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RESUMO
Este estudo tem como finalidade estabelecer um diálogo transdisciplinar entre a evolução
histórica do constitucionalismo, a teoria da Tripartição dos Poderes de Montesquieu, a proteção
jurídica das minorias e grupos vulneráveis e determinadas obras literárias, quais sejam,
“Capitães da Areia” de Jorge Amado, “O Cortiço” de Aluísio Azevedo, “Amora” de Natália
Polessa, “Memórias do Cárcere” de Graciliano Ramos e “Olhos d´água” de Conceição Evaristo.
Com efeito, pretendemos ilustrar a situação de determinados grupos vulneráveis por meio das
obras supramencionadas, sem deixar de tecer considerações a acerca de como a Literatura pode
auxiliar e propiciar reflexões e debates. Teceremos, também, considerações a respeito da obra
“Eichmann em Jerusalém” de Hannah Arendt com o fito de tratar da questão da banalização do
mal. Outrossim, ressaltaremos, ao longo da pesquisa, as correlações existentes a Teoria da
Tripartição dos Poderes de Montesquieu, a obra “O Federalista” e as considerações de Luigi
Ferrajoli no que se refere à crise da democracia italiana, sem perder de vista a importância das
funções contramajoritária e representativa do Poder Judiciário no controle de
constitucionalidade para a proteção jurídica dos grupos vulneráveis e das minorias.
1
Doutor em Educação pela Universidade de São Paulo. Mestre em Teoria Literária e Literatura Comparada pela
Universidade de São Paulo. Graduado em Letras pela Universidade de São Paulo. Professor da rede municipal de
educação do munícipio de São Paulo. E-mail: wellgus23@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4780-
7410. Endereço: Rua Guarantã, S/N, CEP: 03924-120, Parque dos Bancários, São Paulo – SP.
2
Mestranda em Filosofia do Direito na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). Especialista em
Direito Civil e Empresarial e em Direito e Processo do Trabalho pela Faculdade de Direito Professor Damásio de
Jesus. Graduada em Direito pela Fundação Armando Álvares Penteado Advogada. E-mail:
gabriellevaleriadv@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4956-1805. Endereço: Alameda Terracota,
n. 215, Cj 518 e 519, sala 139, CEP: 09531-190, Bairro Cerâmica, São Caetano do Sul – SP.
ABSTRACT
This study aims to establish a transdisciplinary dialogue between the historical evolution of
constitutionalism, the theory of the Tripartition of the Powers of Montesquieu, the legal
protection of minorities and vulnerable groups and certain literary works, namely, “Capitães da
Areia” by Jorge Amado, “O Cortiço” by Aluísio Azevedo, “Amora” by Natália Polessa,
“Memórias do Cárcere” by Graciliano Ramos and “Olhos d´água” by Conceição Evaristo. In
fact, we intend to illustrate the situation of certain vulnerable groups through the
aforementioned works, without failing to make considerations about how Literature can help
and encourage reflections and debates. We will also weave considerations about Hannah
Arendt's “Eichmann in Jerusalem” in order to deal with the question of the trivialization of evil.
Furthermore, we will emphasize, throughout the research, the existing correlations with the
Theory of Tripartition of Powers of Montesquieu, the work “The Federalist” and the
considerations of Luigi Ferrajoli with regard to the crisis of Italian democracy, without losing
sight of the importance of countermajoritarian and representative functions of the Judiciary in
the control of constitutionality for the legal protection of vulnerable groups and minorities.
