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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

DUVAN RICARDO MURILLO ESCOBAR

CAMINHANDO PARA APRENDER: CAÇA, PESSOA E MOVIMENTO


NOS XIKRIN DO BACAJÁ

CAMPINAS
2023
DUVAN RICARDO MURILLO ESCOBAR

CAMINHANDO PARA APRENDER: CAÇA, PESSOA E MOVIMENTO


NOS XIKRIN DO BACAJÁ

Tese apresentada ao Instituto de Filosofia e


Ciências Humanas da Universidade Estadual
de Campinas como parte dos requisitos
exigidos para a obtenção do título de Doutor
em Antropologia Social.

Orientadora: Profa. Dra. Artionka Manuela


Góes Capiberibe.

Coorientador: Prof. Dr. Carlos Rodrigues


Brandão.

ESTE TRABALHO CORRESPONDE À


VERSÃO FINAL DA TESE DEFENDIDA
PELO ALUNO DUVAN RICARDO
MURILLO ESCOBAR, E ORIENTADA
PELA PROFA. DRA. ARTIONKA
MANUELA GÓES CAPIBERIBE.

CAMPINAS
2023
Ficha catalográfica
Universidade Estadual de Campinas
Biblioteca do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
Cecília Maria Jorge Nicolau - CRB 8/3387

Escobar, Duvan, 1988-


Es18c EscCaminhando para aprender : caça, pessoa e movimento nos Xikrin do
Bacajá / Duvan Ricardo Murillo Escobar. – Campinas, SP : [s.n.], 2023.

EscOrientador: Artionka Manuela Góes Capiberibe.


EscCoorientador: Carlos Rodrigues Brandão.
EscTese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas.

Esc1. Índios Xikrin. 2. Caça. 3. Relações homem-animal. 4. Aprendizagem. 5.


Etnologia - Amazônia. I. Capiberibe, Artionka Manuela Góes,, 1970-. II.
Brandão, Carlos Rodrigues,, 1940--. III. Universidade Estadual de Campinas.
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. IV. Título.

Informações Complementares

Título em outro idioma: Walking to learn : hunting, person, and movement in the Xikrin of
Bacajá
Palavras-chave em inglês:
Xikrin Indians
Hunting
Human-animal relationships
Learning
Ethnology - Amazon
Área de concentração: Antropologia Social
Titulação: Doutor em Antropologia Social
Banca examinadora:
Artionka Manuela Góes Capiberibe [Orientador]
William Fisher
Uirá Felippe Garcia
Fabiano Campelo Bechelany
Antônio Roberto Guerreiro Júnior
Data de defesa: 06-10-2023
Programa de Pós-Graduação: Antropologia Social

Identificação e informações acadêmicas do(a) aluno(a)


- ORCID do autor: 0000-0002-4077-7418
- Currículo Lattes do autor: http://lattes.cnpq.br/1352578099586103
UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS

INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

A comissão julgadora dos trabalhos de Defesa de Tese de Doutorado, composta pelos(as)


Professores(as) doutores(as) a seguir descritos(as), em sessão pública realizada em 06 de
outubro de 2023, considerou o candidato Duvan Ricardo Murillo Escobar aprovado.

Profa. Dra. Artionka Manuela Góes Capiberibe (Unicamp – Presidente)

Prof. Dr. William Fisher (College of William & Mary - Titular)

Prof. Dr. Fabiano Campelo Bechelany (Unifesspa – Titular)

Prof. Dr. Uirá Felippe Garcia (Unifesp – Titular)

Prof. Dr. Antônio Roberto Guerreiro Júnior (Unicamp – Titular)

A Ata de Defesa com as respectivas assinaturas dos membros encontra-se no SIGA/Sistema de


Fluxo de Dissertações/Teses e na Secretaria do Programa de Pós- Graduação em
Antropologia Social do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
À memória de Onça

e Brandão
AGRADECIMENTOS

Quero começar expressando minha profunda gratidão e respeito aos membros do povo indígena
Xikrin que tornaram possível a realização deste estudo antropológico. Seu compromisso,
generosidade e sabedoria foram inestimáveis para a minha pesquisa e para o entendimento mais
amplo da sua rica sociedade. Em particular, desejo estender minha mais sincera gratidão ao
casal notável, Bep Tok - Onça e Irengri. Também a Kudjoeire e Ngrei-rô, seus filhos. Sua
hospitalidade, disposição para compartilhar conhecimentos e abrir suas vidas para mim como
pesquisador foram verdadeiramente inspiradoras. Suas histórias e visões de mundo
enriqueceram meu trabalho de maneiras que palavras não podem descrever adequadamente.

Txuak e Kwynhdjy foram também pessoas indispensáveis para que eu pudesse ter uma acolhida
significativa em Pytakô e posteriormente em Bacajá. Eles foram interlocutores, colegas,
amigos e mestres ao longo da minha estadia. Devo a eles a compreensão do mundo cinegético
Xikrin como campo prático e relacional.

Agradeço de forma especial a Bep Nhô, Bep Krá, Bep Nat e Txuak pela tradução que fizeram
dos amplos relatos dos mebenget. O interesse deles em ouvir sua própria história, fez com que
eu pudesse ter um acompanhamento cuidadoso das traduções que eles fizeram.

Além disso, gostaria de agradecer calorosamente a todos os outros membros das comunidades
Xikrin de Pytakô, Bacajá e Kenkudjoe que participaram de minha pesquisa, contribuindo com
suas perspectivas valiosas e experiências para este estudo. Cada um de vocês desempenhou um
papel fundamental na construção deste trabalho. Agradeço também pela confiança que
depositaram em mim, permitindo que eu convivesse e aprendesse entre vocês e compartilhasse
suas histórias. Espero que este trabalho contribua de alguma forma para a compreensão e
valorização das gerações que estão por vir. Meu respeito e agradecimento se estendem a todos
os nomes mencionados abaixo, que desempenharam um papel significativo em minha pesquisa.
Em Pytakô: além dos já mencionados, agradeço a Rayane, Bep Tok Picapau, Kupatô,
Nhakmoro, Bep Txorei, Nhakpôkti, Bep Kaire – Junior, Ted Jire – Dezoito, Ngrei-rô, Meití,
Prîngrire, Bep Ieretí, Ngrei Krú, Tapiex, Prîncare – Americano, Juca e Bep Kamrêti. Em
Kenkudjoe: Rogê, Paintí, Bep Koire, Bepto, Kroí e Ananias. Em Bacajá: Bep Nhô, Kwynhtu,
Bep Krá, Ire Y, Bekamrô, Tekakprekti, Bep Jotí, Konaipó, Ngrei Tó, Bep Pomatí, Bep Kirere,
Pedro, Bep Nat e Merettí. Sempre haverá alguns nomes que sejam esquecidos no momento de
escrever estas linhas, de antemão peço desculpas a eles.
Por outra parte, quero agradecer aos meus orientadores Artionka Capiberibe e Carlos Brandão,
cuja orientação e apoio foram cruciais para o desenvolvimento desta tese. Artionka, sua paixão
pela pesquisa e a maneira como você compartilhou suas percepções críticas ajudaram a moldar
meu pensamento e a direção desta pesquisa. Sua dedicação à causa indígena e sua disposição
em partilhar suas experiências comigo foram inestimáveis. Brandão, sua experiência
acadêmica e sua qualidade humana foram um alicerce durante os momentos mais difíceis da
minha trajetória acadêmica desde que cheguei no Brasil. Você sempre foi e seguirá sendo um
exemplo de vida para mim. Onde seja que você se encontre agora, lhe desejo paz. A sua
memória ficará viva entre os que lhe conhecemos. Espero que este trabalho honre o
compromisso que os meus orientadores investiram em minha formação acadêmica.

Gostaria de expressar minha profunda gratidão à banca avaliadora que dedicou seu tempo e
conhecimento para avaliar e enriquecer minha tese. Aos membros titulares da banca, Antônio
Guerreiro, William H. Fisher, Fabiano Bechelany e Uirá Garcia, minha sincera apreciação pela
honra de terem aceitado avaliar este trabalho. Suas análises cuidadosas e contribuições críticas
enriqueceram o conteúdo desta tese. Agradeço também aos membros suplentes da banca,
Regina Muller, Miguel Aparicio e Marco Tobón, por sua disposição e por estarem prestes a
contribuir para a avaliação deste trabalho. Agradeço com especial atenção a Clarice Cohn, por
me apoiar durante a minha chegada em Altamira em 2017, me apresentando o complexo mundo
dos Mebêngôkre. Também lhe sou grato pelas contribuições feitas no exame de qualificação.

Agradeço também pelas trocas, indicações de leitura e orientações específicas, aos professores:
Nashieli Loera, Julia Otero, Ana Gomes e Fabiane Bruno.

Cada um de vocês desempenhou um papel importante na validação acadêmica deste estudo.

Por outra parte, quero dedicar meus mais profundos sentimentos de amor e carinho à minha
família. Começando pela minha esposa Raquel Rodrigues, que nos últimos anos e durante a
pandemia e após a perda de seres próximos, continuou me dando todo seu apoio incondicional.
Ela é uma grande parte da razão das minhas alegrias. Ademais, ela sempre esteve preste a me
escutar, intercambiar ideias sobre a pesquisa acadêmica e ainda, fez uma grande parte das
correções gramaticais deste texto.

Dedico este trabalho a Deus e aos meus amados pais, Elías Murillo e Ludy Escobar, e ao meu
querido irmão, Sergio Murillo. Eles sempre estiveram ao meu lado, não apenas nesta jornada
acadêmica, mas ao longo de toda a minha vida. Me ensinaram que é possível amar, acreditar
em Deus e defender a causa indígena. O encorajamento que vocês me deram foram a força
motriz por trás de todas as minhas conquistas. Mesmo quando os desafios pareciam
insuperáveis, vocês estiveram lá, oferecendo seu apoio incondicional e acreditando em mim
quando eu duvidava de mim mesmo. Este trabalho é dedicado também a vocês como uma
expressão humilde da minha gratidão pela vida e por sonhar mais um dia.

Quero dar um agradecimento especial aos meus queridos sogros, Ariovaldo Junior e Ione
Costa, por sua presença calorosa e apoio constante durante os últimos anos. Desde o momento
em que entrei na vida de sua família, fui recebido com amor, carinho e respeito. Vocês têm
sido uma parte fundamental da minha jornada, oferecendo seu apoio incondicional e um lugar
acolhedor no Sul de Minas Gerais.

Agradeço a Porá, minha cachorra, que veio a integrar meu círculo familiar há quatro anos. Ela
é uma surpresa que a vida me deu. Sempre fiel, sempre amiga, sempre amorosa. O carinho de
uma espécie companheira é inestimável, do qual devemos aprender os humanos.

Aos meus amigos que de uma ou outra forma tem sido parte importante deste processo. Com
especial atenção agradeço a Randerson Lemos, Marcio Caparroz, Ana Borges, Chryslen
Mayra, Ivânia Martinelli, Edson Rocha, Denise Dohnal, Wagner Gervazio, Esly Monterrosa,
Cristian Guzman e Juan Guzman, por sua constante preocupação e carinho em minha vida. São
uma parte valiosa da minha jornada, trazendo opiniões, preocupações, apoio e calor humano
aos meus dias.

Quero também manifestar meus agradecimentos aos meus colegas do seminário de pesquisa e
ao grupo de estudos da minha orientadora, por contribuírem com suas leituras e indicações
tanto para o projeto de pesquisa como para a conclusão da minha escrita. Agradeço a Marina
Vieira, Chryslen Mayra, Arianne Lovo, Karine Assumpção, Marília Lima e todos os outros
membros do grupo. O ambiente colaborativo e intelectual que criamos juntos foi importante
para meu crescimento. Também agradeço a Ivânia Martinelli e Sarah Martins por suas
contribuições técnicas. Aos colegas do grupo do seminario de projetos 2017, em cabeça de
Antônio Guerreiro, minha gratidão por compartilharem suas perspectivas sobre o meu projeto
inicial.

Agradeço aos amigos que conheci em Altamira durante o tempo da minha estadia ali entre
2017 – 2018. Alguns deles me abrigaram nas suas casas e famílias, outros me abrigaram em
enfermarias e alojamentos dentro da TITB, sendo extremamente acolhedores. Ou então, me
compartilharam impressões, ideias e experiências sobre a pesquisa e as vivências deles. Me
refiro especialmente a Lidilene Silva, Lourival Souza, Cícero Souza, Nelivaldo Santana, Rita
de Cássia, Roberto Rezende, Maria Augusta, Thais Mantovanelli, Clara Baitello, Júnior
Macário, Sabrina Merces, Natalia Ribas, Vinicius Furuie, Adriana Maciel, Ananias Conceição,
João Carvalho e Leiliane Silva.

Por último, gostaria de reservar um momento para expressar meu profundo agradecimento a
mim mesmo. Ao longo desta jornada acadêmica desafiadora, enfrentei obstáculos, busquei
conhecimento, cresci como pessoa e pesquisador. Eu me dediquei incansavelmente a este
projeto, investindo tempo, dinheiro, saúde, esforço e paixão nele. Cada passo, cada expedição
no mato, cada palavra intercambiada, cada fotografia registrada, cada leitura feita, cada linha
escrita e cada descoberta feita ao longo deste caminho foi uma manifestação da minha
perseverança e do meu inegável amor pela disciplina antropológica. Que este agradecimento
seja um lembrete de que é importante celebrar com humildade nossos próprios sucessos e
conquistas.

Para todos (as) aqueles que possa ter esquecido, meus mais sinceros agradecimentos. Que a
vida nos continue reencontrando para compartilhar e aprender.
...Em corrida apavorada, coração de caça dentro do
mato, o caminho de folhas e cipós e raízes,
corredeiras, as picadas se abrindo e se
fechando...

Todo mundo é Onça, exceto quem não é.

Micheliny Verunschk. O som do rugido da onça.


RESUMO

Esta tese analisa a aprendizagem na prática entre os homens Xikrin, a partir da relação
estabelecida com a floresta através do ato de trekking, com enfoque na cinegética. Foi realizado
trabalho etnográfico nas aldeias Bacajá e Pytakô, na Terra Indígena Trincheira Bacajá, no
Médio Xingu, durante o período de 2017 a 2018. A etnografia baseou-se na abordagem da
cadeia operatória, explorando a antropologia das técnicas para formular uma análise do campo
experiencial da caça. Ademais, são analisadas, desde o perspectivismo ameríndio, as
ontologias, alianças e parentescos, assim como atitudes rituais e xamânicas que fazem parte
das experiências na floresta. A análise se debruça nos processos de prática-repetição-recriação,
entendendo-os à luz da aprendizagem situada e do conceito de skill, destacando o campo
processual no qual os Xikrin tornam-se caçadores. É evidenciada a importância da cinegética
na formação da pessoa masculina Mebêngôkre e na concepção de uma ecologia multiespécies.
Nesse sentido, a pesquisa destaca que a caça constitui uma prática que conecta caçadores,
animais, plantas e artefatos, com e na floresta, por meio de uma semiótica de interdependência
perceptiva.

Palavras-chave: Índios Xikrin, Caça, Relações homem-animal, Aprendizagem, Etnologia-


Amazônia.
ABSTRACT

This thesis analyzes practical learning among Xikrin men based on the relationship established
with the forest through the trekking practice, with a focus on hunting. Ethnographic work was
carried out in the Bacajá and Pytakô villages, in Middle Xingu, during the period 2017-2018.
The ethnography was based on the operational chain approach, exploring the anthropology of
techniques to formulate an analysis of the experiential field of hunting. Furthermore, the
ontologies, alliances, and kinships, as well as ritual and shamanic attitudes that are part of
experiences in the forest, are analyzed from Amerindian Perspectivism. The analysis focuses
on practice-repetition-recreation processes, understanding them in the light of situated learning
and the concept of skill, highlighting the procedural field in which the Xikrin become hunters.
The importance of hunting in forming the Mebêngôkre male person and in the conception of a
multispecies ecology is highlighted. In this sense, the research highlights that hunting
constitutes a practice that connects hunters, animals, plants, and artifacts with and in the forest
through a semiotics of perceptual interdependence.

Keywords: Xikrin Indians, Hunting, Human-animal relationships, Learning, Ethnology -


Amazon.
LISTA DE MAPAS

MAPA 1. TERRAS INDÍGENAS DOS XIKRIN E SEUS ARREDORES. ........................................................... 75


MAPA 2. TITB (TERRA INDÍGENA TRINCHEIRA BACAJÁ) E ALDEIAS XIKRIN ATÉ 2018. ................... 100
LISTA DE FIGURAS

FIGURA 1. RELAÇÕES BÉLICAS E PRIMEIRAS CISÕES ............................................................................ 79


FIGURA 2. ROTAS DE ACESSO PYTAKÔ ................................................................................................. 84
FIGURA 3. PROJEÇÃO DE ALDEIA PYTAKÔ ENTRE 2010-2015.. ............................................................ 93
FIGURA 4. ALDEIA PYTAKÔ ENTRE 2017-2019. ................................................................................... 95
FIGURA 5. ALDEIAS -VELHA E NOVA- INTEGRADAS E A ESCALA, 2017-2019....................................... 96
FIGURA 6. QUADRO DE PARENTESCO. PYTAKÔ 2017-2018. ................................................................. 98
FIGURA 7. PROVAS E RITOS DE MASCULINIDADE XIKRIN ................................................................... 109
FIGURA 8. ESPÉCIES CONSUMIDAS OU USADAS PELOS XIKRIN........................................................... 134
FIGURA 9. COMPARATIVA ENTRE CAÇA E PESCA ................................................................................ 153
FIGURA 10. ESTIMATIVA DE JUCA SOBRE OS PERCURSOS FEITOS. ...................................................... 176
FIGURA 11. ESPÉCIES FRUTAIS CONSUMIDAS POR MRY....................................................................... 194
FIGURA 12. REPRESENTAÇÃO DA SINALIZAÇÃO FEITA NAS ÁRVORES. ............................................... 197
FIGURA 13. PROJEÇÃO DE TIPOS DE CAMINHOS NAS PROXIMIDADES DE UMA ALDEIA. ..................... 202
FIGURA 14. ESTILO DE MOVIMENTAÇÃO ENTRE ROÇA FAMILIAR E A FLORESTA. .............................. 206
FIGURA 15. REVEZAMENTOS RETILÍNEOS E CIRCULARES. .................................................................. 208
FIGURA 16. PERCURSO FEITO POR MERETTI EM PUKÁKAMRÉ. ........................................................... 209
FIGURA 17. PERCURSO SEMICIRCULAR COM ENCONTRO DE MRY. ...................................................... 211
FIGURA 18. FORMAS DE LOCOMOÇÕES: ASSÉDIO COLETIVO DE QUEIXADAS ..................................... 215
FIGURA 19. FORMAS DE LOCOMOÇÕES: ASSÉDIO COLETIVO DE QUEIXADAS COM CACHORROS ........ 216
FIGURA 20. CIRCULAÇÃO COM CAMINHONETE AO LONGO DE UMA CAÇADA DIURNA NA ESTRADA. . 230
FIGURA 21. CIRCULAÇÃO AO LONGO DE UMA CAÇADA NOTURNA NA ESTRADA................................ 231
FIGURA 22. CIRCULAÇÃO ENTRE A ALDEIA E A PONTE PARA DUAS TURMAS. .................................... 232
FIGURA 23. DESLOCAMENTOS EM EXPEDIÇÃO DE CAÇA PELO RIO BACAJÁ. ...................................... 239
FIGURA 24. CAMINHADA EM KOKAKRODJÁ. ....................................................................................... 281
FIGURA 25. EXPEDIÇÃO FAMILIAR E ARREDORES. .............................................................................. 301
FIGURA 26. MODELO DE ENGAJAMENTO E APRENDIZAGEM NA FLORESTA. ....................................... 395
LISTA DE IMAGENS

1. BEP TOK - ONÇA. ................................................................................................................................. 6


2. KROÍ E ANGRÔ. .................................................................................................................................. 23
3. PRANCHA 1: ME OK (PINTURA CORPORAL) ....................................................................................... 43
4. PRANCHA 2: FABRICANDO COM AS MÃOS ......................................................................................... 58
5. TEDJIRE NA BEIRA DO BACAJÁ, ALDEIA PYTAKÔ. ............................................................................. 72
6. PRANCHA 3: BENADJWRE (CHEFES) .................................................................................................. 88
7. NGREI TÓ, GRENHO-GOITI E PÁHKONAT. ....................................................................................... 107
8. PRANCHA 4: CARNE E PREPARO ...................................................................................................... 141
9. PRANCHA 5. PESCARIA .................................................................................................................... 146
10. PRANCHA 6: COMPANHEIROS FIÉIS ............................................................................................... 163
11. MERETTÍ ANDANDO EM PUKAKAMREK ......................................................................................... 171
12. PRANCHA 7: ENTRE TRILHAS E EMARANHADOS ........................................................................... 187
13. CAÇADORES NA ESTRADA DE PYTAKÔ. ......................................................................................... 219
14. PRANCHA 8: CAÇA NA ESTRADA ................................................................................................... 226
15. PRANCHA 9: CINEGÉTICA NO RIO .................................................................................................. 243
16. PRANCHA 10: TIRANDO AKRÔ - CIPÓ TIMBÓ ................................................................................. 251
17. PRANCHA 11: ESTURRO DA ONÇA COM POH-TIK .......................................................................... 261
18. POH - TIK........................................................................................................................................ 264
19. PRANCHA 12: NOITE ..................................................................................................................... 273
20. BEP TOK - PICAPAU BATENDO TIMBÓ. ........................................................................................... 276
21. PRANCHA 13: CAMINHANDO EM FAMÍLIA .................................................................................... 295
22. PRANCHA 14: MENIRE................................................................................................................... 298
23. TXUAK ........................................................................................................................................... 308
24. PRANCHA 15: SUPRASSENSÍVEL.................................................................................................... 340
25. BEP INERE, FILHO DE KWYNHDJY, NAVEGANDO NO BACAJÁ PARA PESCAR. ................................ 358
26. PRANCHA 16: REPRESENTAÇÕES NA ESCOLA ............................................................................... 374
27. PRANCHA 17: MEPRIRE, ENTRE BRINCADEIRAS E O CORPO .......................................................... 378
28. JIM’S DOG. (COURTESY OF CLIFFORD TO HARAWAY). ................................................................. 400
29. ROP ACOMPANHANDO O KWYNHDJY. ........................................................................................... 407
30. CASTANHEIRA MORTA DA ALDEIA PYTAKÔ. ................................................................................. 430
SUMÁRIO

Glossário ................................................................................................................................. 20

PARTE I .............................................................................................................................. 24

Introdução: Uma Viagem Sem Retorno: Motivações, Desafios e referentes conceituais


deste Estudo ........................................................................................................................... 25

Sobre o projeto .................................................................................................................... 25

Viagem para Altamira ......................................................................................................... 27

Um lugar entre os homens Xikrin ....................................................................................... 32

O lugar da pesquisa no mundo dos estudos Mebêngôkre.................................................... 45

Aportes para a análise da cinegética .................................................................................... 54

Aportes teóricos à análise técnica........................................................................................ 60

Ritmos e percepções em uma floresta de signos ................................................................. 64

Capítulo 1. Cisões-agrupamentos: trajetórias históricas dos Xikrin do Bacajá .............. 73

O Cerrado, a Floresta Amazônica e as migrações dos Mebêngôkre ................................... 76

Contato ................................................................................................................................ 84

Bacajá e as primeiras cisões: final do século XX e começo do XXI................................... 90

Pytakô (2005-2018) ............................................................................................................. 92

Outras Cisões ....................................................................................................................... 99

Empreendimentos econômicos na região do Xingu: UHE Belo Monte ............................ 101

Box: as categorias de idade e os ritos de masculinidade .................................................. 108

Capítulo 2. Fundamentos da cinegética Xikrin: andar, comer e familiarizar ............... 113


Etnografia do ex(im)-plícito .............................................................................................. 113

Bà kam tem ........................................................................................................................ 119

Mry ou o que se caça ......................................................................................................... 130

Tep ou o que se pesca ........................................................................................................ 144

Kamere a coleta de açaí ..................................................................................................... 149

Krit ou animais familiarizados .......................................................................................... 154

Rop o bicho ambivalente ................................................................................................... 158

Amiy tá a revitalização da força......................................................................................... 167

PARTE II ............................................................................................................................. 172

Capítulo 3. Formas de caça: a propósito de trilhas .......................................................... 173

A floresta como rede ......................................................................................................... 173

Pry – trilhas ....................................................................................................................... 181

Trilhas curtas ..................................................................................................................... 201

Trilhas longas .................................................................................................................... 207

Capítulo 4. Formas de caça: estrada, água e imitação...................................................... 220

Estrada .............................................................................................................................. 220

Rio ..................................................................................................................................... 235

Poços.................................................................................................................................. 245

Grotas: sobre bater timbó .................................................................................................. 248

Esturrando no rio ............................................................................................................... 258

Esturrando na serra ............................................................................................................ 266

Capítulo 5. Tipos de caça: andar junto, caçar em solitário, viver em família ............... 277

Expedições coletivas ......................................................................................................... 278

Expedições em solitário ..................................................................................................... 285


Expedições familiares ........................................................................................................ 290

Caçar para comemorar, comemorar pela caça ................................................................... 303

PARTE III ............................................................................................................................ 309

Capítulo 6. Ver para mediar: xamanismo e caça ............................................................. 310

Etnografia do tabu ............................................................................................................. 313

A iniciação ......................................................................................................................... 315

O mediador ........................................................................................................................ 317

Âmbitos de relações xamânicas: negociação..................................................................... 324

Âmbitos de relações xamânicas: aprendizado ................................................................... 328

Âmbitos de relações xamânicas: bélicas ........................................................................... 332

Os seres intangíveis da socialidade Xikrin ........................................................................ 334

Feitiços: Akré e karón ....................................................................................................... 342

Os mortos........................................................................................................................... 347

Kanê: o universo das doenças............................................................................................ 350

Capítulo 7. Caça, ambiente e aprendizagem na prática .................................................. 359

Da cognição à aprendizagem situada................................................................................. 361

Da brincadeira à redescoberta dirigida .............................................................................. 371

Skill .................................................................................................................................... 387

Relações de aprendizagem são interações semióticas? ..................................................... 396

Considerações Finais ........................................................................................................... 408

Referências Bibliográficas .................................................................................................. 411


20

Jucupú – berarubú de massa de mandioca

Glossário Kaben-djwoy – chefe cerimonial.

Kamere – açaí
Kamere Kranti - bacaba
Ajkôkakó – disco labial de madeira
Kamré - vermelho
Àk- pássaros
Kangà - cobra
Àkkamré – arara vermelha
Kapot – campina, campo, cerrado.
Akré- Energia de raiva/força, agência
vingativa Kaprã - jabuti
Akrô - cipó timbó Kaprã-poi - jabuti tinga
Amiy - abelha, vespa Kapryt - vazio
Amiy ta - bater marimbondo / ritual Karanbej / pronhketí – jabuti piranga
iniciação masculina. Karón – energia vital, alma, espírito de
Amrẽte - acompanhar morto.
Anhoro = coração Katenbari - mamão
Apekre = boca Katen - abóbora
Atóm - espingarda Ken – pedra, roxa
Atykbe - espaço masculino localizado além Ket – negação, não.
do círculo de casas das aldeias, onde Ki – fogueira, fogão
residiam homens solteiros, hoje não existe
mais. Também se refere a lugares escuros. Kikre – casa, habita familiar
Bá – primeira pessoa (eu). Kohram – surubim
Bahkukré - alimentação Koiaká - borduna
Benadjwyry – portador da fala formal, Korokó - bacurau
chefe. Krãh-toi / kaprã-potire - tracajá
Baú - milho Krahn - cabeça
Bà kam tem - ir pro mato, estar no mato. Krah- bibãnh – loucura, doido
Movimentar-se, procurar.
Krãiti – pescada
Bó - babaçu
Kri – aldeia
Buanhoró – igapó
Krit – xerimbabo, animal de estimação.
Gá – segunda pessoa (você)
Krotí – traira
Grire – pequeno, menor
Kuben – não indígena, pessoa branca.
Gwaj – ir, bora.
Kuben kayik – pessoa estrangeira, não
Ibê - poço brasileira.
Ipôkri – espaço aberto entre o círculo de Kubenire – mulher branca ou não indígena
casas e a casa dos homens
Kubĩn – indicativo de matar, abater.
Jat – batata doce
Kubut – guariba, capelão
Jenuas – tios, tio-avô
21

Kudjà - olfato, sentido forte Mereremex – rito de nominação


Kujkox – macaco prego Metynjoi – ser do céu, usado para se referir
Kukejre - cotia a Deus cristão.

Kukradjà – elementos materiais, Metoro – dançar, grupo de pessoas


simbólicos, rituais que definem a uma dançando.
pessoa Mebêngôkre. traduzido geralmente Mex – bom, agradável, satisfatório.
como “cultura” Mebêngôkre. Mey/meú – movimento, seminomadismo.
Kukre kamakajti - mutum Mó – colher, capturar.
Kukrut - anta Moina – forma interrogativa/ porquê?
Kuni – muito, multiplicidade. Mok-Kômrei – arara vermelha
Kunum - capivara Mok-kôtuktí – arara azul
Kwyry kangô – festa de nomeação
More – veado mateiro
Mebêngôkre. Integra principalmente
homens ao redor da dança. Mroti - jenipapo
Kwyry dja - mandioca Mry – animal de caça ou apto para
consumo. Carne de caça.
Kwyry djàx – macaxeira, aipim.
Mrykupú – berarubu feito à base de carne
Mari - ouvir silvestre e mandioca
Mẽ - indica pessoalidade. Também plural. Mrum - formiga
Mebenget/i – velho/a, idoso/a. Mry wabore - animal domesticado
Mebêngôkre – indicador que abrange as
Mujten - Jacu
etnias falantes de língua Jê procedentes da
primeira aldeia. Mukangare – parado, que é quieto. Pessoa
preguiçosa.
Meboktire – crianças, primeira infância
Mutá – estrutura para suspender uma rede,
Mẽkranyre - homens adultos com mais de
usada em caça de espera pelos colonos
um filho.
Myt – sol
Mekrapõyn - mulheres casadas sem ou com
filhos pequenos. Mytyrú - lua
Mekrares – homens adultos com filhos Nekrets – pertences materiais que fazem
parte de prerrogativas rituais.
Mẽkratymre - homens adultos ainda ativos,
com vários filhos adultos, e netos. Ngô - água
Mẽkurêrê – mulheres adolescentes Ngô ka õm – bater timbó
solteiras. Ngô-gro – seca
Menire – mulher adulta Ngô-gró-mó – enchente
Menoronure – homens adolescentes Ngô-gró-moro – vazante
solteiros
Ngô-tup - inverno
Menoronure-tum – homens adolescentes
solteiros ou casados sem filhos Ngàb – casa dos homens/casa no centro da
aldeia
Mẽprintire - pré-adolescente
Meprire - crianças homens ou mulheres.
22

Ngokonbari – chefe de aldeia, também Tehuá – piaba


dono de maracá, pudendo ser também dono Tekapôt-ngô – extensão de água, rio
de canto nas comemorações rituais. Bacajá.
Ngrere - cantos Tep - peixe
Angrô – queixada, porcão Tep kamrêti – pirarara
Angrôre - caititú Tep picó – tucunaré
Nhak iú – veado mateiro Tep pó- pacu
Nhara – forma interrogativa/ o que? Tire - grande
Nhu mói – forma afirmativa/ sim, certo. Tox - forte
Nô - olhos Tukre – Escuro, preto.
Nu/ny – novo Tum - velho
Omunh - ver Turutí - banana
Padjé – bracelete usado no braço em
Tyk = escuro, morte
cerimônias.
Uabó – fraco, parado, sem habilidade
Pi’y – Castanha-do-brasil
Wayangá – xamã, feiticeiro
Pidjú – fruta. Extensivo a refrigerante
(pidjukangó)
Poh tik – instrumento de bambú para imitar
esturro da onça APIB – Articulação dos povos indígenas do
Poyre – nome classificatório dado pelos Brasil
Xikrin ao autor da pesquisa. Refere-se a um Casa do Índio – hospedagem transitória
tipo de pau escuro e resistente achado no para povos indígenas do Médio Xingu,
mato localizada em Altamira
Prire – baixo CASAI – Casa de Saúde Indígena
Pry – trilha, caminho, linha. DSEI – Distrito Sanitário Especial
Puká – terra, lugar de origem Indígena.
Punure – ruim FUNAI – Fundação Nacional dos Povos
Indígenas
Puru - roça
ISA – Instituto Socio Ambiental
Rerekre – fraco, debilitado
PBA-CI – Plano Básico Ambiental –
Ronhó – palmito de açaí Componente Indígena
Rop - cachorro PE – Política emergencial
Rop krori – onça pintada TITB – Terra Indígena Trincheira Bacajá
Rõpte – quintal de casas TNC – The Natural Conservation
Rop-tukre – onça preta UHE Belo Monte – Usina Hidrelétrica de
Ruõp/õntomoro – barraco, acampamento Belo Monte.
Ruõpte – quintal, arredores das casas.
23

33. Kroí e Angrô.


3. Kroí e Angrô.

34. Kroí e Angrô.

35. Kroí e Angrô.


24

PARTE I

OS XIKRIN E A FLORESTA AMAZÔNICA


25

Introdução: Uma Viagem Sem Retorno: Motivações, Desafios e


referentes conceituais deste Estudo

Sobre o projeto

Inicialmente, o meu doutorado foi pensado como uma continuação e ampliação da minha
pesquisa de mestrado, cujo estudo foi desenvolvido entre os indígenas Misak que vivem ao
Norte dos Andes, na Colômbia. Naquele trabalho, ocupei-me principalmente em entender o
aprendizado entre os Misak, partindo da análise de cosmologias andinas e analisando
concretamente o nak-chak1 (espaço de reunião ao redor do fogo) como prática principal de
interação e atualização de conhecimentos entre as diferentes gerações.

Assim, o projeto com que eu fui aceito no processo seletivo de 2017 no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Unicamp, continha a proposta de continuar
naquela linha de pesquisa, com o aporte de elementos da aprendizagem situada (Lave &
Wenger, 1991) em cosmologias andinas. No entanto, considerei a alternativa de elaborar um
estudo comparativo e multi-situado, no qual eu pudesse construir em um mesmo diálogo os
cenários cosmológicos de minha pesquisa anterior com os das terras baixas da América do Sul,
considerando concretamente elaborar um estudo centrado em um povo indígena da Amazônia
Central brasileira. Dessa forma, me propus elaborar uma etnografia multilocal, na qual tomaria
como referência de análise os espaços coletivos onde acontecem o aprendizado.

Pensei em fazer um trabalho comparativo entre o nak-chak e um espaço ritual de um povo


amazônico, para poder constatar a passagem de conhecimentos de uma geração para outra. Um
objetivo mais amplo seria a possibilidade de entender princípios epistemológicos em comum
entre uma região e a outra, as quais - ao serem equiparáveis - ajudariam a desconstruir as
barreiras históricas que têm distanciado os estudos entre as terras baixas e os Andes na América
do Sul.

Durante a elaboração do projeto, e após uma rápida pesquisa entre estudos elaborados sobre os
povos indígenas do Médio Xingu, encontrei que entre os Arara da TI Cachoeira Seca era

1
Usarei o itálico ao longo desse trabalho para palavras em línguas que não sejam o português.
26

praticado um ritual chamado ieipari2, e entre os Xikrin do Bacajá existia, além dos rituais de
passagem, uma estrita dicotomia espacial e relacional entre o privado e o público, sendo o
ngàb3 o cenário por excelência para os acontecimentos que tem a ver com o público.

Dessa maneira, decidi elaborar dois projetos de pesquisa vinculados às minhas preocupações
teóricas, projetando as possibilidades de superar as dificuldades de um estudo comparativo. O
primeiro projeto, com o qual fui aprovado no PPGAS da Unicamp, apontou para um estudo
comparativo entre o nak-chak Misak e o iepari Arara. No entanto, o segundo projeto, com o
qual concorri a uma bolsa internacional na Wenner-Gren Foundation, trouxe uma proposta de
pesquisa centrada no nak-chak Misak e o ngàb Xikrin. Considero que o segundo projeto,
elaborado com ajuda da minha orientadora Artionka Capiberibe (que era então co-orientadora),
possuía uma maior rigorosidade enquanto proposta de pesquisa, com possibilidades de
abordagem a partir do que George Marcus (1995) apresenta como uma etnografia multi local
e multi situada.

Devo reconhecer que a minha proposta de pesquisa para o doutorado foi “ambiciosa”, tal como
o próprio parecer da Fapesp ressaltou textualmente ao recusá-la. Ou uma abordagem
“prematura”, no sentido de precisar esgotar mais vias teóricas antes de colocar em questão a
minha hipótese comparativa, como o parecer da Wenner evidenciou. Acabei percebendo que o
meu projeto não receberia um parecer favorável, pois não se encaixava nos padrões que
atualmente prevalecem entre as agências de fomento4.

Nesse sentido, não passou muito tempo antes que eu desistisse da possibilidade de elaborar um
projeto com pesquisa de campo orientada em duas regiões afastadas. Não apenas porque os
pareceristas sugeriram que seria uma pesquisa com problemas de fundamentação, o que poderia
dificultar sua conclusão, mas porque um projeto dessa índole necessitaria de um grande
orçamento para cobrir os gastos logísticos. Um valor que ultrapassava os orçamentos de bolsas

2
Para aprofundar sobre o iepari, ver Teixeira Pinto (1996); e para o nak chak ver Escobar (2017).
3
O ngàb refere-se à casa de reunião comunal, localizada no centro da aldeia. Geralmente traduzida como “casa
dos homens” na literatura. O qual define um espaço historicamente ocupado pelos homens de múltiplas categorias
de idade. Inclusive, como explica Vidal (1977) o ngàb era um espaço habitado pelos homens da categoria
menoronure (jovens solteiros sem filhos em idade de participar de expedições). Na atualidade, ninguém mora no
ngàb. Ademais, é validada a participação das mulheres em certos momentos, principalmente quando se trata de
reuniões com kubén (representantes de órgãos governamentais, técnicos de Ongs e empresas subcontratadas pela
usina Hidrelétrica de Belo Monte).
4
Naquele momento, meu orientador era o professor emérito Carlos Rodrigues Brandão e ele – que fora
pareceristas da Fapesp durante seu período de atividade – me disse: “no final dos anos 80 e entre os 90, projetos
que parecem “ambiciosos” eram levados em bastante consideração e apoiados. Era uma época em que arriscar era
um mérito. Hoje, os projetos devem ser muito delimitados e focados em analisar um assunto o mais específico
possível".
27

de pesquisas de doutorado das agências de fomento na Colômbia ou no Brasil. Por isso,


também, meu interesse anterior em obter uma bolsa de uma fundação norte-americana.

Posso dizer que o meu doutorado sofreu mudanças substanciais desde o seu projeto inicial até
o momento do campo. Desisti do campo nos Andes e foi uma decisão com consequências
profissionais e pessoais que me afastaram do sul da Colômbia e me aproximaram da Amazônia
central brasileira. No entanto, encontrei um apoio muito especial por parte de Onça, meu
primeiro interlocutor entre os Xikrin, que me abriu as portas da sua aldeia e em seguida a da
sua casa. Ademais, sempre tive o apoio dos meus orientadores, a professora Artionka
Capiberibe e o professor Carlos Brandão, com quem fiz um recorte significativo do projeto.

Vale dizer aqui que a presente tese segue uma proposta de exercício de escrita textual a qual
vim trabalhando junto ao meu orientador no mestrado e parte do doutorado (Carlos Brandão)
onde a discussão teórica e os dados etnográficos, apesar de estarem intimamente conectados,
nem sempre são colocados em diálogo num mesmo texto. O leitor se deparará com capítulos
teóricos e outros muito etnográficos, não havendo sempre um diálogo desses dois âmbitos em
simultâneo. Nas partes onde considero que o leitor deve ser informado a respeito disso, optei
por apenas sinalizar entre parênteses a indicação para ler outro segmento ou capítulo da tese.
Assim, o leitor poderá aprofundar-se no arcabouço teórico ou na apresentação etnográfica. Em
todo o caso, diria que, de forma ampla, os capítulos da parte I e III estão estruturados com
discussões que dão lugar às referências teóricas, e a parte II, é essencialmente etnográfica.

Viagem para Altamira

No início de 2017, antes de haver concluído os créditos obrigatórios ou de ter recebido


respostas das agências de fomento em relação ao projeto de doutorado, me desloquei para
Altamira para acompanhar como consultor uma expedição ao longo do rio Iriri, seguindo a
montante do igarapé Rio Novo (bacia do rio Xingu), com o propósito de elaborar um
levantamento sobre os modos de vida de extrativistas de castanha ao longo dessa região,
localizada entre duas unidades de conservação a cargo do ICMBio. Não era a primeira vez que
pisava na Amazônia, e as outras vezes que visitei essa região me marcaram a tal ponto de saber
que deveria voltar.
28

Voltei para Altamira em agosto, me planejando para ficar durante um ano. Porém, a sensação
dessa vez era muito diferente. Pela primeira vez iria morar ali. Ademais, tinha o propósito de
adiantar uma pesquisa acadêmica no sentido estrito. Curiosamente, dessa vez as condições de
financiamento eram muito mais limitadas do que das vezes anteriores. Apesar disso, foi uma
ótima oportunidade para começar a vasculhar as possibilidades de implementação da minha
pesquisa. Rapidamente me inseri nas dinâmicas locais e pude perceber vários dos processos
políticos e sociais que estavam acontecendo naquele período, entre o médio Xingu e a Terra do
Meio, ocasionados principalmente pelo impacto da construção da UHE Belo Monte.

Passei um par de semanas me adaptando ao clima quente e úmido, bastante brusco para o que
estava acostumado. Explorei a gastronomia paraense, assim como a música. Foi um momento
para me introduzir no contexto “semiurbano” amazônico, onde teria minha base de moradia
durante um ano. Rapidamente entendi que Altamira, uma cidade com cerca de cem mil
habitantes, se compõe por um multiverso: na cidade transitam ribeirinhos (em constante
circulação entre os rios Xingu e Iriri e a cidade); migrantes do nordeste, vindos para a região
no começo do século XX; colonos gaúchos, migrantes na década de 1970, assentados em áreas
rurais, dedicados oficialmente à pecuária; obreiros, migrantes desde 2010, que foram trabalhar
na construção da barragem de Belo Monte mas acabaram ficando; funcionários de órgãos
governamentais e não governamentais, sendo uma grande parte deles do sudeste brasileiro; e,
claro, indígenas. Mas no caso desses últimos, representados numa rica multiplicidade étnica
que permite que até as pessoas mais distraídas percebam nos arredores da Casa do Índio a
diferença nas estéticas e formas relacionais entre um povo e outro.

Não passou muito tempo antes de me apresentar para a Funai e começar a participar de um
evento organizado por uma empresa subcontratada pela Norte Energia (responsável pela
barragem de Belo Monte), que reuniu indígenas conhecedores de plantas medicinais de vários
povos, com o propósito de adiantar um intercâmbio e cumprir com um dos mandatos do Projeto
Básico Ambiental - Componente Indígena (PBA-CI) pactuado entre a usina de Belo Monte e
as comunidades. O evento me pareceu mais um ato teatral do que um verdadeiro círculo de
troca de saberes - dinâmica habitual nos Andes colombianos (Escobar, 2016) -, no qual o fator
determinante é a iniciativa dos próprios indígenas e não de uma empresa.

O valioso dali foi o começo de uma relação de admiração e muita estima pessoal por um dos
velhos chefes da etnia Xikrin. Foi no 21 de agosto de 2017 que conheci o Bep Tok, ou como
29

todos o chamam, o Onça5. Num canto da sala estava ele com Irengrî, sua esposa, e do lado
deles o Kudjôeire, seu filho e atual chefe da aldeia Pytakô. Clarice Cohn, colega que trabalha
com os Xikrin há décadas, nos apresentou. Não precisamos cruzar muitas palavras, pois apesar
de que Onça podia falar um português relativamente bom, tentar estabelecer uma comunicação
principalmente verbal teria trazido limitações até então pouco vislumbradas. Os gestos
bastaram em muitos dos casos para demonstrar que o Onça se caracterizava por ser um
personagem de grande receptividade.

Levei Onça, Irengrî e Kudjôeire para jantar na minha casa provisória. O fato de mostrar meu
espaço foi um motivo para Onça querer mostrar o dele, com frequência falava “bora... bora”
dando a entender que eu devia fazer minha mala para ir com ele e sua família para Pytakô.
Ficava claro que eu seria um convidado especial, não havendo impedimentos para me receber.
Após a refeição, Onça insistiu em me mostrar o que eu iria aprender quando fosse na aldeia.
Sem mais, começou a dançar. Era uma coreografia muito rítmica, determinada pela marcação
do pé direito e encolhimento dos braços na altura do cotovelo. O que é? – perguntei.
Kworekango – ele respondeu. Me pegando pelo braço, foi me instruindo até eu conseguir quase
acompanhá-lo. Foi assim que ficou definido o meu destino para os próximos meses: de não ter
muita clareza sobre onde fazer a minha pesquisa, passei a ter o compromisso de conviver com
um dos principais chefes indígenas do médio Xingu.

Vale mencionar que de Altamira até a Terra Indígena Trincheira Bacajá, uma das moradas dos
Xikrin, é possível chegar por via fluvial subindo o rio Xingu até o afluente do rio Bacajá, e
remontando este último até entrar na TITB. Mas isso só na época de enchente, entre dezembro
e maio. No resto do ano, caracterizado por ser época de seca, é necessário se deslocar por via
terrestre, pegando a transamazônica desde Altamira até Maracajá e ali desviando pelo interior
das vilas. Após transitar entre múltiplas estradas de terra -conhecidas como travessão- é
finalmente atingido o acesso à TITB. São quase 450 km que separam a cidade da morada dos
Xikrin, fora os custos de alugar um frete que podia passar dos dois mil reais na época. Assim,
era necessário um planejamento antes de qualquer tentativa de deslocamento.

A TITB Trincheira Bacajá estava conformada por mais de dez aldeias no ano de 2017, porém,
em princípio, eu iria fazer minha imersão de campo só na aldeia Pytakô. Passou mais de um

5
Uma grande parte deste trabalho é elaborado com base nos conhecimentos compartilhados por ele. Quero avisar
ao leitor que, não possuindo uma preferência pelo uso do nome formal do meu interlocutor, irei chamá-lo na
maioria dos casos, por seu apelido.
30

mês antes de eu conseguir uma carona que me levasse até a aldeia. Entre leituras relacionadas
aos Xikrin, trâmites, malas e logística, o tempo passou.

A chegada na aldeia foi um evento casual. Os habitantes estavam cientes de que iriam receber
um hóspede, mas ninguém sabia exatamente quando. Arribei no final do dia, ao descer do carro
-cheio de malas e “rancho” - muitos curiosos, principalmente mulheres, começaram a se
aproximar e observar com insistência meus bens. Falavam Mebêngôkre entre elas, sinalizavam
e riam. O Onça, sentado na frente do quintal da sua casa, me esperou com uma postura
sossegada. “Cheguei” – eu falei. “Uhn, é, chegou...” ele respondeu, “senta aqui” – disse em
seguida. Levantou-se, entrou na sua casa e pouco depois saiu junto a Irengrî, ela por sua vez,
trazendo um carrinho de mão. Colocamos todas as minhas coisas no carrinho, não sabia o que
fazer, permaneci parado. “Bora, tu vai dormir ali” ele me disse, enquanto sinalizou uma casinha
na diagonal da deles.

