratas, considerada por
senso comum como incondicionais vilões, e a marinha, que por sua vez é
subserviente ao Governo Mundial, organização formulada há 800 anos, a
qual os descendentes dos fundadores são considerados deuses de
vontade inquestionável, os nobres mundiais ou “Tenryuubitos”, essa
associação dita as regras em praticamente todas as ilhas do mundo
conhecido, em troca ela oferece a “segurança” proporcionada pela
marinha, sua principal ferramenta de controle.
Em determinado ponto da trama ocorre o evento chamado “A
Guerra dos Melhores”, ou “Marienford”, um embate direto entre a maior
parte do poderio governamental contra o principal pirata da atualidade, o
Barba Branca. Nesse contexto de proporções únicas, é apresentado
também um dos principais antagonistas da história: Donquixote
Doflamingo, um homem sádico, irreverente, relativamente carismático,
contudo, extremamente perspicaz e inteligente, o qual expressa um dos
maiores, mais importantes e bem escritos discursos da obra.
- "Piratas são o mal e a marinha é a justiça? Isso foi reescrito inúmeras
vezes no passado! Valores são diferentes para crianças que não sabem o que é
paz e aquelas que nunca presenciaram uma guerra. Aquele que terminar no topo
irá reescrever o que é certo e o que é errado. Este local é o marco zero! A justiça
prevalecerá? É claro que irá! Porque os vencedores definem o que é justiça!" –
Donquixote Doflamingo

2. De Doflamingo a Kant:
Precipuamente, para o aprofundamento da discussão acerca da
dissertação do personagem, é necessária a compreensão do que seria a
justiça, um conceito abrangente, porém, não facilmente compreendido
ainda em larga escala.
Immanuel Kant em uma de suas obras afirma que a conceituação
geral do direito, que se relaciona diretamente com o justo, seria as ações
que permitem a coexistência de distintas liberdades individuais.
- “É justa toda ação segundo a qual ou segundo cuja máxima a liberdade
do arbítrio de cada um pode coexistir com a liberdade de qualquer um segundo
uma lei universal etc.’
Se minha ação, portanto, ou em geral meu estado, pode coexistir com a
liberdade de qualquer um segundo uma lei universal, então aquele que impede
nisso é injusto para comigo, pois esse impedimento (essa resistência) não pode
coexistir com a liberdade segundo leis universais.”
Immanuel Kant
O autor apresenta um ótimo ponto a cerca dessa ideia, técnico,
eficiente e compreensível, além de extremamente abrangente e utilizado
até hoje por juristas. Contudo deve-se ser considerada o peso da
subjetividade que incide sobre o seu discurso.
Em análise mais perscrutada, pode ser gerado o questionamento,
o que pode ser considerado como infrator do arbítrio individual ou
coletivo? quem define o que pode ser tido como um ataque ao direito
alheio? São questões extremamente relevantes para o debate de
legisladores e afirmadores da lei como o judiciário.
Um exemplo dentro da própria obra dessa parcialidade seria a
proibição inviolável de historiadores que pesquisem sobre a história oficial
da formação do Governo Mundial em arquivos singulares e de difícil
acesso denominados “Poneglyphs”, que são grandes placas de concreto
com escrita em língua antiga a qual poucos tem domínio, neles estão
presentes as supostas “verdades” sobre a organização e seu passado, tal
lei é punível não só com a inquestionável e cruel execução, como foi o
caso dos historiadores da Ilha Ohara, que se prestaram a estudar sobre
esses aspectos e foram bombardeados por um ataque da marinha até a
extinção completa dos habitantes, mas também sofrem com o
apagamento, deturpação e difamação de seus legados individuais,
evitando que seus ideais sejam repassados e inspirem outros a fazerem
o mesmo. Esse exemplo pode ser tido como incabível e imoral em
qualquer sociedade democrática atualmente, as quais preservam e
incentivam o livre estudo científico e social por qualquer pessoal, além de
protegerem a liberdade de opinião em torno de qualquer fato.
Partindo para a realidade, outro exemplo pertinente seria a
proibição da identificação de pessoas para com a comunidade
LGBTQIAP+. Em Uganda, na África Oriental, foi instaurada uma lei que
torna atos sexuais puníveis com a morte, alegando ataque a moralidade
da região, essa lei em outras palavras afirma que, pessoas com
orientações sexuais divergentes à heteronormativa vão de encontro a
liberdade individual de outros indivíduos se pensarmos com o conceito de
direito proposto por Kant. Portanto, é preciso pensar, se esse conceito é
universal, por que sua finalidade se diverge das mais diversas maneiras?

3. De Doflamingo a Rawls:
Ainda discutindo sobre o que é a “justiça”, é preciso analisar o
ideário de John Rawls sobre o tema na sua obra “Uma Teoria de Justiça”.
O autor afirma durante o livro que esse conceito tem a finalidade de
garantir a todos os cidadãos a liberdade de conceberem e seguirem as
suas concepções individuais do que é uma “vida boa”, dividindo de forma
igualitária e universal os direitos e as oportunidades para que essa função
seja efetivada, sendo injusta qualquer organização que vá de encontro a
esse ideal. No entanto, por mais que polida e necessária, a teoria de
Rawls se apresenta amplamente fundamentada no prisma do “dever ser”,
diferentemente da ideia apresentada por Doflamingo, estritamente focada
na “verdade efetiva das coisas”.