1 INTRODUÇÃO
Nesse passo, a segunda seção deste artigo discorrerá acerca da evolução histórica do
Constitucionalismo, com o fito de introduzir a pergunta: no Brasil, sob a égide da Constituição
de 1988, poderíamos conceituar o termo “democracia” apenas de forma instrumental ou
procedimental, sem incorrer em qualquer erro metodológico? Poderíamos conceituar
democracia enquanto sendo o regime político que permite ao povo, através de seus
representantes legais, avocar ou assumir as decisões públicas? Ato contínuo, a terceira seção
debruçar-se-á a respeito da Teoria da Tripartição dos Poderes de Montesquieu (tratada nos
livros “Considerações sobre as causas da grandeza dos romanos e da sua decadência” e
“Espírito das Leis”), sua respectiva influência na obra “O Federalista” e, posteriormente, suas
atualizações sugeridas por Luigi Ferrajoli (“Poderes Selvagens”).
Outrossim, pretende-se, na quarta seção discorrer acerca da proteção jurídica das
minorias e dos grupos vulneráveis (esclarecendo-se, brevemente, o conceito de minorias e de
grupos vulneráveis) e sua correlação com as funções contramajoritária e representativa do
Judiciário no controle de constitucionalidade. Posteriormente, na quinta seção, traçar o diálogo
transdisciplinar entre a proteção jurídica das minorias e dos grupos vulneráveis, a banalização
do mal e determinadas obras literárias (“Capitães da Areia” de Jorge Amado, “O Cortiço” de
Aluísio Azevedo, “Amora” de Natália Polessa, “Memórias do Cárcere” de Graciliano Ramos e
“Olhos d´água” de Conceição Evaristo).
A visão não complexa das ciências humanas, das ciências sociais, considera que há
uma realidade econômica de um lado, uma realidade psicológica de outro, uma
realidade demográfica de outro, etc. Acredita-se que estas categorias criadas pelas
universidades sejam realidades, mas esquece-se que no econômico, por exemplo, há
as necessidades e os desejos humanos. Atrás do dinheiro, há todo um mundo de
paixões, há a psicologia humana. (2005, p. 68).
A primeira pergunta que este trabalho se propõe a responder é a seguinte: no Brasil, sob
a égide da Constituição de 1988, poderíamos conceituar o termo “democracia” apenas de forma
instrumental ou procedimental, sem incorrer em qualquer erro metodológico? Poderíamos
conceituar democracia enquanto sendo o regime político que permite ao povo, através de seus
representantes legais, avocar ou assumir as decisões públicas?
Antes de tecer qualquer resposta à pergunta acima formulada, cabe realizar uma
digressão a respeito do Constitucionalismo, sempre relembrando que a sua tônica se prende a
dois principais pressupostos: (i) limitar os poderes do Estado e (ii) defender direitos
considerados fundamentais. Além disso, o Constitucionalismo insere-se dentro de um contexto
que é, ao mesmo tempo, jurídico, filosófico, ideológico e político.
Com efeito, durante a Idade Média, temos o advento da Magna Carta (Magna Charta
Libertatum), documento assinado por João Sem Terra e que é considerado a base das liberdades
inglesas (a título exemplificativo, a Magna Carta tratava de assuntos relacionados à
propriedade, à liberdade da Igreja e ao Due Process of Law). Também é imperativo citar a
Rights Petition de 1628, o Habeas Corpus Act de 1679 e o Bill of Rights de 1689. De outro
lado, a Revolução Francesa de 1789 (motivada pelas dívidas decorrentes da Guerra dos Sete
Anos e do auxílio prestado aos Estados Unidos na Guerra de Independência, aliada à crise no
campo em virtude das péssimas colheitas, além dos altos custos da Corte absolutista francesa e
da propagação das ideias iluministas) culminou na edição da Constituição de 1791, a qual, por
sua vez, em seu preâmbulo, reportava-se à Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
de 1789.