As casas Xikrin são bem diferentes do que eu tinha visto em fotos sobre os Kayapó e
Mebêngôkre. A partir de 2015, depois que os Xikrin foram considerados oficialmente como
indiretamente impactados pela construção da barragem de Belo Monte, começou a ser
implementada uma série de políticas assistenciais que forneceram desde bens - como
ferramentas de trabalho na roça -, até a construção de casas de alvenaria e amianto. A
elaboração das moradias parece ter sido acordada entre os indígenas e a Norte Energia,
concessionária da construção da usina. Porém, são casas projetadas a partir da arquitetura
padrão usada para a implementação de projetos de moradia subsidiada. Não parecem
contemplar nenhum preceito que dialogue com o ambiente onde são levantadas (os telhados
são facilmente quebrados na época de chuva, concentram umidade; às tardes as paredes retém
altas temperaturas, apresentam poucas entradas de ar e os muros divisórios entre os cômodos
não foram levantados até o teto, facilitando a acumulação de sujeiras).

Chegando na casinha pude perceber que fazia meses ninguém entrava ali. O casal me indicou
para entrar em um dos quartos, falaram para eu descansar e no dia seguinte procurá-los. Quis
sair na varanda da casa um pouco mais tarde, ali fui abordado por um homem de aparência
jovem, fisicamente formidável e de um português fluido. Indicou que seu nome era Txuak,
continuando a falar, fez uma pergunta difícil: “por que tu está aqui, o que tu quer?”.

Por que estava ali? Eu mesmo fiz essa pergunta dias antes de entrar em campo. Penso que são
duas motivações que levam a responder aquilo. Por um lado, se relaciona com o âmbito
profissional: os antropólogos precisam de campo para resolver as questões conceituais e
31

teóricas que lhes inquietam. O fundamento da nossa disciplina é a vivência em campo, é um


assunto instituído na nossa área, desde a experiência de Malinowski na Melanésia, onde ficou
demonstrado que ele só poderia ter desenvolvido a sua proposta teórica funcionalista
resolvendo, primeiramente, as linhas metodológicas do seu trabalho. Na sua obra, os preceitos
metodológicos são tanto ou mais importantes do que suas teses conceituais, contribuindo de
maneira fundamental para a premissa de fazer antropologia a partir da etnografia. Assim, falei
primeiramente para o Txuak: “eu sou professor e minha área trata de entender como vivem os
grupos e as pessoas. Agora quero saber como vivem os Mebêngôkre...”.

Por outro lado, a resposta a essa questão tem uma segunda parte, que está diretamente ligada à
pessoa do antropólogo. Independente do destino, um antropólogo deve ser uma pessoa disposta
a sair do seu conforto. E não me refiro exatamente do seu lar, falo do conforto intelectual. Pois
na nossa área, principalmente quem trabalha com populações tradicionais e indígenas – mas
com a possibilidade de ser estendido a outras subáreas da antropologia – constantemente
evidenciamos que as nossas hipóteses são ultrapassadas e é necessário estar numa constante
relação de alteridade com os nossos interlocutores de pesquisa, para poder dar conta do que
realmente as ontologias e o mundo experiencial querem manifestar para eles mesmos e para
nós. Então, o antropólogo em campo, ou melhor, o etnógrafo, precisa estar disposto a ser um
“aprendiz da vida”, se refazer e assumir que seu conhecimento só pode ser reafirmado enquanto
desmontado, pois assim, o conhecimento dos outros passa a integrar o nosso, a partir de um
campo mútuo e poli interpretativo. Dessa forma, prossegui a responder para o Txuak: “estou
aqui para viver e aprender de vocês”.

Txuak respondeu: “Eu gosto de kubẽ-kayik (não indígena estrangeiro), porque eu também
quero aprender. Se você me ensina coisas, eu vou aprender. E eu vou ensinar para você também
coisas daqui. Eu tenho uma preocupação: quero que a minha aldeia aprenda coisas, coisas dos
velhos daqui e coisas dos kubẽ que vem”. Foi dessa forma que conheci o Txuak, que viria a ser
um valioso aliado, interlocutor, tradutor e amigo durante os sete meses de campo que fiz na
aldeia Pytakô. Esse personagem sempre tem se caracterizado pela sua curiosidade. É o tipo de
pessoa que intriga os pesquisadores, pois é crítico, analítico e estratégico. Questiona e tenta
entender os modos de vida da sua sociedade. E, apesar de ser um cristão abertamente assumido,
aliás, pastor da Assembleia de Deus na sua aldeia; é também, uma das pessoas mais
preocupadas com a tradição oral do seu povo. Com frequência me acompanhava quando me
sentava às tardes ou noites perto de Onça para ouvir alguma narrativa; e posteriormente, me
32

abordava para refletirmos juntos sobre a fala do velho, tentando entender e interpretar a
trajetória mítica, histórica e étnica dos Mebêngôkre e especificamente dos Xikrin.

Os primeiros dias na Pytakô me fizeram dedicar minha análise ao papel do antropólogo em


campo. A chegada, a meu ver, é o momento que determina, na sua maioria, as relações com as
pessoas, os espaços e o tempo na primeira etapa. Vai ficando em evidência qual será o círculo
social de aderência, pois nem todas as famílias e casas se abrem para receber o visitante6. É
importante entender como funcionam os tempos, já que como na nossa vida cotidiana, ali
também é necessário se adaptar à comunidade, ao trabalho, lazer, alimentação, higiene, e claro,
pesquisa. E os espaços, na medida em que é importante entender onde se deve circular, saber
dos limitantes para não criar intrigas: existem, no caso dos Xikrin, espaços claramente
reservados aos homens e outros às mulheres, ademais, é importante identificar desde o começo
quais são os espaços prediletos para a pesquisa.

Dedicar tempo a entender esses fatores me permitiu encontrar meu papel ali, acelerando o
processo de reconhecimento, ganhando a confiança não apenas dos homens, mas também de
algumas mulheres que se mostraram receptivas com a minha presença. Decifrar meu papel em
campo foi um fator determinante para construir minha pesquisa. Pude constatar elementos que
talvez sempre tenham estado ali presentes, mas que outros trabalhos sobre os Mebêngôkre não
viram e/ou manifestaram com detalhe. Isso em termos da premissa de Geertz (1981) onde
ninguém tem a verdade absoluta e abstrata do que é uma sociedade, pelo contrário, estamos
num campo da interpretação em várias etapas: desde o campo até a escrita.

Um lugar entre os homens Xikrin

Durante a primeira semana de campo e enquanto eu construía as primeiras relações de


confiança com os habitantes de Pytakô, houve momentos em que não discernia claramente
como proceder em relação à minha pesquisa. O ngàb - casa dos homens, lugar que inicialmente
tinha me proposto etnografar, era pouco ativo. Porém, os Xikrin flutuavam entre a aldeia, a
cidade e a mata, sem que eu pudesse entender o proceder e o planejamento que as pessoas e
famílias tinham. Somado a isso, na segunda metade do ano, a região do Xingu é comumente

6
Seria enganação generalizar e dizer que chegou um momento do campo no qual poderia me sentar e arguir com
plena confiança com qualquer integrante da comunidade. Houve casas onde nunca entrei, e pessoas com as que
pouco falei. Como em qualquer comunidade, não todos são abertos a visitantes, e, apesar das demonstrações de
confiança no estrangeiro, para alguns deles um estrangeiro é só isso... mais um kube das vilas próximas.
33

invadida pela marcante seca que impregna no ar uma temperatura sufocante, além de deixar o
rio reduzido a uma rota fluvial intransitável. Eu não estava acostumado com esse tipo de
ambiente, portanto, não tinha um recanto dentro da aldeia que fosse confortável. Dediquei-me
a repassar questões básicas da língua Mebêngôkre com o propósito de melhorar a minha
comunicação verbal.

Tudo isso me fazia ficar obcecado com sair dali e reconhecer os arredores. A minha curiosidade
me pedia para ir além e ver o que tinha nas proximidades de Pytakô. Queria pegar uma das
trilhas atrás das casas e ver até onde conduzia, andar pela beira do rio no sentido norte e
fotografar espaços diferentes. No entanto, para alguém que estava ali pela primeira vez e que
não era “do mato”, seria uma grande irresponsabilidade ultrapassar os limites do estabelecido
como doméstico.

Fiz uma tentativa de pescaria com Kupatô, o neto de Onça, e mais um par de meninos. Fomos
um pouco ao sul da aldeia. Esse ato foi mais um acompanhamento forçado da minha parte do
que um convite de parte deles. De qualquer forma, foi uma tentativa falida e ninguém
perseverou na atividade. Onça foi o primeiro a me convidar formalmente para ir fora do círculo
de casas. Foi uma terça 31 de outubro, por volta das três horas da tarde. Ele disse: “gwaj puru
mã té” (vamos para a roça, bora). Pelo jeito, eu estava atrasado e deveria me apressar. Era uma
oportunidade que não pensava desaproveitar. Coloquei as botas e o chapéu, amolei o facão e
guardei um par de cartuchos 20 milímetros no bolso, pensando que Onça poderia demandá-los
em algum momento7. Foi assim que entrei finalmente numa trilha Xikrin.

Esse convite foi o primeiro de muitos outros que se seguiram diariamente por parte de Onça e
Irengrî, sempre para ir em uma grande roça de uso do casal onde estavam plantando maniva
(brotos de mandioca brava). A roça se tornou um espaço privilegiado, já que me sentia
acolhido, aprendia sobre o plantio e treinava a língua. Em outras palavras, virou um espaço de
estudos onde, apesar do calor, consegui me inserir numa rede de relações que me eram
confortáveis. Onça costumava ser muito pedagógico, me mostrava seus cultivos de mandioca
(Kwyry dja), os pés de mamão (katenbari) e banana (turutí), a batata-doce (jat) e a abóbora
(katen), entre outros cultivares. Expunha como devia fazer o corte da bananeira, como
encontrar batatas na terra e principalmente, como plantar a maniva.

7
Colegas tinham me avisado que cartuchos para os homens e missangas para as mulheres eram presentes que não
deveriam faltar na minha viagem. Assim, levei uma provisão grande de cartuchos, a qual fui distribuindo aos
poucos durante meu campo.
34

Uma tarde, enquanto abríamos covas, Onça escutou o canto de umas araras-vermelhas (mok-
kômrei) as quais, chegando de forma furtiva, pareceram se esconder no interior de um tronco
de castanheira morta. Ele me disse sobre seu interesse de pegá-las para fazer um cocar (kruapú)
com as penas. Segurando a espingarda (atóm) tentou atingi-las, mas rapidamente desistiu pois
aquelas, sentindo a nossa presença, voaram com pressa.

Ao voltar na aldeia e cair a noite, Onça se sentou na sua cadeirinha como era costume e
começou a arguir sobre experiências que teve pegando araras na sua juventude, explicando do
cuidado que se deve ter para não estragar as penas das asas na hora da captura. Não obstante,
rapidamente acrescentou ao espectro da sua narrativa outras espécies de animais da floresta.
Entendi que estaria falando de antas e veados e de como é importante saber acertá-los, seja com
espingarda ou com flechas. Ademais, fez questão em indicar que na sua juventude usava
flechas, tendo a capacidade de acertar o coração e os ouvidos desses animais. Outro aspecto
que chamou a atenção, é que se dirigindo a mim, insistiu em que devíamos continuar
procurando as araras, ou seja, acrescentou um novo desafio à nossa rotina e depositou parte
dessa responsabilidade em minha companhia.

Durante o meu campo - a partir de então - foram constantes os convites de Onça, somando
sempre um fator novo às idas na roça ou mesmo no mato. Sempre havia desafios tácitos, como
rastrear pequenos roedores na roça, localizar ninho de araras, navegar através do rio seco até
ilhotes onde costumava esturrar para imitar onças, ou inclusive, procurar por um tipo de granito
branco para confecionar ajkôkakó8. Contudo, essas aventuras não se esgotaram. Pelo contrário,
trouxeram novas possibilidades para mim dentro da aldeia: a cada experiência na roça ou na
mata próxima, era construída uma narrativa às noites no quintal (rõpte) da casa, tendo a
interlocução de Onça e a interação das famílias. Assim, a fama de que Poyre (meu nome entre
os Xikrin) era cuidadoso com as tarefas dadas pelo velho não demorou em dar à minha presença
na aldeia, uma posição favorável.

Se o Onça foi o primeiro a me convidar a sair da aldeia, minha circulação não se restringiu
apenas à cartografia do velho, sendo inserido rapidamente em um sistema masculino de práticas
que me designou um lugar entre os homens de Pytakô. O que num princípio pareceu uma forma
individual de me aproximar ao meu interlocutor e sua esposa, parece que foi mais um processo

8
dispositivo de pedra incrustada no lábio inferior dos homens Xikrin, diferente do disco labial usado pelos
subgrupos Mekranogti. Hoje, apesar de todos os homens fazerem a perfuração na parte inferior do lábio, é raro
encontrar alguém que use a pedra ou algum enfeite, sendo usado apenas pelos mais velhos, exclusivamente às
noites ou em espaços rituais.
35

de teste para avaliar as minhas capacidades físicas, minha ética e, ainda, para me introduzir em
uma lógica de funções onde eu deveria ocupar um espaço com responsabilidades e deveres.
Acompanhar o Onça na roça foi apenas um primeiro passo para eu ser aceito pelos homens da
aldeia e visto como alguém com quem eles poderiam contar. Nesse ponto, o ngàb não era mais
o espaço predileto a ser etnografado, e sim, os contextos onde os mekrares (homens adultos)
me convidassem.

Assim, poucos dias depois dos acontecimentos das araras, houve uma movimentação de
algumas famílias que falaram sobre ir pegar peixe. Em princípio pensei que seria no rio Bacajá,
talvez algum poço onde tivesse proliferação de certas espécies no meio da seca, embora os
organizadores da atividade me explicaram que iriam mata adentro. Bep Kaire – Junior –, quem
agitou a expedição, me disse: “gwaj...” (bora...) - bá? (eu?) - perguntei. Ele só assentiu com a
cabeça. Fiquei um pouco confuso, tive que confirmar com o Onça para tirar minha dúvida.
Onça me disse: “amrẽte...” (vai...), dando a entender que era para acompanhar a atividade.

A minha primeira experiência no mato não foi propriamente uma caçada9, foi talvez uma
tentativa de lembrar o mey -seminomadismo, através do ngô-ká-ohm (bater timbó)10. Se
deslocaram duas famílias inteiras: avô, filhas, genros e netos (crianças). Caminhamos durante
um pouco mais de uma hora até uma grota11, ali seria realizada a pescaria. Estando no local, o
grupo se dispersou. Eu acompanhei um dos menoronure-tum (homens solteiros), quem me deu
apoio e falou para ir no passo dele. A distribuição do grupo se propôs a reunir o cipó-açu com
o qual seria realizada a atividade na água. Contrário à abundante presença de lianas ao longo
da mata, o cipó procurado é escasso, não restando a mínima possibilidade de que eu, sendo um
ignorante enquanto à fisiologia da espécie, encontrasse a planta certa.

No retorno, o grupo foi se reagrupando aos poucos na beira da grota. Os homens entraram na
água com o cipó que previamente foi cortado e organizado em forma de feixes. Ali, literalmente
“bateram” nos feixes com outro através de um ritmo compassado e intenso (ver capítulo 4 sobre

9
Ao longo do campo entendi que a caça, como valor agonístico, se dá em qualquer momento e espaço, não se
restringindo estritamente às expedições, apesar destas serem o escopo etnográfico deste estudo. Os caçadores são
predadores sempre que um contexto o demande, não sendo o planejamento de uma expedição, um pré-requisito.
Em outras palavras, o caçador nunca deixa de ser caçador, em momento algum... seja dentro da aldeia, fora desta
ou, inclusive, na cidade.
10
Refere-se a um contexto nômade ou de expedições longas, principalmente durante a seca na época pré-contato.
Ali, práticas como a caça, bater timbó e a coleta de objetos usados na fabricação de flechas (taquara) e colares
(conchas) compunham a rotina dos indígenas. Ademais, o âmbito ritual em representação de metoro era predileto
durante os períodos fora da aldeia (ver Vidal, 1977, para ampliar).
11
Esse substantivo será usado ao longo deste texto referindo-se a pequenos corpos de água naturais (menores que
os igarapés) nos quais é possível fazer bloqueios com redes de pesca para impedir o transito de peixes, com o
propósito de pescar ou bater timbó.
36

grotas e formas técnicas de bater timbó) . Por outra parte, as mulheres e crianças, assim como
o Bep Kaire (Junior), permaneceram na beira com bordunas, arcos e flechas. No meu caso,
entrei também na água com alguns dos cipós que previamente tinha ajudado a cortar. Comecei
a bater e imitar a cadência dos meus colegas. Apesar de que a água ficou turva e era impossível
enxergar através dela, pouco tempo depois, diria que entre vinte e trinta minutos, esta começou
a se mexer de forma autónoma e trepidante nas proximidades da beira. As crianças começaram
a atirar flechas nos lugares onde os corpos de água se movimentavam. Sem muita dificuldade,
acertaram uma quantidade considerável de peixes. Em paralelo, os peixes começaram a pular
fora da água, mulheres com porretes batiam para massacrar os peixes antes de que estes
encontrassem alguma via de fuga.

Uma questão a ressaltar nessa atividade consiste nos intervalos marcados pelos diferentes sons
emitidos ao longo da prática. Num primeiro momento, o silêncio é interrompido pelos homens
que batem um cipó contra o outro, assemelhando-se a uma percussão sincronizada. Ato
seguido, as mulheres, incluindo as crianças, permanecem em silêncio e um pouco afastadas da
beira da grota, evitando que a silhueta dos seus corpos se reflita na água, o que poderia
afugentar os peixes. Já num segundo momento, quando a própria água fica agitada e os peixes
aparecem na superfície, crianças e mulheres protagonizam um frenesi de alaridos, pulos e
batidas, enquanto os homens aceleram as batidas do cipó dando a impressão de que estes
servissem também como tambores de guerra que direcionam a batalha para o momento de
acometida e captura (me debruçarei nesses aspectos no capítulo 4 e 5).

O processo de apreensão foi em certa forma rápido. Os peixes vieram em bando e a


movimentação das pessoas não se fez esperar. Os cestos e paneiros encheram em questão de
minutos. Apenas sobraram alguns peixes perdidos tentando pular fora da água, os quais
serviram de brincadeira e atração para as crianças. Logo depois, houve uma breve
comemoração. Nós que estávamos na grota descartamos o cipó e procedemos a buscar conforto
nas proximidades da fogueira onde estavam sendo moqueados alguns peixes. As mulheres
propiciaram um espetáculo de comentários graciosos enquanto se auto respondiam com
risadas. Os homens, cansados, mas com força para falar, emitiram alguns gritos fortes,
indicando a sua vitória. Junior acendeu seu cachimbo e não parou de falar, sem chegar a ser
uma fala formal/verdadeira, pareceu que não era uma fala trivial.

Após uma refeição, abastecemos os paneiros e voltamos pelo mesmo caminho de entrada.
Chegando na aldeia, Júnior pegou a sua produção e a ofereceu na cozinha de Onça e Irengrî.
Aquilo faz parte de um protocolo entre sogros e genros, sendo que o genro deve oferecer parte
37

do resultado das expedições para a casa do sogro12. No caso de Bep Kaire- Júnior, sendo ele
viúvo, a sua figura está supeditada completamente à comensalidade emanada da cozinha de
Onça, ou seja, ele se alimenta geralmente ali, e tudo o que caça, pesca ou captura é conduzido
para dito espaço, correspondendo a Júnior o consumo de apenas uma porção do que ele
conseguiu e não necessariamente a melhor parte da presa.

Já em Pytakô, houve mais uma refeição no quintal de Onça. Nós que tínhamos comido,
voltamos a comer, e os que tinham permanecido na aldeia, comeram também. Ao cair a noite
se deu um metoro improvisado. A meu ver, foi uma demonstração de parte dos velhos Onça e
Tapiex para as crianças e para mim, enunciando um tipo de canto referido ao timbó e uma
coreografia de breves intervalos. Fui convidado junto com um dos menoronures (adolescentes)
e um par de meprires (crianças) a integrar a dança. Não pareceu um metoro formal, se é levado
em conta que este constitui na atualidade um ato um pouco isolado e em certa forma restrito a
momentos festivos nos quais normalmente se reúnem várias das aldeias Xikrin existentes.
Assim, o metoro não é mais uma prática cotidiana que acontece com alta frequência às noites
no Ipôkri (espaço público de circulação na aldeia, localizado entre as casas, quintais e a casa
dos homens.), e isso é motivo de reclamação dos mais velhos, pois estes relatam que um par
de gerações atrás e na época pré-contato, era comum dançar diariamente.

Devo dizer que foi um privilégio acompanhar esse momento. Inclusive, hoje, penso que teve a
ver com a minha presença e principalmente com a pescaria bem-sucedida da qual fiz parte,
representando algum tipo de comemoração que precedeu à minha aceitação pelas famílias de
Pytakô, ou pelos menos a maioria destas. Isso me levou a compreender que o ato de
acompanhar os Xikrin numa expedição constitui uma experiência polissêmica de imersão
perceptiva na qual cada sujeito, independente da sua trajetória e capacidade, ocupa um lugar e
uma função num cenário definido por uma predisposição agonística. Apesar de ser inexperto e
de não estar ali para caçar, eu virei, temporariamente, um sujeito caçador.

***
Partindo do fato de que o meu interesse de pesquisa tem sido a aprendizagem e as formas
como ela apresenta continuidades e atualizações ao longo do tempo. A abordagem das

12
Salvo algumas exceções como nos casos em que Junior deixa açaí na casa de seu filho Kwynhdjy para consumo
da criançada. Não obstante, na maioria dos casos, a carne, sendo altamente valorizada, tem como fim a casa de
Onça e Irengrî, seus sogros.
38

cosmologias, epistemologias, espaços e técnicas onde é dinamizada a aprendizagem, tem


constituído meu principal foco de análise, chegando a configurar a minha dissertação de
mestrado e a estrutura do meu projeto de doutorado. Portanto, uma vez que defini meu espaço
entre os Xikrin, replanejei meu trabalho de campo e o meu “roteiro” de pesquisa, com o
propósito de dedicar à análise aos processos masculinos de aprendizado na prática, definindo
como ponto de partida a passagem de saberes através de três grandes categorias de idade
masculinas menoronure (adolescentes), mekrare (casados com filhos), mebenget (velhos). Vale
dizer que quando pensei nas possibilidades de abordar o aprendizado entre os Xikrin, assumi
que iria passar a maior parte do tempo, ou pelo menos longos períodos, no ngàb (casa dos
homens). Mal sabia que meu principalmente campo de relacionamento seria fora da aldeia13.

Fui aceito na Pytakô na posição de um homem novo, eles esperavam de mim fortaleza,
coragem, disciplina e dinamismo. Levaram-me até à roça para capinar, abrir covas, plantar
maniva e até coivarar a madeira. Mas o maior desafio foi ir para o mato e acompanhar as
expedições e caçadas que demandaram de mim esforços físicos durante vários dias, que nem
eu sabia se conseguiria realizar.

Para os Xikrin, assim como para outras sociedades Mebêngôkre, os antropólogos não somos
só “antropólogos”, temos uma responsabilidade direta de participação nas atividades das
famílias que nos acolhem. Em alguns momentos é a roça, em outros, para o caso dos homens,
é caçar: junto com outros homens ir atrás de queixadas, antas, veados (mry). Sempre temos
responsabilidades no dia a dia, além de observar, perguntar e escrever nos diários de campo.
As poucas vezes que permaneci na aldeia para me ocupar da escrita, cheguei a ser chamado de
mukangare adjetivo que se refere a pessoas passivas e ociosas. Dessa forma, e com o propósito
de não ser um mukangare, levei sempre em paralelo a realização das tarefas da minha família14,
assim como da minha pesquisa.

Foi dessa forma que a caça virou um assunto principal na etnografia. Antes e no começo do
meu campo, este tema não ocupava um interesse direto, mas com o passar das semanas e quanto
mais me inseria nas atividades da aldeia, ele veio a se apresentar como predileto para observar
a formação da pessoa (masculina) Xikrin, acompanhado pelas técnicas e o aprendizado.

13
Como bem advertiu o Evans-Pritchard desde 1937 quando publicou seu trabalho entre os Azande “é
fundamental que um etnógrafo se debruce sobre assuntos teóricos e metodológicos na etapa prévia do campo e
tenha claro qual será seu trabalho, mas a flexibilidade é fundamental pois o campo irá lhe pedir para reformular
muitos aspectos de sua pesquisa...”. Nesse mesmo sentido tem se desenvolvido o meu campo.
14
As relações criadas em campo constituem relações formais, no sentido de ser considerado temporariamente
parte de uma casa. Sempre fui adscrito à casa de Onça e Irengrî, ainda quando fui para a aldeia Bacajá, ali me
reconheceram como parte da casa deles, sendo visto apenas como um visitante, por isso não me deram nomes ali.
39

De tal modo que, sem perder o foco inicial da pesquisa, descobri um novo universo que me
mostraria a aprendizagem além do narrativo, instaurado na prática15. O que me levou a aderir
à proposta do Ingold (2011) a respeito da educação da atenção, que em outras palavras, não é
mais que o aprendizado à luz do campo experiencial e o desenvolvimento de skills (ver capítulo
7). Assim, este trabalho preserva uma preocupação pelas formas através das quais se dá o
aprendizado intergeracional, no entanto, entende que somente trará luzes a esse respeito ao se
sustentar em grande medida numa “etnografia das relações na floresta”. Um cenário que
estando além da aldeia como âmbito doméstico, guarda um sem número de componentes que
me permitiram desvelar questões instigantes sobre o aprendizado entre os homens Xikrin.

Contudo, as narrativas formais também foram um aspecto importante durante meu campo. Isso
porque tive o privilégio de ser acolhido pelo Bep Tok, o Onça, que foi o maior chefe vivo do
Bacajá e um dos expoentes mais reconhecidos da oratória Xikrin. Sem se importar com o
número de pessoas, o horário específico, ou também se alguém estava dando atenção para ele,
o “velho” costumava se posicionar no rõpte-quintal da sua casa – às vezes no ngàb- e com voz
grave entoava detalhados relatos e longos cantos à noite. Esses cenários foram os mais
relevantes para observar as dinâmicas nas quais se dava a passagem de conhecimentos, a
recriação dos mitos e a atualização dos discursos.

Ademais, as falas cotidianas ou informais tanto do Onça em Pytakô, como dos mebenget Bep
Joti, Bep Pumatí e Konaipô, em Bacajá, foram fundamentais para entender não só a ordem
sócio cosmológica Xikrin, como a interpretação e reinterpretação do mundo do kubé (branco)
e, portanto, a leitura ativa e cambiante sobre o mundo em que eles vivem na atualidade.

Por outra parte, me baseio também nas narrativas e depoimentos dos mekrares e ainda, dos
menoronure que reconstroem e adaptam os conhecimentos dos mebenget. É no ngàb e no rõpte
(quintal das casas), onde consegui me aproximar das narrativas dessas três grandes categorias
de idade masculinas. Se num começo eu pensava que estaria inserido estritamente nos
contextos narrativos e discursivos do ngàb, agora posso dizer que afortunadamente eu estava
errado, pois a ambivalência de estar exposto a situações entre a aldeia e a floresta me trouxe
um rico universo de elementos a serem etnografados. Em resumo, posso dizer que o dia foi

15
O campo narrativo também poderia ser abordado desde uma análise prática onde se dê atenção ao engajamento
nos discursos. Contudo, neste trabalho opto por definir como experiência prática, as formulações nas quais os
caçadores noviços e experientes se engajam na floresta através do exercício da caça, o qual, demonstrarei que se
traduz em formas de aprendizados e formulações ontogenéticas de cada individuo.
40

dedicado a entender o mundo experiencial, e a noite, a consolidar as experiências através da


formalização que outorgam as narrativas.

No total foram dez meses de campo distribuídos em dois momentos: casualmente o primeiro
foi durante a transição do período seco para o período de chuvas (segundo semestre do ano); e
o segundo, foi no final das chuvas (primeiro semestre do ano). Isso terá importância no decorrer
desse trabalho, já que as atividades, a convivência e as técnicas mudam entre um período e
outro. Durante os meus períodos de campo procurei ser o mais rigoroso possível com o que
demanda fazer pesquisa de campo. Fui um curioso estrangeiro, um fiel observador, e um
redator sem pausa durante as noites com minha lanterna. Acredito que nunca antes fui tão
rigoroso como nessa experiência etnográfica. A observação participante foi o princípio
metodológico que me guiou. Embora, em muitos casos, senão sempre, tenha sido mais um
participante do que um observador, pois como já disse, para os Mebêngôkre não é aceitável
alguém que apenas os observe.

Além disso, a língua tem representado um desafio para esse estudo já que, num primeiro
momento, o meu conhecimento sobre ela era nulo. Apesar da acolhedora recepção da família
de Onça, as primeiras semanas foram difíceis para mim por causa da pouca comunicação verbal
que conseguia estabelecer. Uma estratégia que adotei desde algum tempo antes da imersão,
consistiu em aprender palavras chave que correspondiam ao meu interesse de pesquisa. Assim,
apesar de não entender claramente a arguição dos meus interlocutores, eu conseguia propor e
incentivar falas e conversas ao redor de temáticas específicas. Com frequência vinham assuntos
relacionados a mitos, rituais, cinegética e principalmente, opiniões de representantes de uma
categoria de idade, sobre as outras. Frequentemente conseguia dar um “jeito” de chegar nesses
assuntos.

Os Xikrin são bastante pedagógicos, de forma que, rapidamente foram me introduzindo em sua
língua até eu conseguir entender interlocuções básicas da sua vida cotidiana. Comecei a
entender quando eles falavam sobre comida, sobre seus parentes, sobre animais, inclusive,
sobre outras aldeias. Seguido a isso, compreendi os momentos em que eram elaborados
planejamentos coletivos como expedições no mato ou reuniões com empresas, graças a isso
tomei parte nos planejamentos: eles não me “transportavam” mais com eles, senão que,
começaram a contar comigo para “ir” com eles. Isso talvez possa ser identificado como uma
etapa mais avançada no campo.
41

Apesar de nunca ter conseguido entender com clareza as falas formais dos mebenget, assim
como suas narrativas relacionadas a mitos, pude identificar quando eles estavam levando a
cabo essa prática, dispondo-me a fazer o registo no gravador para que Bep Nhô ou Txuak
posteriormente o traduzissem. Esses eventos aconteceram principalmente com o Onça, mas
também os presenciei através de Bep Joti e Domingo. Quanto a mitos e/ou histórias da memória
Xikrin, Bep Pumatí e Konaipô deram grandes aportes.

A respeito de interlocutores, Txuak é um personagem principal na minha pesquisa. Ele foi


também meu tradutor ao longo das minhas estadias e sempre que precisei traduzir falas
registradas no meu gravador. A fidelidade que possam ter as traduções que compõem este
trabalho, se devem a ele. Além de Txuak, Kwynhdjy foi um mestre na caça que acompanhei
bastante (considerado entre os homens, o melhor caçador de Pytakô, na atualidade). Mekrares
como Tedjêre, Kudjoeire, Prîncare, Bep Nhô, Bep Kamut, Bep Krá, Meretty, Coronel e Pedro
além de interlocutores, são amigos de expedições, aos que irei dedicar espaço ao longo do
trabalho, colocando-os em contexto junto com os seus aportes.

Por último, esse trabalho talvez possa ser colocado à luz da estreita relação que criei com o
Onça, já que após ter concluído várias etapas da pesquisa, e depois de dar uma pausa para
observar desde longe o que logrei constituír ao longo deste processo, descubro que a chegada,
o durante e o após até a conclusão deste estudo, equipara-se à nossa amizade. Pois sem
pretender realizar um trabalho de trajetórias, ou mesmo biográfico e polifônico, as impressões
do e sobre o Onça estão plasmadas ao longo de todo o texto. Ele foi não só o meu maior
interlocutor em campo, senão que continuou sendo a fonte de inspiração na etapa da escrita.
Expressar uma ideia sobre os Xikrin como uma interpretação, ou mesmo uma conclusão, me
leva a recordá-lo sempre, através do que ele me mostrou, relatou ou ensinou. Dessa forma,
penso que este escrito será também uma tentativa de homenagem à trajetória pessoal, política
e filosófica que o Onça teve nos seus últimos três anos de vida.

No momento de escrever essas linhas e com a dor que traz a falta de alguém que marcou a
minha vida pessoal e minha visão do mundo Mebêngôkre, devo advertir aos leitores que o
Onça não está mais entre nós. Numa tarde do começo de setembro de 2020, após ter lutado
durante três semanas contra a Covid-19, seus pulmões pararam de funcionar. E o seu corpo
voltou de uma vez por todas para sua querida Pytakô, onde a Irengrî, sua esposa, acende uma
fogueira perto do túmulo, todos os dias, até hoje. Posso dizer que em certa forma a minha
pesquisa foi concluída com a morte dele. Cheguei a cogitar fazer mais campo em 2020, mas a
pandemia me impediu, logo menos, a sua partida chegou.
42

Hoje mantenho comunicação com a aldeia Pytakô através de interlocutores como Kudjoeire,
Txuak e Kwynhdjy. Estou ciente de que as coisas mudaram ali e aqui, ficando a sensação de
que a minha relação com eles na atualidade inscreve-se num novo período histórico que eles
estão atravessando.

Adicionalmente, devo mencionar que o contexto atual de aldeias como Pytakô e Bacajá
continua sendo rico em aspectos que devem ser etnografados, embora eu reconheça que abordá-
los no presente trabalho me levaria a outros âmbitos que alterariam os meus objetivos de
análise. Assim, penso que o contexto atual dos Xikrin sem chefes históricos como Onça e Bep
Joti, poderá ser abordado numa outra pesquisa no futuro.
43
44

Prancha 1: Me Ok – pintura corporal

Foto 1: O carvão (bàt prãn) é misturado com o jenipapo (mroti) para criar a tinta usada nas
pinturas corporais que fazem parte do repertório da cultura material mebêngôkre. Os Xikrin
apresentam uma ampla variedade de padrões simétricos em seus corpos, seja no cotidiano,
em celebrações e até mesmo em tempos de expedições.

Foto 2: Nhakmoro pinta seu esposo, o Txuak. Uma das sessões de pintura mais comuns está
relacionada com a relação conjugal. Além disso, as mulheres costumam pintar seus filhos
regularmente. Outra prática que ocorre com frequência é a sessão de pintura entre mulheres
nos quintais, onde se reúnem apenas menire para pintar umas às outras.

Foto 3: a textura de linhas é criada com um pente, após aplicar a mistura de jenipapo e carvão
uniformemente ao longo do corpo.

3
45

O lugar da pesquisa no mundo dos estudos Mebêngôkre

É importante começar mencionando que o meu trabalho etnográfico, situado numa


periodicidade de 2017 a 2021, somando dois campos realizados nos anos 2017 e 2018, além de
conversas e diálogos estabelecidos com alguns dos meus interlocutores entre 2019 e 2023, foi
feito em duas aldeias, Pytakô e Bacajá, na TITB (Terra Indígena Trincheira Bacajá). Este se
baseou na observação participante nos espaços e atividades masculinas, prevendo uma análise
sobre campos experienciais como determinantes na formação da pessoa masculina Xikrin. O
qual, entendo como um processo simultâneo ao da aprendizagem.

A figura feminina sempre esteve presente na minha pesquisa, principalmente através de


Irengrî16 e Ngrei-rô, em Pytakô, que me acolheram como parte do núcleo parental e me deram
os nomes de alguns de seus pais: Poyre e Ken-Poti. Porém, como já disse, a minha presença na
aldeia sempre foi relacionada à de um homem novo e saudável, portanto, em plena capacidade
de fazer parte de expedições e trabalhos rígidos que implicam o uso de força física. Sem ser de
fato forte, fui adjudicado a esse tipo de espaço e atividade. Assim, minha etnografia tentou
aproveitar essa figura social e procurou extrair a maior riqueza das relações masculinas
Mebêngôkre, buscando retratar práticas e estéticas pouco conhecidas ou reconhecidas entre os
estudos já elaborados sobre os Xikrin.

Dessa forma, este trabalho pode ser abordado como um estudo que tenta se debruçar sobre a
organização social e a formação da pessoa masculina nos Xikrin do Bacajá à luz da cinegética.
Especificamente, pretendo entender como os homens, introduzidos em múltiplas categorias de
idade, se inserem no mundo experiencial e se tornam progressivamente caçadores. Em outras
palavras, como os homens Xikrin aprendem a caçar. Para tal fim, a análise etnográfica se
inscreve a dois aspectos principais: primeiro, bà kam tem – andar no mato, o qual apresenta a
conotação de estar sempre em movimento durante as experiências na floresta. Ademais,
abrange a caça, como prática de mobilidade; e, segundo, os espaços de encontro na aldeia ngàb
e quintal–rõpte, como espaços públicos prediletos à convocação de expedições, práticas e a
circulação de narrativas. Dali irão partir análises sobre as cisões, ontologias, técnicas,
xamanismo e a aprendizagem na prática.

Ao ser um estudo muito específico, não se pretende dar conta de uma análise global sobre a
organização social dos Xikrin. Assim como, também, não se propõe uma revisão ou inventário
completo sobre os estudos Jê e especificamente Mebêngôkre. No entanto, entendo a

16
Neta de Bep Karoti, antigo chefe dos Xikrin do Cateté e atual esposa de Bep Tok, Onça.
46

importância de localizar esta pesquisa no mapa dos estudos produzidos sobre os Mebêngôkre,
de maneira que apresentarei na sequência, resumidamente, alguns dos principais estudos já
feitos e que estão relacionados com as minhas preocupações de pesquisa.

Em meados do século XX surgiram os primeiros estudos etnológicos sobre os Mebêngôkre,


ligados a um recorte de índole estruturalista, buscando entender as sociedades Jê a partir de um
dualismo na sua ordem social e cosmológica. O trabalho de Simone Dreyfus (1963) que fez
pesquisa entre os Gorotire e os Kubenkrãnkén (subgrupos Kayapó), aporta uma visão geral das
sociedades Mebêngôkre, ressaltando sobre a organização social, o padrão de um sistema
matrilinear. A autora identifica que há uma divisão primária entre grupos de homens e
mulheres, embora, esta é sobreposta pela divisão entre duas metades masculinas.

A coleta que a autora fez de mitos Mebêngôkre, num sentido semelhante ao de Métraux (1960)
e Lukech (1969), segue sendo referência para pensar a cosmologia em simultâneo com as
trajetórias históricas dos grupos Jê, principalmente no que se refere às cisões, que como
mostrarei no seguinte capítulo (1), são intrínsecas aos sistemas sociais dos Mebêngôkre. Outro
aspecto que serve como referente no trabalho de Dreyfus, se refere ao caráter cerimonial dos
cantos, já que mostram como a musicalidade coral opera como instrumento de conexão e
convocação de expedições coletivas que tem como resultado a experiência cinegética.

Os Trabalhos do Harvard Central-Brazil Research Project17, em cabeça de Maybury-Lewis


(1979) propõem que as sociedades do Brasil Central se organizam e se classificam a partir de
dualidades. Nesse sentido, os trabalhos de Terence Turner (1966; 1979) propõem uma
classificação da sociedade Kayapó precisamente pelo ponto de vista masculino, baseando-se
na análise da chefia e estabelecendo uma separação peremptória entre o publico (masculino,
ngàb, ipôkri) e privado (casas: kikrê, kri). O autor foca a sua análise nos sistemas de facções
masculinas e na estruturação por categorias de idade, o qual usa como ponto de partida para
entender a composição do sistema político Kayapó.

De forma complementária, o trabalho de Joan Bamberger (1967) sobre os Kayapó busca


aprofundar o lugar ecológico dos Mebêngôkre mostrando, em oposição a Lévi-Strauss (1963),
que os grupos que compõem essa família Jê não são deslocados da floresta. Bamberger aponta
que apesar dos Mebêngôkre estarem ligados às savanas, não há evidencias de que estes não
explorassem em simultâneo as florestas. Esse aspecto é fundamental para pensar a ligação

17
Do qual fizeram parte Maybury-Lewis (1979), Joan Bamberger (1967; 1979), Terence Turner (1966; 1979b),
Jean Lave (1979), Júlio Cezar Melatti (1976), Roberto da Matta (1971) e Christopher Crocker (1979).
47

histórica de subgrupos como os Xikrin com a floresta amazônica. Já que, como demonstra
Vidal (1977), os Xikrin nas suas narrativas mantêm uma forte ligação com a savana ao sul do
Itacaiúnas, indicada pela expressão ao leste. Isso apesar de que, como indica Fisher (1991;
2000), os Xikrin do Bacajá não moraram propriamente em planícies, habitando apenas regiões
de transição e floresta tropical. De maneira que, para essa pesquisa entendo que os Xikrin
historicamente exploraram mais as florestas, mas nunca deixaram de recriar na memória oral a
savana. Nesse sentido, talvez seja válido afirmar que a ligação dos Xikrin com a floresta
amazônica (médio Xingu) é possivelmente mais intensa do que a de outros grupos Mebêngôkre
que permaneceram mais ao sul até hoje, em regiões intermediárias (savana-floresta).

Outro trabalho destacado entre os Kayapó -no caso Mekrãgnoti-, mas que serve como ponto de
partida para entender o panorama histórico dos Xikrin, é a pesquisa de Gustaaf Verswijver
(1978a; 1978b). O autor traça um rico esboço sobre as principais cisões que os Mebêngôkre
sofreram ao longo dos últimos séculos. Mostrando que os Xikrin foram um dos primeiros
subgrupos a se dividirem no começo do século XIX, junto aos Gorotire. Por outra parte, Frikel
(1968) também traça uma descrição histórica considerável sobre a ocupação dos Xikrin entre
os rios Itacaiúnas e Catete durante a primeira metade do século XX. Voltarei nesse aspecto no
capítulo seguinte (1).

O trabalho de Vanessa Lea (2012) dá aportes importantes, já que analisa como as casas Xikrin,
entendendo-as como unidades uxorilocais, ou matricasas, são o eixo de circulação para um
conjunto de bens e prerrogativas – nekrets - que dão forma às relações Mebêngôkre. Os bens,
nomes, cantos, direitos de domesticar alguns animais e/ou de consumir certas partes da carne
de caça (ainda que hoje não seja mais claramente observável essa parte entre os Xikrin), e
ornamentos como padjés, são posse, propriedade e circulam através das casas, por vezes dando
forma às alianças na aldeia. Em outras palavras, para a autora, a configuração da riqueza nas
sociedades Mebêngôkre é dada através de nekrets inseridos no circuito das casas, sendo este o
fundamento da manutenção dos parentescos e as afinidades potenciais, indicando que a
manutenção do sistema simbólico dos Mebêngôkre, incluindo a configuração do âmbito
político, deve considerar-se a partir de uma estrutura matrilocal.

Essa proposta se opõe às abordagens dualistas que estabeleceram a distinção público-privado


de forma radical, onde se outorgava cartograficamente o lugar central das aldeias, o ngàb, como
o único espaço público e de exercício político e, portanto, masculino. Nesse sistema, os espaços
domésticos e a figura feminina, estariam excluídos da política e dedicados a manter as relações
48

privadas. Contrariamente, para Lea, as mulheres sendo a figura central das casas, seriam o eixo
da circulação de bens, prerrogativas, alianças e, portanto, da política.

No meu trabalho, são os quintais, como extensão das casas, um lugar importante para dar forma
aos planejamentos que levam as pessoas até a floresta. Não obstante, não encontro uma
continuidade direta entre a circulação de prerrogativas entre casas e as experiências práticas da
cinegética nas expedições. Isso porque o trekking à luz da vida cotidiana, e a caça, como função
social, correspondem primordialmente à figura dos homens, inseridos sob categorias de idade,
sendo reservados apenas alguns momentos e lugares para a participação das mulheres no ato
bà kam tem (andar/estar na floresta: ver capítulo 2). Logo, me parece pertinente para esse
estudo, basear-me na classificação por categorias de idade feita por Vidal (1977) e não tanto
na distribuição por casas, visando compreender a partir dos grupos masculinos a forma como
os caçadores, sejam noviços ou experientes, se engajam e dinamizam a aprendizagem no
ambiente florestal.

Adicionalmente, o trabalho de Darrell Posey (1981; 2002) entre os Kayapó Gorotire deve
considerar-se como referente para pensar as relações ecológicas dos Mebêngôkre. O autor
busca entender tanto a classificação que os Kayapó fazem de espécies como a relação que
estabelecem entre espaços de moradia, roças e a floresta. A identificação que os Mebêngôkre
fazem de vespas e marimbondos é, para o autor, um exemplo de insígnia sobre como a
classificação morfológica dos insetos e sua relação com um mito de origem dos guerreiros
Mebêngôkre, influencia e dinamiza valores da vida social (ver segmento Amiy tá, capítulo 2).

Posey (2002, pp, 36) também propõe que a concepção de espaços para os Mebêngôkre, é dada
de forma concêntrica, configurando vários anéis ou círculos onde o centro do mundo seria o
centro da aldeia, ou seja o ngàb. A partir dali, os círculos vão se expandindo progressivamente,
atingindo as casas, roças, floresta e, finalmente, o mundo dos kubén (não indígenas). Para o
autor, essa configuração corresponde também à concepção de sociabilidade, ou seja, o ngàb
seria o espaço de mais sociabilidade, a qual desaparece progressivamente enquanto mais haja
distância da aldeia. Assim, a floresta seria pouco social e o mundo dos kubén associal, pois ali
cabem os grupos vistos como inimigos.

Considero que a proposta concêntrica de Posey pode ser problemática em dois aspectos,
enunciarei eles aqui, mas irei desenvolvê-los em detalhe ao longo deste trabalho.
Primeiramente, pelo engajamento que os Mebêngôkre tem com a floresta, no qual a cinegética
se mostra como um campo que vincula categorias de idade, amigos formais, afins e, outros-
49

que-humanos, assim, as experiências na floresta são uma extensão das relações sociais da aldeia
e, portanto, um campo privilegiado para a participação de caçadores noviços e experientes em
uma dinâmica de constante aprendizado. Fisher (1991) se vale do trabalho de Posey para
analisar a circulação e os usos ecológicos dos Xikrin nas roças e a floresta, embora adverte que
seria um erro tentar ver as roças, com extensão à floresta, como um termo contrastante para a
sociedade, como o associal, em contraposição à esfera social: “tratar a ecologia como um fato
social total corrige uma visão que a vê como contrária ou separada das instituições sociais”
(p. 128).

Fisher destaca no seu trabalho que durante as expedições, marcadas pela sazonalidade,
“importa com quem se está caçando” (p. 112). Nesse sentido o autor destaca que a caça é uma
oportunidade única de passar tempo com outros homens, sem a carga ou mediação das famílias
e as casas, ou seja, a cinegética poderia ter uma conotação de socialidade masculina
privilegiada. Essa questão é importante neste trabalho, já que, como irei apresentar no capítulo
5, as expedições sejam coletivas por subgrupo, familiares ou por questões cerimoniais são
sempre uma forma prática de evidenciar alianças, amizades e a emergência de relações
potenciais.