4. De Doflamingo a Maquiavel:
Analisado o ponto proposto do personagem sobre a ideia de justiça,
vemos a aproximação clara com o realismo político de Maquiavel. No
discurso do antagonista, ele evidentemente considera o funcionamento
real do mundo, a corrupção dos sistemas de poder e a preservação dos
interesses individuais, assim como Nicolau Maquiavel, o personagem
acredita que suas ações devam estar fundamentadas na realidade, com
um funcionalismo prático que vise a eficiência da ação e não serem
contaminadas por ideários utópicos quase inalcançáveis.
- “Há uma grande distância entre como se vive e como se deveria viver,
continua ele, de modo que aquele que abandona o que faz pelo que deveria fazer
estará a caminho da ruína, e não a caminho da preservação. Por isso, recomenda
Maquiavel, é mais conveniente procurar a verità effetuale delle cose. "Se os
homens fossem todos bons, este preceito seria mau". Como, no entanto, muitos
são maus, "o homem que quiser fazer profissão de bondade é natural que se
arruine" (cap. 15). Arruinar-se é não só perder o poder mas também a
possibilidade de realizar qualquer bem.” –
Raquel Kritsch

5. De Doflamingo a Marx:
É praticamente impossível ler a fala de Doflamingo e não remete-
la diretamente ao ideário marxista, principalmente ao conceito de
“ideologia” proposto por Karl Marx, o que evidencia mais ainda a riqueza
da narrativa e a profundidade da sua proposta. Quando o antagonista
expressa “os vencedores definem a justiça”, ele está expressando
diretamente a noção de prevalência dos valores da classe dominante
sobre a dominada, o que no caso se refere a “verdade” da marinha contra
a dos piratas, na realidade em que vivemos se imprime como os valores
da burguesia sobre o proletariado. Essa sobreposição de ideais se
apresenta nas mais diversas camadas, não só na discrepância de
oportunidades, mas também os veículos necessários para a manutenção
dessa diferença, como controle monetário, controlando possíveis
ascensões sociais não benéficas, midiático, que permite a disseminação
da ideologia dominante e violência, controlando ações dissidentes em
último caso, com a força.
- “Na corrente marxista clássica, o termo ideologia foi mais frequente nos
textos de polêmica política e filosófica do que no discurso teórico propriamente
dito. Ele seria utilizado por Engels e Marx para qualificar pensamentos e
doutrinas tomados enquanto entidades puras, independentes da realidade
material, isto é, enquanto juízos puramente especulativos, tais como os sistemas
de filosofia e religião. Esses sistemas teriam produzido até então “ideias falsas”
sobre os homens (Marx e Engels, 1982: 1.049). Num dos exemplos escolhidos
pelos autores, é como se o mundo social real, ignorado pelos teóricos
profissionais, pudesse ser reduzido, graças à ação dessas fabulações ideológicas,
a uma batalha imaginária de “frases contra frases” (Marx e Engels, 1982:
1.054), onde as ideias e os conceitos seriam, graças a seu poder mágico, os
verdadeiros princípios determinantes da realidade.” –
Adriano Codato
6. Conclusões:
A obra por mais que inicialmente se apresente como infantil e
despretensiosa, atravessa várias camadas dos mais diversos tipos de
discursos filosóficos e sociológicos, um dos maiores exemplos disso é o
monólogo do de Donquixote Doflamingo, que à primeira vista se relaciona
apenas com a guerra do contexto da obra e seus desdobramentos, mas
em aprofundada análise discorre exemplar e eficientemente sobre
conceitos pouco disseminados na sociedade que deveriam ser
amplamente conhecidos.
Na sua escrita, Eiichiro Oda demonstra sua genialidade na criação
de personagens carismáticos, identificáveis, mas principalmente, que
possuem algo a acrescentar não só à narrativa, mas a vida e
compreensão de mundo dos leitores, sem nunca perder a sua clareza e
acessibilidade que uma obra de ampla divulgação necessita, facilitando a
absorção do conteúdo por todos.
Para além do que foi trabalhado durante essa discussão, é
imprescindível pontuar a construção do mundo de One Piece, sendo ao
mesmo tempo único e cheio de referências perceptíveis que imergem o
leitor na narrativa e história de determinada ilha.
Outro aspecto que vale a pena ressaltar é multiplicidade de
sentidos ao digerir a obra, balanceando quase que perfeitamente a
comédia “pastelão”, que nunca perde a graça, com os momentos de
drama que quebra a compostura de qualquer indivíduo minimamente
dotado de emoções, é uma obra que literalmente já fez milhões de
pessoas chorarem por um barco e se compadecerem por um homem de
40 anos que usa fraldas e toca de bebê.
Conclusivamente, One Piece é um mangá indispensável não só
para apreciadores desse tipo de leitura, mas para qualquer indivíduo, pois
apresenta durante seu decorrer os mais diversos aspectos da
dramaturgia, centenas de personagens com os quais certamente alguém
vai se identificar, mas principalmente pelas ideias apresentadas durante
a trama que podem apresentar de forma simples e coesa aspectos sociais
e assim, abrir a mente de pessoas para a contemplação de ideias
extremamente pertinentes para a sociedade no geral.

Citações:

KANT, Immanuel. Introdução à Doutrina do Direito. 1ª edição. SP, Brasil:


WMF Martins Fontes Ltda, 2014.
KRITSCH, Raquel. Maquiavel e a construção da política. Lua Nova: Revista
de Cultura e Política, p. 181-190, 2001.
CODATO, Adriano. O conceito de ideologia no marxismo clássico: uma revisão
e um modelo de aplicação. Política & Sociedade, v. 15, n. 32, p. 311-331,
2016.
RAWLS, John. Uma Teoria de Justiça. 1ª edição. São Paulo: WMF Martins
Fontes Ltda, 1997.
RAATZ, Luiz. Uganda e mais seis: Quais são os países que preveem pena
de morte para homossexuais? Estadão, Brasil, 23 de Março de 2023.
ODA, Eiichiro. One Piece. São Paulo: Panini Comics, 2009, cap. 556.

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