O Constitucionalismo dos Estados Unidos, por sua vez, surgiu com a necessidade
conferir forma ao federalismo. Isso porque a Constituição Federal norte-americana revelou-se
um produto das diversas Convenções estaduais realizadas entre 1774 e 1787. Em 1787, na
Convenção da Filadélfia, o George Washington foi eleito presidente. As funções da
Constituição dos Estados Unidos poderiam ser assim resumidas: (i) fortalecer uma ideia de
destino comum personificada pelos “pais fundadores” (Washington, Franklin, John Adams,
John Hart, entre outros); (ii) diferenciar os Estados Unidos da Inglaterra, porquanto,
diferentemente do caso inglês, não havia monarquia nos Estados Unidos; (iii) reduzir as forças
que poderiam se insurgir contra a Constituição, minando as possibilidades de esta ser
modificada (havia, assim, o interesse de proporcionar a longevidade do texto constitucional);
(iv) instituir-se enquanto paramount law e como Supreme Law of the Land, de sorte que
qualquer lei que fosse a ela contrária fosse ineficaz. No mesmo sentido, dispõe o artigo VI da
Constituição dos Estados Unidos, in verbis:
I Que todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes, e têm
certos direitos inatos, dos quais, quando entram em estado de sociedade, não podem
por qualquer acordo privar ou despojar seus pósteros e que são: o gozo da vida e da
liberdade com os meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e obter
felicidade e segurança.
V Que os poderes legislativo, executivo e judiciário do Estado devem estar separados
e que os membros dos dois primeiros poderes devem estar conscientes dos encargos
impostos ao povo, deles participar e abster-se de impor-lhes medidas opressoras; que,
em períodos determinados devem voltar à sua condição particular, ao corpo social de
onde procedem, e suas vagas se preencham mediante eleições periódicas, certas e
regulares, nas quais possam voltar a se eleger todos ou parte dos antigos membros
(dos mencionados poderes), segundo disponham as leis.
O neoconstitucionalismo pode ser sintetizado em três teses principais, quais sejam: (a)
vinculação entre Direito e Moral (a Constituição teria disposto em seu texto um conjunto de
valores ao entabular direitos fundamentais); (b) divisão entre regras e princípios; (c) aplicação
do Direito por ponderação. Apesar de perfunctoriamente a questão do constitucionalismo e do
neoconstitucionalismo ter sido abordada nos parágrafos acima, fato é que ainda não podemos
responder à pergunta formulada “no Brasil, sob a égide da Constituição de 1988, poderíamos
conceituar o termo ‘democracia’ apenas de forma instrumental ou procedimental, sem incorrer
em qualquer erro metodológico?” Ainda é necessário analisarmos, na próxima seção, a Teoria
da Tripartição dos Poderes de Montesquieu e eventuais atualizações/desatualizações que pode
ter sofrido atualmente. Para tanto, utilizaremos, enquanto bibliografia de suporte, a obra
“Poderes Selvagens” de Ferrajoli.
Montesquieu não destaca a separação dos poderes do Estado como uma das causas da
grandeza de Roma. Não lhe reserva capítulo especial. Mas ao tratar das causas da
decadência de Roma, ele analisa e patenteia que a concentração dos poderes, poderes
político, militar e econômico, é que perdeu a República e depois a própria Roma. [...]
Nos Caps. VIII a XIII Montesquieu inicia o estudo da decadência de Roma,
decadência que se instalou na República e acarretou a queda desta. A causa, veremos,
foi a concentração do poder político econômico e militar. (2005, páginas 373 e 380).
É com esta tônica que introduzimos o pensamento de Ferrajoli, segundo o qual é “um
dado de ‘experiência eterna’, como escreveu Montesquieu, que os poderes, diante da ausência
de limites e controles, tendem a concentrar-se e a acumular-se em formas absolutas: a
transmutar-se, na ausência de regras, em poderes selvagens.” (2014, p. 15). Os ensinamentos
tecidos por Ferrajoli são uma decorrência da crise enfrentada pela democracia italiana
(resultante da época em que Silvio Berlusconi era Primeiro-Ministro na Itália), mas podem ser
transpostos à realidade de outros ordenamentos jurídicos:
Estes limites e vínculos são impostos a tais poderes pelos direitos constitucionalmente
estabelecidos, os quais identificam aquela que podemos chamar de esfera do
indecidível: a esfera daquilo que não é decidível, ou que não pode ser objeto de
deliberação, desenhada pelos direitos de liberdade, os quais têm o poder de tornar
inválidas as decisões com eles constrastantes, e a esfera daquilo que não pode ser
decidido, ou que deve ser objeto de deliberação, desenhada pelos direitos sociais, os
quais impõem como devidas as decisões destinadas a satisfazê-los. (FERRAJOLI,
2014, p. 19).