O segundo aspecto, sobre a proposta de Posey (1982; 2002) pensando o ambiente à luz da
espacialidade, concerne ao meu entendimento de que a mobilidade dos Xikrin, especialmente
dos homens caçadores, seria dada a partir de um sistema reticular (Tourneau & Albert, 2011),
no qual a exploração de áreas de caça e coleta se dá a partir de deslocamentos entre pontos
concêntricos conectados apenas através de trilhas. Em suma, a exploração que segue após a
aldeia e as roças (como áreas de transição) não é consecutiva, senão, interconectada. Nesse
sentido, Bruce Albert (2011) evidencia que para os Yanonami, há áreas próximas onde não há
exploração de caça e coleta, enquanto podem ser encontrados lugares mais distantes com alta
exploração. Como mostrarei no capítulo 3, essa configuração é factível de se encontrar entre
os Xikrin do Bacajá.

Quanto aos estudos sobre os Mebêngôkre-Xikrin, na década dos 70s, Lux Vidal (1976; 1977)
começou seus trabalhos entre os Xikrin. Sua etnografia, fortemente descritiva, continua sendo,
ainda hoje, uma das mais completas no referido aos Xikrin. Para a autora, a classificação da
sociedade Xikrin se dá a partir das categorias de idade, constituindo o eixo que vincula as
diferentes manifestações da vida grupal. O meu estudo tem se apoiado no trabalho de Vidal
para decifrar a organização por categorias e subcategorias de idade (ver box: “as categorias de
idade”).
50

William Fisher (1991), em seu trabalho junto aos Xikrin do Bacajá durante os anos 80 e começo
dos 90, aborda vários âmbitos com os quais é possível encontrar um diálogo desde o meu
trabalho. O autor, primeiramente, constrói um arcabouço da trajetória histórica pela qual os
Xikrin atravessaram durante o século XX até vir a ocupar em meados dos anos 50 a região do
Bacajá, no Médio Xingu. Mais uma vez, é latente como as cisões e conflitos internos compõem
o cerne das relações Mebêngôkre. Por outra parte, o comportamento ecológico dos Xikrin na
floresta tropical é outro escopo do autor, ele analisa tanto a agricultura como a forma em que
os parentesco e alianças operam no cotidiano uma vez se deu a sedentarizarão em aldeias fixas
após o contato. Ele introduziu a categoria “parentes mentores” para analisar a circulação de
saberes e figuras de autoridade entre pai, tio e tabjuo18. Fisher considera o repasse de saberes
ao longo do tempo através de formas relativamente fixas. Em outras palavras, o conhecimento,
as tradições e as técnicas, são repassados de um pai, tio ou avô, para seu tabjuo de forma que
este os adota e replica.

A operacionalidade da autoridade política e da chefia é também um âmbito de análise de Fisher


(2000), onde o autor propõe analisar a forma como os Xikrin lidam com o crescente acesso a
mercadorias, comercialização de produtos extrativistas, bens e tecnologias vindas da ocupação
de uma região que constituiu uma frente de expansão de grandes projetos como a abertura da
Transamazônica nos anos 70 e os estudos de construção de hidrelétricas e mineração,
iniciativas de índole nacional que perduram até hoje e cada vez são mais emergenciais. Para o
autor, a sociedade Xikrin opera em simultâneo através de fluxos de resistência e desejo pelo
inovador, modificando e mantendo seus modos de vida.

No âmbito da aprendizagem na prática, aprendizagem situada (Lave, 2015), essa questão pode
se considerar um movimento de experiências inacabadas, onde os cenários são constituídos e
transformados por sujeitos em constante mudança. Assim, ecologia e aprendizado não seriam
campos distantes, pelo contrário, podem chegar a constituir o fundamento para entender o lugar
tanto dos Xikrin como de outras espécies com as que compartilham os ambientes. Aprofundarei
essa questão no capítulo final (7) deste trabalho.

Clarice Cohn (2000), trouxe através de seu primeiro trabalho entre os Xikrin do Bacajá, uma
interessante análise sobre a formação da pessoa Xikrin e o aprendizado, focando sua
abordagem na noção social de infância. Ela se debruçou sobre os processos nos quais uma
criança é inserida até se definir como Xikrin, abordando a fabricação de corpos, os campos

18
Essa categoria refere-se aos filhos dos filhos ou filhos das filhas e, filhos das irmãs.
51

rituais, a vida coletiva na aldeia e o cotidiano como fatores que irão determinar o aprendizado.
A autora entende os processos de forma dinâmica, nos quais a transmissão e o aprendizado não
se dão só numa via (adultos que ensinam as crianças), senão que, estão adscritos a uma lógica
ativa na qual as crianças participam, recriam e adaptam os ensinamentos enquanto aprendem.

Nessa mesma lógica, Camila Beltrame (2013; 2013b; 2019) tem feito um trabalho focado na
educação escolar como processo institucionalizado entre os Xikrin, tendo como tema central o
aprendizado que as crianças adquirem no dia a dia na escola. De acordo com a autora, as escolas
seriam o espaço em que é possível adquirir conhecimentos e técnicas dos kube (não indígenas).
Porém, um Xikrin em estágio de “maturidade” iria deixar de lado um compêndio de saberes
kubén para permitir aflorar os conhecimentos próprios de seu povo.

Por outra parte, Cohn (2005) em sua pesquisa de doutorado continua a discutir a produção de
pessoas Xikrin, dessa vez insere a análise das relações de diferenciação como elemento que
permite a definição ou identificação de um Mebêngôkre em relação aos Outros. A autora
propõe que dado que os Xikrin estabelecem um sistema de relações pautado na troca, na guerra
e na caça; após a pacificação ocorrida em 1959, quando as expedições bélicas cessaram, os
Xikrin enfrentaram -e continuam enfrentando- o desafio de renovar a incorporação de Outros
e manter a tensão nas relações como fator para manter a diferença. A esse respeito, irei trazer
a discussão sobre como a atividade venatória, que pode ser vista como uma forma atenuada de
guerra (Lima, 1996; Fausto, 2001a; Viveiros de Castro, 2002) representa, ainda na atualidade,
um fator crucial na produção de novos Mebêngôkre.

Cabe mencionar aqui o trabalho elaborado por Cesar Gordon (2006) e sua inovadora
abordagem sobre a incorporação de mercadorias nos Xikrin do Cateté. Segundo Gordon, para
entender a importância dos objetos dos não indígenas para os Xikrin é preciso inscrevê-los em
uma reflexão mais ampla sobre seu regime sócio-cosmológico. Dessa forma, aquilo que o autor
denomina como consumismo Xikrin não é apenas um sistema inscrito em termos de produção
para a subsistência, ou um consumo e acumulação individualizada de bens materiais; senão
que passa por um sentido de incorporação nos mecanismo de reprodução social, equiparando-
se possivelmente à produção de nekrets, em termos de produção de riqueza Xikrin. Além disso,
Gordon se vale da proposta de Turner (1966; 1979) para entender as práticas coletivas nos
Xikrin, seguindo a linha de análise sobre as hierarquias e a chefia para apresentar a sua leitura
sobre a distribuição de bens e mercadorias na aldeia.
52

Sobre os Xikrin de Catete é importante ressaltar também os trabalhos de Giannini (1991) e


Paes (2005). Os dois estão voltados a compreender âmbitos socio-cósmicos, rituais e do
xamanismo entre os Xikrin. Giannini faz uma ampla descrição sobre o xamanismo e os xamãs,
assim como dos múltiplos domínios cósmicos onde os wayangá (xamãs) interagem com outros
seres, em muitos casos donos. Por outra parte, Paes opta por dar atenção à noção de pessoa
desde as performances musicais e rituais e como desde esses campos entra em jogo uma
alteridade em outros domínios cósmicos. Aprofundarei sobre o xamanismo nos Xikrin e a
análise de Giannini (1991) no capítulo 6 deste trabalho.

Adicionalmente, os trabalhos de Bollettin (2011; 2013) sobre a recriação de práticas, mitos e


transformações entre os Xikrin do Bacajá, são importantes para pensar a formação da pessoa
mebêngôkre. Por último, destacaria o trabalho de Mantovanelli (2016) e Tselouiko (2018) entre
os Xikrin do Bacajá nos últimos anos. Mantovanelli (2016) faz uma etnografia partindo da
observação dos efeitos do licenciamento e construção da usina hidrelétrica de Belo Monte
desde 2010. A autora expõe o que ela chama de uma crítica da política dos não indígenas para
argumentar como o proceder administrativo se contrasta com os valores e modos de vida Xikrin
(kukràdjà). Este trabalho ajuda a entender como nos últimos anos a vida na TITB tem mudado
de forma acelerada em um processo complexo de incorporações que nem sempre podem ser
vistas através de um fenómeno de diferenciação (Cohn, 2005). Assunto que busco desenvolver
no capítulo 1, sobre cisões e aldeamentos, onde é evidenciado que a proliferação de aldeias nos
últimos dez anos é fruto das políticas de compensação após a implementação da hidrelétrica.

Por outra parte, Tselouiko (2018), partindo da análise de impactos e mudanças pela construção
da UHE Belo Monte, busca explorar a territorialidade ao longo da TITB. A autora explora as
práticas na aldeia, nas roças e, em expedições na floresta como o ato de “bater timbó”, assim
como festas rituais, especificamente a festa do bó. A autora observa, se apoiando no trabalho
de Le Tourneau (2006; 2009), que as relações territoriais Xikrin operam não através de uma
forma que superpõe público - privado e interno (aldeia) – externo (roças, mata).

Nesse sentido, compartilho o argumento da autora, já que no meu trabalho me debruço sobre
formas práticas que evidenciam outras formas que não concêntricas sobre a transição entre a
aldeia e a mata. A floresta -o externo- emerge como um campo extremamente societal. Não
obstante, a autora irá argumentar que os lugares e em consequência a territorialidade é dada
pela superposição de uma subjetividade Mebêngôkre. Ou seja, espaços socializados são dados
a partir do reflexo do caráter humano concebido na vida social da aldeia. Como mostrarei no
capítulo 7, a configuração de lugares entre os Xikrin vai além da superposição dos
53

Mebêngôkre, constituindo um campo dinâmico que extrapola no ato uma e outra perspectiva
(humano e outros-que-humanos) não sendo possível reduzir o ambiente a uma forma exclusiva
de significação dos lugares transitados pelos Xikrin ou à superposição de um ou outro ponto
de vista. A semiótica de Peirce (2012[1992]) oferece um componente privilegiado para essa
premissa, pois permite compreender que os significantes operam de forma autônoma.

De acordo com esse breve levantamento, a atual pesquisa pode ser colocada como um estudo
que, sem partir de uma interpretação nova sobre a organização social ou o campo ritual dos
Mebêngôkre, pretende ampliar a perspectiva de análise sobre como se dá a aprendizagem nos
Xikrin, desde um escopo intergeracional. Assim, a minha análise irá abordar em vários
momentos o trabalho de Cohn (2000), com o propósito de aproveitar o estudo que a
pesquisadora faz sobre a infância. No entanto, irá salientar os processos de aprendizado dos
homens a partir das grandes categorias de idade masculinas menoronure, mekrare e mebenget.

Nesse sentido, um homem Xikrin se constitui ao longo da sua vida a partir da sua passagem
por varias categorias de idade, mas sempre, inserido em dois âmbitos da vida social: o das
experiencias (expedições) coletivas e o das narrativas nos espaços públicos. Tanto a
experiência como os processos narrativos nos Xikrin, tem me levado a vê-los a partir da
premissa: “mostrar alguma coisa a alguém é fazer esta coisa se tornar presente para esta
pessoa, de modo que ela possa apreendê-la diretamente, seja olhando, ouvindo ou sentindo
(Ingold, 2011; 2015, p. 21).

Finalmente, diria que este trabalho irá se debruçar na cinegética Xikrin como agência
multiespecífica. Me interesso por entender a produção de homens Mebêngôkre, no entanto,
sem deixar de observar que a caça está longe de se restringir apenas ao ato de captura/abate,
envolvendo um amplo leque de técnicas, prevenções e engajamentos entre humanos e outros-
que-humanos19. O perspectivismo ameríndio (Viveiros de Castro, 2002) serve como arcabouço
teórico analítico nas terras baixas da América do Sul, para evidenciar que práticas como a caça,
representam um campo exacerbado de alteridades, o que significa que a relação predador-presa
é cambiante. Como abordarei ao longo do capítulo 6 destinado para essa análise, a ontologia
Xikrin é, por sua vez, uma ontologia que se sustenta numa compreensão da caça como parte de

19
Essa categoria consiste em uma proposta por abranger os múltiplos universos que vem sendo destacados pelas
propostas que buscam explorar ontologias além do humano. Incluindo o perspectivismo ameríndio (Viveiros de
Castro, 2002), os mundos naturais-culturais (Latour 2008; 2013), as cosmopolíticas (Stengers, 1997), pluriversos
(Escobar, 2018) e a virada ontológica (De la Cadena & Blaser, M., 2018). Assim, opto por usar essa categoria
neste trabalho quando me referir aos modos amplos de interação entre sujeitos e indivíduos no ambiente. Contudo,
em alguns momentos mantenho a categoria “não humanos” com o propósito de dar enfase na relação entre
caçadores e mry (animais de caça).
54

uma economia simbólica da predação: existe a possibilidade de uma perspectiva “resvalar” na


perspectiva do Outro. Essa é uma situação de risco que só pode ser assumida pelo caçador – e
pelo eventual xamã. Mostrarei que os caçadores acolhem elementos do âmbito xamânico
durante suas expedições.

Aportes para a análise da cinegética

Este trabalho considera que para analisar a organização social e cosmológica é relevante dar
atenção ao que se passa na e com a floresta, sendo a caça uma das práticas mais representativas
nos contextos selváticos. A cinegética tem representado um âmbito sempre presente nos
estudos sobre as formas de vida humana nas terras baixas da América do Sul, sendo a ecologia
cultural uma das áreas que mais tem acompanhado de perto os assuntos concernentes à relação
entre humanos e animais (presa). Os trabalhos de Gross (1975), Meggers (1977) e Ross (1978)
retratam os cenários da cinegética, dando atenção aos conjuntos de regras e restrições, às dietas
e formas de alimentação dos grupos sociais. É possível também destacar os trabalhos de índole
quantitativo sobre a caça (ver: Hames & Vickers, 1982; Stephens & Krebs, 1986) que
enfatizam no uso racional, os impactos e a sustentabilidade da prática20.

Não obstante, a ecologia cultural, partindo da premissa de que toda sociedade é parte da
natureza, tem se valido de fontes quantitativas para colocar os povos amazônicos e suas práticas
ecológicas em planos generalizados, os quais não dão lugar a observar os detalhes das variações
locais para um mesmo contexto ambiental. Nesse mesmo sentido, há uma tendência a
considerar que os esforços dos caçadores são motivados apenas pelo benefício energético sob
uma ideia utilitarista (Alvard, 1995), causando certos reducionismos como a premissa de que
a cinegética é apenas um ato de subsistência.

Seeger, Da Matta E Viveiros de Castro (1979) (na mesma época em que foram publicados
destacados trabalhos de parte dos ecólogos culturais citados acima), vinham advertindo sobre
os problemas da observação generalizante, em contraposição a abundante proliferação de
grupos sociais num mesmo ambiente. Também ressaltaram que para os indígenas a natureza é

20
Ainda hoje uma grande porção dos estudos sobre a caça na ecologia, dão preferência à análise da disponibilidade
de carne e os impactos históricos na população de espécies aquáticas e terrestres, com base nos ciclos migratórios
e econômicos que a Amazônia tem sofrido no último século. Para aprofundar pode-se consultar o trabalho de
Antunes, Et al. (2016).
55

apenas um dos âmbitos abrangidos por cosmologias multinaturalistas que sustentariam seus
modos de vida e pensamento.

Nesse contexto, o perspectivismo ameríndio veio ganhando força, se preocupando com


entender o universo que entrecruza os modelos cosmológicos das terras baixas e se
posicionando num sentido inverso aos estudos acadêmicos, os quais, abordando o ambiente
amazônico como um contexto natural dado, implementam modelos de interpretação verticais.
O perspectivismo da mão de Lima (1996) e Viveiros de Castro (1996; 2002) abriu a
possibilidade para ressignificar a relação entre humanos e os outros (outros-que-humanos),
ademais de dar outro sentido para o estudo da pessoa, do parentesco e da guerra. A caça como
tal, sem ser o eixo principal da análise perspectivista, tem estado presente em dita corrente,
servindo como instrumento analítico das representações ideológicas e das formas que
organizam as sociedades ameríndias.

Dessa maneira, a cinegética pode ser uma chave importante na compreensão da particular
organização material e das cosmologias através das quais parecem agir os ameríndios. Viveiros
de Castro propõe entender a cinegética através de uma ontologia da predação (2002, pp. 163,
283), uma vez que a afinidade potencial é dada em uma lógica que leva a se aproximar de
Outros, enquanto há uma latente possibilidade de se apropriar deles. Descrevendo cenários em
que a definição de self é dada em ambivalências onde a diferença emerge como eixo definitório.
Nesse raciocínio, o cenário da guerra reserva uma delicada atenção no âmbito da predação, o
qual, de forma extensiva, pode ser reconhecido no contexto da caça através da identificação
de circuitos que vinculam humanos e não-humanos (animais objeto de caça). Isso possibilita
pensar na cinegética como parte integrante de um projeto de economia simbólica da predação,
pois ao final, guerra e caça se instituem em um mesmo âmbito de reciprocidade contínua (ainda
quando o foco da análise possa ter sido sobre a primeira).

Nesse mesmo sentido, o capítulo 6 olha para o binômio guerra-caça em diálogo com o
xamanismo, com o propósito de mostrar que a relação ontológica entre os Xikrin e a floresta
vai se tornando mais visível à medida em que se observam as dinâmicas multiespecíficas entre
afins e inimigos, nas quais há uma possibilidade latente dos primeiros predarem os segundos.
O xamanismo tem emergido como a via por excelência para mediar a caça, ou por vezes a
guerra, sendo que a junção desses três elementos - à luz de uma ontologia predatória - parece
constituir uma chave para destrinchar o complexo dos Xikrin com os outros-que-humanos nas
florestas de Bacajá.
56

Contudo, não deve se tomar essa questão como via única, pois as relações multiespecíficas não
se esgotam no campo do xamanismo. Pelo contrário, como demonstrarei na parte II e no
capítulo 7 deste trabalho, as relações entre humanos e outros-que-humanos configuram e são
configuradas por interações no campo das experiências práticas em que caçadores, noviços e
experientes, se engajam sensorialmente de forma participativa no surgimento e transformação
de relações ecológicas.

Nessa perspectiva, é válido enunciar/reiterar que esta pesquisa segue uma preocupação além
do universo cosmológico: a inquietação acerca de como, no ato experiencial, alguém se
transforma em caçador e, de maneira simultânea, como ocorre o processo de aprendizado entre
os homens Xikrin no que se refere às interações dentro da floresta e com ela. Portanto, parece
pertinente indagar sobre as formas de ação pelas quais a cinegética acontece, dando atenção
para os processos técnicos e de conhecimentos. Aqui faz sentido citar a James Gibson: “não é
por meio da assimilação de abstrações mentais que se constitui um tipo de conhecimento,
senão que se dá a partir da sintonia entre o sistema perceptivo com aspectos específicos do
ambiente”(1979, pp. 246-248). A partir desse princípio, propõe-se que há um amplo leque de
agenciamentos ligados aos sentidos, percepções e habilidades (skills) que operam nos corpos,
artefatos, animais mry (animais de caça vistos como aptos para consumo) e lugares por onde
se transita. Logo, é importante não se preocupar apenas com as representações da caça, senão
com as manifestações -físicas- produto da atenção (Ingold, 2010).

Ocupasse a parte II (capítulos 3,4 e 5) desta tese na apresentação e análise dos aspectos que
envolvem estéticas, ritmos e técnicas da cinegética: o corpo, os gestos, as palavras, os
procedimentos e os implementos operantes no acontecer de expedições na mata e na
convocação para uma caçada. Neste último âmbito, transitar pelo mato, identificar os rastros,
matar e ingerir as presas são etapas que requerem particular atenção.

Basta acompanhar um par de vezes os Xikrin no mato para reparar que existem múltiplas
formas de caçar. Num primeiro momento, aos olhos de alguém alheio à atividade de caça, seria
possível inferir que a floresta amazônica constitui um único meio onde a prática acontece e se
repete de forma unívoca ao longo do tempo e espaço. Ao final, como Kohn (2021a) menciona,
uma das maiores barreiras do acesso como etnógrafos ao cotidiano indígena é o
desconhecimento da heterogeneidade da floresta. No entanto, existem diferentes momentos e
lugares. Por exemplo, a caça durante o período de verão e seca (época em que cheguei para
fazer meu campo) é diferente das ações empreendidas durante a enchente e no auge do inverno,
quando as várzeas estão alagadas, as grotas inundadas e o rio é navegável. Todavia, os espaços
57

variam: caçar ao longo de uma estrada21 de acesso até a aldeia não é igual a caçar pelo rio.
Assim como não é o mesmo transitar ao longo de uma trilha na serra em relação a transitar nos
caminhos que saem da aldeia e atravessam as roças e capoeiras.

As pessoas e suas capacidades físicas também mudam. Por exemplo, a influência da constante
circulação dos homens Xikrin na cidade - o que tem acrescentado algumas fontes alimentícias
como carne de frango e boi, sem que isso signifique um afastamento total do processo de abater
e consumir animais silvestres, faz com que haja homens – e suas respetivas famílias - que
vivem mais das fontes alimentícias fornecidas pelas roças e a carne de caça, do que outros22.

Tudo isso, tem surgido como um leque incessante de novidades perceptíveis durante o meu
trabalho de campo, levando-me a dar especial atenção às expressões técnicas e estéticas
evidenciadas na floresta. Se por um lado é possível afirmar que a cinegética contribui na
produção de âmbitos sociais - como os parentescos e comensalidades (Gow, 1989); rituais
(Aparício, 2014); narrativas (Vidal, 1977), ademais da sua estreita ligação com a guerra e o
xamanismo (Fausto, 2014); por outro lado, é válido destacar que a expressão técnica da caça é
fundamental na reprodução de pessoas (Bechelany, 2017) e do conhecimento como resultado
da experiência. Já que como propõe Sautchuk (2015), a relação da pessoa com as técnicas opera
como um processo de gênese em formação constante do ser.

A seguir, apresento os aportes teóricos que encontro importantes no campo da antropologia das
técnicas para pensar a minha pesquisa. Vale dizer que não sendo um especialista, não pretendo
fazer um arcabouço extensivo desde essa área do conhecimento. No entanto, busco ressaltar os
pontos metodológicos e analíticos que me serviram para pensar a minha etnografia.

21
Usarei itálico para esta categoria ao longo do texto, com o propósito de ressaltar o significado particular que
possuem as estradas no interior da TITB, especialmente como cenários particulares de caça com formas técnicas
específicas (ver segmento estrada, no capítulo 3).
22
Um estudo com escopo na eficiência cinegética, poderia demonstrar um maior desempenho de alguns dos
caçadores em relação a outros. O qual, a longo prazo poderia significar também que há alguns caçadores com
maior conhecimento da floresta do que outros, pois tal parecesse, caminham mais. Embora, parece-me que dados
dessa índole não seriam fundamentais para entender “como se aprende” e “como se vira caçador”. Portanto, não
irei focar à minha descrição etnográfica nesse sentido.
58
58
59

Prancha 2: fabricando com as mãos

Foto 1: Bep Joti, um dos antigos líderes da aldeia Bacajá, fabrica uma borduna (koiaká). São
geralmente os mebenget (velhos) que produzem artefatos de natureza ritual e para atividades
expedicionárias, como guerra e caça. Entre esses artefatos, destacam-se os braceletes,
cocares, maracás, bordunas, arcos e flechas.

Foto 2 e 3: Penas, folhas, fios e madeira são algumas das matérias-primas mais utilizadas na
fabricação de artefatos. As mãos, bem como as pernas, que servem como apoio, frequentemente
são complementadas com o uso de ferramentas, tais como canivetes, agulhas, fios, martelos,
formões, entre outros.

3
60

Aportes teóricos à análise técnica

A respeito das técnicas, Marcel Mauss (2003 [1934]) é um dos principais referentes, ele propôs
a elaboração de uma teoria que abrangesse os sistemas de procedimentos que entram em jogo
quando ações são executadas. Para o autor, cada sociedade tem seus próprios hábitos e os seres
humanos sabem se servir de uma forma tradicional de seu corpo. A premissa de Mauss sugere
que uma técnica está ligada à tradição e eficácia de uma ação. Assim, uma ação, que tem
efeitos sem estarem ligados a uma tradição, seria apenas um ato de ilusão e mímica, longe de
ser transmitida. Nessa perspectiva, uma teoria das técnicas deveria contemplar atos que sejam
habituais e antigos, sendo suscetíveis de serem transmitidos, aprendidos e praticados de um
indivíduo a outro.

Porém, uma teoria que determina que a tradição - ou de forma ampla, a cultura- seja um
condicionante para que os atos tenham validez técnica em uma sociedade, não demorou em
levantar questionamentos, principalmente pelo problema que trouxe subordinar as técnicas à
tradição em um momento histórico (inícios do século XX) em que a produção intelectual se
questionava a respeito do tradicional e abria a porta a pensar a modernidade desde múltiplas
abordagens. Portanto, o suposto maussiano implicaria o risco de determinar que grupos sociais
e nichos emergentes não poderiam ser acolhidos pela interpretação teórica das técnicas.

Ademais, a noção de eficácia em Mauss, também encontrou limitantes entre as abordagens


antropológicas de começo de século XX. Como disse Sigaut (2003):

Todas as nossas ações são simbólicas e rituais além de práticas, e quando uma
sociedade achar conveniente distinguir esses diferentes aspectos, o faz a sua maneira,
que não é a mesma maneira da sociedade ocidental. Em outras palavras, um ato que
para uns é meramente prático, para outros é altamente simbólico. (Sigaut, 2003, p. 5)
Sigaut opta por uma ideia que desvincula a eficácia das ações, para a qual usa como exemplo
animais de trabalho agrícola, moinhos de água e a locomotiva à carvão, questionando se essas
tecnologias perderam algo da sua eficácia apesar de não serem mais úteis nos dias de hoje.
Dessa forma, um efeito seria perceptível independente da eficácia, além de poder ser
compreendido de forma distinta, dependendo da perspectiva de quem lhe perceba. Assim, as
ações teriam mais uma conotação de significante do que de eficácia.

Vale perguntar se a proposta de Mauss (2003 [1934]) teria cabida em relação ao meu escopo
de estudo, preocupado com a cinegética e aprendizagem entre os caçadores, já que nos Xikrin
a tradição teria eco na forma em que as caçadas são efetuadas. Por exemplo, os caminhos e
trilhas guardam uma memória desde gerações atrás, quando eles ainda não eram contatados.
61

Existem mebenget (homens vetustos) que identificam algumas das trilhas atuais de caça como
caminhos que foram transitados por eles sendo crianças e por seus pais quando pretendiam
evitar o contato, assim como nas ocasiões em que faziam uma expedição longa com caráter
ritual. Não obstante, o trânsito por esses lugares também é feito hoje através de outras
temporalidades (expedições curtas) e levando consigo outras ferramentas como espingardas.

Então estamos diante de um cenário no qual é possível encontrar aspectos de uma tradição
Xikrin de caça. No entanto, estamos também frente a uma transformação das formas de
conceber os tempos, transitar nos espaços e, ainda, dar captura e morte a uma presa. Uma
borduna ou umas flechas Xikrin, cada vez menos presentes nas caçadas ou reservadas aos
menoronure (noviços) e aos poucos espertos - como este antropólogo que acompanhou
múltiplas expedições - são instrumentos que perderam a sua eficácia? Penso no mesmo sentido
de Sigaut (2003) que a utilidade das bordunas e flechas tem se perdido, pois a espingarda (atóm)
substituiu com resultados consideráveis esses instrumentos. Contudo, a eficácia das bordunas
continua ali, sendo apenas necessário um conhecimento prático para obter resultados mais
satisfatórios. Observo também que artefatos como bordunas e flechas reservam um lugar
especial nos rituais Xikrin, sendo insubstituíveis -inclusive por espingardas-, estando ligados a
uma conotação de circulação (Lea, 2012), ideológica e à representatividade de força que se
conjuga à pessoa do caçador e guerreiro Xikrin.

Nesse mesmo sentido, Bechelany (2017) aborda a relação que os Panará têm com instrumentos
de caça como espingardas, discutindo como as armas usadas nas expedições são elementos que
configuram novas relações perceptivas com o meio no qual os caçadores transitam. O autor, o
qual uso como referente em vários momentos deste trabalho, desenvolve uma etnografia
profunda sobre a caça entre uma sociedade Jê, trazendo abordagens da antropologia das
técnicas que permitem colocar a análise em termos das experiências perceptivas que os
caçadores e espingardas vivenciam em relação às expedições na mata e os processos de
individuação (Simondon, 2005).

O fato dos Panará serem uma sociedade indígena Jê, como os Xikrin, me permite encontrar
muitas semelhanças etnográficas nas formas como são efetuadas as expedições de caça e são
transmitidas e implementadas as técnicas. Isso me ajuda a pensar nos alicerces para uma
antropologia da cinegética Jê. Categorias como suasêri23, ritmo e conhecimento, as quais
orientam o trabalho de Bechelany, me parecem pertinentes para considerar minha análise sobre

23
Para ver uma análise a respeito de suasêri entre os Panará, consultar a tese de doutorado de Fabiano Bechelany
(2017) e ler neste trabalho a secção dedicada a bà kam têm (capítulo 2) nos Xikrin.
62

as experiências perceptivas dos caçadores Xikrin. No entanto, como o próprio autor adverte,
essas categorias são difusas no campo da antropologia da técnica e, dependendo do autor, pode
variar a compreensão das mesmas.

A tradição do estudo das técnicas oferece ferramentas metodológicas que facilitam a


abordagem das passagens etnográficas que buscam dar atenção aos atos e sequências que
compõem o cotidiano e ritual de grupos sociais. Leroi-Gourhan ([1964] 1990) (aluno de Marcel
Mauss), trouxe a introdução da chaîne opératoire (cadeia operatória) como forma de dar lugar
a uma abordagem do conhecimento processual humano e animal. O autor propôs que a
memória processual se manifesta em três níveis de consciência, sendo a primeira a automática,
presente em toda espécie animal. A segunda, os processos apreendidos e incorporados através
de meios como a educação e a experiência, sendo ainda processos que não requerem
pensamentos conscientes em sua maioria. E a terceira, um nível alto de consciência no qual a
linguagem e a autorreflexão desempenham o eixo que permite a correção de erros nas
sequências, ou ainda, facilitam a criação de novas sequências [1964] 1990, pp. Ibid, 226-229).

Um efeito importante dessa proposta é que a cadeia operatória se posicionou não apenas como
uma teoria do conhecimento, mas como um método social. E nesse sentido, a etnografia passou
a se apoiar diretamente na cadeia operatória para tratar de aspectos físicos que vinculam forças
produtivas e relações sociais de produção. Lemonnier (1986);(1992), Cresswell (1976) e Balfet
(1991) deram impulso a trabalhos etnográficos que colocaram como eixo o detalhamento das
atividades técnicas, o que permitia uma avaliação do contexto social que possuem as etapas
operatórias das ações. Não obstante, como adverte Coupaye (2022, p. 40), essa iniciativa não
teve grande acolhida na antropologia norte-americana e britânica, sendo reduzida a uma
compreensão do método como um campo de trabalho sobre a produção de sequências
estereotipadas de ações.

Porém, como ressalta Coupaye em relação a Schlanger (2005), talvez seja esse autor quem
melhor elucida os aportes da cadeia operatória às abordagens de índole arqueológica e
antropológica. Isso porque Schlanger destaca o papel do método no suministro de dados
etnográficos necessários para analisar a complexidade relacional das atividades técnicas,
permitindo documentar a sucessão de operações em uma tarefa particular observada, a qual
não conduz apenas à fabricação de artefatos, mas também à técnicas de aquisição - como a
agricultura - e técnicas de captura - como a caça e pesca. Assim, a abordagem metodológica
adquire um sentido mais abrangente, contribuindo para “desviar a atenção do produto
concluído, centrando a atenção nos processos" (Coupaye, 2022, p. 41)”.
63

A cadeia operatória parece consolidar-se como um método etnograficamente rigoroso, capaz


de visualizar a diversidade e inovação dos processos técnicos dados em um contexto em
concreto.

A chaîne opératoire ajuda a tornar visível a heterogeneidade material, social e


cultural, a complexidade relacional e o entrelaçamento de causalidades, escolhas e
contingências, ao mesmo tempo em que avalia o peso concreto e preciso de cada ator,
humano e não humano, em todo o processo (Coupaye, 2022, p. 42; 2015).
Bechelany (2017, p. 34) encontra na cadeia operatória uma fonte metodológica para abordar
as fases da atividade cinegética Panará, identificando que os caminhos de caça são o núcleo
das etapas que acabam definindo gestos e ritmos. Os movimentos feitos com o corpo, a
velocidade, os deslocamentos com animais nas costas são fatores relevantes na sua análise. Em
concordância, a cadeia operatória me parece uma chave metodológica para esse estudo, dado
que o caráter processual irá ganhar peso uma vez que aborde as particularidades das expedições
Xikrin na parte II.

Ingold (2011, pp, 53,60; 2013) chega a fazer uma crítica à cadeia operatória, considerando-a
como uma “concatenação de operações concretas”, as quais perdem sentido enquanto as
atividades emergem e vazam entre linhas e nodos relacionais. Voltarei nesse aspecto, de forma
ampla, no capítulo 7. No entanto, vale dizer agora que para o autor, as relações que emergem
do engajamento entre indivíduos e coisas, possuem sempre inovações (Ingold; Hallam, 2007),
não havendo repetições inexoráveis dos atos. Embora, isso deve ser abordado com cuidado, já
que a improvisação, como o próprio autor reconhece, não necessariamente nega a repetição,
podendo enriquecer ela através da capacidade criativa. Partindo desse aspecto, tem se
amparado abordagens antropológicas recentes24 que buscam valorizar o potencial das
sequências. Aqui caberia também o conceito de realimentação de Bateson (1986), como
processo reflexivo. O autor explica, em relação a um atirador de um rifle, que o ato de apontar
e disparar contém uma ação que retorna com um aprendizado em forma de correção para ações
futuras.

No caso deste trabalho, entendo que a cadeia operatória funciona como ponto de partida para
compreender as técnicas de caça Xikrin, ela é valiosa para organizar as sequencias. Logo,
entendo ditas sequencias como processos de criação constante. Assim, mais do que replicar

24
Um trabalho de referência no Brasil que aborda a riqueza criativa do campo das técnicas enquanto se vale da
cadeia operatória como formula para evidenciar a produção de masculinidades entre pescadores, é o trabalho de
Carlos Sautchuk (2021) “o arpão e o anzol, técnica e pessoa no estuário do Amazonas”.
64

sequencias isoladas sobre a cinegética, o que irei demonstrar na parte II, consiste em uma
evidencia de que as sequencias são elementarmente inovadoras.

Ademais, a pertinência metodológica da cadeia operatória cobra sentido quando adota-se uma
perspectiva que conecta as ações na floresta em um circuito sincronizado no qual se vinculam
múltiplos atores criativos em um ambiente onde a repetição é necessária para equilibrar ações
práticas com a memória que dá sentido aos lugares. Ou melhor, um engajamento sincrônico
em um ambiente determinado pelo acoplamento e invólucro rítmico (Leroi-Gourhan A. , 2002
[1965], p. 118) . Nesse sentido, quando os caçadores Xikrin se deslocam entre a aldeia, as roças
e a floresta, exercitam a memória dos lugares e contribuem na construção de cenários através
de sequências e procedimentos concretizados em ritmos.

Ritmos e percepções em uma floresta de signos

É importante considerar que a conformação do contexto cinegético como um fluxo rítmico não
é instaurado apenas pela presença preeminente do caçador, já que este é somente um
componente dentro de uma junção que reúne outras espécies, ademais de objetos, coisas,
caminhos, estradas e rios. Considero que o contexto selvático aqui abordado, poderia ser
pensado através de pelo menos duas formas: como processo de individuação (Simondon 1989;
2005), e, como interação semiótica (Kohn, 2021; Haraway, 2022) (ver capítulo 7). Já que como
Eduardo Kohn demonstrou, as relações na floresta são configuradas em um âmbito de
significantes e significados compartilhados que ultrapassam o simbólico – entendido como
apenas humano.

Diante de um panorama onde cada sujeito opera de forma direta em um plano interespecífico
e interdependente, os animais mry, aptos para caça, suas corporalidades e seus movimentos
possuem suas próprias cadeias operatórias (sequências), que por vezes interagem com as dos
caçadores. Em outras palavras, o plano perceptivo e a atmosfera dos encontros acontece quando
instaurada uma polissemia rítmica predador-presa. sendo a caça um campo no qual as pessoas
humanas e outros-que-humanos, se vinculam de forma relacional.

Em um sentido semelhante, Willerslev (2012) analisa para os Yukaghir da Sibéria Oriental


como a caça não é um evento de mão única, mas fundamentalmente recíproco. O caçador
transpõe parte da sua humanidade para incorporar algumas percepções da presa procurada25.

25
Esse povo caracteriza-se pela caça de ursos-pardos, renas selvagens, gansos, patos e ovelhas de montanha.
65

Por exemplo, o cheiro humano é deixado através de um banho sauna uma noite antes da partida
para expedição. A caça para esse povo é marcada pela enganação, já que quanto mais o caçador
consiga incorporar a figura da presa, mais será possível que esta se sinta atraída pela
performance do seu predador. Logo, o autor define a caça para os Yukaghir como um processo
de sedução sexual (2012, p. 58).

Eduardo Kohn (2021b) ao fazer uma releitura da deixis cosmológica proposta por Viveiros de
Castro (1996) dedica-se a analisar as fronteiras do ponto de vista simbólico humano, em relação
aos outros-que-humanos. O autor explica que os seres são fatíveis de compor formas
significantes da própria subjetividade, contida por processos dinâmicos e sígnicos, que
circulam através de um todo aberto (ibid, 2021d). Isso implica em um âmbito de risco no
esforço por manter a própria subjetividade enquanto adota parte do ponto de vista alheio. Nessa
ambivalência, o xamanismo seria o campo por excelência para transitar entre os diferentes
pontos de vista.

O contexto da caça de guaribas pelos Awá Guajá (Garcia, 2018) é um caso privilegiado para
observar os riscos de sofrer uma contrapredação. O autor mostra como essa prática é singular
tanto do ponto de vista técnico quanto cosmológico, constituindo-se como um cenário
privilegiado para observar uma economia da predação. Nesse cenário, Garcia busca oferecer
uma análise concreta das relações entre guaribas e caçadores, fazendo um esforço de
compreender tanto as proximidades como as fronteiras entre caça e guerra a partir de uma
perspectiva multiespecífica. Para os capelães, a predação assume a forma de uma verdadeira
guerra, à medida que os Awá se aproximam para caçá-los, criando assim um cenário de
confronto de perspectivas no encontro entre as duas partes. Isso ilustra como a dinâmica da
predação não se limita a um único significado, mas sim a uma complexa interação entre
diferentes visões de mundo, onde a contrapredação se manifesta como a capacidade de a presa
afetar o predador mesmo quando abatida, representando uma intrincada relação entre
subjetividades.

Se por uma parte, a morte/predação parecesse um contexto de sobreposições compartilhadas,


por outro, a sedução/enganação não se mostra distante, sugerindo que as formas operativas e
experienciais sobre a caça, ainda que variem de acordo com os contextos, podem manter a
premissa ontológica da predação, estimulada por âmbitos multiespecíficos. Adicionalmente,
chama atenção que no trabalho de Willerslev (2007; 2012) a aproximação se dá através não só
de ações xamânicas, mas de agenciamentos que definem um encontro “amoroso” entre
caçadores e presas, pois o caçador se identifica com sua presa em um esforço por entender seu
66

modo perceptivo e imitá-lo através da corporalidade, os movimentos e cheiros. A partir desse


raciocínio, o desafio etnográfico é tentar entender minimamente o aporte que outras espécies
fazem à consolidação dos cenários ecológicos.

Aqui seria válido pensar em uma corporalidade multiespécie, já que o ritmo só ganha sentido
enquanto os corpos operam no espaço-tempo. Como Seeger, Da Matta, & Viveiros de Castro
enunciaram: “as sociedades indígenas brasileiras (de modo mais amplo, sul-americanas)
possuem uma elaboração particularmente rica da noção de pessoa, com referência especial à
corporalidade enquanto idioma simbólico focal” (1979, p. 3). Se essa premissa se sustenta em
uma abordagem para estudar a organização social e a cosmologia dos povos ameríndios, me
parece válido observar que, se o corpo como “símbolo focal” dinamiza a interação entre
pessoas - e especificamente caçadores na aldeia - pode operar em um mesmo sentido nos
âmbitos exteriores (à aldeia), sendo parte de uma interação multinaturalista. Ou seja, a
morfologia corporal de outras espécies, por exemplo dos bandos de queixadas, poderia
configurar também um idioma específico capaz de interagir em um grande cenário de signos
(Kohn, 2021b).

Portanto, é pertinente fazer uso de uma definição perspectivista para o corpo, já que partindo
de que há uma unidade representativa puramente pronominal, aplicada indiferentemente sobre
uma diversidade real, temos em efeito, uma cultura em contraposição a múltiplas naturezas,
múltiplos pontos de vista, formas apreciativas e perceptivas sobre um e outro. Nesse sentido,
as múltiplas naturezas não seriam apenas formas físicas e incorporações, mas também agências
e capacidades singulares que caracterizam cada forma para cada espécie. Ou seja, o corpo desde
uma visão multinaturalista é uma agência canalizadora de modos de agir que constituem
hábitos concretos. Em palavras de Viveiros de Castro: “o perspectivismo é, em essência, um
maneirismo corporal” (2002, 380).

Se por um lado, os corpos dos caçadores Xikrin estão definidos por um conjunto de capacidades
incorporadas pelas substâncias26, a fabricação de corpos e pelas trajetórias coletivas, por outro
lado, os queixadas possuem capacidades dadas pelos seus habitus grupais e florestais, ademais
de afeições capazes de influenciar e determinar parte dos seus gestos que definem as ações no
ambiente. Dessa maneira, apesar de que a preocupação principal nessa pesquisa seja entender

26
Importante ressaltar aqui que, como sugere Coelho de Souza (2002), a relação é substancial não porque seja
apenas instaurada através de uma substância material específica, senão porque é constituída em termos de
continuidade corporal.
67

processualmente o aprendizado dos caçadores Xikrin, este escopo não deixa de lado a
possibilidade de reparar nos processos compartilhados por outras espécies não-humanas.

Quanto aos corpos Xikrin, uma forma exclusiva entre os Mebêngôkre que evidencia a
importância entre a fabricação de corpos e o engajamento no ambiente é a perfuração do lábio
inferior e nos lóbulos das orelhas nos homens quando são ainda crianças. Como Vidal (1981)
Turner (1995) Cohn (2000) demonstraram sobre os Mebêngôkre, a modelação do lábio e as
orelhas está diretamente associada à capacidade de falar e ouvir: um Xikrin que fala bonito e
escuta bem, é obrigatoriamente um Xikrin que passou pela etapa de perfuração até dar forma a
lábios e orelhas. Ademais, a categoria mari, da língua Mebêngôkre, é fundamental aqui, já que
vincula um processo cognitivo com outro experiencial: mari indica ouvir, mas também
conhecer. Portanto, para aprender é necessário saber ouvir. Voltarei nesse assunto.

Ainda cabe enunciar aqui uma questão, referida a quais são os lugares prediletos da floresta
onde é dada a confluência de movimentos, velocidades, corpos, sentidos e técnicas em ritmos
compartilhados, ou, acaso são todos os espaços como pentagramas vazios esperando para ser
dinamizados através de uma composição coletiva de ritmos? Aqui devo voltar ao trabalho de
Bechelany (2017; 2019), dado que o autor baseia a sua análise da cinegética Panará na
identificação de um circuito de trilhas frequentadas pelos indígenas e animais: “The fact that
animals have their trails and that these cross the trails of hunters conjures a web of movements
in the forest, in which the hunter finds himself” (2019, p. 14). O autor destaca que tudo está
conectado na floresta transitada. Os animais habitam por um tempo uma área, não estando
apenas de passagem, estabelecendo uma relação semelhante à que os humanos constroem no
espaço-tempo quando criam sentidos através da memória.

Devo admitir que me custou trabalho entender esse aspecto entre os Xikrin, pois sendo Pytakô
uma aldeia populacionalmente pequena, com um volume reduzido de caçadores, encontra-se
no coração da TITB27 , o que faz com que os cenários de caça sejam amplos e diversos. No
começo, cada lugar no mato por onde andei era uma novidade. Mas com o passar do tempo,
foi possível definir alguns padrões cartográficos associados a usos e circulação reticulares
Albert & Le Tourneau (2007) ao longo da floresta transitada. Os caçadores com frequência
mudavam o sentido do deslocamento, transitando através de uma ampla rede de trilhas
interconectadas entre lugares com significado na memória coletiva ou então geralmente usados
como vias de circulação de outras espécies. Assim como em uma grande cidade, na floresta há

27
Até 2018 a aldeia mais próxima de Pytakô era Kenkudjoe, situada a aproximadamente três horas de viagem de
casco rio abaixo.
68

vias para transitar, encruzilhadas para mudar o sentido do deslocamento e, ainda, há rotatórias,
ou melhor, lugares que são indicadores de retorno. De qualquer forma, comecei a entender que
há caminhos, assim como nodos que os conectam. Mas como em qualquer cidade, quem é mais
velho ou quem é nato daquele lugar conhece melhor os lugaress. Logo, há caçadores em Pytakô
com grande conhecimento em relação às trilhas como outros que, preferem não se arriscar a
explorar além de um downtown venatório.

Ademais, um aspecto que me pareceu importante uma vez que fui reconhecendo a existência
das trilhas, foi o fato de que os caçadores, além de transitar em procura de um animal, estão à
espreita de lugares. É claro que existem motivações específicas, portanto, pode ser que um
caçador queira encontrar uma anta por cima de qualquer outra espécie, ou, sendo uma caçada
coletiva (ver capítulo 5), os homens almejem achar um bando de queixadas. Entretanto, esses
anseios são a forma que influencia decisões como, por onde deve-se caminhar; sendo
principalmente importante dar atenção aos lugares e os circuitos que os comunicam. Dessa
maneira, grotas, barreiros, árvores frutais, inclusive aves que sobrevoam, ganham importância,
dando lugar a um arco de confluências que vinculam aos caçadores (humanos) e animais mry
(não-humanos) com locais específicos.

Por conta disso, é válido enunciar para os Xikrin que a intensificação de experiências na mata
produz um contubérnio multinaturalista disperso através de um circuito extensivo de trilhas,
espaços e roteiros que operam de forma reiterativa, constituído, por vezes, através de um padrão
rítmico (Leroi-Gourhan, 2002) e, alimentado por movimentos, velocidades e corporalidades.
No que lhe concerne, expõe à floresta não mais como um cenário alheio e inabitado e sim como
um espaço afeito, constituído por relações que geram meios próprios. Este aspecto é bastante
relevante para entender como os Xikrin caçam e como lidam com os meios da floresta enquanto
os constituem e são constituídos, o qual coloca em evidência que a aprendizagem entre os
homens é intrinsecamente prática, evocada através de engajamentos de índole semiótico com
e no ambiente. Deverei voltar nessa análise teórica para finalizar essa tese, no capítulo 7.