Assim, para que uma lei, no contexto brasileiro, seja “legítima”, não basta que ela tenha
sido aprovada pela maioria (articulada no Parlamento por meio de partidos), seguindo o
procedimento de aprovação e promulgação das leis. Existe, ainda, um outro requisito que as
leis ordinária, complementares e delegadas, emendas constitucionais, medidas provisórias,
decretos legislativos e resoluções legislativas devem cumprir: todos devem estar em
consonância com o conteúdo/substância da Constituição – e não somente porque existe uma
razão jurídica para que isso ocorra (existência do princípio da supremacia da Constituição), mas
também porque existe um motivo político e social para tanto, quais sejam:
(i) Proteção das minorias e dos grupos vulneráveis que não conseguem articular-se
politicamente para ocupar posições significativas no Parlamento ou no
Executivo e
(ii) Possibilitar que os Poderes sejam limitados e precisem observar um patamar
mínimo do qual não poderiam desbordar.
(d) Por fim, o quarto fator da “crise do alto” consiste na ausência de garantias de uma
“efetiva independência da grande informação; nem do direito ativo de liberdade de quem faz a
informação, isto é, dos jornalistas, nem do direito passivo à não desinformação por parte de
quem é destinatário das informações.” (2014, p. 42).
De outro lado, contudo, a “crise do baixo” é a crise que se desvela a partir do ponto de
vista dos representados, ou seja, da sociedade. Sustenta Ferrajoli que “a sociedade pode ser
largamente modelada pela política, quando estejam ausentes as garantias dos direitos
fundamentais e, em particular, o pluralismo e a independência da informação” (2014, p. 45).
Os quatro fatores da “crise do baixo” podem ser assim sintetizados:
(b) O segundo fator da “crise do baixo” (e na opinião dos autores do presente artigo,
talvez seja o mais preocupante) consubstancia-se na despolitização de grande parte do
eleitorado, despolitização essa que se traduz na antipolítica (indiferença política e
abstencionismo). Nesse sentido:
Existem dois modos, não alternativos mas convergentes, para destruir a opinião
pública, ambos promovidos pelos regimes autoritários, mas hoje levados a efeito,
graças ao controle sobre a mídia, também pelos sistemas democráticos. O primeiro
método é o da desinformação, da mentira e da propaganda, sobretudo televisiva: a
difusão de notícias falsas, a omissão ou minimização de notícias verdadeiras, a
exaltação do chefe, a difamação dos opositores, a deturpação das consciências e das
inteligências com espetáculos estúpidos e vulgares. A segunda forma de dissolução
da opinião pública é aquela relativa à despolitização, isto é, à derrubada do senso
cívico e das virtudes políticas. (FERRAJOLI, 2014, p. 51).
Entende-se que esse fenômeno seja o mais preocupante porque implica em prejuízos à
capacidade de reflexão das pessoas. Se as pessoas estão desinformadas, como poderão articular
com presteza as próprias opiniões e reflexões?
(c) O terceiro fator da “crise do baixo” dialoga necessariamente com o segundo fator
acima referido, porquanto importa na falência da participação dos cidadãos na vida pública
“determinada pelo correspondente fator de crise ‘do alto’, isto é, da crescente distância dos
partidos em relação à sociedade, bem como da perda por parte daqueles de representatividade
e de penetração social.” (2014, p. 54).