Fica uma questão por enunciar: se a floresta é um cenário habitado por seres humanos e outros
que humanos que criam significados específicos por meio de fluxos sincronizados nos lugares
percorridos, poderia ser a floresta um espaço alheio à organização social dos Xikrin? É claro
que os âmbitos domésticos da aldeia e as formas de socialidades (Strathern, 2006 [1988]) que
ali emergem, são a base para entender a sociedade Xikrin. Não obstante, a floresta poderia ser
também um cenário de socialidades importantes. À minha etnografia irá mostrar como uma
grande parte dessas socialidades além das aldeias e as roças acontecem. O qual, convida a que
69

a floresta seja vista como parte do sistema relacional que dá sentido a dinâmicas que acontecem
na aldeia, sendo necessário entender que espaços domésticos e selvagens, âmbitos da aldeia e
espaços da floresta acabam se misturando, ou pelo menos se aproximando como nunca antes,
quando se trata da cinegética.

Isso não necessariamente vai na contramão das abordagens estruturalistas que estabelecem com
rigorosidade as ambivalências doméstico-selvagem, assim como a produção de funções
privado-público. No entanto, sugerir uma separação profunda do que acontece na aldeia em
relação às experiências no mato, seria insistir em uma proposta que não dá relevância às
maneiras multiespecíficas na produção de pessoas. Descola (2012, pp. 68) em relação ao
binômio doméstico-selvagem, destaca que existe um caráter flexível e transitório entre o que
possa pertencer a um ou outro, sendo que o significado dado para cada sujeito (ser), espaço e
relação é baseado em uma alternância estacional que se dilui e se refaz a cada certo período.
No contexto estudado pelo autor, entre os Jivaro, nada é mais relativo do que aquilo que se
baseia na percepção e uso de lugares habitados e transitados. Analisar um âmbito como a
cinegética, de forma mais independente (num esforço por isolá-la da guerra e o xamanismo)
requer compreender que assim como as trilhas que saem da aldeia, cruzam pelas roças, se
internam nas capoeiras e atravessam extensões de mata amazônica, conformando um circuito
de produção material; a produção da vida social está igualmente ligada às dinâmicas que se
vinculam através de circuitos de trilhas e lugares.

A floresta como âmbito de socialidade (Strathern, 2006) aduz em uma singularidade que
afiança alianças e dá continuidade à formação de pessoas. Mas não que com isso seja diminuída
a consolidação e a importância de parentescos ou diluída a política na aldeia, pois não se deve
confundir a complementaridade com a negação. Portanto, a floresta é mais um canal de
continuidade e retroalimentação: a gênese da organização social pertence à aldeia, assim como
a prática das motivações predatórias, tão importantes nos valores de um campo multiespecífico
na Amazônia, concerne à floresta.

Uma forma de observar esta complementaridade seria o percurso que faz a carne da presa desde
o momento do abate até seu consumo, em virtude de nada vincular mais a floresta com a aldeia
do que a caça com a comensalidade, sendo essa relação um dispositivo que designa funções
ligadas a lugares concretos. Ou seja, na labor de capturar a presa e limpar a carne é clara uma
presença masculina -salvo algumas exceções- adscrita aos valores do caçador, guiado em
grande parte pela força física. Já por outra parte, a figura feminina aparece com preponderância
nos espaços das casas e quintais, assim como nos momentos dedicados à repartição de carne e
70

comensalidade, o que viabiliza as alianças. Considerando que minha pesquisa se foca mais nas
relações que tomam forma na floresta, é entendível que a figura feminina tenha pouco espaço
nessa etnografia. Não que com isso deixe de reconhecer a relevância feminina no âmbito
ecumênico das relações. Portanto, é válido advertir que, nos próximos capítulos, sua presença
será mínima (com a exceção dos dois últimos segmentos do capítulo 5).

Até aqui apresentei um panorama geral que, sem grandes pretensões teóricas, tem como
objetivo aproximar o trabalho etnográfico que aprofundarei a seguir, com discussões
relacionadas aos âmbitos técnicos, perceptivos, semióticos e ecológicos. Não obstante, será
apenas com o desenvolvimento etnográfico que me arriscarei a discutir e finalmente concluir
no capítulo 7, algumas das questões que tenho colocado à luz de propostas teóricas neste
segmento.

Por último, considero importante retomar algumas das questões que motivaram meu trabalho
sobre a cinegética. Já que, estas podem funcionar como instrumentos e guias aos leitores.
Questões como “quem caça? O que caça?” me ocuparam durante o meu primeiro período de
campo. Já num segundo momento, a minha observação participante deu maior atenção às
técnicas que compõem a cinegética, de maneira que tentei resolver uma questão: como se caça?
Esse interrogante acabou abrindo um conjunto de elementos a serem ponderados na tentativa
de compreender a caça como dispositivo material-experiencial. Assim, acabei me perguntando
pelas possíveis variações nas formas de caçar e os tipos de caça, a composição das expedições,
os artefatos usados, os signos que conectam humanos e outros-que-humanos, os tipos de
lugares frequentados, onde começa e acaba a caminhada (já que nem sempre começa na aldeia,
mas acaba sempre ali), a sazonalidade, os lugares e caminhos compartilhados com outras
espécies, os aspectos xamânicos inerentes ao ato de caminhar na floresta e o estado anímico
dos caçadores.

Em uma etapa final, mas sem perder de vista o âmbito estético-material da caça, tenho me
questionado sobre a conotação que possa ter a floresta como lugar de caça, mas também como
âmbito de socialidade. Assim, uma interrogação como “onde se caça?” trouxe questionamentos
mais finos os quais me fizeram tentar entender o que é a floresta como cenário de relações. O
entendimento dos circuitos espaciais, e principalmente temporais, das trilhas, foi a forma que
encontrei para tentar resolver essa questão.

Tudo isso tem me levado a refletir sobre uma grande questão, a qual busco tentar resolver num
esforço por me debruçar nas ligações entre os lugares da aldeia e os lugares da mata. Essa
71

questão refere-se a: “qual o significado (pelo menos um deles) de caça para os Xikrin?” já que
conforme tenho compreendido, os Xikrin não vão na mata apenas para caçar. Eles se deslocam
através da floresta num ato que abrange um simbolismo maior. Nesse sentido, bà kam tem
como categoria de análise, que abordarei no capítulo 2, tem me revelado talvez uma possível
resposta.

A abordagem dessas questões como orientadoras da minha etnografia foram inspirando o meu
trabalho de campo e animam a minha análise no presente. Ademais, desembrulhar essas
questões me dão pistas para voltar à pergunta central da pesquisa: como aprendem na prática
os homens Xikrin? Como se tornam caçadores? A passagem por âmbitos que demonstram o
engajamento dos caçadores e dos outros-que-humanos com o ambiente, e o desenvolvimento
de habilidades-skills, me darão elementos suficientes para abordar respostas a esse assunto no
capítulo final deste trabalho.
72
72
73

Capítulo 1. Cisões-agrupamentos: trajetórias históricas dos


Xikrin do Bacajá

Este capítulo apresenta uma síntese histórica das cisões -e dos agrupamentos- entre os
subgrupos Mebêngôkre do Brasil Central, dando específica atenção aos Xikrin do Bacajá. Após
ter feito um balanço sobre os processos históricos e migrações dos Xikrin, me apoiando
principalmente em Vidal (1977) (Verswijver, 1984) e (Fisher, 1991) assim como nos
depoimentos dos mebenget (homens velhos) Bep Tok (Onça), Bep Joti, Bep Pumatí e Konaipô,
quero apresentar um marco descritivo que busca reunir as trajetórias que levaram os Xikrin até
a atual região habitada. O texto propõe que as cisões são uma parte fundamental para a
reprodução da ordem social baseada numa ontologia da diferença, sendo necessário que
existam relações de tensão em paralelo com as alianças. No entanto, uma vez que sejam
descritas as principais cisões dos Xikrin (1980-2018), será evidenciado o acelerado processo
de aldeamentos nos últimos vinte anos, o qual, proponho, deve ser associado com a acelerada
implementação de políticas compensatórias que subjazem à construção da UHE Belo Monte
desde 2010.

**

Os Mebêngôkre são parte da família linguística Jê, junto aos povos Xavante, Kaingang,
Timbira, Suyá, Apinajé, Panará, dentre outros, localizados em sua maioria no Brasil Central.
Caracterizam-se por uma prolífera divisão em subgrupos que foram se consolidando ao longo
do século XIX e começo do XX. Entre os subgrupos Mebêngôkre sobressaem os Mekrãgnoti
e Gorotire, conhecidos de forma genérica através do etnônimo “Kayapó”. Ademais, encontram-
se dentro dos subgrupos, os Xikrin28, procedentes dos Goroti Kumrex (Vidal, 1977, p.22), aos
quais se dedicará esse trabalho. Embora uma grande porção dos Mebêngôkre habitam a bacia
do Xingu na atualidade, a sua procedência tem como local as regiões do Cerrado, ao oeste do
baixo Tocantins e do rio Araguaia (Verswijver, 1978b ; 1992), (Lea, 2012, p.60).

28
Xikrin corresponde ao nome pelo qual são reconhecidos os grupos Mebêngôkre localizados nas margens do rio
Bacajá e Cateté no sudeste do Pará, tendo como principais municípios de referência São Félix do Xingu, Altamira
e Marabá (ver mapa 1).
74

Para os Xikrin, com a possível extensão para os outros subgrupos, a organização social, a
cosmologia e alguns rituais29 se sustentam em relação ao “Outro”. Como Cohn (2005) e
Tselouiko (2018) tem demonstrado, a produção de novos Xikrin é possível, no entanto existe
uma predação simbólica do outro, sendo os rituais uma forma exacerbada de alteridade através
da qual os Mebêngôkre confirmam alianças enquanto reafirmam uma posição de diferença.
Em palavras de Clastres: “não é possível (...) nem ser o amigo de todos nem ser o inimigo de
todos” ([1980]2004: 178). Assim, a existência do ser Xikrin é um processo de via dupla no
qual se cria, enquanto se diferencia. Em outras palavras, a produção de pessoas Mebêngôkre
seria dada a partir da incorporação de perspectivas alheias e a redefinição da perspectiva
própria.

Essa dinâmica fica mais evidente quando se segue a trajetória histórica dos subgrupos pois -
como será mostrado aqui - a diferença consiste em um fenômeno dialético que começa pela
separação de um Mebêngôkre de outro Mebêngôkre. Fazer memória das cisões é lembrar as
brigas intra-tribais. Nesse sentido, as disputas e as guerras constituem um cenário necessário
para a existência, sendo também um fator determinante para as migrações, deslocamentos e a
ocupação nas regiões do alto Araguaia, baixo Tocantins e o médio Xingu (ver mapa 1).

Serão apresentadas as principais divisões entre os Mebêngôkre com o propósito de entender o


lugar que ocupam os Xikrin do Bacajá. No entanto, levando em consideração a extensa análise
que demanda observar as trajetórias históricas Mebêngôkre, o presente texto não pretende
trazer um estudo exaustivo a respeito, e sim apresentar uma síntese que relaciona depoimentos
dos velhos Xikrin com estudos etnohistóricos, tentando proporcionar uma luz a respeito da
posição histórica ocupada pelos Xikrin do Bacajá, entre os Mebêngôkre. O texto irá se apoiar
nos aportes de Coudreau (1897; 1977), Vidal (1977) e Verswijver (1978a), ainda que possam
existir algumas diferenças entre as trajetórias históricas traçadas por eles. Será dada maior
atenção ao período que compõe a transição do contato até as duas primeiras décadas do século
XXI30, na atual TI Trincheira Bacajá, para o qual serão trazidos os depoimentos de chefes e
interlocutores Xikrin que tiveram um papel protagonista nas últimas cinco décadas e moram
atualmente entre as aldeias Bacajá e Pytakô31.

29
Me refiro especificamente aos rituais bô e o kyorê-kangô. O primeiro apreendido dos Karajás e o segundo dos
Juruna.
30
Especificamente se dá atenção ao período entre 1959 – 2018, não sendo abordado o contexto mais recente,
adscrito às dinâmicas vindas das mudanças no cenário político no Brasil a partir de 2019.
31
Apesar de existir uma ampla proliferação de aldeias na TI Trincheira Bacajá na atualidade, observa-se que as
aldeias Bacajá e Pytakô concentram os principais chefes da época pós contato, especificamente Bep Tok em
75

Dita contextualização histórica servirá para demonstrar como as cisões são uma parte orgânica
na existência dos Xikrin, dando lugar e auge à expansão e à reprodução social. Nesses termos,
a cisão não é só divisão, senão que corresponde a um processo de cisão-agrupamento,
significando que ao mesmo tempo que ocorrem separações grupais, estão se fabricando novas
alianças e parentesco, sempre na forma de desdobramentos. Assim, os processos das cisões se
apresentam como parte indispensável à construção de pessoas, isso em termos de uma dinâmica
de circulação das famílias.

Mapa 1. Terras Indígenas dos Xikrin e seus arredores.

Pytakô e Bep Joti em Bacajá, ademais de mebenget - velhos que conformam a história recente dos Xikrin - como
Tapiex, Ngrei Tó, Konaipô e Bep Pumatí.
76

O Cerrado, a Floresta Amazônica e as migrações dos Mebêngôkre

É possível encontrar entre os mitos Mebêngôkre, assim como nos estudos históricos, a
constante referência a uma origem em comum, uma “primeira aldeia” (Goroti-Kumrex). Relata
o Bep Tok ou Onça32, como é comumente apelidado o velho chefe Xikrin, que os seus
antepassados vêm “de Marabá para baixo, em sentido Brasília...”, o que indica uma
procedência ao Sudeste das atuais TI Trincheira Bacajá e Cateté. Aproximando-os de versões
de outros subgrupos Mebêngôkre instalados atualmente ao longo do rio Xingu (Vidal, 1977;
Wilbert, 1978).

Onça faz menção a que todos moravam numa mesma aldeia, falavam uma língua e faziam
expedições conjuntas, porém, descreve os Mebêngôkre como uma família que sempre briga,
tanto com outros povos como entre eles: “Xikrin sempre brigou com Gorotire”, “Xikrin contra
Kayapó...” “Xikrin daqui (Bacajá) contra Xikrin de lá (Cateté)33”.

O mebenget também narra que as primeiras cisões aconteceram no mesmo lugar onde os
Mebêngôkre descobriram o baú (milho): “Teve um encontro há um tempo ali, em Brasília, eu
conversei com o Ropni (Raoní), a gente falou sobre o lugar onde os Mebêngôkre derrubaram
o pé de milho, ele indicou que era ali perto de Kapoto...”. Não é possível ligar diretamente o
fato da descoberta do milho como o causante das divisões, porém, é um fator importante nas
narrativas Xikrin para determinar a familiaridade que eles têm com os outros Mebêngôkre.
Aliás, pode ser usado como referente mítico para afirmar a origem comum dos Mebêngôkre,
que no momento da descoberta ainda permaneciam integrados numa única aldeia. Além disso,
talvez possa ser inferido que, antes desse acontecimento, os Mebêngôkre não faziam uso dessa
planta dentro do seu regime alimentar. A seguir, a versão de Onça sobre o mito.

Tinha uma mulher, a mais velha da aldeia Goroti-Kumrex. Um dia ela pegou
seu neto e levou para tomar banho no rio. ali, apareceu o Miare. Ele parecia
um rato grande. Ela se assustou e socou ele. O Miare falou “espera, eu tenho
alimento, vou ensinar para você”, mostrou um pé, era de milho, tinha muito
milho nele, deu para a velha e ela juntou e levou para casa. Fez um bêrarubu34

32
Além das referências aos trabalhos históricos na região e sobre os Mebêngôkre, as versões de Bep Tok- Onça e
Bep Joti, chefes dos Xikrin do Bacajá após o contato em 1959, são a principal fonte da qual se vale esse texto para
elaborar a reconstrução da história recente dos Xikrin.
33
Durante o começo do século XX os Xikrin se organizaram através de um único grupo na região de Cateté. Para
meados do mesmo século houve uma grande cisão, dando origem aos atuais Xikrin do Bacajá.
34
Alimento cozido de milho e carne de caça, elabora-se forrando os alimentos em folha de banana, enterrando-os
na terra e conservando o calor através de pedras previamente aquecidas.
77

e logo raspou a cabeça e pintou o neto. Depois, mandou o neto levar o


bêrarubu para o ngàb35: “ali tu vai sentar no meio e comer, se alguém
perguntar, tu vai dividir com eles”. O menino foi e sentou no centro da aldeia
e comeu.

Logo um homem já perguntou, depois outro...o menino compartilhou o


Baúkupú (berarubu) com todos. Voltou e pegou mais, mas acabou rápido. Os
velhos no ngàb mandaram chamar a velha: “o que é aquilo? É muito bom” –
“é baú, Miare ensinou para mim...” relatou ela com voz entonada, do jeito
que os homens falam no ngàb. Ela falou e todos saíram correndo para a beira
do rio procurando o pé de milho. Todos pegaram, mas o pé era alto e tinha
espigas em cima. Alguém falou “bora derrubar esse pé!”, assim levaram tudo
(...).

As pessoas se pintaram e fizeram uma festa, dançaram à noite, mas ali mesmo
já teve uma confusão pelo alimento. Começaram a se dividir, um grupo foi
indo pro butire (Xingu), outro foi mais longe, para kapot, outros ficaram,
pouco tempo passou e esses que ficaram, se dividiram. Todos levaram milho
e nunca mais deixaram ele. Hoje é assim, nós aqui nos dividimos, temos
muitas aldeias e roças e continuamos nos dividindo”.

O milho e a divisão das famílias Mebêngôkre. Narração de Bep Tok - Onça.

Tradução de Txuak.

Verswijver (1978b; 1992) tem aprofundado sobre a trajetória histórica dos Mebêngôkre,
revelando a origem comum dos atuais grupos a partir da aldeia ancestral Goroti-Kumrex e
estabelecendo que um dos primeiros grupos a se dividir foi o dos Xikrin, fato que deve ter
acontecido no começo do século XIX (p.82). Por outra parte, Vanessa Lea (2012, p.62-66) tem
se apoiado na cisão prematura dos Xikrin para afirmar que eles não pertenceriam aos
Mebêngôkre. No entanto, o trabalho etnográfico em que se baseia esse texto evidencia através

35
O ngàb refere-se a um espaço de reunião comunal, localizado no centro das aldeias Mebêngôkre. A categoria é
comumente traduzida como “casa dos homens” nos estudos antropológicos, e como “casa do guerreiro” na
linguagem popular. Tradicionalmente é um espaço ocupado pelos homens de todas as categorias de idade. Quanto
à categoria de idade menoronure, ela se refere a adolescentes e homens que ainda não se casaram (em épocas
anteriores era costume que os homens dessa categoria de idade fossem morar no ngàb e permanecessem ali até
atingirem uma idade madura, se casarem e forem morar na casa dos sogros. Hoje, ninguém vive mais no ngàb).
78

das narrativas dos Xikrin, o amplo espectro que conecta cosmológica e ritualmente aos Xikrin
com outros subgrupos Mebêngôkre36.

Em meados do século XIX, os Gorotire voltaram a experimentar uma cisão, dando origem a
um grupo Mebêngôkre chamado Irã ã mray re (Pau d´arco) (Coudreau, 1897), do qual não se
tem registro na história mais recente, considerando-se extinto. Dos Gorotire vem os
Mekrãgnoti, assim como os Kubekrãkein, que se espalharam ao longo do Xingu após uma
divisão no começo do século XX (Verswijver, 1992).

Especificamente sobre os Xikrin, é difícil rastrear a sua trajetória histórica, já que, como foi
mencionado, eles se separaram há dois séculos do grupo principal Mebêngôkre e durante
longos períodos permaneceram sem ter contato com outros subgrupos. Coudreau (1897) faz
menção aos Chicrîs através de fontes do grupo Irã ã mray re (Pau d´arco), que identificavam
com esse nome os Mebêngôkre ao noroeste de suas aldeias, na floresta de Itaipava. Porém, não
pode ser determinado que os Chicrîs sejam apenas os ancestrais dos Xikrin, já que
possivelmente, como adverte Vidal (1977, p.13-17), os Pau d´Arco deram o nome Chicrîs para
outros grupos Mebêngôkre que incluem os Kokorekre e os Djore.

Um outro fato que Vidal encontrou nos Xikrin do Cateté - e que se tem constatado em Bacajá
- é que essa denominação não tem correspondência na autoafirmação que eles possam definir
a partir de seus ancestrais. Os atuais Xikrin não se auto reconhecem como Chicrîs, ou mesmo,
como Xikrin. No caso de Vidal, ela encontra que os Xikrin se reconhecem através do nome Put
Karôt.

Por outra parte, Vidal (1977) faz menção aos Djôre como um subgrupo extinto, resultante de
uma cisão da aldeia Kokorekre, subgrupo mais próximo dos Xikrin. Segundo o levantamento
dessa autora “os Xikrin e os Djôre teriam em comum ser procedentes dos Pore-kru, sendo esses
últimos o grupo originado da primeira cisão da grande aldeia dos Goroti-Kumrex, à que faz
referência o mito do milho, próxima do rio Araguaia – Tocantins” (p.15). Ao serem consultados
os velhos chefes das aldeias de Pytakô e Bacajá, eles só se identificam como Mebêngôkre
provenientes de regiões ao sudeste de Marabá (Região onde estão localizados os Xikrin do
Cateté), entre os rios Araguaia e Tocantins. Por sua vez, definem uma ligação direta com aldeia
dos Goroti-Kumrex (ver figura 1), reconhecendo que existem ombikwa (afins / próximos) que

36
Estudos mais exaustivos irão detalhar diferenças estéticas, linguísticas, narrativas e rituais entre os subgrupos,
sem que isso faça com que um ou outro se deixe de autorreconhecer como Mebêngôkre. A respeito do ritual bô,
Tselouiko (2018) descreve que para os Kayapó, dita comemoração é incorporada em outras festas, sempre tendo
um caráter de nominação (designação de nomes), enquanto para os Xikrin, é uma festa exclusiva, onde a
nominação nem sempre é dada.
79

falam, se pintam, cantam, dançam e vivem de formas semelhantes, mas mencionando, ademais,
que já tiveram relações hostis entre eles.

Figura 1. Relações bélicas e primeiras cisões. Réplica de ilustração feita por Onça no chão, com
inclusão dos nomes extraídos de nota de áudio feita pelo autor.

A divisão das famílias Mebêngôkre é um dos temas ao qual mais ênfase dão os velhos para
determinar a índole guerreira de seu povo, sendo a atividade bélica uma forma de expressar a
diferença enquanto aos outros. Nesse sentido, Bep Tok e Bep Joti identificam os Kokorekre
como um grupo muito próximo dos Xikrin, mas também fazem ênfase em determinar que os
Gorotire não o são. Inclusive, em depoimento de Onça, foi encontrada a afirmação de que os
Gorotire não seriam Mebêngôkre. Isso permite constatar que não só existem várias versões a
respeito, mas também leva a entender que, assim como entre os Mekrãgnoti podem ser
encontradas versões que distanciam os Xikrin de ser Mebêngôkre, dentro dos Xikrin existem
algumas impressões no mesmo sentido em relação aos outros subgrupos.

Dessa forma, pode-se observar que a partir da primeira cisão se deu uma partilha radical em
dois grandes grupos, os quais iriam se distanciando geográfica e culturalmente ao longo do
tempo: por um lado os chamados Pore-Kru e por outro, os Gorotire. É plausível, assim,
encontrar em algumas narrativas que os subgrupos derivados não se reconheçam entre eles
como Mebêngôkre, apesar que esta seja a forma mais básica para o autorreconhecimento de
cada um. Na década de 1970, em seus primeiros trabalhos de campo, Vidal (1977; 1981; 1992)
já iria se defrontar com aquilo que os Xikrin do Cateté descreveram como “pintar diferente”,
já que os traços da pintura corporal servem como ponto de partida para que os Xikrin descrevam
80

suas diferenças dos Mekrãgnoti. Nos cantos, assim como nos ngô-kon / maracás cerimoniais,
Bep Tok também descreve elementos para se diferenciar dos Mekrãgnoti e Gorotire: “ngô-kon
nosso é grande, faz som mais forte, maracá Kayapó é menor”. Nesse sentido, fazer memória
das cisões é lembrar as diferenças.

Do mesmo modo como aconteceu uma primeira cisão na aldeia principal, veio um período de
múltiplas cisões entre os Pore-Kru ao longo do século XIX. O que se sabe pelos relatos orais,
é que os Put-Karot (ancestrais dos Xikrin) vieram ocupar ao noroeste a região do Cateté-
Itacaiúnas, sendo assim familiarizados com as florestas do Cateté e os campos do alto
Itacaiúnas37 (Vidal, 1977, p.28). Porém, a ocupação dessa região trouxe conflitos com
moradores que já habitavam ali. Sem contar que para inícios do século XX, seria o auge da
exploração de borracha. As relações entre indígenas e moradores (colonos), apesar de alguns
parâmetros de trocas básicas, se deterioraram rapidamente. Conta Vidal que um fator decisivo
para a retirada dos Xikrin do Cateté, foi a morte do pai de Bep Karoti (chefe da época). O grupo
iria parar nas cabeceiras do Itacaiúnas, afluente do rio Tocantins, durante um período e se
aliaria com o grupo Kokorekre, já impactado gravemente pela violência ocasionada por
colonos.

Para essa mesma época, teriam auge os conflitos entre os Put Karot e Kokorekre com os
Gorotire. Bep Tok – Onça conta que seu pai e seu avô foram testemunhas de episódios de
morte entre os Xikrin e os Gorotire. Nos dados coletados por Vidal (1977) é descrito um
episódio de apreensão da filha primogênita de Bep Karoti. Dali se seguiram múltiplas
expedições dos Xikrin para atacar os Gorotire e recuperar a criança, desencadeando múltiplas
mortes, principalmente do lado dos Gorotire. Não obstante, a menina nunca foi recuperada e
acabou falecendo entre os Gorotire (1977, p.31). Para Bep Joti, um dos principais rivais
históricos dos Xikrin são os Gorotire. Com frequência, Bep Joti se vale das histórias de guerra
com eles para descrever como era a vida de seu povo antes do contato: “índio matava índio”
– menciona, enquanto lembra de vários parentes que foram mortos.

No começo do século XX os Xikrin encontraram-se numa encruzilhada: por um lado, a


inimizade com os colonos e seringueiros se intensificava, e por outro, os ataques constantes
dos Gorotire criavam um ambiente de desconfiança. Essas seriam as principais causas de um

37
É comum encontrar que em alguns dos mitos Mebêngôkre se faz referência a campos ou savanas (lugares fora
da floresta), descrevendo paisagens abertas onde começa o dia, a vida, ou mesmo a iniciação xamânica. Por outra
parte, suas narrativas evidenciam sua íntima relação com animais, plantas, árvores e fenômenos da floresta,
demonstrando que os Xikrin possuem conhecimentos ambivalentes sobre as regiões do Brasil Central, passando
dos campos à floresta amazônica.
81

período de constante mobilidade para aquele povo. Conta Onça que no meio das disputas, os
Xikrin vieram a se localizar no lugar chamado pukat-ngro, lugar onde está a atual aldeia de
Cateté, sendo ali onde nasceu o pai do Onça, Bep Ngrati.

Porém, os Xikrin não permaneceram em pukat-ngro, pois a pressão dos Gorotire fez com que
o grupo se deslocasse em sentido do rio Bacajá. Foi nessa migração que se produziu a histórica
partilha dos Xikrin que perdura até dias atuais. Estando em Bacajá uma parte do grupo não se
adaptou e decidiu voltar para o sul com o propósito de resistir a pressão dos Gorotire, passando
um tempo numa aldeia que chamaram de baú-pry, na beira do rio Branco. Segundo
informações coletadas por William Fisher (1991, p.72), esse processo teria acontecido entre
1926 – 1927. Enquanto isso, outra parte do grupo permaneceu no Bacajá. As divisões tiveram
um carácter transitório e durante décadas os Xikrin do Cateté pensaram em reunificar o grupo,
no entanto, estes permaneceram fracionados e - salvo algumas famílias que se deslocaram do
Cateté para o Bacajá, e algumas poucas em sentido contrário - não se produziram maiores
migrações entre os grupos de uma região e outra.

Menciona Vidal (1977) que o chefe Bep Karoti fez uma expedição para tentar convencer o
grupo do Bacajá a voltar com eles, no entanto, sua tentativa seria manchada por uma briga na
qual seu filho Bemoti matou três integrantes do Bacajá sem razões aparentemente claras.
Parece ser que o grupo do Bacajá estaria disposto a voltar, começando uma viagem para o sul,
para reencontrar os parentes do Catete, mas pouco tempo depois retornou para Bacajá com
temor de não ser bem-vindo.

Dessa forma, o foco dos Xikrin do norte passou a estar na ocupação do Bacajá e os novos
conflitos emergentes com povos que já estavam ocupando ou chegando na mesma região que
eles. Com frequência o Onça faz menção aos ataques perpetrados contra os Araweté38,
Parakanã, e especialmente, Assuriní. Isso sem contar que foi comum executar algumas
expedições para assaltar vilas e assentamentos colonos com o propósito de pegar facões,
enxadas, roupas ou mesmo espingardas com alguns cartuchos. Em um dos relatos, Onça
confirmou que ainda sendo menoronure - adolescente - participou de algumas expedições nas
quais eles conseguiram flechar indígenas Parakanã39.

38
A respeito dos conflitos com os Araweté, Viveiros de Castro (1986, p.141-142) registra que este grupo habitava
a cabeceira do rio Bacajá no final dos anos 50, mas acabaram sendo dissipados. Esses manifestam ter sofrido
constante pressão e ataques por parte dos Xikrin, que investiram contra os grupos de terra firme.
39
De acordo com o levantamento feito por William Fisher, em 1991, quem coletou informações sobre as
expedições guerreiras dos Xikrin através do Bep Tok (Onça) em 1984, os Xikrin do Bacajá teriam participado
apenas de uma expedição contra os Araweté. Porém, segundo as informações coletadas para essa pesquisa em
2017, a mesma fonte de Fisher, confirmou que os Xikrin do Bacajá teriam sido mais ativos nas expedições de
82

De acordo com Fisher (1991, p.76), no transcurso da metade do século passado, os Xikrin
acabaram se assentando no lugar chamado por eles Kri-mex rax, para esse momento Onça era
um meboktire (categoria de idade prévia à adolescência, talvez equiparada a pré-adolescênte)
e o chefe da aldeia era Ngôrôrôti, pai de Merettí (pai do Onça). Os Xikrin transitaram entre
esse ponto, o lugar conhecido como Porto Velho e ainda a localidade conhecida como
Ngôjakaré ou Carapanã (1991, p.85). Possivelmente foi entre esses pontos que se organizaram
as expedições de guerra contra outras etnias alocadas na região.

Maria, irmã de Onça e moradora da aldeia Bacajá, disse que ainda sendo Mẽkurêrê (forma
indeterminada para se referir a crianças e mulheres ainda solteiras e sem filhos) acompanhava
seus pais nas expedições no mato, onde eles caçavam e eventualmente faziam incursões para
rastrear a pegada dos kube-kamrexti40. Maria sugere aquilo que Vidal (1977) definiu a respeito
dos Xikrin como uma dinâmica "sedentária-nômade", já que como evidenciou Fisher (1991,
p.85) os Xikrin do Bacajá se deslocavam entre três pontos onde teriam locais de moradia
transitórios. Entretanto, não deixaram de percorrer o norte e a cabeceira do Bacajá durante
períodos medianamente longos, seja para caçar, para comemorar rituais ou mesmo para atacar
outros grupos.

Por outra parte, pode ser constatado que, mesmo as mulheres e crianças não participando
diretamente de uma incursão guerreira, elas eram incluídas nas expedições. Dessa maneira
pode ser inferido que o ciclo nômade dos Xikrin incluía um período de migração grupal em
que o propósito e a estratégia da expedição era designado em pelo menos três sentidos: por um
lado, podia mudar de acordo com os acontecimentos do dia a dia, por exemplo, encontrar uma
“picada” (trilha recente) de humanos nas proximidades seria causa para organizar incursões
menores onde as mulheres e crianças se assentavam provisoriamente, enquanto os homens
partiam para um possível encontro com o inimigo. Mas por outro lado, existiriam trajetos
determinados onde se sabia que moravam grupos inimigos e seriam feitas incursões bélicas não
necessariamente com o único objetivo de expulsá-los, senão com propósitos de usurpação de
bens materiais elaborados com técnicas não conhecidas pelos Xikrin. Adicionalmente, em
qualquer uma das vias de contato bélico, seria dado de forma aleatória -dependendo das
circunstâncias- o rapto de crianças e mulheres de outras etnias e não indígenas.

guerra contra os Araweté, ademais de ataques contra os Assuriní, Parakanã e ainda colonos em épocas prévias à
pacificação e durante ela.
40
Com frequência é usada esta definição para “índios bravos” que habitavam a região do Bacajá na época da
chegada dos Xikrin. Pode se referir aos Assuriní ou mesmo, aos Araweté.
83

Contudo, deve se dizer que o terceiro hábito, relacionado com caça e coleta, seria o mais
comum e o motivante de expedições grupais que incluíam pessoas de todas as idades. Os
Xikrin, inclusive até épocas pós contato, mantiveram hábitos seminômades nos quais, durante
os períodos de seca, passavam meses se deslocando no interior da floresta com propósitos
cinegéticos e rituais (Vidal,1977, 80-86), estabelecendo acampamentos transitórios e andando
por trilhas geralmente reconhecidas.

De fato, nos relatos dos Xikrin do Bacajá, os kube (não indígenas) têm ocupado uma especial
atenção durante o último século. Isso porque as relações estabelecidas com esses têm variado
desde expedições bélicas até alianças estratégicas. Normalmente o interesse dos Xikrin nas
relações com o kube é determinado pela aquisição de bens materiais e/ou mercadorias. No
Bacajá, os vestígios de ocupação não indígena parecem datar desde o começo do século XX
(Fisher, 1991, p.77), sendo que na beira do rio é possível achar árvores frutíferas de manga e
limão que indicariam uma localidade de tempo atrás.

Na atual aldeia Pytakô, por exemplo, é possível encontrar um pomar nas proximidades da
margem do rio. Consultando os moradores, estes indicaram não ter plantado os limoeiros. A
localização da aldeia, por sua vez, é bastante estratégica, estando no coração da atual TI (ver
mapa 2), próxima de castanhais e possuindo na atualidade uma pista de pouso para aviões de
pequeno porte. Onça informou que eles decidiram abrir a aldeia ali, em 2009, após várias
tentativas falidas em outras localidades onde principalmente a presença de doenças, como a
malária, teria motivado a desistência. Não obstante, ele disse que já desde final dos anos 80 e
começo dos 90, a região de Pytakô teve a abertura de uma das partes da atual pista de pouso,
além de uma estrada por parte de madeireiros que encontraram nessa região do Bacajá uma alta
concentração de madeiras nobres como ipê, mogno, amarelão, freijó e cedro. Um colono da
época conhecido como “Metralha”, teria sido o responsável do primeiro ciclo de extração onde
foram retiradas as madeiras nobres41 (ver figura 2).

41
Após alguns meses de campo e várias expedições acompanhando os homens, o pesquisador começou a perceber
a presença de moitas com alta concentração de cipó em múltiplas partes no mato, consultando os interlocutores,
eles explicaram que esse tipo de vegetação é comum em lugares onde foi retirada uma grande árvore, deixando
um espaço no mato e sendo ocupado por vegetação transitória. Lamentavelmente, são muitos os lugares nas
proximidades de Pytakô onde pode ser encontrado este padrão.
84

Figura 2. Rotas de acesso Pytakô. Réplica de ilustração feita por Onça no chão com inclusão dos
nomes extraídos de nota de áudio (feita pelo autor).

Atualmente existe uma estrada aberta pela Norte Energia42 que comunica Pytakô com o
exterior da TI até chegar nas estradas de vilas onde moram colonos. Por sua vez, as vilas
compõem o chamado “travessão” (rede de vias rurais). No período da seca, a estrada é a melhor
forma de acesso: após umas seis horas de carro é possível chegar até a BR 230
(Transamazônica). Ademais, na década de 1990 existiu uma estrada quase que em paralelo da
atual: consistiu num circuito de ramais madeireiros que foram a via de escoamento das toras.
Esta rota chegava até o rio Bacajá e lhe atravessava através de uma “bucha” 43 (ver figura 2).
Posteriormente a estrada estendia-se até um longo perímetro a oeste da TI.

Contato

O contato e a “pacificação” dos Xikrin do Bacajá representa um período violento para eles, já
que as mudanças trouxeram consigo um enorme decrescimento populacional. Conversar com
um velho Xikrin sobre esse período consiste num processo de memória estranha da morte. Os
mebenget (velhos), quando refletem e lembram os seus parentes, relacionam o desaparecimento
de grande parte deles a doenças, referindo-se principalmente à geração que precedeu a época

42
Consórcio de empresas envolvidas na construção da UHE Belo Monte.
43
Ponte provisória composta por aterramentos nas margens do rio e toras entre um extremo e outro. São comuns
nas estradas ilegais na Amazônia, servindo para a extração de recursos no interior de Terras Indígenas e Unidades
de Conservação.
85

da metade do século passado. Bep Tok e Tapix, em Pytakô, assim como Bep Joti, Ngrei Tó,
Bep Pumatí, em Bacajá, manifestam nos seus relatos sobre as genealogias Xikrin, a constante
perda de parentes por conta de doenças, destacando a malária. Fisher (1991, p.83) enfatiza que
os Xikrin identificaram a doença que lhes sufocou como me-kwy-kanê44 (doença das fezes) e
também menciona que até pouco antes do contato, o índice populacional era maior do que seria
no fim dos anos 1980, quando o autor visitou Bacajá para fazer sua pesquisa.

O contato foi feito oficialmente pelo SPI (Serviço de Proteção ao índio), em 1959, no lado
oriente do rio Bacajá. Ali foi assentado um posto denominado Francisco Meirelles. Existem
versões oficiais que não adjudicam ao processo de pacificação o maior causante das doenças,
baseando-se em que estas teriam chegado antes até a comunidade através dos contatos
esporádicos que os indígenas estabeleceram com assentamentos de garimpeiros e seringueiros,
onde costumavam invadir ou atacar para pegar ferramentas e provisões. Isso não é errado, pois
através dos relatos dos velhos pode ser constatado esse fato, assim como através das narrativas
dos colonos, seringueiros e ribeirinhos da região do Xingu. Onça lembra, com certa expressão
de cumplicidade, os assaltos perpetuados pelos Xikrin contra os colonos com o propósito de
pegar ferramentas e utensílios. Disse Fisher (1991, p.78) que a maioria dessas incursões que
levariam os Xikrin a serem contatados aconteceram a partir de um lugar chamado de Porto
Velho, lugar que na época teria contado com um grande número de menoronures (homens
Xikrin jovens), levando a uma vida grupal dinâmica.

Se sabe que as expedições se estendiam desde o sul do rio Bacajá e chegavam até a
desembocadura no Xingu, sendo a Ilha da Fazenda na Volta Grande um dos destinos finais que
os Xikrin almejavam. Inclusive, foi ali onde começou o contato pelo SPI. Após um ataque dos
indígenas onde morreram alguns garimpeiros, estes decidiram se organizar para ir atrás dos
atacantes. O então diretor do SPI Francisco Meirelles organizou uma expedição com o
propósito de encontrar e pacificar os indígenas para evitar um massacre. Mas seria só através
de Afonso Alves da Cruz (sertanista), Aiembi, Ingremaií -os dois Xikrin- Nikamoro, Beprê e
Nodjuro – os três Kokraimôro; que se lograria o contato. Naquele momento, os Xikrin eram
um grupo conformado por 155 pessoas, alguns deles já teriam participado da primeira tentativa
de contato no posto Las Casas, perto de Conceição de Araguaia, mas como foi mencionado
acima, as constantes epidemias os dissiparam, prorrogando o contato.

44
Não foi possível constatar a qual doença conhecida na medicina ocidental se refere essa denominação.
86

Contudo, é possível constatar nos dados históricos e nas versões dos responsáveis pelo contato,
que os Xikrin ainda deveriam sofrer o pior episódio de doenças após o contato, sendo o próprio
SPI o responsável. Fisher (1991, p.85) estima que durante a transição entre o pré contato até os
anos posteriores à pacificação, morreu mais da metade da população. Mas é o próprio Afonso
Alves (2015, p.129) quem testemunha que após o contato, Meirelles levou cinco Xikrin até
Altamira. Pouco tempo se passou até que ele tivesse que voltar para o escritório do SPI em
Belém deixando a equipe local responsável pelos indígenas. Ela deveria transportar os Xikrin
de volta até o posto onde encontrariam seu povo, mas isso nunca aconteceu, foram deixados
no meio do caminho sem provisões nem atendimento. Quando os indígenas chegaram no posto,
estavam gripados.

“Afonsinho” – como é comumente conhecido em Altamira o sertanista- prevendo o risco de


endemia, voltou na cidade atrás de medicamentos para tratar dos doentes, porém não obteve
resposta positiva da diretoria local do SPI. Pouco tempo depois se contabilizaram 55 Xikrin
mortos. A situação piorou: “os índios abandonaram onde nós estávamos e foram para a mata.
Quando voltaram, estavam todos diferentes. Choravam muito pelo pessoal todo que tinha
morrido. Eu fui na aldeia e vi uma criança mamando numa mulher morta...” (Milanez, 2015,
p.130).

Após várias tentativas da frente de pacificação, a mesma conseguiu reunificar os Xikrin que
tinham se fracionado. Foi-se contatando-os aos poucos até conseguir finalmente que se
reunissem numa antiga localidade denominada Carapanã Ngôjakaré (afluente do rio Bacajá),
situada no oriente da região do Bacajá. Foi dali que os transferiram, em 1965, para as margens
do rio -Bacajá- para um local que fora, no começo do século XX, assentamento de
seringueiros45 e onde se localizou a aldeia de Bacajá por mais de 50 anos até se mudarem, em
2017, para uma nova aldeia com casas de alvenaria na margem oriental do rio46.

Quanto à delimitação formal do território ocupado pelos Xikrin, esta foi se definindo através
de um processo que por uma parte se apoiou na identificação de áreas ao longo do rio Bacajá
e a ocupação efetiva destas, e por outro, se apoiou nas concessões graduais das instituições

45
Dados apontam que o rio Bacajá foi um dos focos de extração de seringa e caucho durante o auge dessa atividade
no começo do século XX, sendo ligado à rota comercial de caucho do Xingu.
46
No momento em que foi feita a pesquisa, ainda havia uma família habitando na primeira aldeia de Bacajá,
enquanto na nova aldeia o número de famílias ascendia a vinte cinco. Entre os anos 2017 – 2018 era comum
observar um fluxo constante entre as duas localidades, principalmente porque na primeira aldeia encontram-se
ainda uma grande quantidade de roças, castanhais, trilhas de caça e serviços como telefone orelhão e rádio. É
comum encontrar durante o dia pessoas cruzando o rio e transportando bens e produtos do trabalho, ainda que a
distância entre uma aldeia e outra chegue a ser trinta minutos a pé.
87

responsáveis. É oportuno mencionar que em 1967 se deu a dissolução do SPI e o surgimento


da FUNAI, processo motivado por casos de corrupção na gestão de recursos e
responsabilidades com os povos indígenas. No nível local, esse cenário não foi alheio e houve
casos de falhas das funções por parte da coordenação designada pelo SPI para os Xikrin (Fisher,
1991, p.89). Foi só em 1979 que se formalizou a criação da reserva Xikrin do Bacajá e apenas
a TI Trincheira Bacajá foi demarcada em 1996 com 1.650. 939 ha.47 Suas fronteiras estão
compartilhadas com as TI Apyterewa dos Parakanã, Koatinemo dos Assuriní e Araweté
Igarapé-Ipixuna dos Araweté, e os municípios de Anapu, Senador José Porfírio e São Félix do
Xingu.

Tiveram de passar algumas décadas antes dos Xikrin demonstrarem um aumento populacional
considerável. Só no começo dos anos 1980 o grupo do Bacajá começaria a apresentar uma
curva crescente, reportando 172 habitantes. Esse padrão se manteve ao longo da década de
1990, reportando no começo do século XXI, 362 Xikrin do Bacajá. Já para 2010, foram
reportados 1288 Xikrin habitando em oito aldeias, segundo o IBGE (2010). De acordo com os
dados dessa pesquisa, na aldeia Pytakô (lugar onde foi realizado principalmente o campo)
habitavam 50 pessoas até 2018.

Apesar da pacificação, os Xikrin não pararam de realizar expedições de guerra tão cedo. As
incursões para procurar ferramentas e bens de outras etnias ou mesmo de alguns colonos se
mantiveram durante vários anos após o contato formal. Inclusive, Fisher (1991, p.93) registrou
um conflito entre Xikrin e Parakanã que ocorreu em 1977, após os segundos terem flechado
três jovens Xikrin. O grupo agredido se armou de espingardas e foi atrás até alcançar os
atacantes. A provocação teve como consequência a retenção de mulheres e crianças Parakanã,
que só seriam devolvidas após uma complexa negociação com a FUNAI como mediadora.

47
Destaca Clarice Cohn (2000) através de suas pesquisas, que previamente se deu uma demarcação em 1980 com
192.125 ha. Porém, essa delimitação deixava de fora espaços comumente ocupados pelos indígenas, como trilhas
de caça, castanhais e antigos aldeamentos.
88
89

Prancha 3: Benadjwre (chefes)

Foto 1 e 2: Os homens ngokónbôri, portadores de maracá e cantos, após passarem pela pintura
e decoração de seus corpos, em responsabilidade de suas esposas, costumam se alocar no ngà.
Ali, passam o dia e parte das noites, durante as comemorações rituais, por exemplo mereremex
e kurekangô, dançando entre a composição de ritmos em duplas, grupos masculinos e grupos
mistos.

Foto 3: ngàb, comumente traduzida como casa dos homens. Sempre localizada no centro do
círculo doméstico das casas mebêngôkre. Esse lugar pode se considerar o lugar predileto para
eventos públicos. Ali, até algumas décadas atrás, os homens da categoria menoronure
passavam a morar. Hoje, é usada principalmente para reunir as pessoas entorno a
comemorações rituais e, tem se convertido no espaço de discussão aberta entre os Xikrin e os
kubén, principalmente os representantes de empresas terceirizadas responsáveis por
implementar projetos de PBA-CI. Na foto, os homens encontram-se reunidos durante o terceiro
dia de mereremex.

Foto 4: Bep Tok-onça, no meio de um mereremex na aldeia Kenkudjoe. Ele, um ngokónbôri,


portador de fala formal e de cantos, é também responsável por presidir a reunião, determinando
os momentos, danças e tipos de cantos efetuados. O maracá -ngô-kon, constitui o instrumento
predileto nesses momentos.

Foto 5: Bep Koiré, genro de Prîncare, filho de Bep Pumatí. É um ngokónbôri, um portador de
maracá. Habilitado para entoar junto aos homens mekrares, ritmos e gestos que dão lugar às
danças toro.

1 2

4 5
90

Bacajá e as primeiras cisões: final do século XX e começo do XXI

As últimas duas décadas talvez possam ser definidas como um período convulsivo para os
Xikrin do Bacajá, onde a organização social desse povo tem lidado intensamente com
influências externas que são rapidamente incorporadas. Um dos fenômenos mais dinâmicos e
visíveis na vida dos indígenas corresponde aos processos de cisão que tem originado novas
aldeias, e, por sua vez, inúmeras partilhas entre famílias, principalmente no começo do século
XXI. Esse fenômeno parece ter origem na influência de ações governamentais e grandes
empreendimentos na bacia Xingu, que por vezes significa acesso a recursos monetários através
de projetos, políticas públicas e iniciativas econômicas. Contudo, essas dinâmicas parecem ter
trazido a possibilidade de aumentar as atividades intergrupais, dando como resultado um
crescente número de alianças políticas, acelerando o crescimento populacional e
providenciando um constante acesso a técnicas e tecnologias kube (não indígenas).

A primeira cisão no Bacajá ocorreu no começo da década de 1980, após o período de contato
e o falecimento dos chefes Ngôrôrôti e Merettí, por causa de malária. A aldeia Bacajá caiu
principalmente nas mãos dos jovens Bep Tok, Bep Joti e Mauré. Sendo Bep Tok reconhecido
rapidamente como chefe principal dentro da aldeia, ele foi apelidado de “Onça” pelos
funcionários da Funai (isso graças à sua aparência física robusta e sua habilidade de caça).
Mauré convidou o seu irmão Horácio para morar em Bacajá. A presença desse personagem que
veio do Xingu com conhecimentos e técnicas inovadoras, acabou criando uma polarização na
aldeia. Pouco tempo depois, Mauré juntou um subgrupo conformado principalmente por
Tucum, Domingo e Pedro, todos mekrares (homens adultos e casados), o que facilitou a
legitimação da abertura da aldeia de Trincheira – atual Pot-krô – no lugar onde se localizou o
posto Francisco Meirelles na época de contato, na parte norte da TI.

Porém, a distribuição da chefia não parece ter sido clara em Trincheira, o que acabou criando
sobreposições políticas entre os homens pioneiros, causando o retorno de vários deles para
Bacajá. Pedro (Bep Kanhê), mekrare que ajudou na abertura de Pot-krô, afirmou em
comunicação pessoal que a causa de abrir Trincheira foram alguns desentendimentos com os
chefes de Bacajá pelo jeito como estes estavam levando a relação com a FUNAI,
especificamente na distribuição de bens outorgados pela instituição. Mesmo que, ressalta que
a decisão de sair de Pot-kró e retornar a Bacajá, deveu-se a que na nova aldeia alguns dos
mekrares (em especial Tucum quem assumiu a intercomunicação entre Trincheira e os kube
(não indígenas)), começaram a usufruir de forma individualizada os bens que chegavam da
FUNAI, assim como os recursos vindos de negócios com madeireiros da região.
91

Após esses acontecimentos, Mauré permaneceu em Trincheira e Tucum abandonou a Terra


Indígena do Bacajá indo morar na TI Baú, embora tenha voltado pouco tempo depois para
Bacajá. As diferenças entre os líderes e moradores de Bacajá e Trincheira motivou a abertura
de uma nova aldeia chefiada por Tucum e sua família. Assim nasceu Pykayakà.

Entrando no século XXI, em 2003, Bacajá sofreu mais uma divisão. Maradona, -filho de
Konaipó e tabjuo (sobrinho) de Onça- que se caracterizava pela ampla capacidade discursiva e
negociadora com os kube - tinha outras vias de troca e comércio48 por fora das canalizadas
através da chefia e a ordem política da aldeia Bacajá, o que motivou a abertura da aldeia
Mrotidjam. Em paralelo, houve uma tentativa de abrir a aldeia Djôre, mas segundo contam
alguns interlocutores, o local da aldeia não era muito propício e aconteceu uma epidemia de
malária que fez os migrantes desistirem de ficar.

Seguindo nesse período de tempo, aconteceu um conflito que determinaria a história recente
dos Xikrin do Bacajá, pois a partir dali começaram cadeias de cisões e uma grande proliferação
de benadjwores (chefes), dando lugar a uma extensa rede de aldeias ao longo do Bacajá. Como
mostram alguns dos relatos históricos sobre brigas Mebêngôkre, as crianças são um fator
decisivo para unir ou explodir uma relação de adultos (Vidal, 1977, p.30; Cohn, 2005, p.140),
dessa vez não seria a exceção.

Lembram os interlocutores dessa pesquisa que a Ngrei49 tentou bater numa criança que
assediava seus netos com constância: o que parece ser um trivial desentendimento entre
crianças, acabou em uma violenta discussão. Romulo, o pai da criança agredida, pegou uma
borduna e se instalou no ngàb (casa dos homens) e começou a pronunciar provocações contra
o Bep e sua família. O Bep, encontrava-se na sua casa elaborando algumas flechas e uma
borduna para comercializar. Apenas o atualizaram sobre a situação, deslocou-se até o centro
da aldeia para encontrar o Romulo. Não deu tempo de cruzar palavras, quando Romulo
depositou toda sua raiva num golpe direto na cabeça de Bep. O impacto o derrubou
imediatamente e o deixou inconsciente no chão.

Rapidamente Poy, filho mais velho de Bep, correu em defesa do seu pai e acertou um golpe no
Romulo com características semelhantes ao que ele tinha executado segundos antes, Romulo
também ficou no chão. Adicionalmente, Nhira, filha mais velha de Bep, agrediu a esposa de

48
A trajetória política de Maradona se caracterizou por alianças com madeireiros -como o chapéu- resultando em
algumas infraestruturas como a pista de pouso, na sua aldeia.
49
No relato a seguir, no qual se ilustra uma briga entre famílias, estão alterados os nomes originais dos
protagonistas com o propósito de proteger sua identidade.
92

Romulo. Incrivelmente, não houve vítimas mortais nesse dia. Bep foi transportado para um
hospital em Altamira e Romulo para Marabá.

Após este infortúnio, Bep voltou para Bacajá, no entanto, a situação era diferente: por um lado,
o confronto não tinha sido concluído no primeiro episódio e era possível que explodisse mais
uma vez. E por outro, a chefia de Bep tinha sido questionada. A perda de reconhecimento dos
chefes, assim como o superpovoamento que estava sofrendo a aldeia durante esse período,
somaram para que Bacajá entrasse num acelerado processos de dissolução de famílias.

Pytakô (2005-2018)

Após os períodos de tensão entre habitantes de Bacajá, Onça organizou um grupo de aliados
conformado por filhos, genros e tabjuos, Nhoipre e seu genro Rojé junto com suas esposas e
filhos o acompanharam. Juntos pegaram um par de canoas e desceram o rio. Foram vários os
locais onde pararam para reconhecer a área. Para os Xikrin após o contato e desde que
começaram a morar nas proximidades de grandes rios50, se tornou importante fazer testes antes
de criar um assentamento. Primeiramente, leva-se em conta que o lugar escolhido não seja
suscetível a alagamentos na época de chuva. Outro aspecto considerado é a presença de
mosquitos, pois o passado próximo lhes ensinou sobre os riscos de contrair malária. Ademais,
consideram a presença de fartura, sendo necessário que exista uma alta população de espécies
de caça nas proximidades da futura aldeia. Os antigos locais de morada dos seringueiros e os
velhos postos de contato são talvez o maior indício de que o lugar é apto para habitar, as aldeias
de Bacajá e Pot-krô são uma prova. Seguindo esses preceitos, Onça e seus parentes deslocaram-
se através do rio.

Assim, chegaram no local onde se localiza atualmente a aldeia de Pytakô51, instalaram um


barraco e começaram a capinar a área, um procedimento muito semelhante ao de abrir uma
roça: capina, derrubada de árvores, coivarar, queimar e proceder a limpar, com a diferença de
que construíram algumas casas à base de madeira e folhas de palma para recobrir. Após 2013,
foram implementados dois projetos de moradia nas aldeias Xikrin52, numa primeira etapa foram

50
Vale dizer que os Xikrin antes do contato costumavam se assentar nas regiões de mata densa longe dos grandes
rios, se abastecendo apenas de grotas e igarapés.
51
Essa palavra corresponde a um tipo de urucum nativo usado pelos Xikrin na arte da pintura corporal. O local
da aldeia apresenta uma alta concentração dessa planta entre a beira do rio e o local de morada.
52
Após o início das obras de construção da UHE Belo Monte em 2010, se deu até 2013 a aprovação do Projeto
Básico Ambiental Componente Indígena PBA-CI, com o propósito de compensar os povos indígenas da região
93

refeitas as casas com madeira serrada, mas rapidamente foram substituídas com alvenaria.
Inclusive, em múltiplas aldeias Xikrin pode ser dito que existem “duas” aldeias: uma estrutura
mais antiga com casas de madeira e outra recente com alvenaria onde eles moram. Porém, as
duas estruturas são constantemente usadas. (Ver figura 5).

As famílias que se assentaram num primeiro momento e ajudaram a abrir a aldeia foram de
acordo com a organização dos homens mekrares: Kudjoeire, Bep Tok (Picapau), Kwynhdjy
(negão), Bep Tedjêre (Dezoito), Txuak, Nhoiprê, Rojé e Bep Kaire kararaô (Júnior). Kudjoeire
passou a ocupar a chefia, vinda de seu pai Onça a partir da abertura de Pytakô. Pouco depois
se estabeleceram mais famílias de ligação parental com Cobra, irmão do Onça, e Irekepo,
esposa de Kudjoeire. Segundo os dados consultados através dos relatórios do posto de
enfermagem dentro da aldeia, entre 2010 e 2011, Pytakô esteve composta por 80 habitantes em
média. (Ver figura 3).

Figura 3. Projeção de aldeia Pytakô entre 2010-2015.53.

pelos impactos ambientais que poderia ter o empreendimento. Através dessa política, foram implementadas várias
infraestruturas nas aldeias.
53
A indicação Pytakô, Rapkô e Kamótikô, abaixo dos nomes, indica as aldeias de destino que tiveram as famílias
após a cisão.
94

Porém, Nhoiprê e Rojé (sogro e genro) saíram para abrir uma nova aldeia. A razão parece ser
algumas diferenças políticas com o novo chefe Kudjoeire; os dois continuaram a descer o
Bacajá até chegar finalmente num lugar de enormes lajes de pedra conhecido como Kenkudjoe.
Ali moram até hoje. A nova Pytakô, que apresentara um índice populacional crescente durante
seus primeiros cinco anos de abertura, não tardou em apresentar cisões radicais.

O principal motivo das divisões foi a separação inesperada de Kudjôeire (filho de Onça) e
Irekenpo, assim como a nova união dele com uma mulher de origem Kuruaya – Kayapó,
Rayane. O ato acometido pelo chefe foi considerado desonroso entre os valores sociais dos
Xikrin, onde são consideradas apenas uniões entre eles. Dessa forma, as alianças das famílias
se perderam, saindo da aldeia um número considerável de pessoas e deixando-a com menos da
metade da população. Cobra e sua família foram rumo a Rapkô, aldeia recentemente aberta por
Maradona e Domingo, representando para os migrantes de Pytakô um cenário propício para
habitar.

Durante 2017-2018 (período em que foi elaborada a pesquisa de campo), foram contadas oito
famílias moradoras e um total de trinta e cinco habitantes. A seguir, contabilizadas por mekrare
(homens adultos e casados) ou mebenget (velhos) que presidem cada família: 01- Bep Tok
(Onça), 02 - Tedjire, 03 - Tapiex, 04 - Kudjoeire, 05 – Bep Tok (Picapau), 06 - Txuak, 07 –
Bep Kaire, 08 – Kwynhdjy. Até a conclusão da pesquisa foram contabilizadas mais três
famílias (totalizando cinquenta habitantes). Os últimos moradores chegaram procedentes de
Bacajá: 09 - Prîncare, 10 - Juca, 11 – Bep Kamereti (Ver figura 4).
95

Figura 4. Aldeia Pytakô entre 2017-2019.

Durante a maior parte do campo foi possível observar uma rede de alianças que rodeavam a
casa de Onça, fazendo que todas as outras famílias circulassem pela casa do velho chefe por
múltiplos motivos e em diferentes horários, sendo mais comum a reunião noturna de todas as
famílias no rõpte dele (quintal da casa). Entretanto, com a chegada das três famílias, a aldeia
apresentou um processo cariocinético: a família composta pelos mebenget/i Tapiex e Ngrei-
Khru se afastou das reuniões no rõpte de Onça e veio a criar um novo núcleo de reunião
composto pelas famílias 03, 09, 10 e 11 (ver figura 4)

Pytakô cresceu e se seccionou com o aumento populacional, mas isso não constitui um
retrocesso, pelo contrário, foram renovados e ativados espaços, narrativas e alianças,
demonstrando que para os Mebêngôkre, além das oposições, é fundamental o desdobramento
das pessoas. Pensar uma aldeia com poucas pessoas, assim como sem um mebenget – velho, é
visto como algo prematuro e anormal entre os Xikrin. Em Pytakô habitavam dois velhos, mas
faltavam pessoas. É por isso que até o momento da conclusão da pesquisa, a aldeia mudou
consideravelmente. Os cenários rituais, assim como as relações fluíram com um ritmo
96

acelerado, demonstrando que na divisão encontra-se também a reprodução da organização


social.

Figura 5. Aldeias -velha e nova- integradas e a escala, 2017-2019.


Tapiex Ngrei Kry

Ted Jire Prïncore Juca


Ngrei ró
Dezoito Americano

Bekuyhnti Kokonap Irêjometí Meití


97
97
6. Quadro de parentesco. Pytakô 2017-2018.
EGO
------ indica sucessão de nome

Bep Tok Irengrî


(Onça)

Bep Ngràti
Bep Kaire Kô I Rayane
Kudjôre
Junior

Bep Nhô Koitú Kudjwu Nhakkêrê Bep Tok Ireprî Nhakmoro Txuak Pringríre Kupatô Kôkônó Kôkonore Nhakmore
Negão Picapau

Teptí Nhoro Irekukwynhra Kadjanhoro Komeire Bep Inere Nhakumotí Kamrê Irekabô Tekany Bemô Bep Nhanhahtí Kôkôiatí Nhakpotí Bep Txorei Bep Kogontí Tukrare Ropkrori Bep Ieretí
98
99

Outras Cisões

Como foi conferido através de algumas versões entre habitantes de Pytakô e Bacajá, a aldeia
de Bacajá posterior ao processo de saída de Onça passou por um período de instabilidade,
sofrendo aceleradas divisões. Na continuação apresenta-se um panorama geral54 das múltiplas
cisões, tomando como referente o nome dos mekrares, os quais sendo a cabeça dos núcleos
familiares, saíram de Bacajá com o propósito de criar novas aldeias.

Um dos primeiros a tomar a iniciativa foi o Mucuim, que saindo de Bacajá abriu uma aldeia
mais ao norte de Pot-krô, chamando-a de Krahn. Ato seguido, Benedito e Meití abriram
Kamótikô, um pouco mais ao norte de Krahn. Caboquinho saiu de Bacajá para morar em Krahn
junto de Mucuim (chefe dessa aldeia), mas pouco tempo depois houve dissensões entre os dois,
a razão parece ter sido o consumo de bebidas alcoólicas dentro da aldeia e o pouco controle
por parte do chefe. Foi assim que o Caboquinho saiu de Krahn para formar a aldeia de Prindjam.

Porém, as dissensões entre chefes emergentes na primeira década do século XXI não cessaram,
dando como resultado cisões entre parentes de primeiro grau e, portanto, divisões de núcleos
familiares: o irmão de Mucuim brigou com ele pela mesma causa que Caboquinho, decidindo
abrir mais uma aldeia e levando a mãe dos dois com ele. Essa aldeia tem por nome Piudjam.
Na mesma região ao norte, Kroire (um chefe jovem) veio abrir sua própria aldeia, criando
Krimei.

Todas essas aldeias estão localizadas ao norte da TI, em proximidades da aldeia Pot-Krô ou
Trincheira (localizada no local do antigo posto de contato Francisco Meirelles). Inclusive, essas
aldeias atualmente usam a mesma estrada de acesso, tomando-se apenas algumas bifurcações
para chegar até cada uma delas. Dentre as aldeias mencionadas, Prindjam, Piudjam e Krimei
encontram-se localizadas em terra firme, o resto está na beira do rio Bacajá. (Ver mapa 2).

54
Considera-se que não é necessário aprofundar na trajetória pessoal de cada um dos mekrares e suas famílias,
pois acabaria sendo uma apresentação muito extensa que não corresponde abordar nesse texto.
100

Mapa 2. TITB (Terra Indígena Trincheira Bacajá) e aldeias Xikrin até 2018.
101

Em 2016, por causa de uma disputa na Kenkudjoe entre Quati (liderança responsável por
administrar combustível e energia na aldeia) e algumas famílias, onde houve acusações de que
aquele estaria dando uso pessoal para o recurso energético, o mesmo acabou sendo expulso.
Quati e uma parte da sua família acabaram dando origem à aldeia Kabakrô.

Por outra parte, no sul da TITB, em Mrotidjam, também aconteceram duas cisões. Há algum
tempo Maradona teve algumas diferenças na aldeia que ele mesmo abriu, decidindo deixá-la,
criando assim uma nova que recebeu o nome de Rapkô. Foi ali onde se refugiaram as famílias
que deixaram Pytakô, após discordarem com a dissolução do casamento de Kudjoeire, filho do
Onça. Ademais, recentemente foi aberta uma aldeia na mesma região, denominada Kenkrô,
que contou inicialmente com dez famílias, mas no começo de 2018 já tinham desistido algumas
delas e retornado para Mrotidjam.

Durante a pesquisa de campo em 2017, a TITB possuía onze aldeias, embora, quando foi
concluída a pesquisa, em 2018, tinham sido abertas mais duas, o que permitiu contabilizar um
total de treze aldeias. No entanto, em 2019, através de comunicação pessoal entre o pesquisador
e interlocutores, foi informada a existência de mais uma aldeia, o que aumentou a conta para
catorze. Posteriormente, entrando o ano 2020, foi possível confirmar que seriam quinze, já que
foi aberta uma aldeia chamada Moinhõro, localizada entre Pytakô e Bacajá (ver mapa 2). O
acelerado processo de aldeamento Xikrin faz com que cada ano seja necessário fazer um
levantamento do número de aldeias. Assim, o leitor deve saber que provavelmente as contas
apresentadas aqui estarão desatualizadas no período em que estiver repassando essas linhas.

Empreendimentos econômicos na região do Xingu: UHE Belo Monte

Os olhos do setor energético estiveram atentos à região do Xingu desde muito antes que se
desse de fato, o licenciamento e a construção da atual Usina. Desde metade da década de 70s,
sob a ditadura militar, falava-se sobre o potencial hidrelétrico que teria a implementação de
usinas na bacia do Xingu. A Eletronorte, empresa do setor elétrico e subsidiaria da Eletrobrás
foi a primeira a implementar estudos de viabilidade técnica na construção de um grande
complexo hidrelétrico (concebido como as usinas de Kararaô e Babaquara) (ISA, 2015) .

Não obstante, não passou muito tempo até surgirem demandas de povos indígenas que
denunciaram o risco à sua integridade no caso da implementação do projeto que contemplaria
o alagamento e dissolução de múltiplas áreas destinadas a reservas e Terras Indígenas. O que
102

parecia um projeto de caráter técnico à luz de estudos prévios, ganhou visibilidade


internacional ao longo dos 80s graças aos conflitos sociais suscitados. A falta de clareza na
forma como seriam abordados os problemas sócio-ambientais, somado às indecisões
orçamentárias enquanto à execução do projeto, causaram que a iniciativa ficasse estagnada.

Já no começo dos anos 2000 a iniciativa de construir uma hidrelétrica na bacia do Xingu voltou
a estar na mira graças a que foram atualizados de forma ilegal55 alguns levantamentos nas
proximidades do município de Altamira. Foram prolixos os processos jurídicos durante o
começo do século, não concernindo detalhá-los aqui, mas cabendo dizer que os movimentos
indígenas, as ONGs e associações, o MPF, políticos regionais, assim como as dependências
publicas e as firmas do setor energético protagonizaram uma batalha jurídica que sem ter
definições concretas, acabou prolongando a obtenção do licenciamento prévio para a
construção da usina hidrelétrica, apesar de que para essa época, dito projeto parecia ser um
alicerce financeiro com o qual o governo federal contaria.

Seria questão de tempo para que a intervenção da Bacia do Xingu se tornasse uma diligência
irrefreável. Em 2010 foi liberado o licenciamento prévio através do Ibama, com isso, o projeto
de UHE Belo Monte tomou forma. A autorização se deu no marco da aprovação de medidas
de mitigação e compensação, estabelecendo-se condicionantes socioambientais na execução
da obra. Entre as medidas compensatórias encontravam-se as “ações antecipatórias” de saúde,
educação e saneamento básico necessárias para adequar Altamira para receber a obra, pois foi
estimado que a cidade receberia aproximadamente 74 mil pessoas atraídas pela construção da
barragem (ISA, 2015) . A cidade cresceu, embora, tenha se dado um aumento desbordado na
formação de áreas periféricas e a insegurança tenha tornado de Altamira uma das cidades mais
perigosas do país segundo o IPEA.

Já no âmbito dos povos indígenas, foi definido o PBA-CI (Plano Básico Ambiental do
Componente Indígena) que previu medidas compensatórias para os povos de Terras Indígenas
considerados através de duas categorias: direta e indiretamente impactados. O PBA que prevê
mitigar e ressarcir os impactos da usina, foi contemplado com R$3,2 bilhões e uma duração de
35 anos. Não obstante, teve atrasos na implementação e contratação sendo necessário elaborar
um Plano Emergencial para 24 meses, entre 2010-2012.

Se por uma parte o processo de definição de políticas de impacto Socioambiental foi lento, por
outra, a construção da usina foi acelerada durante os primeiros anos, chegando a ser executada

55
Não houve uma tramitação regular diante do Ibama, responsável pelo licenciamento nas áreas hídricas da União.
103

num 75% em menos de cinco anos. Em outras palavras, enquanto a obra era adiantada, eram
discutidos os alcances de impactos que deveriam ter sido previstos e evitados, o que segundo
o ISA (2015), trouxe a sobrecarga de entidades públicas, a degradação ambiental da região, a
piora da qualidade de vida das populações locais e a perda de recursos naturais essenciais.

***
Os Xikrin do Bacajá, considerados indiretamente impactados, sendo contemplados pelos PBA-
CI, passaram a ter mudanças consideráveis, principalmente nos modos de vida materiais, nos
últimos dez anos. Bolívar (2014); Cohn (2015); Mantovanelli (2016) dedicam trabalhos a
analisar os impactos da UHE Belo Monte em povos mebêngôkre. No caso deste trabalho, os
impactos da chegada da usina podem ser entendidos em dois aspectos principais. O primeiro,
definido pela abertura (habilitação) da estrada que conecta Pytakô com o exterior da TITB, já
que essa obra, implementada sob a política compensatória, trouxe mudanças significativas nas
formas concretas em que os caçadores de mobilizam e os ritmos que se impõem na prática
cinegética. Contudo, a relação entre a abertura da estrada e as mudanças nos hábitos de caçar
não devem ser vistos como desvantagem, pelo contrário, tem significado um desenvolvimento
expressivo de técnicas inovadoras para caçar. Sendo este um assunto de extrema importância
para a minha análise, voltarei nele especificamente no capítulo 3, segmento “estrada”. Embora,
a minha análise irá se concentrar nos âmbitos técnicos que definem a caça através da abertura
da estrada.

O segundo aspecto sobre os impactos da Usina, que concerne a este capítulo, se refere a que
nas últimas duas décadas tem se dado um acelerado processo de cisões concomitantes às
mudanças materiais, que como foi mencionado acima, podem estar diretamente relacionadas
com o crescente acesso dos indígenas a políticas governamentais e grandes empreendimentos
econômicos na região. Apesar disso, as cisões no Bacajá não devem ser tomadas como um
processo alheio à organização social, já que como se mostrou no começo desse texto, a
continuidade depende da divisão. Assim, as cisões configuram um sistema de alianças que se
refaz a cada momento, sendo uma dinâmica de cisão-agrupamento inacabada e relacional:
famílias vão e vem, assim como as alianças, acontecendo sempre um desdobramento de
pessoas, o qual reafirma a socialidade (Strathern, 2006 [1988]), enquanto se motiva pela
influência ádvena das políticas e empreendimentos regionais. Dessa maneira, poderia se dizer
que os estudos entre os Xikrin demonstram que há uma dinâmica histórica de cisão-
104

agrupamento necessária na consolidação de pessoas Mebêngôkre. A guerra, por exemplo, em


paralelo às cisões intra-tribais, em tempos anteriores, seriam formas de efetivação da diferença.

Porém, sem que se pretenda aprofundar nos impactos de grandes empreendimentos no Xingu,
como o caso da UHE Belo Monte, já que esse assunto demandaria uma apresentação e análise
aprofundada que ultrapassaria o propósito deste capítulo, inclusive desta tese, deve-se colocar
uma última questão. Quando se examina o fenômeno de cisões em outras sociedades
Mebêngôkre, é possível observar que este é dado de forma mais contraída do que nos Xikrin
do Bacajá. Por exemplo, os Xikrin do Cateté possuíam até 2018 três a quatro aldeias; ou os
Kayapó da TI Baú, com uma extensão de terra semelhante à dos Xikrin, possuíam cinco.
Ademais, é possível observar que o acelerado aldeamento em Bacajá coincide com a chegada
da política compensatória em 2015, por causa da entrada em vigor do Projeto Básico Ambiental
PBA-CI para os povos indígenas direta e indiretamente impactados pela UHE Belo Monte na
bacia do rio Xingu. A política tem consistido na entrega de motores, ferramentas agrícolas,
moradias, veículos, cascos de navio, mercadorias, infraestruturas e alguns projetos agrícolas.

Um aspecto que parece ser determinante na proliferação de aldeias, é o fato de que a política
do PBA-CI seja projetada para cada aldeamento. Nesse sentido, independente de se existe uma
ou doze aldeias, os projetos podem contemplar desde as provisões básicas e combustível até a
construção das infraestruturas padronizadas para casas, banheiros, enfermarias e escolas.
Apesar de que o PBA-CI atualmente só atende as aldeias abertas até o ano da sua entrada em
vigor, deixando por fora as mais de vinte e cinco aldeias abertas na TITB após a pandemia, os
Xikrin vêm na possível revisão do PBA-CI, a possibilidade futura de entrar a fazer parte da
contemplação nas políticas assistenciais.

Ademais, a administração de bens e recursos nas aldeias contempladas pelo PBA-CI, tem
trazido um crescente número de casos de dissensões entre os habitantes, o qual parece motivar
os processos de abertura de novas aldeias. Por exemplo, no caso da abertura da aldeia Kabakrô
a cargo de Quati, em conversa com moradores da aldeia Kenkudjoe, em 2018, estes me
informaram que a Kabakrô estava composta apenas por um núcleo familiar, o do benakjure.
Ainda assim, estariam chegando naqueles meses, combustível e ferramentas, além de estar
sendo gestionada a construção de algumas casas de alvenaria. Apesar de Quati e a sua
empreitada aparentemente não ser consistente enquanto ao número inicial de famílias, veio a
se constituir como aldeia.
105

Com isso quero indicar que, efetivamente, a lógica de aldeamento, assim como as redes de
parentesco no Bacajá, têm sido influenciadas pela implementação do PBA-CI. Os programas e
projetos compensatórios têm acelerado um processo de cisões que, se bem, poderia se prever
que teriam se dado em algum momento histórico graças à necessidade da reprodução da
organização social Mebêngôkre; vem a ser condensados e exacerbados. Em outras palavras,
os primeiro dez anos de PBA-CI tem sido fundamentais para que haja um processo açodado de
materialização das cisões na TITB. O qual se traduz também num cenário de alianças políticas
instáveis.

Contudo, seria errôneo pensar que a extensão dos aldeamentos é dada só a partir de uma lógica
básica de individualização e consumo. Como Cesar Gordon (2003) demonstrou, os Xikrin
possuem um amplo atrativo pelas mercadorias e bens dos brancos, mas essa busca material não
se esgota num consumismo exacerbado, senão que inscreve um conjunto de valores que
acabam fazendo parte de um modo de produção das pessoas nos mesmos termos que fariam os
nomes, os objetos e as prerrogativas cerimoniais, chamadas de nêkrêjx. No Bacajá essa lógica
é aplicável, sendo que a ordem e circulação na coletividade é dada através de uma economia
política de pessoas (Turner, 1966; 1979), ao mesmo tempo que se produz um extenso panorama
de alianças políticas e desdobramentos da chefia.

A esse respeito, uma crítica é levantada por Bep Tok -Onça- que identifica a dinâmica atual
como um sistema de alianças debilitadas, remarcadas sem seguir os preceitos da chefia
Mebêngôkre. O meu interlocutor disse ter muitos benakjure na Terra Indígena, mas pouca
riqueza. Vale lembrar que ele foi o benakjure mais reconhecido da época pós-contato até inícios
do ano 2000. Entretanto, na sua época não existia uma política pública de compensações: o
acesso dos Xikrin aos bens e mercadorias dependia dos programas da FUNAI, as alianças com
madeireiros e garimpeiros da região e, do trabalho deles extraindo castanha. Isso sugere
dicotomias na forma como os benakjure da geração anterior visualizam os chefes do presente.

Ao consultar o Onça sobre o que é importante para abrir uma aldeia, ele menciona que precisa
de Mebêngôkre kumei e benakjure toxe. A primeira expressão faz referência a volume de
pessoas e a segunda, a um bom chefe. Assim, a explicação de Onça sugere que é fundamental
contar com o respaldo de outros mekrares e suas famílias, incluindo a presença de mebenget
(velhos) e, um chefe reconhecido. Este ordenamento parece dar luzes sobre o que poderia ser
identificado como a forma de “legitimidade Mebêngôkre”, em termos de uma concessão da
autoridade política. Pensando no caso concreto de Pytakô, poderia ser dito que com a chegada
106

de pessoas, especificamente de três novas famílias no começo de 2018, a aldeia se dinamizou


e cresceu no âmbito das relações sociais, políticas e rituais.

No âmbito da proliferação das aldeias na TITB Trincheira Bacajá, é possível encontrar que os
preceitos básicos da explicação do Onça não se aplicam por completo, pois em algumas aldeias
não habitam mebenget. Assim como em outras, não existe um componente diverso de pessoas
(o exemplo mais concreto seria a aldeia Kabakrô, como já foi apresentado). No entanto, o que
demonstram os últimos anos na TITB, é que as cisões-agrupamentos motivam uma leitura
dinâmica das trajetórias históricas, pois ao mesmo tempo que se formam aldeias improvisadas,
outras são diluídas. Dessa forma, não caberia aqui determinar uma única linha de análise sobre
as formações das aldeias Xikrin, pois o processo na prática corresponde a uma atualização
constante.

Como foi apresentado, as cisões-agrupamentos são parte central na trajetória histórica que os
Xikrin do Bacajá têm atravessado no último século, sendo enfatizadas na última década. Por
outra parte, esse fenômeno corresponde a um marco fundamental na organização social
Mebêngôkre, não sendo um fator alheio à reprodução de parentescos e alianças políticas entre
afins. As cisões e os processos de aldeamento Xikrin, constituem um referente para situar
historicamente qualquer pesquisa, por exemplo, se para o presente trabalho é fundamental
abordar a sociedade Xikrin a partir da classificação por categorias de idade, as cisões são o
suporte para compreender porque há uma junção de múltiplas subcategorias em uma única (ver
as classificações no “box: as categorias de idade”). Isso por causa da população do Bacajá estar
cada vez mais espalhada. Para finalizar, é importante enfatizar em que sempre deve considerar-
se para os Mebêngôkre que a organização social opera de forma centrífuga: a abertura para os
Outros é uma condição indispensável para a redefinição de si. Em outras palavras, para
considerar a noção de pessoa Mebêngôkre deve se observar a lógica de incorporação do
kukradjá (traduzido aqui como tradição) de outros, para finalmente considerar a diferença. O
qual se pauta numa economia simbólica da predação (Viveiros de Castro, 2002, p. 347).
107
107

77. Ngrei Tó, Grenho-Goiti e Páhkonat

8. Ngrei Tó, Grenho-Goiti e


Páhkonat.
78. Ngrei Tó, Grenho-Goiti e Páhkonat

79. Ngrei Tó, Grenho-Goiti e Páhkonat

80. Ngrei Tó, Grenho-Goiti e Páhkonat


108

Box: as categorias de idade e os ritos de masculinidade


Desde os estudos de Turner (1966; 1979), pode se entender que as instituições comunais
operam de acordo com as categorias de idade. Isso sugere que nas sociedades Mebêngôkre, o
fator geracional é fundamental para outorgar o papel que cada indivíduo irá a desempenhar nas
atividades coletivas e públicas, ademais de fornecer as possibilidades para que os integrantes
dos grupos e turmas, com o passar do tempo e as circunstâncias, possam progredir entre uma
categoria e outra. Fisher (1991) também dedicou parte de seu trabalho a identificar em maior
detalhe a composição das turmas masculinas, concluindo que elas podem ser vinculadas, em
sua maioria, às categorias de idade, mas também podem apresentar misturas entre faixas
etárias. O fator intergeracional, como cenário de confluência entre homens de múltiplas faixas
etárias, representa um fator de grande importância na minha pesquisa, tendo me valido da
observação de experiências que demonstram como o aprendizado acontece ao longo da
vivência progressiva dos noviços em relação aos caçadores experientes e outros-que-humanos.

Contudo, como adverte Lux Vidal (1977, pp, 127-128) em relação à caracterização das
categorias de idade fornecida por Turner (1966), apesar de ser a mais rica até hoje, é delimitada
pelo contexto do campo feito pelo autor entre os Gorotire durante o começo dos anos 1960.
Vidal, tendo feito seu trabalho entre os Xikrin do Cateté em meados da década de 1970,
encontrou que as descrições feitas pelos Xikrin diferiam em múltiplos aspectos relacionados a
um conjunto de provas e ritos de passagem masculinos. Inclusive, no contexto em que fiz minha
pesquisa, segunda década do século XXI, encontro várias diferenças com Vidal no âmbito dos
ritos e provas de masculinidade56. Apesar disso, parece-me que um diálogo etnográfico com a
autora continua sendo adequado.

Segundo Bep Tok-Onça, as provas de masculinidade se praticaram até os atuais mekrarere-


tum (homens com mais de três filhos. Estes, têm atualmente mais de 40 anos, na sua maioria).
É importante destacar que as provas de masculinidade, em sua essência, são praticadas em
formato de turmas de menoronu, validadas através da pertença a uma categoria de idade.
Portanto, práticas cinegéticas como o abate de uma onça, de forma isolada hoje, apesar de

56
Chama a atenção que para Simone Dreyfus (1963, p. 65) e para Vidal (1977, p. 125) a prática de amiy tá –
tirar/bater no ninho de marimbondo, entre os Kayapó e Xikrin, respectivamente, não é considerada propriamente
um rito de passagem, senão uma prova para reforçar valores masculinos. Apesar dessa prática ser considerada
amplamente pelas sociedades Mebêngôkre como um momento significativo enquanto à capacidade dos homens
para se casarem. De qualquer forma, diria – em concordância com Bollettin (2013) - que essa prática pode ser
entendida através de várias camadas ritualísticas, sendo uma delas a passagem. Dedico um breve segmento para
descrever esse aspecto no capítulo 2.
109

acrescentar ao prestígio do caçador, não poderia se equiparar concretamente com expedições


do passado, organizadas apenas para esse fim. Em continuação, faço uma breve comparativa
entre a década de 1970 (século XX) e década de 2020 (século XXI), em relação às principais
práticas descritas pelo meu interlocutor, em concordância com as apresentadas por Lux Vidal:

Figura 7. Provas e ritos de masculinidade Xikrin

Um outro aspecto deve ser destacado em relação a essa comparativa. Durante o período em
que Vidal (1977) fez seu trabalho, os homens da categoria menoronure ainda moravam no
ngàb. Dessa maneira, as atividades coletivas organizadas no centro da aldeia representavam o
principal fator de socialidade para meninos os quais, deixando a casa de seus pais e avós,
deviam conviver com outros meninos da mesma geração. A entrada no ngàb, e, portanto, a
passagem de me-i-tukre (iniciando, talvez um pré-adolescente) a menoronure (homem novo,
adolescente) era um aspecto fundamental, sendo necessário que os meninos iniciantes se
engajassem com ditas provas para ter aceitação no novo espaço de convivência.
Adicionalmente, como explica a autora, essas provas não eram um repertório rigoroso ou
obrigatório a ser cumprido, e sim, uma plataforma de acesso na qual “os menoronures se
engajavam de acordo às suas capacidades, tentando mostrar o mais próximo de um ideal no
plano físico, prático e moral da sociedade Xikrin” (ibid, 125).

Um outro fator que pode estar relacionado com as variações, não só nas provas de
masculinidade, mas também na proliferação e diminuição de facções e, inclusive, de
subcategorias de idade - que Fisher (1991) descreve em Bacajá como “misturas” entre
categorias de idade - corresponde ao tamanho populacional das aldeias Mebêngôkre. Aldeias
110

grandes, onde há proliferação de representantes de múltiplas idades, facilitam com que se


configure mais de um grupo, apesar de idades próximas. Por exemplo, grupos separados de
menoronure e menoronure tum. Isso produziria eventualmente maior dinamização das
atividades masculinas adscritas a cada categoria de idade. Tal dinamização é mais evidente na
atualidade em TITB, onde há um contexto de abertura intensiva de novas aldeias, todas
pequenas (ver capítulo 1). Em aldeias como Pytakô, onde realizei a maior parte do meu campo,
não há mais do que 40 habitantes, sendo que ao redor do 15% seriam menoronure. Dessa
maneira, com frequência se misturam as categorias menoronure e mekranure em atividades
como o cuidado de roças coletivas, a limpeza de pista de pouso e as expedições na floresta.

Seguindo a classificação de Vidal (1976; 1977, pp. 87-174) em relação às categorias de idade
Xikrin, apresento a seguir um esboço com o propósito de fornecer uma guia ao leitor, pois
daqui em diante serão feitas com frequência referências às principais categorias (em alguns
casos a subcategorias):

Primeira infância

Categoria

Mẽprin (infante, independente de sexo)

Subcategorias

Mẽkarore (recém-nascido)

Mẽkukuero (os que engatinham)

Mẽmratoi (os que caminham)

Mẽbengodju (masculino) [(fase final de mẽprin (até 8 anos), quase independente).

Mekurêrêti (feminino) [(até 8 anos) equivalente a Mẽbengodju nas mulheres].

Crianças

Categoria

Mẽbokti – tire (masculino) (ti/tire indica maior, grande, aumentativo) (usado para meninos
crianças. Antes, quando os homens deixavam a casa materna e passavam a morar no ngàb, essa
categoria era o indicador de quem estava quase pronto para virar menoronure).

Mẽprinti – (feminino) (usado para meninas crianças).


111

Adolescentes

Categoria

Mẽnoronu (masculino) jovens iniciados ou que passavam a morar no atykbe, depois ngàb. Na
atualidade, os menoronure permanecem na casa das suas mães ou avós até o seu casamento. É
nessa categoria onde principalmente os homens se vêem inseridos em engajamentos práticos
que os levam a um longo caminho de aprendizado até serem considerados caçadores plenos
(ver capítulo 7).

Subcategorias

Me-i-tukre – (masculino) iniciados.

Mẽnoronure-tum /abatori– (masculino) jovens iniciados que vivem ainda no ngàb (18-25
anos). Na atualidade, jovens da idade indicada sem casamento ou sem filhos.

Mẽmudjê-nu – (masculino) jovens fisiologicamente desenvolvidos (tempo atrás, recebiam o


estojo peniano), a partir dessa categoria de idade, seriam eventualmente considerados
caçadores plenos.

Ngô-kon-bori- nu57–(masculino) pai de maracá, ainda novo, ou então chefe de turma ou


categoria de idade.

Mẽkamronu – (feminino) as recém menstruadas.

Mẽkurêrê – tire (feminino), denominação usual para meninas, podendo ser crianças e mulheres
até o nascimento do primeiro filho.

Adultos

Categoria

Mekrare (masculino/feminino58) (pessoa casada e com filhos)

57
Interessante observar que para ser pai de maracá ou chefe de categoria de idade é indispensável ser o reflexo de
valores morais da pessoa masculina, como a força, o dinamismo, o movimento e a convocação. Ademais, há uma
forte influência da estrutura da chefia: ser filho de chefe, cantor cerimonial, família grande, pais classificatórios e
muitos krodjwo (amigos formais) é determinante.
58
A vida das mulheres se desenvolve dentro de duas grandes categorias: antes do casamento (kurêrêrê) e depois
de ter o primeiro filho (mekrare).
112

Subcategorias

Mẽtuyaro – homens cujas esposas estão grávidas.

Mekrakarô – homens pais de crianças de meses.

Mekranure - homens casados com até três filhos ou filhos pequenos.

Mekrarere-tum - homens com mais de três filhos e netos.

Mẽkrapõyn– (feminino) mulheres novas casadas com até três filhos.

Mekratum (feminino) mulheres que têm mais de três filhos.

Idosos

Categoria

Kubenget/Mebenget (masculino) – velhos

Kubengei/Mebengei (feminino) – velhas.

Kwatui - Avó

Ingêt - Avô

Diria que para conveniência do objeto de análise deste estudo, a classificação das categorias de
idade masculinas Xikrin podem ser agrupadas em três grandes categorias de caçadores:

menoronure. = caçadores noviços ou iniciantes

mekrare= caçadores reconhecidos, autônomos ou plenos

mebenget = caçadores “aposentados”. Portadores de memória cinegética e motivadores dos


caçadores iniciantes.

Usarei outras categorias ou subcategorias apenas quando a descrição dos fatos etnográficos ou
a análise conceitual o demandem.
113

Capítulo 2. Fundamentos da cinegética Xikrin: andar, comer e


familiarizar

Este capítulo se debruça sobre os principais conceitos que compõem a cinegética Xikrin. Busca
dar os elementos para ter uma visão ampla sobre como os processos experienciais entre
caçadores (humanos), mry, peixes e plantas (outros-que-humanos), interagem em cenários de
interdependência que dão sentido aos lugares onde a caça e coleta acontece. O ato de ir e estar
na floresta, como valor que dá forma ao movimento dos caçadores, é aprofundado aqui. Se
dedica uma parte a entender o papel dos xerimbabos e o processo de familiarização. Os
cachorros, sem ser propriamente familiarizados, são sempre uma peça importante tanto nos
âmbitos domésticos como nas expedições na floresta, portanto, a ambivalência dos cães é
abordada com especial atenção. Por último, se apresenta o significado da prática de “bater nos
ninhos dos marimbondos”, colocando-a à luz da consolidação e reafirmação da pessoa
masculina Xikrin.

Etnografia do ex(im)-plícito

A estrada de Pytakô tem sido o cenário para caçar junto a Txuak e Kwynhdjy (Negão). Por
esses dias chove muito. Não adianta ir para o mato com excesso de roupas e implementos: de
qualquer forma o corpo acaba molhado. Ultimamente vou nas expedições com o mínimo
possível, na verdade, levo apenas o que eles levam - só substituo a espingarda pela máquina
fotográfica. Em certa forma, me parece que a máquina funciona como uma espingarda em um
âmbito estético: as fotografias passam pelo olhar, a previsão dos movimentos no ambiente, a
predisposição dos braços para se encolherem em posição frontal e o leve movimento do dedo
índice para atirar uma sequência de obturações que buscam desesperadamente um objetivo.

Quando se caminha pela estrada, é mais factível observar os procedimentos dos caçadores. A
clareira do caminho faz com que eu possa debruçar as expressões corporais, pausas, palavras e
até gestos com maior nitidez. Dessa vez, foi possível reparar em alguns padrões que tenho
percebido a respeito dos meus dois colegas. Kwynhdjy caminha sempre à frente, seus passos
são leves e contínuos, com frequência movimenta a cabeça a lado e lado, levando, na maioria
das vezes, sua espingarda apoiada no ombro. Txuak, por outra parte, é mais relaxado, tem
permanecido junto de mim e tem conversado em certos momentos, principalmente para tocar
114

em assuntos reflexivos da sua vida e suas experiências na aldeia. As expedições são, pelo
menos para ele, uma forma de compartilhar ideias relacionadas à vida doméstica e à
organização política da aldeia. Entendo que tudo o que ele pensa não pode ser dito abertamente.
Casualmente, Kudjoeire, chefe de Pytakô, nas poucas vezes que temos caçado juntos, aproveita
para me compartilhar ideias e reflexões da mesma forma que o Txuak faz.

A espingarda (atóm) de Txuak tem permanecido mais oculta, pendurada do seu ombro,
cruzando suas costas. No entanto, seu facão sempre esteve firme na sua mão: as poucas vezes
que nos desviamos da estrada e entramos na mata para conferir marcas de bichos, foi a
ferramenta predileta. Eu me somo à essa prática: minha máquina fotográfica normalmente
embaixo do braço, em modo suspenso sem desligar, pronta para ser usada caso o clima seja
alterado. Ademais, meu facão sempre está na minha mão esquerda. Sou canhoto e ali reside
minha força. É com o facão, como extensão da minha mão, que assisto o Txuak quando lhe
acompanho.

Teve uma hora que o Kwynhdjy sumiu. Deve ter tomado um par de quilômetros na frente, pois
apesar da longa visão que proporciona a estrada, acabei lhe perdendo no horizonte. Txuak, por
sua vez, permaneceu na mesma velocidade, com eterna paciência. Após algumas horas, a
estrada foi ficando mais estreita. O inverno faz os cipós emergirem nas laterais, espinhos e
matinhos que irritam a pele são comuns. Não coube mais opção do que avançar em fila.

A primeira aparição do dia foi um mutum. É o tipo de pássaro curioso que num primeiro
momento não foge desesperado, pelo contrário, fica observando ao caçador como se a análise
dos movimentos da ameaça fossem a diretriz que determina o proceder. Txuak atirou, mas não
teve fortuna, e, pelo contrário, o ruído da espingarda desequilibrou o sossego vários
quilômetros ao redor. Foi possível escutar outras aves levantando voo por cima das árvores.
Normalmente, quando isso acontece, não tem muito mais o que o caçador possa fazer, cabendo
apenas se afastar do perímetro onde a captura fracassou. Isso é importante, já que após uma
caçada falida, normalmente há um momento para um recesso, uma conversa pendente, dar uma
instrução faltante, ou se alimentar. Foi isso que aconteceu.

Consultei o Txuak a respeito da sua espingarda. Queria entender se existe algum tipo de ordem
específica para a aquisição e repasse desse artefato. Em princípio, poderia se considerar um
tipo de nekrets (bem material) (ver Gordon, 2006; Lea, 2012) dada a sua aparente circulação
entre parentes e afins, chegando em muitos casos a voltar para seus donos originais, após um
115

tempo59. Txuak contou-me que a sua espingarda veio de seu pai, que por vezes ganhou em um
garimpo onde foi trabalhar durante algumas semanas. Nesse momento, Txuak já era casado
com Nhak Moro e residia na casa do seu sogro. Txuak já sabia manipular espingardas, usando
uma da sua propriedade que posteriormente vendeu, ocupando provisoriamente a de seu sogro.