(d) O quarto fator da crise do baixo, que também necessariamente dialoga com o
segundo fator, consiste na transformação da informação em uma fábrica de consenso,
importando em verdadeiro agravamento da crise das liberdades:
Quando das pesquisas resulta que a maioria dos cidadãos, ou pelo menos parte
consistente destes, acha que os Promotores de Justiça que investigam o primeiro-
ministro são comunistas ou participam de um complô para arruína-lo, devemos nos
perguntar de onde possa vir esse absurdo convencimento senão do fato de estas
assertivas serem repetidas quotidianamente na televisão, e se os cidadãos estão a
repetir, nas pesquisas, aquilo que ouvem nos programas televisivos. (2014, p. 56).
Ferrajoli, depois traçar todos os oito fatores brevemente relacionados acima, traz
remédios para a crise da democracia italiana. Entre eles, podemos citar o método eleitoral
proporcional, a exclusão dos conflitos de interesse, a revitalização da relação entre sociedade
e instituições representativas e a reforma do sistema da informação.
A primeira regra é a sua sujeição à lei, isto é, aos limites e aos vínculos idôneos a
garantir a liberdade de informação, como direito de todos, para além do interesse
público, a uma informação livre e independente. A segunda regra é a separação dos
poderes, baseada na velha receita de Montesquieu, que não pode deixar de ser
estendida ao “quarto poder”, que a imprensa e sobretudo a televisão, não só do poder
político, mas também do poder econômico da propriedade. A independência e a
separação da propriedade dos meios de comunicação da liberdade de informação são
de fato a esta tão essenciais quanto a independência e a separação do Poder Executivo
são para o Poder Judiciário. E mais: liberdade de informação e independência da
informação são exatamente a mesma coisa. (2014, p. 73).
Concluímos, assim, a segunda seção do presente artigo com algumas respostas: as leis,
aqui entendidas em sentido amplo, para que sejam “legitimas”, precisam observar a substância
da Constituição, não bastando que tenham sido endossadas pela maioria. Isso porque, para além
do argumento jurídico, existem também argumentos de ordem política e social, quais sejam, de
proteção das minorias e dos grupos vulneráveis e da necessidade de se limitar e controlar o
poder. Ato contínuo, Ferrajoli trouxe importantes considerações e atualizações a respeito da
Teoria da Tripartição dos Poderes de Montesquieu, principalmente no tocante à mídia (vista
como um “quarto poder”) e à necessidade de se resguardar a liberdade e a independência da
informação como condição sine qua non de preservação da democracia constitucional.
Assim, no caso de o Poder Legislativo deixar de elaborar leis ou atos normativos que
visem a concretização de direitos constitucionais, o Judiciário acaba por emitir decisões que
reconhecem a omissão inconstitucional do parlamento e, enquanto não exista lei ou ato
normativo criado pelo Legislativo, tais decisões servirão de fundamento jurídico para o
reconhecimento de direitos. Nesse passo, o Judiciário acaba por representar grupos minoritários
ou vulneráveis carentes de representação parlamentar. A título exemplificativo (das funções
contramajoritária e representativa do Judiciário), pode-se citar:
A Literatura (assim como as artes em geral), nesse ponto, presta grande esclarecimento
a respeito das condições dos grupos vulneráveis e das minorias, uma vez que, diferentemente
de qualquer ensaio ou artigo puramente acadêmico, permite ao leitor aproximar-se de
determinada realidade social, provocando, necessariamente, um processo de catarse (kátharsis).
Aristóteles entendia que o processo de catarse correspondia à purificação da alma, uma vez que
importava na vivência de fortes sentimentos provocada pelo contato com as obras teatrais ou
com a música.