Dessa vez, a expedição me reservou uma surpresa. Paramos um momento para consumir
castanha-da-Amazônia. Enquanto estávamos sentados no chão quebrando ouriços ouvimos um
forte ronco que se apoderou do ambiente de forma ameaçante. Depois de alguns instantes de
confusão, tentando determinar o que seria aquilo e onde se localizava, Txuak afirmou: “rop
krori...”, enquanto colocava um cartucho na espingarda. Nosso cão, que já se encontrava uns
quinze metros à nossa frente, ficou paralisado observando o mato à sua direita. Logo ela
apareceu, era enorme e era linda, uma onça pintada. Foram breves instantes, mas o suficiente
para que seus olhos ficassem cruzados com os meus. Foi daqueles instantes que são para
sempre.

O felino tremeu por um momento e em menos do que tarda o piscar dos olhos, pulou em sentido
contrário e seu corpo esticou-se para dar uma carreira frenética na nossa inversa. Em paralelo,
o cenário foi quebrado pelo trovão da 20 milímetros. Txuak atirou... mais uma vez errou: esse
não era o dia para capturar grandes animais. Perseguimo-la durante um par de minutos.
Acredito que o encontro foi para ele uma breve provocação à sua coragem, assim, sentia o
dever de ir atrás. Seu olhar se afastou do chão e flutuou sobre os galhos de árvores
intermediárias. Nosso cachorro num primeiro momento latiu, logo depois se pousou atrás de
mim, provavelmente, teve senso de um perigo iminente. Txuak ficou obcecado, acreditou que
a onça estaria escondida entre as árvores, trepando através de galhos como tática de disfarce.
No entanto, ela adotou outra estratégia: correu muito longe. Ela, sendo uma caçadora também,
deve ter encontrado outro destino, pois o nosso voltou para a estrada.

Pouco tempo depois, Kwynhdjy apareceu do nada. O primeiro a dizer foi: “cadê a onça?”. Pelo
jeito ele tinha ouvido os esturros e estava rastreando-a. Depois de ouvir a nossa história, desistiu
de continuar a busca, pois como já tinha acontecido no cenário do mutum, o disparo alterou o
ambiente e seria praticamente impossível encontrar qualquer tipo de animal nesse perímetro.
Fomos voltando à aldeia. No final da expedição, alguns jabutis foram a nossa presa do dia.

59
A de uma grande parte das respostas que tenho recebido dos meus interlocutores, apoiam essa premissa, não
me parece que haja elementos suficientes para evidenciar uma relação de sucessão direta, sendo necessário dedicar
pesquisas futuras à circulação e uso de espingardas.
116

À noite, o quintal de Onça estava agitado. Rop krori... Poyre, foram as palavras prediletas. O
encontro com o felino foi motivo de azáfama. Todo mundo tinha alguma coisa a dizer: “aqui
tem muita”, “eu já matei”, “amanhã vamos voltar no lugar”, eram frases pronunciadas por
vários dos homens da aldeia. Algumas mulheres davam risadas e brincavam comigo dizendo:
“gwaj bà kam tem...” “Poyre rop krori mry bi” – bora caçar, Duvan vai matar a onça. Bep
Tok, o velho Onça, não deixou de se contagiar, embora a sua participação fosse através da
dinâmica discursiva que lhe caracteriza.

Não tinha como deixar de reparar no fato de que um acontecimento na mata pode agitar a
aldeia, reunindo desde os mais velhos até as crianças que presenciam múltiplas estórias de lado
e lado. Talvez os mais interessados tenham sido os menoronure, já que num momento a fala
de Onça se misturou com questões e comentários dos jovens, demonstrando que o assunto era
de importância para eles. Dando atenção para Onça, encontrei uma complexa organização de
narrativas que, estando ligadas, levavam a múltiplos assuntos.

Onça contou desde mitos relacionados com onças (como aquele clássico relato sobre “o fogo
da onça” usado como base em análises estruturalistas)60; até a forma como ele já matou onças
se valendo de técnicas de espreita no meio do rio, ou, pendurado em galhos e mutás. Foi um
momento especial, trouxe elementos da cosmologia Mebêngôkre, reanimou a memória dos
Xikrin e suas experiências na mata. E, ainda, tudo isso evocou o presente, pedindo para que
novas incursões coletivas fossem feitas com o propósito de buscar onças. Um aspecto
importante é que novos convites, mesmo que partidos de um acontecimento específico,
convidaram para realizar outras práticas. Por exemplo, alguns falaram que queriam achar
kukrut (antas), ademais de ir até uma grota próxima do lugar de encontro com a onça para bater
timbó; outros disseram que ali mesmo tem kamere-kô (um açaizal).

Durante essa noite teve uma “aula magna” que precedeu atividades nos dias seguintes. Ali,
foram expostas verbalmente experiências concretas de caçada com direito a que foram feitas
perguntas a respeito de técnicas e procedimentos. E, ainda mais, foram agenciadas práticas em
campo, com a particularidade de serem expedições coletivas. O qual, facilita a inclusão de
famílias e adolescentes que apenas estão se inserindo no ambiente cinegético. Em outras
palavras, prática e narrativa não são necessariamente campos separados. Já que como à minha
etnografia quer demonstrar: o aprendizado, a formação de corpos e pessoas, assim como a
função que estas ocupam na sociedade Mebêngôkre, mas também nos cenários florestais,

60
Recomendo ver o trabalho de Terence Turner (The fire of the jaguar, 2017), que esboça a partir do mito referido,
uma análise da organização social e cosmológica entre os mẽbêngôkre, com extensão a outros povos ameríndios.
117

exacerbados por relações multiespecíficas; são fundamentados no campo processual de


relações emergentes no ambiente prático, mas também, reafirmados através de narrativas que
evocam a experiência e memória da coletividade.

Após um tempo em que progressivamente me familiarizei com a caça, ou melhor, com a


vivência na floresta – de forma ampla- entendi que esta constitui um cenário de inúmeras
relações, experiências, emoções, aprendizados, continuidades e agenciamentos que compõem
um mundo integrado à vida social. Não era possível, no meu caso, pensar um estudo sobre o
aprendizado e/ou os conhecimentos dos homens sem me inserir na complexa ordem fora da
aldeia que vincula tempo, espaço, meio e sujeitos numa conjunção indissociável.

Assim, foi possível observar que na prática expedicionária, e especificamente no ato da caça,
se dão múltiplas formas de expressão e continuidade das experiências, sendo possível de se
enquadrar em duas formas principais, para facilitar a análise. Por uma parte, e como forma
predominante, o trânsito na mata e especificamente o ato do rastreamento e da captura são
dados através de processos implícitos, onde os sujeitos são movidos por formas, técnicas,
valores e motivações que, estando presentes, são apenas evidenciados através de
acompanhamentos a longo prazo. Por outra parte, e menos frequente, a vivência na mata é
mediada por processos explícitos, que evidenciam experiências, procederes e valores
enunciados através de demonstrações que buscam orientar o desenvolvimento de habilidades
físicas.

Em outras palavras, a caça como ação cotidiana na floresta é praticada de forma tácita pelos
caçadores e repassada para os homens mais novos através de um longo processo de
acompanhamento que abrange a atenção e orientação. Ademais, possui um componente
complementário explícito, acionado em momentos muito específicos, nos quais é necessária
uma instrução, um esclarecimento, ou em casos mais raros ainda, uma explicação. Seja uma ou
outra, a caça, e a formação de um caçador, é dada primordialmente de forma processual num
fluxo de atitudes e engajamentos, que são facilitados no ambiente através de redescobertas
dirigidas e, dinamizados, alterados e renovados pelo próprio devir do sujeito61.

61
Nesse mesmo sentido, sobre povos do Ártico, Jean-Guy Goulet (1998) e Rane Willerslev (2007) identificam
entre os Dene Tha e os Yukaghir, respetivamente, que o conhecimento é valido quando se adquire principalmente
de primeira mão, eles aprendem através de uma forma que enfatiza o não verbal sobre o verbal, o experimental
sobre a exposição de princípios.
118

Isso fica evidente no suposto da educação da atenção e da aprendizagem situada62, que me


permitem formular uma premissa que segue a etnografia, referida a que mostrar e abrir a
floresta – e tudo o que concerne aos campos de trekking e cinegética- a um sujeito caçador
noviço, é fazer as relações florestais se tornarem presentes para a pessoa, enquanto
simultaneamente, as experimenta e transforma.

Partindo da importância de observar e analisar acontecimentos de índole explícita e implícita,


a etnografia para esse trabalho tem adotado como estratégia acompanhar as diferentes formas
e tipos de caçadas e pescarias durante o dia, ademais de continuar com o trabalho às noites
quando a comunidade se reúne para compartilhar suas experiências. É comum que um ato de
captura na mata seja o motor das figuras narrativas e discursivas apresentadas no ipôkri (espaço
público entre casas e ngàb), o ngàb (casa central) ou rõpte (a cozinha ou o quintal de uma casa),
assim como é frequente que uma narrativa seja a inspiração dinamizadora de múltiplas ações e
experiências na bà (floresta). O episódio sobre o meu encontro com uma onça, não foi um caso
isolado, e sim, um combustível aditivado que favoreceu a rotina em Pytakô.

Por fim, se por um lado chamarei de etnografia do tabu a parte desse trabalho que aborda
aspectos do xamanismo presentes na caça Xikrin (ver capítulo 6). Em um sentido oposto,
pretendo apresentar neste e nos capítulos que seguem (3,4 e 5) uma perspectiva aberta e
evidente, na qual a caça constitui uma figura prática pela qual devem transitar
impreterivelmente todos os Xikrin, principalmente os homens ao longo de suas vidas. Ao
contrário do wayangá (xamã), que - conforme será abordado no capítulo 6- representa uma
figura de relações instáveis em contínua desconfiança; os caçadores - evocados frequentemente
como guerreiros entre os próprios Xikrin- são exaltados. O destino de um bom caçador é o
reconhecimento e a gratificação pública. Não é à toa que me-i-tukre, menoronures, mẽmudjê-
nu, mẽtuyaro, mekrakarô e mekranure (ver categorias de idade na Pág. X) almejam ir para a
mata em busca de vivências, em alguns casos, passando vários dias da semana caçando e
mostrando. Ademais, os mebenget (homens velhos) enfeitam suas falas com ousadias da
juventude, querendo ser reverenciados pelo que já fizeram.

Portanto, é necessário analisar o conjunto de elementos, meios, gestos e processos nos/pelos


quais os sujeitos praticam, experimentam e aprendem, tanto das suas próprias experiências -e
que a mata lhes depara- como das narrativas que circulam com base nas experiências de outros.

62
Ver (Ingold, 2002b, 2010; Gibson, 1979; Lave, 1991; 2011), para ver a discussão teórica entre os autores, a
etnografia e as perguntas de pesquisa que motivam este trabalho, remitir-se ao capítulo final da tese.
119

A inerente proximidade entre supostas ambivalências aldeia-floresta, narrativas-experiências,


parecerá ser cada vez mais evidente enquanto a etnografia avança.

Bà kam tem

Para pensar a floresta como cenário de multiplicidades, seja de seres ou de relações, é


necessário considerar primeiramente, os modos em que se materializam as corporalidades e as
formas em que as espacialidades e, principalmente, as temporalidades são dadas. Diante de um
cenário de relações pautadas por uma economia simbólica da predação, é possível observar um
contexto histórico de seminomadismo entre os Xikrin, sendo que a sua mobilidade além dos
espaços domésticos pode ter constituído, até pouco tempo atrás, uma das maiores expressões
da vida social, ligada a uma sazonalidade. Uma vez, enquanto tentava conhecer a trajetória de
vida de Tapiex (mebenget de Pytakô), ele disse ter se deslocado numerosas vezes entre as serras
daquela sub-região de Bacajá quando ainda era menoronure63.

Eu era novo, caminhei muito aqui, fui ali na volta do rio, fui até o Xingu...
A gente voltava sempre. Eram muitos Mebêngôkre e a gente andava junto.
Caçava, comia no mato... eu matei muita anta nessa serra, ainda tem muita anta, meu
filho vai e pega, eu não vou mais.
Xikrin gostava de pegar coisas dos outros.
Pegamos coisas dos kubén (não indígenas), tinha kubén descendo pelo rio Bacajá e
a gente pegava coisas deles. A gente pegou coisa de outros índios também.
A gente andava muito e sempre tinha coisas para fazer no mato, a gente não ficava
parado. Tinha que acompanhar os outros.
Deslocamentos nas serras de Bacajá. Narração de Tapiex.
Tradução de Txuak.

Essas andanças, ligadas a uma época pré-contato, eram muito comuns na época do mebenget e
parece que estavam destinadas a mais de um propósito, já que como ele sugere, havia
expedições destinadas a saquear e adquirir bens dos não indígenas e a encontros com outros
grupos étnicos da região. Havia também migrações destinadas a evitar o contato formal com o

63
Tapiex, sendo hoje um Xikrin, é possível que tenha uma origem biológica além dos Mebêngôkre, pois uma
versão de uma interlocutora aponta que Tapiex e Domingo, seu irmão, foram crianças Araweté raptadas num
confronto entre essa etnia e os Xikrin, passando a ser criados pelos segundos.
120

SPI (Serviço de Proteção aos Índios). A caça como prática estava sempre presente, sendo num
sentido direto uma razão para se deslocar pela floresta, e num sentido indireto, a forma pela
qual os Xikrin abasteciam-se de alimento, apesar do propósito da expedição ser outro (por
exemplo coleta de castanha, jenipapo entre outros). Pode ser que exista uma sutil variação entre
“caçar no mato” e “conhecer a mata”, pois para caçar é necessário conhecer o mato, mas quem
conhece a floresta, nem sempre vai caçar.

Entretanto, deve-se tomar atenção para não restar importância à atividade de obtenção de carne
através de mamíferos terrestres, pois não é isso que estou colocando. Pelo contrário, o que é
possível deduzir através da análise etnográfica é que se por uma parte a caça como ato material
não era o único propósito para ir ao mato, era -e continua sendo- o propósito predileto que
conecta os Xikrin com a floresta antes e depois do contato64, principalmente durante o inverno,
quando os indígenas optam por sair com maior frequência dos espaços domésticos. Isso está
sujeito a uma ontologia predatória, é daí que a conexão com a floresta está supeditada a uma
constante e necessária elaboração de relações potenciais com inimigos, o que leva a definir que
o contato com a floresta e tudo o que ali se passa, está necessariamente implicado numa
ideologia agonística. Para entender isso é necessário destrinchar o que num primeiro plano
representa a categoria caça na concepção dos Xikrin, pois é possível que o que os kubén
(especificamente caçadores não indígenas) entendem por essa palavra, tenha uma variação para
os caçadores Xikrin.

Acompanhando as expedições na floresta, a atividade de caça me pareceu num primeiro


momento um cenário com definições rígidas enquanto ao circuito de propósitos e
procedimentos a serem dinamizados no exercício cinegético. A procura pelas presas, o abate
ou captura, e o transporte e consumo das mesmas, me pareciam uma fórmula definitiva de
aplicação: um conjunto sequencial de normas e técnicas que uma vez os caçadores seguissem,
daria como resultado uma boa caça, ou no pior dos casos, um fracasso com honraria. Por outro
lado, a minha vinculação na prossecução de atividades me outorgaria a possibilidade de
elucidar um padrão de caça a ser etnografado.

64
As atividades desenvolvidas durante as expedições na época pré e pós contato podem ser diferenciadas através
dos tempos de permanência na mata. Na época pré-contato os Xikrin teriam um caráter seminômade durante o
inverno, no qual práticas como a comensalidade, produto de uma caçada, era realizada ainda no interior do mato,
sendo transportadas até a aldeia apenas as partes importantes de grandes mamíferos. Já no período pós-contato até
os nossos dias, as incursões na mata com propósitos de caça costumam ser curtas e tem como fim levar animais
abatidos em quase sua integralidade (exceto as vísceras) até as aldeias.
121

Em efeito, quando se indaga sobre a caça desde uma perspectiva comum, encontra-se que esta
é estritamente delimitada por um conjunto de práticas-sequências que levam à captura de
animais silvestres. Basta indagar sobre a origem etimológica da palavra para compreender que
sua raiz indo-europeia se refere ao uso da sílaba kap, relacionada com capturar ou apreender,
que por sua vez precede a palavra captare (recolher, perceber), dando origem no latim vulgar
a captiare (perseguir) (Anders, 2001). Assim, uma definição próxima sobre a caça concerne
necessariamente aos atos de perceber, indagar, perseguir e capturar, sendo factível incluir o ato
de “dar morte”.

Os Xikrin não fogem desse sistema de sequências acima mencionado. Pelo contrário, a
repetição rotineira da mesma faz com que eles sejam uma sociedade predileta para analisar a
caça no sentido latino captiare. No entanto, é possível que para os caçadores Xikrin, a caça não
seja só caça: rastrear, perseguir, capturar e matar não são apenas um compêndio de atos
inscritos num conjunto de técnicas dadas. O ponto de partida para elucidar dita complexidade
encontra-se na etimologia Jê, como mostrarei a seguir.

Uma tarde, no final de uma expedição que se dedicou a caminhar através da estrada que dá
acesso a Pytakô, uma caminhonete passou recolhendo cada um dos caçadores (duplas) que se
localizavam ao longo da via, aguardando o veículo que nos levaria de volta à aldeia. Ao
encontrarmos o Kwynhdjy ele estava com o corpo de uma anta abatida ao lado do caminho.
Subindo no veículo e com um sorriso satisfatório pelo resultado da sua experiência, me disse:
Poyre, bã kukrut bĩn! – moyna? (como?, porque?, o quê?) Respondi, querendo entender
melhor a sua expressão. Ele explicou com algumas frases das quais entendi katôm mex bã
kukrut bĩn ... kuni. – pelo jeito, ele estava se referindo a um procedimento no qual achando a
anta fez uso da sua espingarda, da qual parecia, gostava muito, pois achava que era ótima para
abater grandes animais. Kwynhdjy fazia ênfase na expressão mry bĩn/Kubĩn para se referir a o
encontro/confronto com a anta. Fiquei confuso, pois no dia-a-dia quando era convidado para
acompanhar as atividades dos meus interlocutores, não tinha ouvido ou relacionado o uso das
palavras combinadas de Kwynhdjy. Ademais, eu tinha memorizado que ao ouvir “gu/gwai bà
kam tem” ou “gu/gwai puru mã tem” estavam me convidando para caçar ou para ir à roça
trabalhar, respetivamente.

Perguntar, ou melhor, insinuar uma dúvida, nunca é malvisto entre os Xikrin, no pior dos casos,
as pessoas sorriem e ignoram o assunto. Assim, perguntei para o Txuak em outro momento
sobre a tradução que teria a palavra caçar. Ele me disse bà kam tem! O que me levou à
necessidade de questionar: “porque, se normalmente a conjunção bà kam tem indica caçar,
122

Kwynhdjy usou a expressão bã kukrut... mry bĩn no episódio da anta?”. Txuak respondeu: “mry
- bĩn... mry é bicho de caça, bĩn é matar...tipo kukrut bĩn (matar anta), angrô bĩn (matar
porção), tu tá falando é de matar o bicho”. Quer dizer que de partida, caçar, no caso Xikrin,
abrange a captura e/ou abate da presa, mas não é especificamente isso, já que para essa
conotação é usado outro verbo contido na expressão kubĩn.

Foi necessário continuar a verificação, de maneira que falei para Txuak: “Porque quando você
me convida para caçar fala ‘bà kam tem, nhara bà kam tem? O que significa isso? Ele
respondeu: “bà kam tem quer dizer ‘ir pro mato, estar no mato’, é como eu falar para ti ‘Poyre
bora andar pelo mato…"'. Continuei a perguntar: “Tá, se kubĩn é apenas matar e bà kam é ir
para o mato, ba bàr kam tem seria ‘vou para o mato procurar caça?”. Txuak disse: “Sim, mas
também é só caminhar, procurar. Nem sempre procuramos só os bichos... os antigos faziam
mais coisas no mato, eles passavam tempo no mato. Onça vai saber dizer melhor. Hoje nós
vamos procurar só a caça, mas antes os velhos ficavam direto no mato, tem que perguntar para
o Onça...”.

Passaram alguns dias antes de voltarmos nesse assunto. No entanto, sendo as experiências de
caça um assunto reiterativo na fala dos velhos, não foi difícil encontrar um momento para
aprofundar a explicação junto ao Onça. Txuak consultou o mebenget a respeito da experiência
de “andar na floresta”, assim, Onça se dispôs a desenrolar um relato baseado na sua própria
memória de vida.

Antes todo mundo gostava de ir pro mato, a aldeia ficava vazia, todos entravam no
mato para pegar jabuti, matavam bichos, dormiam no mato. Eram muitas luas
andando65, a gente gostava de andar e ver o que havia. Tinha vezes que achava a
picada de outros índios, aí avisávamos o resto dos homens e só nós íamos atrás para
ver o que era. Tinha vezes que pegou Assuriní, Araweté. A gente ia pro Xingu
procurar coisas do kubén, pegava a espingarda, as panelas, facão deles. A gente
andava com meu pai, meu tio.

Se um novo matava uma anta, o pessoa já falava “olha, matou uma anta, é forte...”.
Hoje os novos não vão pro mato, não caçam, não tem roça, é pouco... Se meu pai ou
meu tio saíam pro mato, aí eu já pensava “eles vão atrás de bicho”, então eu ia atrás
deles, levava koiaká (borduna). Foi assim que eu aprendi tudo, aprendi a andar no
mato, não me perder, aprendi a matar porcão e anta, matava de flecha. Depois

65
Essa expressão é comum entre os velhos, parecendo ser um código de leitura temporal sobre a passagem dos
meses. Uma lua equivaleria a uma lua nova (29,5 dias).
123

comecei a usar espingarda, sempre acertava na cabeça da anta, perto da orelha:


"pouhg..." na cabeça, cai e morre aqui. Se atirar no corpo, anta vai embora, corre e
morre longe, e tu não acha mais.

Era vários dias na mata. No dia seguinte vamos esperando anta de novo. Ficamos
esperando tatu vir. De manhã bem cedo o mutum nas árvores, era muita caça na
época. A gente ia pro mato para caçar animal, mas também tinha vezes que ia
procurar plantas: parente tá doente, aí velho vai procurar remédio do mato. Eu ia
com meu tio, ele me ensinou achar...

Tem vezes que família toda sai e vai pro mato, mulher pega jabutis, homem vai
procurar bicho grande, mulher cuida de meprire (filhos pequenos), elas ficam
esperando no barraco. A família come, mebenget conta história, meprires ficam
escutando. Mebêngôkre vai nas grotas, faz barraco, bater timbó, junta a família.

É forte quem sai da aldeia e vai pro mato. Meus tios ficavam direto, aí só depois no
ngàb os menoronure se sentavam e escutavam. Aí eles também queriam ir para
ajudar, já eles começam a andar, começam a caçar. Os mais velhos diziam “gwai bà
kam tem”. Os novos estavam prontos, era desse jeito. Agora hoje...os novos não
ajudam os pais, não ajudam os tios, não ajudam... mukangare (parados). Levam as
coisas e as perdem no mato, voltam sem nada e tu fala ‘cadê facão, cadê cartuchos?’,
‘não sei, perdi...gastei…’”

Pois é, antes todo mundo ia e ajudava, todos os menoronure queriam conhecer o


mato, queriam andar e achar bicho, tinha muita caça também. A gente andava por
onde conhecia, tem partes onde a gente já conhece e sabe que tem bicho, aí gostamos
de andar mais ali. Tudo a gente vai sabendo, mas tem que andar para saber.

Trajetórias de caça e aprendizado em Bacajá. Narração de Bep Tok - Onça.

Tradução de Txuak.

No relato de Onça está presente uma multi-atividade expedicionária, a socialidade Xikrin e


ainda no final -o que parece ser- uma descontinuidade geracional. Sendo visível que para os
Xikrin a floresta tem vários sentidos. Ainda que a caça como busca e captura de animais
silvestres seja mais destacável atualmente, no passado podia ser extrapolada para outras
atividades, como coleta de conchas nas proximidades dos rios para fazer colares, procura de
taquara para elaborar flechas, ritos de iniciação - como bater timbó (ngô ka ohn) e bater nas
casas de marimbondos (amiy tá) - expedições guerreiras e assaltos em procura de bens. E ainda
124

hoje, a floresta reserva a procura de plantas usadas em tratamentos a doenças, ademais de


algumas expedições pontuais com propósitos de fornecer os alimentos do mereremex (ritual de
iniciação) nas casas homenageadas.

Vale destacar que, conforme Vidal (1977, 80-86) descreve a respeito da condição mey/meú e
õn tomore, expressões que designam o ato de permanecer na floresta de forma prolongada
através da construção de acampamentos, por vezes equiparado à noção de seminomadismo no
passado, é possível determinar que eles sempre estiveram relacionados com expedições de
grande escala: travessias que os levaram fora das aldeias principais por mais de três meses em
época seca, fazendo com que as famílias morassem em múltiplos lugares. Essas expedições
caracterizavam-se por percorrer lugares de pertença ou que dinamizam a memória, sendo
comum montar ruop - acampamentos em lugares de antigas aldeias, ou onde teria acontecido
algum fato relevante. Assim, de partida é evidente que para os Xikrin as expedições e/ou a
atividades de andar na floresta se relacionam com um exercício territorial com o objetivo de
reconhecer os lugares através da memória e da presença esporádica. Aqui vale destacar o
trabalho de Otero (2019) onde se demonstra num sentido semelhante ao dos Xikrin, como a
circulação entre espaços de habitat ou reunião do passado, constitui um fator fundamental para
os Karo-Arara, sendo afetado pela atual morada em aldeias fixas.

Durante as expedições no inverno, os Xikrin levavam consigo as suas maiores pertenças,


guardando em cestos desde enfeites tradicionais - como cocares, colares e padjés - até esteiras,
panelas, farinha ou mandioca, levando inclusive animais de estimação - como filhotes de
cachorro. As expedições na seca eram uma mudança no sentido amplo, pois o que ficava para
trás era dispensável. Durante os múltiplos acampamentos realizados ao longo das expedições
seria representada a ordem da aldeia, mantendo a divisão das casas e um lugar reservado ao
centro para simular o ngàb.

Contudo, hoje não é mais factível falar propriamente de mey para o caso dos Xikrin do Bacajá,
pois o contato trouxe consigo a condição de moradia fixa em grandes aldeias à beira do rio. As
expedições atuais podem ter vários propósitos, mas sempre se propõem retornar à aldeia no
mesmo dia, salvo em casos especiais como a ida até lugares afastados onde eventualmente são
coletadas castanhas-do-pará em janeiro para serem comercializadas, ou nas expedições de
preparativos para realizar rituais, quando se passam alguns dias na floresta.

Não obstante, sugiro que o recorte temporal de estadia no mato não necessariamente tem feito
com que haja uma limitação quanto às principais conotações de andar na floresta, pois ainda
125

são reservados os valores sociais e as tecnologias que envolveram e envolvem a cinegética


Xikrin. Nesse sentido, Laura Rival (2002) identifica entre os Huaorani do Equador um nível
de representação amplo enquanto às incursões que os indígenas têm na floresta. Se as
caminhadas ou trekking são aspectos intrínsecos à essa sociedade, essa experiência é definida
por eles como uma “visita” ao mato: “ömere äante gobopa, é literalmente visitar a floresta
para trazer algo de volta (tradução minha) (2002, p. 69)”. Para os Huaorani, a ida para a
floresta engloba práticas indiferenciadas podendo ser de caça ou coleta, ademais de definir um
estilo próprio de caminhada.

Uirá Garcia (2010) relata para os Awá Guajá uma concepção prática semelhante à que Rival
descreve sobre os Huaorani. O autor explica que watá é sinônimo de muitas ações que se
desenrolam no decorrer de uma expedição na mata. Por exemplo, para os Guajá, andar pela
mata implica atividades de caça ou de coleta, sem distinção.

Por outra parte, Miguel Aparício (2019) encontra que para os Suruwaha do Purus, a categoria
zamagawari indica a atividade de se deslocar ou andar pela floresta, sendo entendida num
sentido amplo, mas com uma conotação mais determinada à busca de presas. Chama atenção
que zama, na família linguística arawá, significa mato, através do qual zama opera para esses
grupos étnicos como um morfema. O mesmo acontece com bà kam (mato) entre os grupos
Mebêngôkre, sendo esta a unidade (morfema) principal que constitui as estruturas gramaticais
conectadas às experiências e sujeitos que agem na floresta.

Vale ressaltar a força que adquire, no trabalho de Fabiano Bechelany (2017), a categoria
suasêri, já que o autor no seu estudo sobre a caça Panará, encontra que o movimento pela
floresta tem uma conotação propriamente agonística através de trilhas e caminhos, o que
determinada que os caçadores (suaseriantê) ajam no mato de uma forma específica.

Encontro que, para os Xikrin, o aspecto agonístico é parte integrante da experiência na floresta.
Ademais, devo dizer que essa atitude passa por uma determinação psíquica sempre presente,
mas a qual não necessariamente encontra uma evocação no âmbito factual. Isso me leva a
pensar -no sentido de Rival- que bà kam tem é um andar conformado por qualidades
processuais, agentivas e emergentes de um certo ethos predador. Dessa maneira, apesar de que
a categoria bà kam tem não deva ser interpretado de forma estrita com a caça na análise
etnográfica, com o prejuízo de ocasionar a omissão de outros âmbitos, é possível identificar
para os Xikrin – com extensão para outras sociedades indígenas amazônicas- que sua
perspectiva de representação de experiências na floresta como andar, deslocar-se, mover-se ou
126

visitar a mata são atos que acabam interligando a prática expedicionária com a cinegética
entorno de significados. Como Descola (1996) demonstrou, o ato de trekking está implicado
na forma como é constituído um território através de uma memória coletiva.

De maneira que, Bà kam tem ou “ir para a floresta”, ou “andar pelo mato, é, nesse caso, um
âmbito imprescindível nas relações sociais Xikrin, não uma separação estrita entre a aldeia
como princípio social e a floresta como âmbito associal.Ademais, a expressão é a chave que
demonstra que a floresta para os Xikrin constitui um meio de múltiplas faces, sendo a caça no
sentido estrito, a maior delas. Se caçar para os Xikrin compreende um complexo grau de
afeições que vinculam o caçador e os animais de caça num circuito extenso de relações e
corporalidades tendo como palco a floresta, bà kam tem é a categoria por excelência que define
esse ato.

Com isso não quero dizer que Bà kam tem é um ato sem propósitos claros. Já que como Fisher
(1991) define para os Xikrin: “as experiências ecologias deste povo estão orientadas para
objetivos, para cumprir certas obrigações para com os outros e com um determinado fim em
mente” (p. 110). Quando os Xikrin embarcam em uma expedição ou mesmo vão na roça, sabem
o que almejam, e tem claro a quem pretendem entregar os frutos de seu trabalho seja esposa,
filhos ou sogro-sogra. No entanto, proponho através deste trabalho, que o papel do ato bà kam
tem, sem excluir objetivos, se instaura além destes. sendo o modo processual no qual ocorre o
engajamento, as práticas e eventualmente a aprendizagem. Esta etnografia não mostra tanto os
propósitos, mas os meios, ou seja, como ocorrem as relações ecológicas.

Já em um sentido mais específico, a junção das palavras mry (animais de caça) + bĩn (abate,
morte) / mó (capturar, pegar) indica uma ação que, para efeitos do contexto abordado, refere-
se a um confronto com outros seres não humanos destinados à predação material. Isso quer
dizer que mry bĩn funciona como o predicado de uma oração que tem como sujeito o caçador.
A fala de Kwynhdjy após o abate da anta é um exemplo a respeito. Porém, bà kam tem apresenta
um caráter tácito da captura e abate, não sendo necessário usar o verbo Kubĩn/bĩn, salvo
algumas exceções66. Nesse sentido, bà kam tem pode ter pelo menos duas conotações. A
primeira é uma ação inconclusiva, já que a partir dela se abre um leque de eventos ligados a se
movimentar na floresta, mas não é possível prever em concreto o que acontece ali. A segunda

66
Numa ocasião, me aproximei da casa de Txuak e ao consultar a Nhak Moro, sua esposa, ela me disse “Txuak
bà kam tem”, eu respondi interrogando “nhara Txuak bà kam tem?” – e ela me respondeu “kaprã mó, more bi”.
Ou seja, após eu questionar “o que o Txuak está fazendo no mato?”, Nhak Moro indicou que tinha ido com o
propósito de pegar um veado e alguns jabutis. Com isso, fica claro que dependendo do contexto, é válido além de
indicar que um caçador está andando na floresta, explicar um propósito mais específico.
127

é uma postura ideológica, advertindo que o sujeito que se adentrou na floresta assume uma
forma concreta de proceder, inspirada num caráter agonístico que o levará até um
acontecimento predativo, seja de mry animais de caça ou de inimigos.

Voltando à etimologia do latim vulgar captiare, é possível determinar que essa categoria
abrange um conjunto de práticas ligadas à cinegética, como rastrear, procurar, capturar e abater
o que leva à possibilidade de circunscrever sequências que definem o processo. Por outra parte,
bà kam tem, também contempla essas ações, circunscrevendo os comportamentos necessários
para reproduzir uma caçada. Não obstante, dita categoria engloba os agenciamentos necessários
para que a forma caçadora da pessoa masculina seja viabilizada através da experiência
predatória67. Para abordar a caça, é indispensável se valer da categoria Mebêngôkre referida,
entendendo que o modo ocidental, ainda que validado pela cinegética Xikrin, é apenas uma
fração dentro de um processo complexo, o qual, contribui altamente na definição do lugar dos
homens na vida social.

Nesse sentido, deve-se considerar a categoria akré, a qual desenvolvo no capítulo 6 sobre
xamanismo e caça, já que dita categoria corresponde a um tipo de força inata na pessoa Xikrin,
necessária para o exercício predatório e para a consolidação da chefia68. Um caçador sem akré
é considerado um ser incompleto, suscetível de ser alvo na mata, cabendo a possibilidade de
uma contrapredação. Assim, o ato de caminhar na floresta implica um paralelismo, pois, por
um lado, o processo de virar caçador necessita da consolidação de partículas fundantes do
género masculino Xikrin, como o akré. E por outro, a disposição de um caçador incita a que
seja dinamizado cotidiana e ritualmente, o bà kam tem.

Gordon (2006) menciona que entre os Xikrin do Cateté se orienta que o akré seja contido em
lugares sociais da aldeia, com o propósito de evitar que a raiva - tomando posse das relações -
acabe deteriorando as alianças. Porém, a floresta constitui o cenário social oposto, no qual se
demanda que as alianças sejam conduzidas pelo estado akré, traduzindo-se em resultados
materiais nas expedições de caça e guerra. Essa condição é realçada na forma como Onça
retrata os homens Xikrin através de valores que têm impacto na vida social, chegando a destacar

67
Apesar de que mry bĩn pareça próxima de captiare, seria fútil pensar a caça Xikrin apenas à luz dessa categoria.
Entanto que se corre um risco de reduzir a experiência predatória na floresta a um tipo de prática exclusiva.
68
Dado que o capítulo 6 onde discuto essa categoria encontra-se mais à frente, vale orientar o leitor aqui definindo
akré como um princípio imanente à essencial vital (espírito) de humanos e não-humanos (mry), concretizada
através do valor da raiva, coragem e liderança. Assim, um sujeito que exercita seu akré, é um sujeito corajoso e
forte, mas também vingativo (Ver ágina 317 para ampliar essa informação).
128

os caçadores da sua época como menure toi – homens (expedicionários) fortes, e os novos de
hoje como uabó– homens fracos, parados.

Esse questionamento do mebenget leva a pensar sobre quais seriam os elementos que definem
a um “bom caçador”. Em princípio, a fortaleza física é importante, mas independente disso é
imperante obter resultados: um bom caçador deve prover mry (carne de caça) na sua casa e,
por conseguinte, na casa de seu sogro. Portanto, a carne em abundância seria um fator que
contribui para o sucesso de um homem Xikrin. No entanto, existe ainda um elemento a ser
considerado. Se um “homem ruim”, um jovem indigno de se casar, ou um homem que fica na
sua casa é uabó (fraco, ligeiro, parado) e mukangare (preguiçoso), a inversa dessa posição seria
a chave para entender a equação.

As expedições são, em muitos casos infortunadas. As técnicas e a experiência dos caçadores


são importantes, no entanto, o meio também. As estações climáticas interferem
consideravelmente. No verão, quando os bichos se adentram na floresta densa, deslocam-se e
dispersam-se através de áreas mais extensas, dificultando o encontro de grandes mamíferos. Já
no período de chuvas, a caça de mamíferos de grande porte é frequente. Os frutos amadurecem
e atraem várias espécies, sendo possível encontrar áreas que condensam uma alta população de
mamíferos, ademais destes ficarem mais gordos.

É importante destacar que existe uma grande sincronia entre as práticas expedicionárias dos
Xikrin e os períodos sazonais no Médio Xingu, considerando como parâmetro o volume hídrico
de rios e grotas. Assim, os caçadores definem o inverno como ngô-tup ou quando a água está
cheia, sendo o período por excelência para pegar grandes mamíferos69 e coletar castanha-do-
brasil – pi’y entre março e maio. Já a estiagem, entre setembro e novembro, é relacionada como
ngô-gro ou água/rio baixo. Durante esse período, sem ser deixada de lado a caça, é considerado
um momento apto para pescar, enquanto os peixes se juntam em poços, podendo vir uma parte
considerável da alimentação do consumo de pescado. Ademais, existem os períodos
intermediários os quais os Xikrin identificam com clareza. Estes são ngô-gró-mó, os quais
indicam que a água está crescendo ou enchendo (quando começam as chuvas no final de ano)

69
Apesar da relação entre períodos sazonais e práticas expedicionárias ser uma questão comum na região do
Bacajá e do Médio Xingu, a aldeia Pytakô apresenta uma sutil exceção à regra de caçar, principalmente no inverno,
já que na região onde se localiza essa aldeia e graças a ao sistema de caça através da estrada de acesso, é possível
garantir a captura de grandes mamíferos ao longo das diferentes épocas do ano. Com isso, Pytakô é uma das
aldeias de Bacajá que menos costuma pescar no rio, pois sempre há uma preferência por se deslocar durante o
final da tarde e noite através da estrada para procurar antas.
129

e ngô-gró-moro, indicando que a água está baixando, a vazante (as chuvas se reduzem e o rio
e as grotas abaixam o volume hídrico, normalmente no meio do ano).

Por outra parte, capturas exacerbadas são critérios que influenciam os resultados70. Por
exemplo, com certa frequência os caçadores vão para a mata e voltam com as mãos vazias, não
sendo condenados por isso.

Houve uma vez no meu campo entre a transição de época seca para enchente em que foi muito
difícil achar fartura. Lembro-me de acompanhar umas três ou quatro expedições grupais
consecutivas nas quais voltamos com um ou outro jabuti. O silêncio era o sustento da
prudência, pois ninguém comentava os resultados com tom de reclamação. Pelo contrário, a
cada dia, ao nos reunirmos no ruõpte -quintal- de Onça, era rapidamente definida uma nova
travessia dentro da mata. Uma expedição atrás da outra, sendo a persistência o fator imperante
entre os homens.

No quinto dia veio a fartura, e não foi pouca. A expedição começou com alguns jabutis
capturados perto de uma árvore de cajá do mato. Porém, umas horas após seguir uma trilha
desconhecida por mim, encontramos rastros de um bando de queixadas. Pegadas úmidas no
barro e algumas plantas menores amassadas eram o indício de que os porcos estavam por perto.
Não passou muito até começarmos a ouvir as explosões de várias espingardas de um grupo que
já estava na frente. Não lembro quantos queixadas foram abatidos, mas a cifra deve ter chegado
próxima de quinze. Pouco depois, o Dezoito-Ted Jire achou uma anta no caminho. O tiro
acertou na cabeça, restando-lhe cair no chão. No final dessa expedição, uma caminhonete foi
convocada para ir perto da estrada para buscar os resultados do dia. O excesso de carne fazia
com que o retorno para a aldeia precisasse de uma assistência rápida. Não houve propriamente
uma comemoração ritual, no entanto, a alegria das famílias foi expressa pela abertura das falas
com um tom muito mais alto e emotivo do que o dos dias antecedentes, o qual invadiu as
cozinhas das casas onde foi assada a maioria da carne.

Neste episódio, a passagem entre o silêncio, o resguardo e a calma dos primeiros dias, para um
momento de alegria e exaltação diante do triunfo na caça, mostra com maior clareza o elemento
que talvez defina a um bom caçador: se por um lado é reprochável permanecer parado, por
outro, um bom caçador se caracteriza pela constante ativação em múltiplas ações que o levam

70
Na aldeia Bacajá existem pontos comumente frequentados para caçar. Esses lugares têm sido usados durante a
última metade de século, o que pode influenciar que a população de espécies caçadas possa ter diminuído, e por
conseguinte, haja maior dificuldade para encontrar mamíferos comestíveis do que em aldeias abertas
recentemente.
130

sempre de volta à floresta, de forma que se deve considerar os caçadores como sujeitos do
movimento. Nunca é suficiente. Sempre existe uma razão para retornar para o mato.
Independente de se o compêndio de técnicas e experiências lhe outorgam caçadas satisfatórias
ou frustrantes, o caçador deve estar sempre estimulado e prestes a recomeçar uma nova
travessia.

Sendo a necessidade de se movimentar uma qualidade implícita na floresta, ademais de


intrínseca à pessoa masculina, é por vezes que bà kam tem configura a forma explícita em que
se regula a vida nela. Consequentemente, devo dizer que o relacionar dos caçadores com e na
floresta - seja andando, permanecendo ou visitando-a - faz dela um lugar de cultura, aderindo
a caça e potencializando-a até um nível importante na produção de signos que acabam por
definir a vida social entre humanos e outros-que-humanos. Isso faz com que seja impreterível
não isolar a cinegética Xikrin do parentesco, da cosmologia, do aprendizado, e das interações
multiespecíficas.

Mry ou o que se caça

Nhara more, nhara kukrut? - Cadê o mateiro...?

Esse foi um dos principais enunciados das mulheres durante as primeiras semanas de outubro,
quando a seca ainda estava no ar e a caça era dificultosa, justificando a demanda das mulheres
que já estavam alguns dias sem receber, nas suas casas, uma porção de carne vinda de uma
grande pressa. Em termos quantitativos, elas são mais eficientes no provisionamento de comida
por essa época, já que chegando o final de ano nessa região do Xingu, o açaí ocupa um lugar
importante no “cardápio” Xikrin. Para tal efeito, as expedições são mais variadas durante esse
lapso de tempo, tendo uma presença feminina constante, a qual apesar de sair junto aos homens
em direção à mata, tem como propósito principal a coleta de açaí nas proximidades das grotas.
Uma tigela desse fruto misturada com farinha de mandioca é suficiente para suprir uma
refeição.

Vários homens tinham vagado pela floresta sem obter maiores resultados. Ireprim, esposa de
Bep Tok71 (Picapau) veio me perguntar se eu tinha algum enlatado que pudesse dar para ela. A
proximidade que tenho com a família de Picapau é pouca, apesar de eu ter morado numa casa

71
Na aldeia Pytakô há dois Bep Tok, o primeiro é o Onça, já o segundo (Picapau ou Nelsão) é seu neto, que
ganhou esse nome do avô.
131

contígua da deles. Contudo, teria satisfeito a demanda da Ireprim se minhas últimas provisões
não tivessem se esgotado semanas atrás.

Em outro dia, enquanto nós - um grupo de homens - andávamos por um caminho no meio de
uma capoeira, ouvimos um bicho que se movimentava por baixo de uma touceira. Parecia
grande, pois o barulho emitido era digno de ficar à espreita. Txuak e Bep Tok (Picapau), que
se encontravam adiante, passaram alguns segundos tentando identificar a forma do animal. Bep
Tok que se mostrava numa atitude mais decidida, se aproximou alguns metros até o local sem
que isso ocasionasse um alerta. Achei estranho, já que os animais com os quais tinha me
deparado eram astutos e velozes, levantando-se em fuga apenas percebem alguém se
aproximando. Os veados, por exemplo, são esquivos e velozes demais. Praticamente os vi
através de movimentos difusos entre a mata, parecendo sombras que se perdem entre galhos e
folhagens; ou quando alguém os havia abatido e seus corpos deram uma última contração antes
de morrer.

Picapau me chamou dizendo: “Poyre, vem cá, tu já viu esse bicho aqui?”. Me aproximando,
encontrei que o animal saindo da touceira era um tamanduá bandeira, bastante volumoso,
provavelmente adulto. Ele nem se importou com a nossa presença, apenas levantando a cabeça
olhou brevemente para seu entorno e continuou a sua empreitada. Perguntei aos presentes por
que o tamanduá não fugia, eles me disseram: “A gente não faz nada para ele, então ele sabe e
fica na dele”. Continuei: “Vocês não vão pegá-lo?”, “Não!”, respondeu Picapau. Nesse
momento eu já sabia que Picapau tinha a pressão de levar carne na sua casa, pois a sua mulher
não só o tinha cobrado, como tinha pedido de mim, ainda que fosse uma lata de sardinhas.

Eu insisti em indagar: “Não pode matar tamanduá?”, Picapau respondeu: “Ele não tem carne,
a gente pega bicho que tem gordura, tem que ser carne boa. Tem bicho que a carne é fedida,
que a carne é dura, tem bicho que nem tem carne, então a gente nem mata”. Claramente um
tamanduá bandeira não é um animal caracterizado por adiposidade, apesar de seu grande porte.
Ademais, a carne dessa espécie parece ser desprezada graças ao seu cheiro desagradável. De
qualquer forma, os caçadores o pouparam e preferiram continuar com sua insuficiência de
carne.

Em outra ocasião, acompanhando o velho Bep Tok – Onça através do rio Bacajá, com o
propósito de imitar o esturro de uma onça e atraí-la até nós, pousamos numa laje no meio do
caudal, devia ser em torno de seis horas da tarde, pois o sol já estava pousando no oeste.
Enquanto encalhamos a canoa e nos dispusemos a organizar minimamente o que iríamos
132

precisar durante as próximas horas, perguntei a Bep Tok o que seria feito com a carne da onça,
pois o propósito da caçada ele já tinha me falado em outra ocasião: queria pegar parte da
gordura da barriga do animal para elaborar uma manteiga medicinal e o coro para produzir
pajés- braceletes. Onça riu e disse “gá bahkukré” – Você vai comer. Depois de ver que eu
estava começando a encarar com certa seriedade a sua afirmação, voltou a dizer “bahkukré ket,
rop krori mry punure” -“não é para comer, carne ruim...”. Tendo falado algumas frases que
não compreendi, ele me ajudou traduzindo como “fedida”. A carne da onça tem cheiro ruim...
é isso que estava me explicando.

Sem ter indagado para cada caso, é evidente que para os Xikrin a carne de animais silvestres,
apesar de ser um princípio básico na sua dieta, não é sempre aceita, sendo a procedência da
mesma um fator a priori que determina o consumo. Se os Xikrin são dignos representantes de
um povo amazônico que foca a maior parte da sua alimentação no consumo de carne silvestre,
são também característicos de possuir um caráter seletivo enquanto ao que comem. Esse
contexto foi identificado por Carlos Fausto (2014) entre os Parakanã, quando indica que para
esse povo, ir para o mato é sinónimo de abundância. Orokaro pota araha -nós estamos indo
comer- dizem as famílias enquanto pegam suas redes e se preparam para uma expedição.
Contudo, adverte o autor que não se referem a qualquer tipo de refeição: “o movimento de
dispersão para a mata responde a um desejo de consumir carne em grande quantidade:
quando os Parakanã se dizem com fome, referem-se à ausência não de comida, mas sim de
abundância de carne. Não de qualquer carne, contudo.” (2014, p. 153).