É, por esta razão, que a próxima seção se ocupará de demonstrar como a Literatura e as
artes em geral traduzem as condições sociais das minorias e dos grupos vulneráveis. A
Literatura tem o condão de – sob a égide do pensamento complexo de Morin – propiciar um
entendimento do ser humano em diversas dimensões (psicológica, econômica, histórica, etc.),
porquanto entende-se que os diversos ramos do conhecimento criados nas universidades “sejam
realidades, mas esquece-se que no econômico, por exemplo, há as necessidades e os desejos
humanos. Atrás do dinheiro, há todo um mundo de paixões, há a psicologia humana.” (MORIN,
2005, p. 68).
5 DIREITO, ARTE E LITERATURA: DIÁLOGOS TRANSDISCIPLINARES E A
QUESTÃO DA BANALIZAÇÃO DO MAL DE HANNAH ARENDT
“Capitães da Areia”, obra escrita por Jorge Amado em 1937, retrata a vida de um grupo
de crianças e adolescentes abandonados na cidade de Salvador (Bahia). Os meninos que
moravam no trapiche descrito por Jorge Amado logo no primeiro capítulo eram caracterizados
como “...sujos, semi-esfomeados, agressivos, soltando palavrões e fumando pontas de cigarro.”
(1937, p. 38). “Capitães da Areia” possui forte engajamento social e é, em certos pontos, uma
obra que denuncia as precárias condições sociais de crianças e de adolescentes abandonados,
bem como uma postura condenável por parte do Estado.
O personagem Sem-Pernas, na obra de Jorge Amado, era coxo e fingia dor para
conquistar a simpatia das donas de casa com o fito de descobrir objetos de valor nas casas.
Entretanto, Sem-Pernas sente-se mal ao enganar dona Ester, mulher que o tratou como se ele
fosse um filho. Sem-Pernas acaba falecendo em uma perseguição policial. Contudo, sua história
é um retrato das mazelas vivenciadas por crianças abandonadas, além de também representar
dificuldades vivenciadas por pessoas com deficiência:
Na tarde em que se foi, mirou a casa toda, acariciou o gato Berloque, conversou com
a criada, olhou os livros de gravura. Depois foi ao quarto de dona Ester, disse que ia
até o Campo Grande passear. Ela então lhe contou que Raul traria uma bicicleta do
Rio para ele e então todas as tardes ele andaria nela pelo Campo Grande, em vez de
passear a pé. O Sem-Pernas baixou os olhos, mas antes de sair veio até dona Ester e a
beijou. Era a primeira vez que a beijava, e ela ficou muito alegre. Ele disse baixinho,
arrancando as palavras de dentro de si: - A senhora é muito boa. Eu nunca vou
esquecer. (AMADO, p. 128).
Ouviu o bedel Ranulfo fechar o cadeado por fora. Fora atirado dentro da cafúa. Era
um pequeno quarto, por baixo da escada, onde não se podia estar em pé, porque não
havia altura, nem tão pouco estar deitado ao comprido porque não havia comprimento.
Ou ficava sentado, ou deitado com as pernas voltadas para o corpo numa posição mais
que incomoda. Assim mesmo Pedro Bala se deitou. Seu corpo dava uma volta e seu
primeiro pensamento era que a cafúa só servia para o homem-cobra que vira, certa
vez, no circo. Era totalmente cerrado o quarto, a escuridão era completa. O ar entrava
pelas frestas finas e raras dos degraus da escada. (1937, p. 263).
O dossiê deixa claro que os casos noticiados de lesbonocídio ainda estão distantes da
realidade, o que impacta diretamente na elaboração de políticas públicas destinadas a coibir a
violência contra mulheres lésbicas. O levantamento apresenta gráficos a fim de tratar a temática
a partir da idade, raça/etnia, método de execução, entre outros. Natalia Borges Polessa, na obra
“Amora”, trata do cotidiano das mulheres lésbicas, com o fito de trazer uma perspectiva de
inclusão para o grupo retromencionado a partir de temas do cotidiano. É o que se revela no
excerto a seguir:
Receberam as medalhas. Amora voltou para casa com uma bolacha prateada no peito,
os pais estranharam. Então ela contou sobre Angélica, sobre o acidente e sobre como
ela sentia sua mão como se ainda estivesse presa ao corpo. Nada de movimentos e
xeque-mates. Seu assunto era Angélica. Queria encontrá-la novamente, compartilhar
conversas queria saber mais sobre sua vida e o acidente e como foi a recuperação,
queria mais de Angélica. (POLESSO, 2015, p. 79).
Sugestão: prosseguir e inserir Graciliano Ramos e Conceição Evaristo.
Com efeito, Arendt não retrata Eichmann como um monstro de grandes proporções
vilanescas, mas sim como alguém que cumpria ordens de seus superiores sem nunca questionar
ou refletir a respeito daquilo que estava fazendo. Com efeito, a ausência do ato de pensar e o
cumprimento irrefletido de ordens teria contribuído em grande parte para o sucesso do regime
nazista. Arendt enxergava Eichmann como um homem simples, banal e medíocre que, até
mesmo em suas últimas palavras, valia-se de “clichês”. Havia, por parte de Eichmann, uma
obediência cega às leis e às ordens de seus superiores e uma total e completa indiferença pelas
vítimas. No mesmo sentido:
O exercício da gratuidade do mal ativo, que leva a atos monstruosos cometidos por
pessoas ordinárias, é, avalia Hannah Arendt, fruto de thoughlessness, uma
incapacidade de pensar dos que os perpetram. Esta incapacidade corre o risco de
generalizar-se e é extrema (por isso é perigosa), mas não profunda (por isso é banal).
Tem, no entanto, o potencial de irradiar-se como um fungo rasteiro e nefasto, que
pode espalhar-se pelo mundo, destruindo-o [...]. (LAFER, 2013, p. 33).
Cabe, então, frisar que uma das condições necessárias para a manutenção de regimes
democráticos é justamente a capacidade reflexiva propiciada pelas artes (como elemento da
expressão humana): é necessário que as pessoas se interessem pela política e que dela
participem; é preciso que o Judiciário, no âmbito do controle de constitucionalidade, possa
exercer suas funções contramajoritária e representativa (sem perder de vista todas as questões
concernentes às temática da tomada da decisão judicial e de hermenêutica jurídica, o que não é
objeto de exações no presente artigo); é imprescindível que exista uma separação atualizada
dos Poderes – e mais do que isso é preciso que essa separação resguarde a liberdade de
pensamento, de criação artística e de expressão das pessoas.
O presente artigo buscou discorrer, sob uma ótica transdisciplinar, a respeito de diversos
temas: evolução histórica do Constitucionalismo, democracia constitucional, Teoria da
Tripartição dos Poderes de Montesquieu, crise da democracia italiana, atualizações sugeridas à
teoria de Montesquieu a partir da obra de Ferrajoli, banalização do mal, Literatura, proteção
jurídica de grupos minoritários e vulneráveis e funções contramajoritária e representativa do
Judiciário em sede de controle de constitucionalidade. As principais conclusões extraídas da
pesquisa realizada são:
(i) Para que uma lei seja válida em uma democracia constitucional, não basta que
ela siga um procedimento, sendo necessário que a sua substância se encontre
coadune com a substância da Constituição, respeitada a esfera do indecidível;
(ii) A importância de que o poder seja capaz de limitar o próprio poder, como forma
de garantir a própria democracia;
(iii) A capacidade que a Literatura possui de contextualizar a realidade vivenciada
pelas minorias e pelos grupos vulneráveis, de sorte a propiciar uma reflexão
capaz de prevenir a chamada banalização do mal de Hannah Arendt;
(iv) A importância das funções contramajoritária e representativa do Judiciário em
sede de controle de constitucionalidade, no que tange à proteção de minorias e
de grupos vulneráveis.
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2011.
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MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de; O espírito das leis. Apresentação Renato
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