Esse aspecto é fundamental não só para entender por que os Parakanã e os Xikrin, com a
possível extensão para muitos outros povos amazônicos, apoiam o seu ideal de alimentação na
obtenção de certos tipos de carne, mas também para encontrar a relação existente entre uma
certa forma de satisfazer o desejo alimentar com a circulação pela floresta. Como Fausto
destaca, em contraposição a Lévi-Strauss (1955, p. 255), a caça e a coleta inscritas numa atitude
nômade ou seminômade, não necessariamente são sintomas de insegurança alimentar, em
contraste a uma suposta estabilidade evocada pela prática agrícola. Nesse sentido, os próprios
caçadores e coletores destacam (incluindo os Nambikwaras no estudo de Lévi-Strauss) ser a
caça sinônimo de euforia e alegria, reinando um sentimento de segurança sobre a possiblidade
de obter abundância sobre o tipo de alimento de seu maior interesse.

Nesse sentido, e como tenho encontrado entre os Xikrin, do mesmo modo que Fausto descreve
para os Parakanã, a textura, ou melhor, a gordura de um animal, é relevante na escolha
cinegética. O consumo de carne, num sentido amplo, está determinado principalmente pelo
133

âmbito perceptivo que se materializa através dos sentidos. Ou seja, o aspecto do animal, a
fartura e/ou gordura potencialmente possuída por uma presa, o gosto e o cheiro emitido, tudo
isso são canais que determinam a escolha por uma ou outra espécie. Não que com isso os Xikrin
não possuam restrições ou tabus alimentares baseados em considerações de cuidado e de
feitiçaria, pois como demonstro no capítulo 6, existem prerrogativas que delimitam não só o
que se come, mas quando se come72. Não obstante, o que demonstra este trabalho etnográfico
é que o principal fator de aprovação ou rejeição de um certo tipo de carne animal está inscrito
na forma como desejo e apetência operam na rotina alimentar.

Adicionalmente, é importante definir que, se gordura é talvez o fator mais presente na


categorização para os diferentes tipos de carne, esta deve ser equilibrada com sabor, aroma e
textura, sendo estes os componentes de uma carne mex (Giannini, 1991; 1991b). Digo isso
porque carnes gordurosas como a do capivara, apesar da sua excessiva gordura, não cumpre
outros requisitos para os Xikrin, portanto, eles não costumam se alimentar desse animal.

Por outra parte, os Parakanã possuem um amplo leque -talvez maior que o dos Xikrin – de
animais silvestres os quais consomem, embora o potencial de gordura seja o determinante entre
a escolha entre uma espécie e outra (Fausto, 2014). No caso dos Xikrin, eles assumem uma
postura mais fechada quanto às espécies comestíveis ou não, tendo um regime alimentício
limitado a poucas espécies altamente consumidas, em contraposição a outras raramente usadas.
Isso indica que os Xikrin possuem um sistema classificatório relativamente rígido enquanto ao
lugar ocupado por cada tipo de animal e sua respectiva carne. Assim, cabe fazer aqui um
esforço, ainda que incompleto73, para debruçar a classificação estabelecida pelos Xikrin.

72
Inclusive, as relações de tabu estabelecidas com carne e alimentação extrapolam com frequência as questões
relacionadas ao âmbito puramente perceptivo e de apetência, já que em casos muito concretos, apesar de estar na
ordem do dia uma boa carne, por exemplo de anta, as pessoas se abstém de comê-la graças a valores, dietas e
afecções.
73
Para trabalhos mais detalhados a respeito de espécies animais devem ser consultados Bamberger (1967) e Posey
(1979). Os autores cruzam os nomes de múltiplas espécies com os dados coletados entre os Kayapó. Devo advertir
que neste estudo, mais do que estabelecer uma classificação ampla, o que me interessa é destacar os grupos de
animais que fazem parte das relações cinegéticas ou estão relacionados a alguma prática agonística dos Xikrin na
floresta.
134

Figura 8. Espécies consumidas ou usadas pelos Xikrin (exceto peixes).

Classe Nome Comestibilidade Outros Usos


Mebêngôkre / Frequência* krit

Mamíferos

Perissodáctilos

anta kukrut Sim / Alta Ossos: para fabricar


pontas de flechas. /
xerimbabo

Artiodátilos

queixada ngrú Sim / Alta xerimbabo

veado mateiro nhak iú - more Sim / Média xerimbabo

caititu angrôre Sim / Alta xerimbabo

Roedores

paca ngrá Sim / Média

cotia kukejre Sim / Baixa

capivara kunum Sim / Baixa xerimbabo

quati wakón Não xerimbabo

Primatas

guariba kubut Sim / Baixa

macaco prego kujkox Sim / Baixa xerimbabo

Edentados

tatu canastra Sim / Média


135

tatu-galinha Sim / Baixa

tamanduá bandeira Não

preguiça Não xerimbabo

Carnívoros

onça pintada e preta rop-krori /rop-tuk Não Padjés, cintos


re

quati Não xerimbabo

Répteis

jabuti-piranga karanbej / Sim / Alta xerimbabo


pronhketí

jabuti-tinga kaprã-poi Sim / Alta xerimbabo

tracajá krãh-toi / kaprã- Sim / Baixa


potire

Aves

Mutum kukre-kamakajti Sim / Média

Mutum castanheira àkkamré Sim / Média

jacu mujten Sim / Média

Arara-vermelha mok-kômrei Não Cocares, padjés. /


xerimbabo

Arara-azul mok-kôtuktí Não Cocares, padjés. /


xerimbabo
136

Abelha (mel) ngài74 Sim / Média-baixa

*A frequência deve ser considerada levando em conta a preferência pela carne, mas também a variação
na população de espécies75.

Segundo a tabela apresentada, antas e porcos são os animais mais almejados pelos caçadores,
o que condiz com o tipo de expedições implementadas, as quais - como mostrarei mais à frente
- são voltadas à procura de grandes animais indicadores de fartura ou espécies que moram e
viajam de forma coletiva, significando um alto número de membros por manada - seria o caso
dos queixadas. Já numa quantia inferior, caititus, pacas, veados e aves, como o mutum e jacú,
são procurados. Uma explicação a respeito é que esse tipo de animais são mais solitários (não
vivem em manada) e possuem um tamanho corporal inferior aos mais consumidos. Não
obstante, a sua carne é vista entre os Xikrin como uma mry mex: carne boa, com gordura (twym)
e sabor. Ademais, no caso das pacas e caititus, estes são animais que costumam circular entre
roças e capoeiras, sendo lugares próximos das aldeias, facilitando a sua captura através de um
tipo de caça de espera no final da tarde.

Porém, existem alguns animais para os quais há um certo receio quanto ao seu consumo,
havendo famílias que não costumam consumi-los na atualidade, enquanto outras mantém o
costume de se alimentarem destes caso não haja uma opção melhor. Refiro-me aos primatas.
Ao consultar meus interlocutores, alguns manifestam não comer carne desse grupo. Já na
prática observei o consumo de guaribas e macacos-prego em alguns casos particulares na aldeia
Bacajá, durante algumas semanas na época de seca, quando o encontro com grandes animais
não era muito frequente.

Para esse caso os Xikrin não possuem uma técnica específica76, se valendo apenas da
espingarda (atóm) como fonte primária para dar morte à distância aos guaribas no final de

74
A classificação de abelhas e seu uso é bastante amplo, sendo indicada aqui apenas a categoria ngàb para
determinar a espécie. Para ter uma noção da classificação ampla que os Mebêngôkre fazem, ver Posey (2002, pp,
75).
75
Por exemplo, no caso de veado, sua carne é valorizada, não obstante, é difícil capturar esse animal, o que faz
com que o consumo do mesmo seja médio, em comparação a espécies mais comuns na alimentação Xikrin, como
o caso de antas e jabutis.
76
Uirá Garcia (2018) demonstra o quanto é diferenciada e particular no âmbito técnico e cosmológico a caça de
guaribas para os Awá Guajá, sendo essa prática um cenário privilegiado para presenciar uma economia da
predação entre potenciais afins. Ademais, o trabalho etnográfico do autor apresenta uma forma concreta de análise
das relações entre guaribas e caçadores, contendo um esforço por entender a equiparação entre caça e guerra desde
um âmbito multiespecífico.
137

tarde, quando estes, excitados, entoam os cantos que lhes são característicos77. A família de
Bep Kanhê (Pedro), pai de Txuak, é uma das que efetua a prática com certa regularidade,
cabendo na cozinha/quintal o consumo de primatas sem nenhuma especificidade enquanto à
forma de preparação: a carne dos guariba e macacos-prego é assada sem retirar o couro e pelo.
Ademais, não se esquarteja ou se separam seus membros.

Por outra parte, os quelônios, sendo mais comuns os jabuti-piranga e jabuti-tinga, são
frequentemente consumidos entre os Xikrin, constituindo a opção mais acessada em alternância
com a carne de mamíferos. Se os animais de grande porte e gordura representam um cenário
de consumo ideal, os jabutis são talvez a forma mais segura de garantir reservas de carne.
Portanto, ungulados e quelônios são os responsáveis por equilibrar o regime alimentar dos
Xikrin.

Além disso, se num primeiro momento bà kam tem abrange o ato de caçar mamíferos, num
segundo momento, concerne diretamente à procura e captura de jabutis como prática análoga.
Quando os homens vão para o mato, principalmente na época de chuvas ou no inverno, estão
almejando achar uma anta ou um bando de queixadas no caso de caçadas coletivas. Mas,
enquanto observam a parte inferior da floresta tentando entender os rastros e pegadas, prestam
atenção aos buracos feitos pelos tatus, às raízes das árvores e à sombra de árvores frutais, pois
esses são espaços onde é possível achar - com um pouco de sorte - um jabuti se alimentando
ou descansando. Inclusive, é essa uma das formas mais comuns e eficientes de mulheres e
crianças aportarem a uma expedição: identificando os quelônios e os transportando nas suas
costas.

No caso concreto dos tracajás, estes costumam habitar no rio Bacajá, de maneira que seu
consumo antes do contato era reduzido entre os Xikrin, pois não moravam na beira. Ademais,
os Xikrin consideram essa subespécie como difícil de capturar por ser extremamente esquiva
ao menor movimento ou barulho. Com frequência, na seca, é possível achá-los durante o meio-
dia se esquentando em cima de pedras e troncos no rio. Não obstante, os Xikrin não se esforçam
por ir atrás. O maior interesse sobre os tracajás se dá no período da vazante até a seca, já que
os quelônios desovam nessa época quando aparecem bancos de areia na beira do rio. Os Xikrin
aproveitam para coletar ovos que servem como complemento alimentício na sua dieta. A carne
do tracajá é pouco procurada, apesar de reconhecerem que é uma ótima opção. Para os Xikrin

77
É possível associar o abate de primatas em muitos casos aos menoronure, que na busca por exercitar suas
habilidades, vão atrás de primatas. Já o consumo desses é determinado pela casa à qual os meninos pertencem.
138

a carne de quelônios é bastante valorizada78, no entanto, seu consumo se reduz praticamente a


dois tipos de jabutis: pronhketí e kaprã-poi (geochelone). Estes são consumidos colocando-os
diretamente no fogo e os assando após a retirada do casco com facão.

Ainda há as aves, que para o caso dos Xikrin se reduz ao consumo dos cracídeos,
especificamente o mutum, o jacu e o aracuã. Essas aves são consumidas sempre que não houver
grandes mamíferos e quelônios. Portanto, sua procura é mais comum quando, após várias
expedições falidas, os caçadores tentam outras espécies através de técnicas diferenciadas. Por
exemplo, são poucos, mas há caçadores que acordando na primeira hora do dia vão através da
beira do rio ou de uma grota procurando na copa das árvores ditas aves. Um fator de influência
da pouca procura é que para abater essas aves é necessário usar espingarda (com a possibilidade
de tentar com arco e flecha) e com frequência se ouve dizer entre os caçadores que dependendo
do tamanho do jacu, não compensa o gasto de um cartucho.

Enquanto ao mel derivado de vários tipos de abelhas, é cada vez menos frequente achar quem
dedique seu tempo à extração deste, pois é considerada uma prática dispendiosa. Os Xikrin
produzem fogo e ateiam a fumaça para cima da colmeia, conseguindo que as abelhas se
dispersem e a extração possa ser efetivada. Devo acrescentar que encontro uma relação direta
entre a diminuição dessa prática com o acesso ao açúcar, na atualidade. Os Xikrin têm uma
preferência por algumas das mercadorias industrializadas de consumo, sendo o açúcar
cristalizado um insumo indispensável nas cozinhas. Ademais café, bolachas recheadas,
balinhas e outros derivados fazem com que a sensação doce no paladar seja preenchida sem a
necessidade de buscar o mel.

Voltando ao assunto da carne, é preciso continuar me debruçando sobre a relação que a caça,
como ato, tem com o que se come, pois como enunciado acima, nem toda carne é consumida e
isso influencia o que se caça (com a exceção de espécies capturadas para outros fins). Quando
um Xikrin vai para a mata, esse evento é indicado através da expressão bà kam tem. Quando
se dá continuidade à indagação sobre o que a pessoa está fazendo, com frequência a narrativa
leva à expressão mry bĩn, indicando que o propósito principal se arraiga em matar um certo
animal.

Contudo, ao esmiuçar a expressão mry bĩn é só a segunda sílaba que indica o abate, e a
primeira, mry, refere-se ao sujeito da predação. Uma resposta simples dos caçadores quando

78
Há algumas gerações, o consumo de fígado do jabuti era associado à velhice, portanto, só os mebenget o
consumiam. Entretanto, hoje essa prática é quase desconsiderada e cabe a todos se alimentarem com esse órgão
do animal.
139

indagados sobre o significado da expressão mry, é “bicho... bicho de caça”, consequentemente


relacionado a carne ou presas de um animal comestível. Mas nem todo bicho é bicho de caça,
já que - como venho explanando - existe um conjunto classificatório, o qual faz com que os
caçadores optem por escolhas ou sejam seletivos enquanto transitam pela floresta. Assim, o
bicho de caça, ou melhor, mry está implicado como categoria que define animais de grande
porte factíveis de serem consumidos. Em outras palavras, mry opera como definitório para
mamíferos de grande porte que tem por características um bom aspecto, bastante fartura, cheiro
agradável e claro, boa twym (gordura). Nesse sentido, mry poderia ser também um indicador
do “ideal alimentício” para os Xikrin. No mesmo sentido que os Parakana “estar com fome”
(Fausto, 2014), é sinônimo de ausência de carne.

Porém, o verbo kubĩn (matar) opera excluindo outras atividades que apesar de serem parte de
bà kam tem, não acarretam uma disposição propriamente de abate, mas sim de trekking. Por
exemplo, o corte de palmito, a coleta de castanhas ou mesmo, a captura de jabutis. De qualquer
forma, temos que nem toda espécie abatida pode ser consumida, salvo os mry, podendo servir
sempre de alimentação. Ademais, parece haver uma relação causal entre abatimento no ato da
andança e consumo. Nesse sentido, jabutis, que não são mortos quando encontrados no meio
do mato, não entram na ação mry bĩn. Essa fórmula ganha força quando é observado que desde
o âmbito das relações xamânicas multiespecíficas, onde as espécies de animais que possuem o
componente akré devem ser tratados de forma específica no momento do abate, assim como
no transporte e ainda no local onde o confronto foi dado, já que o akré, virando uma força
destrutiva, poderia acarretar afecções físicas e psíquicas (bibãnh) no caçador e sua família. Para
ampliar esse tema ver o capítulo 6 desse trabalho dedicado aos atos xamânicos na caça.
140
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142

Prancha 4: Alimentos e preparo

Foto 1: Traíras (krotí) provenientes da grota da ponte, nas proximidades de Pytakô. Durante a época
seca o consumo de peixes aumenta, a prática de bater timbó é uma das formas mais expressivas de
obtenção de carne, ademais de integrar todas as idades e sexos entorno da prática, constituindo um
cenário predileto para práticas rituais e a aprendizagem dirigida.

Foto 2: A captura de quelónios, principalmente o kaprãn ou jabuti, é vista como uma prática de colheita.
Constitui a forma predileta de segurança alimentar, pois é uma espécie abundante na região de Bacajá,
geralmente quando os caçadores saem para caminhar pela floresta, podem não voltar com carne de mry,
mas nunca falta um jabuti na dieta. Os Xikrin costumam oferecer este tipo de animal como refeição no
preambulo de festas metoro.

Foto 3: Um ngrú jovem e dois jabutis. As fêmeas de queixadas são as mais almejadas da espécie
tayassu-pecari, sua carne considera-se mais macia e volumosa. No entanto, os caçadores não recusam
o abate de um queixada menor, em caso deste ficar perdido do grupo ou passar muito próximo. Seu
destino será a predação por parte dos Xikrin.

Foto 4: macaco-prego. Abatido pelos filhos (menoronure) de Meretti e trazido até o quintal de Pedro.
Na aldeia Bacajá, eles são uma das casas que consome primatas.

Foto 5: Nhiak yu ou more (veado mateiro). Um dos mry mais almejados, porém, um dos mais raros,
dada a sua agilidade para fugir de predadores.

Foto 6: Inhames e batatas-doces dispostas em um cercamento de pedras previamente aquecidas. Ato


seguida serão cobertas com algumas pedras, folhas de banana e finalmente terra. O propósito é criar um
forno “enterrando” os alimentos. O calor das pedras será transmitido aos tubérculos até deixá-los
consumíveis. Essa prática é feita quando os grupos se encontram em roças afastadas ou então em
expedições de mais de um dia. Para esses casos combina-se com carne pudendo ser peixes ou jabutis,
ou então partes (extremidades) de mry, pois a carne de melhor qualidade é transportada para a aldeia.

Foto 7: Jucupú. O preparo em forno de pedras predileto para os Xikrin. Consiste em uma mistura de
carne de mry, massa de mandioca e temperos como sal, ou em alguns casos pimentas. A mistura é
forrada em folhas de banana. O resultado é um prato com sabor marcante da carne em contraste com a
massa neutra e um leve sabor agregado pelas folhas da banana. É comumente preparado no cotidiano
das grandes famílias, quando uma expedição traz excelentes resultados como uma anta ou vários
queixadas, também é oferecido durante as comemorações e festas.

Foto 8: após o consumo de partes valiosas da carne, partes ósseas do tronco, extremidades e a cabeça
dos grandes animais como antas é conservada como uma reservada de alimento, chegando a permanecer
vários dias moqueada na grelha das cozinhas. Em muitos casos acaba sendo consumida aos poucos ou
então é dada aos cachorros quando há renovação das fontes alimentícias a causa de uma nova caça.

1 6

7
2 3

4 5 8
143

Vale aqui considerar uma observação de Fausto (2014, p. 160), quem relaciona espaço com
consumo de espécies. O autor identifica que para os Parakanã o consumo de pequenos
mamíferos como pacas, tatus e cotias é intensificado na medida em que o grupo adquire
características sedentárias durante o verão ou a seca. Ademais, um dos fatores que ocasiona
esse crescimento no consumo desses animais está relacionado com a extensão no plantio de
roças, a qual configura um cenário propício para atração de roedores (poderia ser incluído aqui
o caititu ainda que sem ser roedor). Já num sentido contrário, quando o grupo opera com
bastante mobilidade, principalmente no período de chuva, aparecem com maior frequência na
dieta os grandes mamíferos, de forma que a permanência num local estaria diretamente
associada à diminuição de certas espécies e o aumento no consumo de outras.

Para os Xikrin essa relação pode ser aplicada em parte, já que durante o período de seca o
consumo de paca e caititu parece ser mais frequente. Não obstante, aumento no consumo de
roedores como a cotia ou mesmo o tatu, não foram evidenciados durante o meu campo. A
importância da análise de Fausto em relação a este trabalho está em que para os Xikrin também
há um crescimento no consumo de grandes mamíferos enquanto houver um esforço maior por
se locomover pela floresta. Por exemplo, na aldeia Bacajá é comum que os caçadores e suas
famílias viagem durante um período relativamente longo através do rio até atingir algum ponto
onde é efetuada uma caminhada em procura de grandes animais como antas e veados. Já em
Pytakô os deslocamentos até atingir os pontos onde se faz a procura de presas é mais curto.
Não obstante, nos dois casos é necessário sair das proximidades da aldeia79.

Dessa maneira, o consumo de mamíferos de grande porte está diretamente relacionado com a
distância percorrida e o tempo investido pelos caçadores: quanto mais móveis, maior será o
consumo de grandes presas, e, quanto mais sedentários, maior será o consumo de pequenos
mamíferos. Sendo necessário considerar essa fórmula na tentativa por entender a preferência,
mas principalmente, o esforço investido na obtenção de cada certo tipo de carne.

Devo acrescentar que para o caso particular de Pytakô, o consumo de carnes variadas como
roedores, aves e primatas é praticamente inexistente, sendo na maioria das vezes consumidas

79
A diferença entre as distâncias de deslocamento em uma aldeia e outra está provavelmente relacionada com o
fato de que Bacajá, sendo uma aldeia de cinquenta anos, tem suas áreas de floresta próximas submetidas a caça e
coleta intensificada, o qual pode ter provocado que certas espécies tenham se afastado do perímetro. Já em Pytakô,
uma aldeia de quinze anos, os grandes mamíferos ainda persistem em lugares não muito afastados da aldeia.
William Balée (2013, 231) aborda esse assunto entre os Ka’apor a propósito do afastamento de quelônios das
proximidades dos aldeamentos. Porém, uma via de mitigação para a diminuição de espécies pode estar associada
às roças mais antigas como observa Posey (1987), já que a formação de capoeiras constitui um cenário de
confluência de múltiplas espécies de mamíferos.
144

as carnes de anta, porcão e jabuti, ainda no período de seca. Esse panorama faz com que nesse
contexto específico, os caçadores sintam a vontade de estar transitando pela mata sem
necessidade de ir muito longe, pois sua mobilidade é frequentemente recompensada com um
tipo de presa almejada. Contudo, isso deve ser abordado com atenção, já que uma outra variável
nos últimos anos tem mudado consideravelmente a percepção dos lugares de caça e a obtenção
de grandes mamíferos, não só em Pytakô. Me refiro à abertura de estradas (ramais), com as
quais se tem outorgado outras formas de concepção enquanto a deslocamentos e
temporalidades no acesso às áreas de caça. Esse tema é relativamente complexo, portanto,
considero melhor dedicar uma parte exclusiva desse trabalho para apresentar dados
etnográficos e analisar com cuidado a cinegética à luz de estradas (ver capítulo 4).

Tep ou o que se pesca

Seguidamente quero trazer o tema da pescaria, uma vez que, mesmo não sendo caça no sentido
estrito, não deixa de fazer parte do universo da alimentação (fornecimento de carne), da
comensalidade e da interação multiespecífica. Poderia dizer que, uma caça pode virar uma
pescaria, mas uma pescaria não é considerada caça. Os Xikrin dão pistas para entender essa
questão quando saem para andar pela floresta, mas sem dar muita importância inicial, levam
consigo uma pequena sacolinha plástica com um par de anzóis e alguns metros de linha de
nylon. Num primeiro momento os caçadores pegam uma canoa e remam através do rio Bacajá80
até um ponto onde descem para se adentrarem pela mata. Após horas de caminhada sem
resultados satisfatórios, aquela sacolinha que normalmente fica no interior da canoa torna-se
um elemento de interesse, pois voltando da mata, o próximo passo não é necessariamente
retornar para aldeia, senão ocupar outro lapso de tempo para tentar pescar em certos lugares
onde se sabe há maior presença de peixes.

80
Salvo algumas aldeias recentes que foram abertas no interior da TITB Trincheira Bacajá, onde o padrão de
trânsito e acesso está ligado estritamente à via terrestre. Aldeias como Piydjam, Prin-jãn, Krimei, Kabakrô, Rapkô
e Kenkrô ficam distantes do rio Bacajá e relacionam o consumo de peixe às grotas e pequenos igarapés nos seus
arredores.
145
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146

10. Prancha 5. Pescaria


147

Prancha 5: Pescaria

Foto 1: O início da pescaria é um momento para conferir o estado de malhadeiras e tarrafas. É


importante que a equipe de pescadores, incluindo os moleques, esteja atenta para levar consigo
todos os equipamentos a serem usados durante a atividade.

Foto 2: A pilotagem de cascos na seca, quando há múltiplos obstáculos no rio, é uma atividade
que exige cuidado. A aprendizagem dessa técnica reúne noviços e experientes entorno de
pescarias, que tem como ação principal a colocação de malhadeiras no meio do rio Bacajá.

Foto 3: Enquanto alguns instalam as malhadeiras, alguns noviços descem em lajes no meio do
rio para dedicar-se a lançar tarrafas em locais próximos de corredeiras, onde é mais comum a
concentração de peixes como pacu, piranha e curimatá.

Foto 4: No retorno da pescaria, Parytuk aproveita para limpar os peixes coletados, enquanto os
outros se dedicam a pilotear o casco.

3
1
4
148

Por outra parte, há momentos em que são organizadas logísticas apenas para pescar. Essas são
mais comuns entre adolescentes e jovens (mẽbengodju, mekurêrêti até menoronure), momentos
nos quais também não é necessário levar espingarda. Pegando uma canoa, ou inclusive indo a
pé pela beira do rio quando está muito enxuto por causa da estação seca, as pessoas levam
anzóis, linhas e passam horas pescando. Essa prática não é vista como caça e acaba sendo um
tipo de atividade mais lúdica e reduzida às categorias de idade mencionadas.

Um outro aspecto que deve ser contemplado se refere a que uma vez que os Xikrin não são
historicamente um povo indígena beiradeiro, a relação de dependência que eles tem tido com
grandes rios, assim como com a grande variedade de espécies aquáticas ali habitantes, aparece
num período recente, relacionado principalmente ao contato. Vale lembrar que o SPI optou por
alocar os povos contatados nas beiras dos grandes rios para facilitar a gestão territorial e o
acompanhamento às populações. Adicionalmente, a tecnologia de pesca de arremesso com isca
veio através do intercâmbio com kubén (não indígenas), em forma de linha e anzol. Mais
recentemente, varas de pesca, chumbos, iscas especializadas e redes estão sendo usadas.

Dessa forma, o pescado tem se instalado como uma variante alimentar bastante presente na
complementação alimentícia das famílias, principalmente no período de seca e vazante na
segunda metade do ano. Como demonstra Jaime Ribeiro (2015) para o caso de Bacajá, os
Xikrin identificam em média 56 espécies de peixe comestíveis, sendo as famílias dos
serrasalmidae, pimelodidae, cichlidae e sciaenidae as mais consumidas. Ou seja, peixes como
a piranha e pacu – tep pó são uns dos mais fáceis de conseguir e sempre estão na dieta de quem
volta de uma expedição pelo rio e quer consumir um peixe frito. Também peixes de couro com
bastante gordura, como o surubim (kohram) e em alguns casos o pirarara (tep kamrêti), ademais
do tucunaré (tep picó) e a pescada (krãiti), são talvez os mais procurados. Os mesmos são fontes
alimentícias que contribuem na segurança alimentar dos Xikrin81.

Porém, a forma com a qual os Xikrin estão principalmente relacionados com a pescaria, refere-
se ao procedimento bã ngô ka õm, mais conhecido como “bater timbó”, ao qual dedicarei um
segmento mais à frente quando abordar as formas de obtenção de carne no âmbito aquático.
Entretanto, cabe dizer aqui que sendo uma prática própria (baseada no uso de toxinas de
plantas) é frequentemente ligada ao campo ritual. Por outra parte, essa atividade é realizada

81
Um dos impactos mais evidentes em relação à implementação da hidrelétrica UHE Belo Monte desde 2015,
tem sido a diminuição do volume do rio Bacajá, afluente do Xingu, o que tem trazido um decrescimento na
população de peixes, principalmente das famílias Sciaenidae e Pimelodidae comumente consumidas pelos Xikrin.
Para aprofundar esse assunto ver relatórios de pesca das empresas subcontratadas para implementação do PBA-
CI, especificamente Unyleya.
149

principalmente em grotas e pequenos igarapés durante o período de seca, sendo necessário que
haja um espaço relativamente fechado ou em forma de poça para que os peixes afetados pela
substância do cipó não possam fugir com facilidade.

Nas ocasiões em que acompanhei essa prática em Pytakô, identifiquei que a captura dos peixes
é bastante limitada em relação à variedade de espécies, sendo geralmente capturado um
mediano pescado identificado como krotí – traíra. Em compensação, essa técnica faz com que
seja obtido um alto volume de peixe, o que faz com que de uma pescaria coletiva possam comer
várias famílias.

Kamere a coleta de açaí

Se o pescado extraído do rio Bacajá tem adquirido um valor alimentício forte para os Xikrin
nas últimas décadas, é importante destacar no mesmo sentido que há também alguns tipos de
frutos bacáceos que tem se afiançado progressivamente até ocupar um lugar importante nas
cozinhas e no regime alimentar, sendo em alguns casos formas complementares de alto valor
energético e nutritivo para alimentar principalmente aos meprire (crianças).

Nessa época as crianças correm pela aldeia com a boca roxa, grãos de açúcar colados
no rosto são parte da sua aparência fofa. Uma colher numa mão e uma canequinha
na outra, são rastos da última merenda. O açaí tem se tornado um dos alimentos
preferidos pelos Xikrin e principalmente pelas crianças. Se por uma parte a seca fez
intransitável o rio, por outra, as grotas nos arredores da estrada de acesso à aldeia
são atualmente o espaço predileto para expedições coletivas. Não só para bater
timbó, mas para encontrar múltiplos açaizais nas proximidades. Uma expedição
nesta época é comumente integrada por mulheres que levam paneiros e facão, tem
como objetivo a derrubada de alguns pés de açaí e a procura por jabutis.

Hoje, inclusive, foi um dia para procurar o fruto, temos nos deparado com um amplo
açaizal que bastou para encher os paneiros. Vários homens permaneceram ali
assistindo e ajudando no corte das palmeiras, além de transportar a carga até uma
caminhonete na estrada. Um aspecto que chama atenção é a forma usada para obter
os frutos, já que para os Xikrin se reduz ao corte do tronco.

Já na aldeia tem me chamado a atenção a extração manual: Ngrei-rô ferveu os frutos


numa panela de água durante um tempo, o propósito era amolecer a cobertura e a
mucilagem. Após essa etapa, ralaram a mucilagem, finalmente exprimiram com uma
150

peneira até extrair o suco da polpa. O resultado é um açaí bem mais líquido em
comparação ao comercializado nas cidades no Pará (passar o fruto por um batedor
faz com que ganhe uma aparência espessa). O açaí da aldeia tem mais uma aparência
de suco, do que de vitamina. Normalmente os adultos põem um pouco de açúcar e
farinha de mandioca, já as crianças, preferem uma bebida muito mais adoçada,
simulando um tipo de quitute.

Diário de campo Pytakô II – 26/11/17

Um assunto que me deixou pensativo sobre o açaí é a questão de os Xikrin não manterem em
pé as palmeiras. Apesar de que a prática da derrubada possa fazer parte do manejo praticado
por eles, o acompanhamento feito me mostrou que na medida do transcorrer da temporada,
tivemos que nos adentrar cada vez mais na mata para tentar achar açaizais. É de destacar que
para outros povos na região como os Parakana é costume subir pelo tronco da palmeira de açaí
para pegar o cacho, preservando a palmeira para uma próxima safra.

Numa conversa com Kudjoeire obtive indícios do porquê da derrubada de palmeiras. Ele me
disse que os antepassados nunca costumavam subir através de troncos: “Antigo não trepava
para pegar açaí, nós gostamos mais de andar, mas nós não gostamos de subir em árvore
fina...”. Assim, existiria um limitante técnico em relação aos frutos como açaí, pouco
acessados. Isso pode estar relacionado com os hábitos pré-contato, já que como se sabe, os
Xikrin até um século atrás transitavam entre savanas, florestas intermédias e florestas densas
(ver capítulo 1), evitando também morar na beira de grandes rios, razão pela qual eles não
consolidaram técnicas de navegação, quanto menos de escalada82.

Já a derrubada de certas espécies, como as palmeiras, teriam um outro objetivo: “Antigamente,


nós comíamos ronhó (palmito). Nós, andando na mata, cortávamos e comíamos ronhó. Agora
açaí a gente não pegava, nós já chegamos a comer mais a bacaba...”. É importante destacar
que na versão de Kudjoeire, o kamere (açaí) não era, até há pouco tempo, um componente na
dieta dos Xikrin, sendo a relação que eles construíram com açaizais em espaços de alagamento
inscrita ao consumo de palmito como suplemento alimentar nas expedições pela floresta.

82
Contudo, existem algumas práticas de escalada entre os Xikrin, relacionadas principalmente com a obtenção de
jenipapo (mrôti) e castanha-do-pará (pi’y), atividades nas quais os homens sobem através das arvores para retirar
apenas os frutos.
Esse comportamento descrito por Kudjoeire parece dialogar com os hábitos de trekking mais comumente descritos
na etnologia de povos ameríndios de terras baixas, não fazendo muito sentido falar de “climbing” entre os Xikrin.
151

Não obstante, numa narrativa de Tapiex, este menciona que na sua infância e adolescência
(época pré-contato) ele já tinha contato com o açaí.

Antigamente a nossa alimentação era kamere – açaí, Pi’yj – castanha-do-brasil,


ronhó – palmito. Nós comíamos Nhak iú – uma subespécie de veado, kukrut - anta,
angrô – queixada. Mulher cortava palmito enquanto o homem andava pelo mato
procurando caça. Antigamente o pessoal caminhava pelo mato. Eu (Tapiex),
conheço tudo isso por aqui (as serras e morros do Bacajá). A gente também batia
muito timbó. Antigamente nós matávamos os bichos de koiaká – borduna...

Alimentos do mato. Narração de Tapiex.

Tradução de Txuak.

Como mencionei acima, o consumo de açaí passa por várias etapas até virar aquele suco
adoçado, para o qual a aquisição de panelas, raladores metálicos, açúcar, entre outros, pode ter
estimulado seu consumo, ademais do crescente uso de ferramentas como facão e machado, o
qual acabou facilitando algumas práticas de corte e coleta. Embora, independente de se o
consumo de frutos de açaí se deu desde muito tempo atrás ou recentemente, o que fica evidente
na comparativa dos relatos de Kudjoeire e Tapiex é que, o açaí não era até algumas décadas
atrás um alimento predileto para os Xikrin, sendo o palmito e a castanha-do-brasil alimentos
mais procurados.

O mesmo acontece com o consumo de carne animal. Se por uma parte os Xikrin identificam
que a carne com gordura é preferida na dieta - por isso a constante procura por antas - por outra
parte, a substituição de carnes de caça prediletas tem se dado principalmente pelo consumo de
boi, sendo preferidos os cortes como o cupim e a picanha (ricos em gordura). Isso foi muito
claro durante um metoro mereremex acontecido em Kenkudjoe, onde os homens foram caçar
e trouxeram um par de antas e alguns porcos queixadas. As antas foram usadas para
confeccionar jucupú (berarubú). Contudo, o chefe da aldeia conseguiu através de uma breve
gestão na Norte Energia (empresa a cargo da UHE Belo Monte) que fossem patrocinados
alguns gastos da reunião. O dinheiro foi gasto na compra de um boi, bolachas e refrigerante. O
boi foi assado a partir do terceiro dia e as pessoas, apesar de ter porcão (queixada) assado,
preferiam optar pela carne de boi. Em poucas horas, a carne do bovino havia sido totalmente
consumida, enquanto ainda havia sobrado carne de queixada (ngrú).
152

Os Xikrin têm preferência pela carne bovina por cima de outras, como a suína e avícola.
Quando encontrei representantes Xikrin na cidade e os convidei para almoçar, eles sempre
optaram por visitar uma churrascaria, ou, no caso de self service, encheram o prato com carne
bovina, restando um espaço para complementar com arroz, farinha e às vezes feijão (nunca
com folhas ou legumes). É claro que com o passar do tempo eles têm encontrado através da
alimentação “do kubén” alternativas à carne de caça, o que tem causado mudanças na dieta
alimentícia. Assim, o consumo de animais de pastoreio, a obtenção de certo tipo de pescados
enlatados e o consumo de suco de açaí com açúcar tem aqui em comum que, sendo inspiradas
em fontes alheias, ocupam atualmente uma porcentagem da alimentação cotidiana, o que leva
a tomar precauções, pois não podem ser desestimadas as fontes de alimentação que vem de
fora da floresta. No entanto, analisar ao fundo a procedência e as formas de obtenção de
alimentos alheios, geralmente industrializados e/ou produzidos além da aldeia e a floresta,
extrapola a análise dessa pesquisa, interessada mais na cinegética como ato e aprendizado. De
maneira que devo voltar ao escopo desse segmento.

Parece-me mais importante sobre a alimentação, em relação a esta pesquisa, entender como a
incorporação de tecnologias tem efeitos nas formas em que os alimentos são obtidos no ato bà
kam tem. Ou seja, a chegada de tecnologias como espingarda e rifles, que facilitam a caça à
distância; a lanterna, que auxilia nos deslocamentos noturnos e a espera em mutás; a pesca de
arremesso e de rede; dentre outros implementos atualmente comuns entre os Xikrin,
dinamizaram e motivaram novas formas de circulação, implementação de técnicas, produção
de corporalidades e obtenção de tipos de animais específicos. Essas mudanças são um fator
fundamental para entender a prática da cinegética -e da pesca- na atualidade, dando forma a
um certo tipo de mobilidade e elaboração de skills (Ingold, 2002). Portanto, dedicarei uma parte
exclusiva desse trabalho para explanar cada uma das formas pelas quais os Xikrin praticam a
caça (capítulos 3 e 4).

Finalmente, devo estabelecer uma diferenciação entre caça e as outras práticas relacionadas à
obtenção de alimentos que vim apresentando até aqui, já que como tenho narrado, o ato de
caçar uma presa está necessariamente ligado à ação de dar morte, expressada através da
categoria kubĩn, a qual por vezes, está contida através da categoria bà kam tem. Então, caçar
implica necessariamente que haja um deslocamento terrestre através da floresta, um encontro
com presas destinadas principalmente ao consumo e, ainda, a morte da presa dentro do ciclo
do deslocamento pela mata.
153

Nesse sentido, a captura de jabutis seria parte de um processo de andar na floresta, mas não
necessariamente cumpriria com o princípio de dar morte enquanto à atividade demanda. Isso
porque os jabutis são levados vivos até a aldeia e podem chegar a passar vários dias antes de
serem consumidos (em certa forma eles servem como reserva alimentícia). Por isso os Xikrin
usam a categoria mó, indicando que apenas irão “pegar” aqueles animais.

Já no âmbito da pescaria com arremesso, referida especificamente à captura de peixes no rio


Bacajá, acontece uma condição semelhante. Uma vez que a caça implica caminhar pela
floresta, a atividade da pesca não pode ser equiparada à caça. Sendo necessário, para qualquer
análise, estabelecer uma relação de distância entre caçar e pescar, com o propósito de evitar o
risco de confundir atividades, as quais têm conotações cosmológicas e técnicas profundamente
diferentes. Geralmente, os Xikrin se referem à pescaria de arremesso como tep õ wà bi83, o qual
vem a ser como “pegar peixe com linha”. Apesar do peixe morrer durante a pescaria, sua morte
não é equiparada com a morte de mry. Essas sutilezas são fatores importantes para compreender
a diferenciação que os Xikrin elaboram entre caçar, pescar e os contextos cosmológicos e
técnicos aos que essas práticas se inscrevem. A figura 9 indicará melhor as semelhanças e
diferenças entre uma e outra prática. Devo agora me afastar da pesca e coleta para voltar
novamente minha atenção aos mamíferos terrestres.

kubĩn = Matar Pescar = yru tep õ wà bi


+ (não se caminha)
Mry Animal de caça Pescar = yru tep õ wà bĩ
Es

pe bĩ = Matar Pescar = yru tep õ wà bĩ
ctr
o +
cin de caça
Mry Animal Bà = floresta temPescar
= = yru tep õ wà bĩ
eg
éti ir/andar/movimento
co Pescar = yru tep õ wà bĩ
bĩ = Matar
+ Bà = floresta tem =
Mry Animal de caça ir/andar/movimentoPescar = yru tep õ wà bĩ

bĩ = Matar Bà = floresta temPescar


= = yru tep õ wà bĩ
Figura 9. comparativa entre caça e pesca (espectro cinegético).
+ ir/andar/movimento
Mry Animal de caça Pescar = yru tep õ wà bĩ
Bà = floresta tem =
bĩ = Matar ir/andar/movimentoPescar = yru tep õ wà bĩ
+
83
Mry Animal
Não confundir bĩn com bi, poisde caça se Bà
a primeira = floresta
refere temPescar
ao ato de matar, = = yru
a segunda tep õa pegar,
apenas wà bĩ colher para
cima, capturar ou levantar. ir/andar/movimento
bĩ = Matar Pescar = yru tep õ wà bĩ
+ Bà = floresta tem =
Mry Animal de caça ir/andar/movimentoPescar = yru tep õ wà bĩ

bĩ = Matar Bà = floresta temPescar


= = yru tep õ wà bĩ
154

Krit ou animais familiarizados


A silhueta de uma velha mulher sentada na sua rede durante a maior parte do dia é
perceptível à distância desde o caminho principal que leva até o interior da aldeia.
Adicionalmente, a casa de Bep Nhô, onde me estabeleci na nova Bacajá, é
relativamente próxima da casa da velha. Seu nome é Ngrei Tó (Maria) e, com Po-ÿ
(Konaipô), seu marido, formam um casal de ngêt (velhos). Maria é irmã de Onça,
tendo manifestado seu parentesco desde o primeiro momento que me aproximei da
sua casa. Ela gosta de “tirar sarro” do seu irmão e questionar o porquê de Irengrî ter
me dado o nome Poyre. Me cativa a sua personalidade, pois ela, em contraposição
à maioria das mulheres Xikrin que já conheci, é particularmente descolada, falante
e explicativa.

O lugar predileto para achar a Maria é o seu ruõpte (quintal) ou cozinha. Basta sair
do círculo de casas e acessar até ela pela parte traseira da casa onde foi construído
um quintal do tamanho da própria moradia. Ali, sempre tem seus netos que
demandam atenção e Konaipô, com certo “ciúme”, que os convida a sair de perto e
se ocuparem em brincadeiras. Mas o velho tem uma concorrência acirrada, não tanto
com seus netos, senão com Grenho-goiti e Páhkonat. Eles, sem serem netos, são
uma espécie de crianças mimadas por Maria. Ao consultar Konaipô, ele disse que
iria comê-los. Não obstante, Maria, ao ouvi-lo, disse que primeiro ela iria pendurar
o seu marido.

Essas duas crianças são uma arara-vermelha e um quati. Os mesmos têm uma
personalidade de extrema dependência da velha, estando uma grande parte do tempo
agarrados dos membros da Maria ou deitados no seu colo... Surpreende-me como a
arara-vermelha é incapaz de se alimentar por sua conta. Maria fica mastigando
castanha-do-brasil enquanto sujeita o bicho, abre seu bico e introduz a amêndoa
triturada. Lembra aquelas cenas de quando uma mãe, querendo alimentar um
nenemzinho, pega uma papinha e fica fazendo um show para que a criança aceite o
alimento. Já o quati, um pouco mais independente, pega a castanha da mão da Maria
e fica entre o telhado e a rede roendo a amêndoa e olhando com sigilo para não ser
surpreendido por alguém que queira roubar sua refeição.

Bichos de estimação de Maria.

Diário de campo Bacajá 01/03/18 – 03/03/18


155

Entre os Xikrin há mais de uma forma de enxergar um animal da floresta. Se o tipo relacional
preponderante é o predatório, há, ademais, alguns matizes que permitem uma variabilidade na
regra. Apesar de que na sua maioria, os mry84 sejam destinados ao consumo de sua carne, existe
ainda, a possibilidade de que um mamífero dessas espécies seja acolhido e visto de uma outra
forma, acessando os círculos domésticos no interior de uma aldeia e vindo a acrescentar em
alguns casos o parentesco.

Descola (1998) facilita o ponto de partida para esse assunto quando analisa o âmbito abstrato
que possuem as categorias de consanguinidade e afinidade, mostrando como estas são
operadores lógicos que devem ser aplicados a uma grande diversidade de cenários do contexto
amazônico, incluindo os dos animais caçados. A respeito, disse o autor: “o animal de caça se
apresenta na Amazônia seja como um álter ego em posição de exterioridade quando é caçado,
seja como demasiado idêntico a si para ser comido quando domesticado” (1998, p. 36). Quer
dizer que o contexto relacional é determinante para cada caso em que uma espécie é vista.
Ademais, vale lembrar que no âmbito amazônico, os afins constituem uma figura
extremamente instável, como Viveiros de Castro (1993) e o próprio Descola (1993) tem
demonstrado.

No caso de Ngrei Tó, é evidente que a arara, ainda que seja uma espécie de ave caçada pelos
Xikrin para uso de suas penas (ver tabela X de espécies usadas pelos Xikrin na página X), tem
uma outra conotação. Em Pytakô, apesar de não ter sido evidenciada a presença de krit -animais
de estimação silvestres, ou xerimbabos, coletei alguns relatos de animais que já passaram por
ali, incluindo a presença de um porco do mato filhote o qual integrou, durante um longo
período, a vida cotidiana da aldeia. Contudo, nesse caso, o queixada permanecia num cerco
junto a outros animais, como com as galinhas, já que - segundo seu dono - ao lhe deixar
transitando livremente os cachorros poderiam atacá-lo, ou, o queixada lembrando que não era
propriamente dali, tentaria fugir através dos caminhos que ligam a aldeia com as roças. De fato,
um dia por acidente, a porta do cerco foi deixada sem seguro e o queixada fugiu. A mesma
situação aconteceu com um filhote de onça que ficou órfão após sua mãe ser abatida. O felino
foi deixado preso no interior de uma casa, mas passados alguns dias, fugiu de madrugada.

84
Vale esclarecer que não só os animais mry são familiarizados, pudendo haver um leque grande de xerimbabos
que entram nos grupos domésticos apesar de nunca serem vistos propriamente como suscetíveis de consumo de
sua carne. Recomendo ver a figura 8, deste capítulo para ter uma ideia mais ampla.
156

Como já disse Óscar Calavia (2012) “quem visita uma aldeia selvagem visita quase um museu
vivo de zoologia da região”. Contudo, a presença de animais silvestres nos relatos dos Xikrin
varia, sendo algumas espécies mais comuns do que outras. Antas, veados, macacos, jabutis e
aves - como araras e mutum - estão mais presentes. Talvez a escolha por esses animais esteja
associada à sua estética chamativa, mas também a serem considerados relativamente mais
mansos ou passivos (uabó), o que facilita a sua domesticação. Os xerimbabos, ou aqueles
animais que passando por um processo de alimentação e familiarização são admitidos por uma
pessoa ou uma família, tem como benefício a circulação com certa liberdade entre a sua casa,
os quintais e o centro da aldeia, embora, estejam ligados a um dono que lhes acolhe e ensina a
ficar em certos espaços de segurança.

Nesse sentido Philippe Erikson (2012) disse, a respeito dos animais criados pelos Matis do
Vale do Javari, que há uma distinção terminológica entre os animais criados e os capturados
na caça, sendo uma estratégia para afastar a origem silvestre dos animais e transformá-los
através de um certo processo de humanização. Assim, os Matis não usam - para o caso dos
animais que moram na aldeia - o nome ancestral que designa a espécie, optando por chamá-los
através de um sistema vocativo com a duplicação dos termos originais, além de achar termos
opostos. Essa intenção é mais evidente, disse o autor, “na transformação de kwëbu em shui,
pois os dois termos são perfeitamente antinômicos: o primeiro evoca de forma clara o sexo
feminino (kwë), enquanto o segundo é homônimo de pênis (shui)” (2012, p. 20).

Por exemplo, na denominação do macaco sagui, chamado comumente de sipi chot, na língua
pano dos Matis, estes usam a variação ishpi ishpi quando este é introduzido em algum espaço
doméstico. O autor também chama atenção para a possibilidade de serem atribuídos nomes
específicos aos xerimbabos. Aspecto que aparece no contexto relacionado a Maria em Bacajá.
Se a engei adotou a arara-vermelha e o quati como parte de seus parentes, essa relação é
marcada especialmente pelo contexto semântico, onde mok-kômrei não representa para ela a
sua arara-vermelha, senão que esta é apenas a Grenho-goiti.

Nesse mesmo sentido, entre os Mebêngôkre Metuktire, Verswijver (1984) e Lea (1995; 2012)
expõem que os animais de estimação fazem parte do sistema de prerrogativas femininas, dando
lugar a uma ordem de pertença privilegiada e circulação dos animais, o qual se evidencia
através da inclusão destes no círculo social mais próximo a partir da designação de nomes.
Sendo os nomes o determinante para a socialização ou familiarização do animal.
157

Outro aspecto que deve ser considerado se refere à comensalidade como critério de
humanização, que, como disse Philippe Erikson, é um aspecto comum ao longo da Amazônia.
Se Ngrei Tó mastigava alimentos e enfiava no bico de Grenho-goiti, não era porque o bicho
tivesse limitantes físicos (inclusive em outros momento vi a arara quebrando castanhas por sua
conta). Para a velha essa prática tinha uma conotação de incorporação da ave num círculo de
relações definidas por ela e seus parentes, o que dá forma a um estatuto social de inserção de
animais como afins, outorgando, inclusive, funções específicas para estes. Como disse Erikson
(2012, p. 22) é uma forma de alimentação cultural, conferindo propriedades específicas ao
animal que recebe comida através de substâncias compartilhadas, especificamente a saliva e o
leite do seio que se costuma usar para alimentar os xerimbabos.

Com isso, é plausível afirmar que há animais da floresta e animais da aldeia, sendo os primeiros
sempre adjudicados a um contexto selvagem. Já os segundos, são inscritos em pelo menos duas
grandes categorias. A primeira referida aos xerimbabos, que sendo animais de origem silvestre,
deixam a sua ancestralidade para entrarem como afins no contexto doméstico de uma aldeia. E
os segundos, que abordarei um pouco à frente, sendo animais desprovidos de uma contrapartida
selvagem, ou seja, sendo introduzidos desde sempre a partir de um contexto doméstico. Refiro-
me aos animais de granja, mas principalmente aos cachorros.

Contudo, pode ser que a inserção cultural não seja necessariamente homogênea e a relação
parental completamente assimilada. Me parece que Konaipô é um referente para analisar esse
aspecto. Maria por uma parte treina com sua arara e seu quati todo um compêndio de práticas
que os deixam como parte do círculo familiar, enquanto o seu marido tenta resistir a essa
relação. Um dia encontrei que o quati, chamado de Páhkonat, estava lesado na ponta do rabo:
alguém tinha cortado uma parte do seu membro. Ao indagar, soube que o Konaipô tinha feito
aquilo. A Maria encontrava-se indignada e contrariava fortemente a ação do marido. Esse ato
me leva a pensar que o significado pode variar. Ou seja, para Maria, Páhkonat é um parente
dependente. Já para Konaipô, é só um quati inquieto ou por vezes, um inimigo.

Esse ato, sem ser materialmente desejado (consumo da carne), já que os Xikrin não costumam
se alimentar desse tipo de mamíferos, consiste numa expressão clara de predação simbólica,
inserida numa instabilidade das relações parentais que neste caso supõe a assimilação de um
xerimbabo como parte do círculo familiar. Com isso, é válido pensar que a incorporação de
xerimbabos é relativa, já que como uma vez escutei num depoimento de Bep-Tok-Picapau, ele
criou uma anta com a qual suas crianças e esposa geraram vínculos afetivos, não obstante, por
158

ocasião de um metoro e a causa dos poucos resultados das expedições de caça, a anta teve como
destino suprir a fome dos convidados.

De uma forma ou de outra, estamos diante de um complexo panorama de relações relativizadas,


o qual permite rever o significado dos krit para os Xikrin, pois aqui não se encaixa de forma
unânime o contexto das relações descritas por Erikson entre os Matis. Para os Xikrin, esses
animais de estimação trazem novidades à configuração parental, não obstante, a predação é
sempre uma possibilidade, como também sugere a análise de Cohn (2005, 92).

O trabalho de Aparício (2014) traz que permitem analisar essa situação. O autor apresenta o
caso dos Suruwaha, dentre os quais são comuns os xerimbabos, mas as relações com os mesmos
são -ademais de relativas- reversíveis. Com isso, o autor propõe que os igiaty, animais
domesticados, são familiarizados, mas também apetecidos. Se para um Xikrin, ou um
Suruwaha, um mamífero ou uma ave pode dinamizar formas de familiarização, essa disposição
só é possível enquanto haja uma possibilidade de voltar atrás ou transformar o estatuto social
estabelecido, sendo o consumo desses animais ou o seu uso (como o caso das penas de arara)
ainda que distante, uma possibilidade. Afinal, o que nos mostra o capítulo 1 deste trabalho,
destinado a abordar as cisões entre os Mebêngôkre, é que a reelaboração das relações parentais
é uma forma imprecisa sempre à ordem do dia.

Rop o bicho ambivalente

Quando se faz referência à movimentação de caçadores pela floresta, deve se considerar que
na maioria das ocasiões estas não ocorrem em separado ou através de bandos unívocos
conformados por apenas homens. Com frequência os grupos são integrados por outro fiel
predador que gosta tanto ou mais de carne do que os Xikrin. Me refiro aos cães, já que a sua
presença, ainda que de forma teimosa pois nem sempre são convidados, reformula a
experiência cinegética na floresta. Os Xikrin costumam manifestar a sua encrenca com seus
cães quando querem que estes não os sigam. Sustos e chutes são as formas encontradas para
tentar afastar-lhes85. Em contraparte, quando querem a companhia daqueles, basta colocar

85
A respeito disso, Philippe Erikson (2012) descreve num sentido contrário. Para os Matis é uma regra predileta
que os animais, em especial os cachorros, sigam aos seus donos por toda parte. O autor propõe que os cachorros
foram gradualmente integrados aos espaços domésticos da mesma forma que acontece com os animais silvestres,
ganhando hoje um lugar especial nos espaços onde acontecem as refeições.
159

umas botas, estalar um facão contra o chão ou emitir algum assobio que os cães estarão
disponíveis86.

As aldeias Xikrin são caracterizadas pela variedade de animais que circulam entre os quintais
e as casas. Contudo, o mamífero mais comum hoje é o rop, denominação que eles usam para
os cachorros. Uma família pode chegar a possuir múltiplos cães, não existe um código em
relação a isso, até porque os animais costumam compor seus próprios bandos, sendo que se um
caçador vai para o mato levando consigo seus cachorros, existe uma grande probabilidade de
que cachorros pertencentes a outros donos estejam juntos. Um lugar em comum para os cães é
o ngàb, o qual muitas vezes acaba se tornando um refúgio durante as épocas de fortes chuvas.

Pensar num cachorro como um xerimbabo, ou melhor, como um animal de criação, é uma
questão que requer ser abordada com bastante cuidado, já que se um cachorro é de certa forma
um ser que gera atenção e carinho, é também um instrumento essencial para certos tipos de
caça na floresta. Por exemplo, pensar na caça de veados sem levar um cachorro é uma questão
pouco provável hoje. Nesse sentido, os cães podem ser equiparados até um certo ponto como
animais de criação, mas não são necessariamente aquilo.

Trabalhos como o de Vander Velden (2010) entre os Karitiana mostram como os cachorros
integram a vida doméstica na aldeia e a vida das expedições na mata, enquanto os donos adotam
uma postura completamente protetora dos animais, sendo tratados como filhos. Para os
Karitiana os cachorros são indispensáveis, retribuindo o carinho da criação com uma intensa
disposição a proteger seu dono na floresta87. Disse um dos interlocutores do autor: “cachorro
é companheiro no mato, por isso cria cachorro: para espantar bicho bravo. Andar no mato
sem cachorro é perigoso (2010, pp. Ibíd, 156)”.

Descola (2006) também descreve a relação dos Jívaro com os cachorros como uma íntima
conexão com caráter de proteção entre as partes na floresta. Não obstante, o autor elucida que
o cuidado dos cães concerne a um aspecto precedido pelas mulheres que dão a pauta para os
cachorros, silenciando-os na aldeia ou animando-os na caça, são elas as que cuidam dos

86
“Tak tak...” para a batida do facão no chão e, “woo woo...” para um assobio humano, são algumas das
onomatopeias que poderiam ser usadas para descrever a relação por signos entre cachorros e humanos. Ver
capítulo final, onde aprofundo sobre as interações semióticos humanos e outros-que-humanos.
87
Assim como um cachorro outorga proteção nas expedições na floresta, este também está exposto a inúmeros
perigos, sendo comum que haja perda de cães em certos tipos de caça que implicam confrontos diretos, é o caso
da caça de queixadas. Inclusive, como descreve Galvão (1976), os cachorros são suscetíveis de sofrerem panema
(azar) por causa do seu dono. Não encontrei essa evidência direta entre os Xikrin, mas considero importante
considerá-la como referente para entender as dimensões que conformam a relação entre cães e seus donos na
Amazônia.
160

animais, além de serem as que os controlam. Uma situação semelhante é descrita por Kohn
(2016) entre os Ávila Runa, onde as mulheres, parecendo ser mais próximas dos cães, em um
sistema de interações e alteridades, se questionam sobre os sonhos que estes tiveram um dia
antes de um infortúnio com uma onça, onde três cães encontraram a morte. Na visão das
mulheres, elas ou mesmo os cães deveriam ter previsto o encontro e agido.

Contudo, para os Xikrin do Bacajá a relação com os cachorros pode ser um pouco mais distante
da descrita por Vander Velden para os Karitiana. Além de que, ao contrário dos Jivaro ou dos
Ávila Runa, o cuidado dos cachorros recai mais nos homens do que nas mulheres. Por outra
parte, ainda que os cachorros sejam companheiros comuns entre os caçadores, existindo uma
certa disposição de cuidado dos humanos para com os cães, essa disposição é sutil, constituindo
uma relação de poucos cuidados e proteção desleixada.

Para tentar elucidar a questão considero importante definir o que aproxima e distancia os cães
do lugar de outros animais de criação. Quando se fala em xerimbabos, relaciona-se com
animais silvestres os quais, sendo incorporados num círculo doméstico, são agentes
dinamizadores de afetos: mulheres, crianças, idosos e também homens adultos depositam em
animais adotados bastante estima e cuidado, chegando em alguns casos a conceder nomes
particulares. Para os cachorros, essa condição poderia ser aplicada até um certo ponto, já que
um cachorro -sem ser um grande canalizador de afetos ou sem ser um claro receptor de carinho-
pode compartilhar momentos importantes no círculo familiar do qual faz parte.

Entretanto, há exceções. Por exemplo, durante o meu campo chegaram um par de filhotes de
cachorro conhecidos comumente como “americanos”, equiparados à raça Foxhound-
americano. Bep-tok-Picapau, que se fez responsável por eles, os acolheu de forma especial, os
alimentando com vísceras de animais, farinha e uma certa ração que conseguiu numa vila
próxima da Terra Indígena. Os filhos de Picapau levavam a cada certos dias os filhotes até o
rio e davam banho neles, limpavam as sujeiras e fuçavam no meio do pelo para conferir se
tinham algum tipo de pulga ou carrapato. Ademais, o Picapau adotou como medida de
prevenção afastar os outros cachorros da aldeia. Com frequência era possível ouvi-lo enxotando
os cães que se aproximavam da sua casa. Com o tempo esses cuidados foram diminuindo,
embora o par de filhotes sempre tivessem um trato diferenciado.

A respeito dos cuidados com cães, Catherine Howard (2001, pp. 240-258) faz uma ampla
descrição da relação que crianças e mulheres Wai Wai estabelecem com cães e como o cuidado,
inclusive sobre o lugar onde os cães pernoitam, é definido. Ademais, o tipo de raça é um fator
161

que determina a atenção que se dá para cada animal. Cachorros vira-lata são deixados soltos à
noite para ajudar na vigilância da aldeia, enquanto cachorros como o difundido terrier-
brasileiro é deixado preso no interior das casas, podendo ter sua própria cama. Esse contexto
é muito semelhante com o que eu me deparei no episódio de Bep-tok-Picapau, sua família e os
dois filhotes de foxhound-americano.

Consultando o meu interlocutor sobre a relevância dos seus cuidados, ele me disse “cachorro
americano consegue sentir veado mais longe, eles cheiram os bichos mais do que os outros,
são cachorros fortes”. Ademais, complementou indicando: “cachorro americano é mais fraco
quando filhote, mas depois tu vai ver que eles são melhor que vira-lata...”. Enquanto aos
nomes, é raro encontrar que um cachorro possua denominação. Não encontrei cachorros que
tivessem nomes propriamente designados como forma de incorporação ou socialização.
Existem denominações com um sentido genérico de apelidos, por exemplo, um dos cachorros
de Picapau era chamado de “peteca”.

Gabriel Barbosa (2007, p. 115) se depara em seu trabalho junto aos Aparai e Wayana com uma
situação semelhante à descrita. O autor encontra que os cuidados com os cachorros podem
variar de acordo com os donos e famílias às quais os cães pertencem. Há pessoas que dão banho
constantemente nos cachorros e elaboram comidas específicas, assim como há outros que
deixam os cães passando fome, cheios de pulgas e carrapatos. Barbosa identifica que os
cachorros são um meio de troca definido entre essas etnias, chegando em casos concretos a
serem equiparados a espingardas e rifles. No caso de Picapau e os filhotes de cachorro
americano, existia um valor imbuído pela raça e os cuidados que a família dava para os cães,
chegando a ser materializado na comercialização de um dos cães, trocado por um dispositivo
eletrônico, negócio feito entre Picapau e o enfermeiro da aldeia.

Contudo, talvez o aspecto mais importante para entender a distância entre cães e outros animais
de criação se refere a que os cachorros não são animais silvestres os quais, sendo capturados,
passaram a ser humanizados. Os cachorros para uma grande parte dos povos indígenas
amazônicos, foram incorporados recentemente e vieram através dos kubén (não indígenas).
Para o caso dos Xikrin do Bacajá, os relatos registrados mostram que a relação histórica que
eles têm com cães não ultrapassa o século passado, sendo propriamente incorporados na vida
local da aldeia durante a primeira metade do século XX, ou seja, um pouco antes do processo
de contato e pacificação. Com isso, há uma diferença marcante em relação a outros animais de
criação, já que os animais silvestres apresentam uma origem selvagem a qual é gradualmente
transformada. Se os cachorros não têm essa gênese (pelo menos não no contexto aqui
162

apresentado), é possível que essa seja uma razão para não serem equiparados na prática aos
outros mamíferos que habitam as aldeias.

Apesar disso, há nos cães uma energia vital que os faz serem proliferantes nas aldeias e
protagonistas na floresta. Os cachorros possuem uma atitude agonística ao serviço dos seus
donos, a qual, sendo apurada, faz de um cão um agudo caçador. Se por uma parte os cães são
figuras que chegaram até os Xikrin já sendo domesticados, por outra, precisam demonstrar uma
certa atitude selvagem para serem bem recebidos no círculo social. O que define essa dupla
relação é o lugar onde cada atitude é assumida. Ou seja, cachorros devem ser agressivos e
predadores na floresta, mas sempre submissos e passivos na aldeia. Esse revezamento de
atitudes define o ideal esperado de um cão.

A respeito disso, Garcia (2018, p. 420) descreve como nos Guajá a relação com os cachorros
ganha forma através do controle. Num primeiro momento, a presença dos cães na aldeia é
reprimida com veemência evitando latidos, ruídos e sua circulação nos arredores das casas.
Disse o autor que os cachorros não têm tranquilidade na aldeia igual aos outros animais de
criação, sendo constantemente enxotados e deixados à sua própria sorte. Já num segundo
momento, o da caça, os cachorros são estimulados a latir e agir com violência e balbúrdia. Os
donos se comunicam constantemente com seus cães na floresta, a fim de fazer com que o
animal fique excitado e se conecte com sua presa.

Uirá encontra para os Guajá, assim como Descola (2006) para os Jívaro, que os cachorros são
assemelhados com as onças88, lhes outorgando uma gênese baseada em ações predatórias. A
ambivalência dos cães sobressai aqui, já que se por um lado são vistos com um nível selvagem
semelhante ao das onças, por outro, são uma espécie de avesso dos felinos, pois a atitude
agressiva dos cachorros é canalizável, inclusive pelas mulheres. Conclui Garcia que o lugar
dos cachorros entre os Awá Guajá é de uma certa forma indeterminado, pois eles nem são
vistos como pequenos xerimbabos de estimação, nem são onças, no sentido agressivo que
evoca esse predador. Assim, “seu lugar continuará sendo todos e nenhum” (pp. Ibíd, 421).

Para os Xikrin, os cachorros também possuem uma grande semelhança com as onças. Inclusive,
a categoria rop com a qual são identificados, é a mesma que se usa para chamar os grandes
felinos, cabendo um mínimo de variação entre onças pintadas rop-krori e onças pretas rop-

88
Segundo o autor, os Guajá classificam os cachorros de acordo com a cor do pelo. A cor determina as habilidades,
concedendo especialidades para rastrear determinadas presas. Nesse sentido, a classificação para os cães se inspira
na das onças. Por exemplo, um cachorro de cor escura ou preta, é especialista em rastrear cutias, isso porque
segundo os indígenas, as onças-pretas têm preferência por se alimentarem desse mesmo roedor. Para ver uma
classificação mais detalhada consulte Garcia (2018, pp. 422-423).
163

tukre. Ademais, se considera que um bom cachorro deve rastrear e pegar mamíferos medianos
como veados e queixadas, e roedores como pacas e tatus, animais preferidos pelas onças.
Contudo, acredito que não seria possível relacionar a semelhança entre cachorros e onças com
uma gênese selvagem nos caninos, o qual poderia ontologicamente equipará-lo a algum outro
xerimbabo que após uma humanização, deixa os princípios selváticos e se incorpora numa rede
de parentesco adscritas a uma casa específica.

Havendo feito uma tentativa por entender a ambivalência dos cachorros nas aldeias Xikrin,
acredito que seja possível reforçar a proposta de outros autores nas quais cachorros são animais
de estimação e instrumentos de caça. São duas facetas sempre presentes, uma não omite a outra
e em certos momentos se complementam. Se um cachorro é eficiente na sua experiência
cinegética, é digno de estima, configurando um cenário em que sujeitos de caça agenciam
afetos.

Nas primeiras semanas de campo conheci um grande cachorro que estava nos seus últimos
dias. Era um macho de raça americano que tinha morado durante vários anos em Pytakô. O
coitado tinha levado uma mordida numa das suas patas dianteiras durante um confronto contra
um bando de queixadas. Após vários dias sem atendimento, a ferida estava infeccionada de
forma irreversível. Meití, sem ser propriamente o dono do animal, assumiu alguns cuidados
paliativos que o enfermeiro da aldeia tinha repassado para ele. O animal foi tratado durante
alguns dias com anti-inflamatório e antibiótico, porém, sua situação foi piorando até não
conseguir mais ficar em pé. Sua perna acabou sendo amputada pelo enfermeiro que se
prontificou.

Contudo, após a cirurgia, nem Meití, nem Kwynhdjy continuaram os cuidados necessários com
o cão e a ferida nunca sarou. Pelo contrário, o cachorro mostrou uma aparência anêmica e não
tardou muito em falecer. A última vez que lhe vi estava perto de uma torneira de água que
abastecia a casa de farinha, procurando saciar sua vontade. Lhe ajudei enchendo uma bacia e
deixando-a do seu lado. Não obstante, o animal já tinha aspecto de um moribundo que procura
um lugar confortável para passar suas últimas horas. De fato, no dia seguinte Kwynhdjy o
encontrou ali morto.
164
164
165

Prancha 6: Companheiros fiéis

Fotos 1, 2 e 3: Cachorros e donos são inseparáveis durante os períodos de andança fora da


aldeia. As trilhas são bastante percorridas pelos cães, demonstrando que eles dominam o
circuito de caminhos no interior da floresta. Estradas e rios são cenários onde os cães correm
e nadam, cheios de excitação durante uma caçada. Na popa do casco, Kwynhdjy estimula seus
cães a cruzar o Bacajá e segui-lo na margem ocidental. Na estrada, Tedjire excita os cachorros
para entrarem na floresta em busca de jabutis.

Foto 3: Muitos dos filhotes são tratados com apreço no interior dos grupos familiares, uma vez
que alguém assume a figura de dono responsável pelo cão. Bep Tok dá um beijo na Peteca
enquanto aguarda a refeição no quintal de sua casa. Geralmente, crianças e velhos estabelecem
relações mais estreitas com os cães, concedendo privilégios na alimentação e cuidados, o que
confere uma posição de xerimbabo, ainda que temporária.

1 2

3 4
166

Da mesma forma que Garcia (2018, p. 428) descreve sobre uma cadela na aldeia Juriti dos
Guajá, os cachorros idosos ou feridos numa aldeia Xikrin acabam por ser abandonados para
morrer. Não sendo animais que podem ser soltos ou abandonados na floresta, pois não provém
dali, são apenas esquecidos entre os vivos até que a morte conclua com suas vidas. O cachorro
ferido na pata era um velho cachorro que tal parece, teria pertencido a um caçador que morou
anos atrás em Pytakô. Após uma cisão, o dono foi morar em outra aldeia, abandonando o
cachorro avançado em anos. Ninguém o assumiu propriamente como dono. Ainda assim, o
cachorro era um dos machos dominantes da aldeia, tendo garantido um lugar nas expedições
de caça. Nas aldeias Xikrin, é possível encontrar com certa frequência que cachorros doentes
ou feridos, são deixados à sorte quando seus donos se mudam de local.

Uma vez que o cachorro sofreu o acidente na pata, se materializou o destino predestinado pelo
dono tempo atrás: a morte do mesmo parece ter começado quando sofreu o abandono, pois
ninguém seria responsável pelo que acontecesse com ele. Apesar de tudo, consultando a
Kwynhdjy, me disse que sentia um afeto pelo cão, pois este tinha lhe facilitado vários tipos de
presas durante uma parceria mantida há um par de anos. Tal parece, ele sentia uma certa
responsabilidade sobre a última etapa de vida do animal e por isso tinha tentado salvar a vida
do mesmo. Não tendo conseguido, lhe deram sepultura. Meití e Kwynhdjy levaram o cadáver
até uma área periférica da aldeia e abrindo uma cova, enterraram ali o corpo.

Vale dizer que o tratamento conferido ao cão do relato foi, senão um caso especial, pelo menos
sim, um caso relativamente inusual. O que tenho inferido através de relatos de interlocutores e
observações diretas em campo é que a população de cachorros que atinge um estágio idoso é
mínima, sendo que a maioria de cães perecem ainda na sua juventude devido a doenças e
ataques de predadores silvestres, principalmente onças e bandos de queixadas. Sem poder
concluir de modo generalizante que os Xikrin enterram os poucos cachorros que atravessam o
desafio de uma vida cheia de perigos, posso afirmar que o afeto construído entre caçadores e
cães é o fator ponderante do tipo de atenção que levam os animais para cada contexto.

De forma conclusiva quero me aderir à reflexão relacionada ao lugar variável dos cachorros,
pois encontro que eles não possuem um lugar e função estática, sendo parte de um e vários
âmbitos ao mesmo tempo. Da mesma forma, a relação dos donos com seus cães não é
claramente padronizada, não sendo possível estabelecer um sistema de regras definido, já que
teriam que ser incluídas exceções com certa frequência. Contudo, noto que o papel dos cães na
cinegética Xikrin é vital. O lugar como companheiros de caça é mais relevante do que
propriamente como animais de criação e xerimbabos. Isso fica claro quando se aprofunda sobre
167

as técnicas usadas pelos caçadores. Portanto, cabe ainda um papel importante para ser
explanado a respeito do lugar dos cachorros nas expedições, o qual abordarei no capítulo 4,
referido às formas alternativas de caça.

Amiy tá a revitalização da força

Antes de encerrar este capítulo, considero definir uma outra relação entre homens Xikrin e
outros-que-humanos cuja funcionalidade parece ser fundamental para ter uma noção ampla da
pessoa masculina Xikrin. Me refiro ao ato de bater em ninhos dos marimbondos e a alteridade
sobre a qual esse ato se sustenta. Na literatura sobre os grupos Jê tem se dado especial atenção
a essa prática, associada ao que poderia se considerar um ritual de passagem ou então uma
prova de valores masculinos. Amiy tá, ou bater no ninho de marimbondo, é significativamente
um teste relacionado com coragem, força, e atitude agonística, representando o ataque aos
inimigos (sejam estes humanos ou outros-que-humanos). Vidal (1977), Cezar Melatti (1978),
Posey (2002) e Bollettim (2013) mostram que esse ritual está intimamente relacionado com o
cenário da guerra, inclusive sendo uma representação do mito do conflito entre os homens
primigênitos e os besouros: “Antigamente os Kayapó eram como outros animais (...). Em uma
grande batalha entre Kayapós e vespas, os guerreiros valentes e destemidos dos Kayapó
derrotaram o krã-kam-djware (chefe das vespas). Os Kayapó aprenderam os segredos das
vespas observando cuidadosamente o comportamento delas e aprenderam sobre o seu
'poder'...” (Posey 2002, p, 90 tradução minha). Portanto, são as vespas -incluindo os
marimbondos- um modelo de atitude para os Mebêngôkre.

A equiparação entre bater no ninho de marimbondos e a guerra, no sentido histórico dos


conflitos entre os Mebêngôkre com outros grupos étnicos e os kubén, também toma forma
através da pintura corporal. A estética coincide por um estilo sem traços complexos, cobrindo-
se o corpo com jenipapo e urucum, simbolizando o sangue (urucum-vermelho) e a morte
(carvão-preto), uma pintura para a guerra (Vidal, 1987; 1992)

O ritual em si consiste em um modelo de expedição onde principalmente homens menoronure


são convocados por um velho mebenget para irem até um local onde previamente foi
identificado um grande ninho de marimbondo. Geralmente, os mebenget se deslocam pelo
menos um dia antes para fazer uma busca de ninhos. A cor dos insetos, o tamanho, a
localização, são fatores que influenciam a escolha. O enxame deve se localizar em partes altas
168

das árvores, já que o desafio consiste em os meninos subirem através de uma escada até o
enxame e dar um chute nele. Progressivamente vão subindo um atrás do outro e tirando uma
parte do ninho até que alguém consiga derrubá-lo por completo. Indicam meus interlocutores
que um ninho dá em média para que doze jovens consigam passar pela prova, mas varia de
acordo com o tamanho do ninho.

Os velhos são fundamentais nessa atividade, sendo os responsáveis por convocar e estimular
os menoronure através de falas no ngàb, indo buscar os enxames na floresta, construindo a
escada pela qual subirão os menoronure através da árvore e, ocasionalmente, colocam no
tronco um tipo de substância amiy kanne (veneno/remédio de marimbondo) composto por uma
mistura de plantas silvestres. Isso com o propósito de excitar os insetos e deixá-los mais
agressivos.

Ainda que amiy tá seja uma atividade organizada por mebenget, direcionada a menoronure, a
participação de outras categorias e das mulheres é constante. Outros homens como os
menoronure-tum e os mekranure podem chegar a bater no ninho dos marimbondo. E as
mulheres, geralmente mães e irmãs, acompanham e compartilham evocativamente, através do
choro e lamento, a dor dos meninos, sendo também as principais responsáveis pelo cuidado das
feridas dos homens após o ritual.

Por outra parte, se bater no ninho de marimbondo é símbolo de guerra, ou de uma atitude
predatória, é também uma forma indicativa de que homens que participam do ato ritual, sempre
público, são homens em capacidade de progredir de categoria de idade ou adquirir
independência do círculo matrilocal composto por sua mãe e avós. No passado, isso seria visto
de duas formas, por uma lado, um menino que participa ativamente do ato, é um menoronure
que pode habitar e se consolida no ngàb. E, por outro lado, seria um indicativo de que está
pronto para se desposar. Contudo, segundo Dreyfus (1963) e Vidal (1977), o amiy tá não
deveria se considerar como ritual de passagem. Dada sua constante e repetitiva prática ao longo
do tempo entre os homens de categorias de idade menoronure e mekranure. Para as autoras, o
fato de os homens se submeterem a essa prática não apenas para provar que podem morar no
ngàb ou que podem se casar, tira o caráter formal da passagem e faz deste ato o que Vidal
chama de “prova” de coragem (ibid, 125).

A esse respeito Bollettin (2013) insiste em que amiy tá possui uma ampla versatilidade apoiada
por uma alteridade dinâmica entre os homens Xikrin e os marimbondos. Dita alteridade tem
como princípio colocar em vigência o caráter agressivo dos marimbondos, através de uma
169

progressiva incorporação deste através da dor experimentada pelos Xikrin que participam do
ato. Isso quer dizer que a experiência física da dor pelas picadas dos marimbondos é uma forma
de atualizar a força de um guerreiro Mebêngôkre. Nessa lógica, a submissão de um homem a
esse ato ritual em vários momentos da sua vida, inclusive sendo casados, toma maior sentido.
Além de demonstrar a capacidade para integrar uma categoria de idade ou uma nova casa
matrilocal através de casamento, demonstra que amiy tá corresponde a uma forma experiencial
de recuperar valores intrínsecos à pessoa masculina, no caso a força e a coragem.
Adicionalmente, a prática acontece em paralelo com o nascimento e crescimento de filho
homem, se prolongando até que o filho está em idade de começar a participar do amiy tá, por
sua conta.

Bollettin (2013) ilustra que, durante o seu trabalho de campo, presenciou como após um
campeonato de futebol onde os Xikrin do Bacajá perderam para os Xikrin do Cateté, um
mebenget da aldeia Morotidjam, considerando aos jogadores fracos e sem coragem para lutar
pelo título, decidiu convocar um amiy tá com o propósito de que o evento retornasse aos
menoronure sua força e, por vezes, sua vontade. Ouvi relatos que durante os anos que
precederam a construção da usina UHE Belo Monte, os Xikrin organizavam amiy tá em
paralelo às mobilizações e à participação em reuniões e protestos em Altamira. Isso tinha como
propósito deixar aos guerreiros mais fortes para os confrontos de índole administrativa, como
audiências públicas.

Assim, em concordância com Bollettin (2013), parece-me que essa prática é um ritual de
passagem, mas também, um sistema de provas, como indicou Vidal (1977), do qual depende
uma pessoa masculina para recuperar sua coragem/força e evocar seu prestígio que possa ter
sido vulnerado por alguma razão. Ademais, para estender a fortaleça aos seus filhos.

Em Pytakô, durante o meu campo, não houve propriamente amiy tá. Contudo, Bep Tok-onça,
se referiu durante vários momentos à prática como uma ausência que estaria provocando a
distração dos meninos na aldeia. Para o velho, os menoronure e mekranure estavam fracos e
em estado mukangare – parados. Isso supostamente seria evidenciado pelo estado das roças e
a pouca circulação de carne de caça. Durante os períodos em que lhe acompanhei na sua roça,
havia pelo menos dois ninhos de marimbondo próximos, um deles em um pé de mamão. Com
frequência fazia referência àquele enxame, indicando que devíamos organizar uma vinda com
mais homens para bater nesse ninho.
170

Em uma ocasião, me aproximei do pé de mamão, pois considero os marimbondos


potencialmente agressivos, mas não ao nível de significar um perigo iminente. Por exemplo,
durante o meu campo dei muita mais atenção a evitar picadas de aranhas, bastante comuns nas
bananeiras nas roças. Onça se mostrou surpreso, me advertiu da agressividade dos
marimbondos. Inclusive, um par deles se aproximaram de nós, aparentemente sem vontade de
nos atacar. O velho, empunhando seu facão começou a lutar com os dois marimbondos e
pareceu uma cena na qual o empenho e energia que Onça colocou parecia desproporcionado.
Não obstante, penso que esse episódio não se refere apenas a uma ação que possa ser
dimensionada em termos de gasto de energia ou força utilizada, pois na verdade, parece ser
mais uma evidência sobre uma certa postura ontológica. Na qual, os Mebêngôkre concebem os
marimbondos como guerreiros em equivalência, seres de alta bravura, expertise, trabalho
grupal e disposição agonística. Por isso a importância de entrar em alteridade com essa espécie
por meio da batida do seu ninho e as posteriores picadas.

Para finalizar, diria que amiy tá corresponde a uma atividade fundamental da pessoa masculina
Xikrin, sendo talvez a atividade mais vistosa enquanto às expedições que vinculam os
menoronure. No entanto, me arriscaria a dizer que não é a principal, pois no âmbito da vida
cotidiana, a caça de mry de mediano porte (como pacas, caititus e macacos), de grandes mry
(como antas) e de mry coletivos (como os queixadas), como consequência do domínio de
espingardas através do desenvolvimento de skills, correspondem a condicionantes essenciais
para que a pessoa masculina venha a se consolidar e, em consequência, simultânea, um homem
se torne caçador.

Dessa maneira, dentro do escopo da minha análise, entendo que o ato amiy tá opera
principalmente como um componente complementar da pessoa masculina, pois a assiste, lhe
ajudando a ser, ou então de voltar a ser, algo que já foi, em termos de fornecer a recuperação
de valores como a força e a coragem. No entanto, é o engajamento cinegético o que de fato faz
com que uma pessoa masculina venha a ser. Isso ficará mais evidente nos próximos três
capítulos, quando a minha etnografia expuser como (formas e tipos em que) os menoronure se
inserem na rede de interações com a floresta. Seja através de experiências horizontais dentro
da sua própria categoria de idade ou através de redescobertas dirigidas em interação com
categorias de idade superiores, os menoronure se tornam progressivamente, na prática, parte
de uma comunidade de homens caçadores.
171
171

12. Merettí andando em Pukakamrek


172

PARTE II

TÉCNICAS
173

Capítulo 3. Formas de caça: a propósito de trilhas

Neste Capítulo, será apresentada a configuração dos lugares e a mobilidade proporcionada por
meio do ato de andar na floresta (bà kam tem). Serão explicadas as trilhas (pry) e como elas se
constituem como o cenário principal que possibilita o transito de humanos e não humanos,
criando campos de significados interdependentes. Estilos, procedimentos, sequencias, ritmos,
gestos, entre outros aspectos, serão detalhados com o propósito de evidenciar as formas
técnicas pelas quais os homens Xikrin experimentam caça. As trilhas serão definidas em dois
tipos (longas e curtas) com o propósito de esboçar uma análise sobre as formas como se
configura a cartografia da mobilidade, os estilos de incursões e a participação e função das
categorias de idade masculinas.

A floresta como rede

Enquanto escrevo essas linhas, deve ter um Xikrin na floresta de Pytakô empunhando uma
espingarda, olhando para os galhos das árvores, conferindo seu percurso enquanto avalia
qualquer mudança no tempo. Por sua vez, seu olhar deve estar reparando nos traços formados
no chão, procurando no solo úmido os registros de corporalidades que podem ter transitado
pelo mesmo lugar. Qualquer anomalia na terra, como um conjunto de folhas removidas ou uma
pegada, levam a uma breve inspeção com o objetivo de determinar a espécie que a fez e o
tamanho da mesma, mas principalmente, o grau de ressecamento da marca e, por conseguinte,
o período em que seu autor passou por ali. Umas quantas horas são determinantes para decidir
se o rastejamento progride.

É possível que esse caçador o qual imagino na floresta esteja tendo um dia favorável quando,
seguindo o rasto de dois cascos colados e de aspecto acanhado, achou um veado mateiro
distraído pelo banquete de uma árvore que dá seus frutos durante o período de chuvas em
Bacajá. Cabe pensar que se este caçador não levou consigo seus cachorros, teve que proceder
com certo sigilo e contundente rapidez na hora de carregar sua espingarda com um cartucho
vinte milímetros e tentar acertar o peito do ungulado.

Tendo obtido uma carne de mry, estimada como macia e pouco comum, deve estar agora se
preparando para retornar, pensando na possibilidade de um banquete de nhiak-yú, em formato
174

de jucupú. As vísceras serão abandonadas, enquanto um trançado de embira cruzará o peito do


caçador. Ele irá carregar a presa em suas costas e, ao mesmo tempo, segurar a espingarda,
mantendo-a sempre próxima ao braço mais habilidoso para atirar.

O percurso que hoje terá seguido o caçador, provavelmente tenha se iniciado em uma roça e
entrado através de uma ibê - capoeira - que apesar de estar fechada serve como ponto de
conexão com a floresta. Ali, o caçador pode ter tomado como ponto de referência para retornar
o encontro com alguma grota usada em outros momentos para ngô ka oh - bater timbó. Ou seja,
o caçador certamente reconhece cada aspecto do lugar por onde está efetuando a sua caçada.
Ele está se apoiando numa espécie de caminho que pode prolongar-se por vários quilômetros.
Portanto, o percurso seguido pelo caçador até o encontro com o mateiro não parece ser um
trajeto improvisado ou apenas definido pelo rastejamento até o animal.

Me pergunto, se ele tomasse um rumo que o levasse até um lugar onde ele não se lembre de ter
pisado, o que aconteceria? Com frequência, enquanto acompanhei as expedições em Pytakô e
Bacajá, notei que os caçadores optaram por seguir certos padrões de caminhadas ao longo de
um certo perímetro. Em outras palavras, os caçadores, me parece, preferiam voltar em lugares
onde já tinham transitado algum tempo atrás, apesar de não terem conseguido encontrar presa
alguma, ao invés de tentar alternativas que os levassem a uma outra sorte. Contudo, notei
também que os mry pareciam gostar de voltar pelos lugares onde aqueles caçadores passaram,
ou seja, tanto para um como para outro poderia ser importante retornar a cada certo período no
mesmo lugar. Isso, ao final, dá uma possibilidade para que o caçador mude sua sorte.

Por outra parte, lembro-me de uma experiência concreta que veio em forma de certa tragédia
durante a passagem de ano de 2016 em Pytakô, graças a que um caçador Xikrin decidiu
explorar espaços pouco conhecidos estando frente à possibilidade de concluir a captura de uma
presa previamente ferida.

Quando você atira num bicho e ele corre, ele vai muito longe. Corre e corre... ele
sabe que vai morrer, mas não quer se dar para nós, ele prefere se esconder. Se você
ferir ele, tem que ir atrás. Eu fui atrás, disparado, não podia perder. Eu estava com
Kudjwu naquele dia. O pastor da igreja tinha chamado para ir todo mundo caçar na
véspera do Natal. A gente queria fazer uma festa, era 23 de dezembro, era para ter
metoro (dança). Eu fui caçar com Kudjwu, a gente achou queixada e saiu correndo
atrás dos porcos, mas eu acho que ele (Kudjwu) pegou outro caminho e depois
desistiu, deve ter voltado. Eu sei que eu não queria voltar sem nada, eu fui atrás.
175

Não sei quanto tempo deu, foi até rápido, mas eu não me lembro quanto tempo
passou...(silêncio) eu estava de cabeça nos porcos... deixei meu facão para trás e
cruzei a espingarda nas costas, mas de tanto correr os cartuchos caíram da minha
calça. Quando reparei, só tinha um cartucho... (silêncio) fiquei sem nada. Eu soltei
o facão porque não tava conseguindo ir mais rápido, mas a gente não pode deixar
um facão para trás, não sei que deu em mim que deixei. Eu acho que parecia fácil
pegar o bicho e voltar.

A gente costuma ir muito para o mato, meus pais andaram muito pelas serras, mas
eu mesmo nunca andava por aqui (Pytakô), eu morava na aldeia de Bacajá e eu só
fui para Pytakô por causa da festa. Eu nunca tinha caçado por essa serra, atrás da
aldeia. Naquele dia estava chovendo também, eu só sei que tentei voltar depois de
perder o bando de porcos e acabou que fui para outra parte. No dia seguinte, acordei
muito cedo e tentei pegar o caminho de volta, mas nunca mais achei89...

Depoimento sobre extravio e desorientação na floresta. Narração de Juca

A experiência de Juca foi um dos primeiros relatos que escutei no meu campo desde que os
homens começaram a me levar nas expedições de caça, já que parece, servia como forma
ilustrativa de me advertirem sobre alguns riscos na mata. As primeiras versões a respeito do
caso dele me levaram a fazer um par de perguntas triviais: não é acaso igual a floresta de Bacajá
à de Pytakô, estando apenas a uns cinquenta e sete quilômetros (linha reta) uma aldeia da outra?
Aliás, Como pode um caçador indígena que nasceu e se criou na região do rio Bacajá se perder
e passar mais de quarenta dias nessa situação?

Pois bem, quando acompanhei os caçadores de Pytakô, notei que tinham um certo padrão de
retornar a cada certo tempo nos mesmos lugares. Enquanto os caçadores da aldeia Bacajá, isso
era quase que um repertório obrigatório, como se fosse uma norma social. A particularidade é
que os caçadores de Bacajá optam por se deslocar um longo período pelo rio antes de encostar
a canoa e entrar propriamente na floresta. Se a minha questão inicial era como alguém dali
pode se perder, a rareza não é propriamente essa, senão, como alguém opta por sair dos lugares
definidos para transitar pela floresta e se adentrar em partes onde não reconhece os espaços.

O que o Juca relata consiste num processo de estranhamento do lugar onde transitou, apesar de
ele ser um mekrare (homem adulto) com anos de experiência andando pela floresta próxima
da aldeia Bacajá. A visita na aldeia de seus parentes e a entrada na floresta dessa sub-região,

89
Juca passou 41 dias perdido na floresta das imediações da aldeia Pytakô. Foi encontrado na primeira semana de
fevereiro de 2017 por Kudjoeire, nas imediações da estrada que conecta à aldeia.
176

significou um choque tão contundente na orientação de Juca, que ao invés dele voltar pelo
caminho por onde entrou, passou dias andando e se afastando cada vez mais deste (ver figura
10).

Figura 10. estimativa de Juca sobre os percursos feitos durante os dias de extravio no mato90.

Esse episódio leva a pensar que não basta apenas possuir um amplo domínio sobre formas
técnicas de proceder na floresta, pois ainda há um fator fundamental que deve ser considerado
na experiência cinegética, referido aos tipos de espaços ou lugares onde os caçadores transitam.
Por isso, Juca disse a respeito das razões do seu extravio: “A gente costuma ir muito para o
mato… mas eu mesmo nunca andei por aqui…”, dando a entender que a orientação espacial
de um caçador se limita aos espaços assimilados. Ademais, é um indicativo de que os caçadores
vivenciam a floresta através de um sistema concreto de lugares retroalimentados pela memória
consolidada através de experiências ao longo de suas vidas.

90
Ainda que esse mapa não possa ser usado com rigor já que seu autor, não tem certeza dos lugares por onde
transitou, a sua experiência na floresta lhe permitiu ter noção dos tipos de deslocamentos que realizou e os pontos
onde retornou ao longo das suas tentativas de voltar para a estrada. Inclusive, ele afirma enfaticamente que dentro
da sua percepção, soube em algum momento que estava perto da aldeia (ponto 9 na figura 10), mas acabou se
confundindo e retornando pelo caminho previamente transitado.
177

A relação entre os lugares e a memória também tem sido abordada entre os Kayapó por Zanotti
(2016, 193). A autora se debruça entre as relações ecológicas que vinculam aldeia, roças e
lugares de transito florestal, demonstrando que esses lugares estão interconectados por
caminhos florestais. O que por vezes, corresponde a cartografias que denotam reconhecimentos
e um leque de circulação dos mebêngôkre através de locais já conhecidos, vivências que com
certa frequência transcendem aos caminhantes atuais e se instalam no repertório da memória
coletiva, dando sentido às interações.

Além disso, Coelho de Souza (2017) entre os Kisêdjê e Moraes (2018; 2019) entre os Kayapó,
propõem abordar a categoria pyka (comumente traduzida ao português como “terra”) entre
esses povos Jê, a partir de uma representação múltipla. Nessa, se dá lugar não -apenas- a uma
representação física do que se pisa (chão no sentido estrito), senão a uma significação de
lugares a partir do reconhecimento e a nomeação, ou seja, uma T/terra como sujeito e processo
de socialidade criativa onde é possível evidenciar uma polissemia de significados desde a
concepção indígena até a visão estatal (Coelho de Souza, 2017).

Pyka, de fato, como é usado no cotidiano dos Xikrin, concerne a múltiplas formas, sendo
indicativo de terra física onde, por exemplo, pode ser aberta e plantada uma roça. Mas a palavra
também se refere a lugares distantes, que representam um vínculo cosmológico, uma
identidade, e estão ligados por algum tipo de parentesco, ou então, trajetória histórica. Por
exemplo, Onça costumava me convidar para trabalhar na anho puru (sua roça), mas também
utilizava em alguns momentos a categoria pyka para se referir a que ele tinha aberto junto de
seus parentes a aldeia Pytakô e por conseguinte as roças. Por outra parte, costumava consultar
sobre a minha procedência, já que não me via apenas como kubén, senão como kubén kayik (de
longe, estrangeiro91).

Durante o meu segundo campo, levei um mapa político com os países. Com certa frequência,
Onça gostava de abri-lo e escutar a minha explicação sobre a localização dos EUA e da
Colômbia (meu país de procedência). O ponto é que ele consultava sobre minha procedência

91
Para os Xikrin, um kubén (não indígena “brasileiro”, relacionado principalmente aos colonos ou paraenses da
região) não tem a mesma conotação de um kubén kayit (não indígena de longe, que não fala português). Em uma
ocasião, consultei o Onça a respeito das diferenças, ele respondeu em termos do aprendizado e a forma de
familiarização dos estrangeiros com os Xikrin. Para ele, os estrangeiros são pessoas que aprendem mais rápido,
que gostam de kukradjà e vão à aldeia para morar como mebêngôkre. A prova disso, “segundo o Onça”, é que os
estrangeiros aprendem a língua Xikrin mais rápido. Por outra parte, ele considera os estrangeiros mais
“interessados”: a alteridade parece ser um fator importante, já que para Onça foi significativo viajar para EUA
por convite do antropólogo William Fisher, onde compartilhou com a família e colegas do antropólogo. Por outra
parte, reclamava que os brasileiros não o tinham convidado para ir em São Paulo e Brasília, nem tinham levado
suas famílias à aldeia para apresentá-las.
178

indagando “nhara, inho pyka?” (onde é sua terra?). Dita questão não se referia apenas à
posição geográfica da Colômbia, pois ato seguido à conversa, acrescentava perguntas
relacionadas com a minha família (pais, irmãos), indígenas (outros povos), clima (sempre
surpreso pelas fotos nas quais eu mostrava neve e lugares frios) e sobre como chegar ali
(assunto que se direcionava mais a entender tempos, pois seu interesse era saber quantas luas
eu gastaria se fosse por minha conta, ou então, quantas horas, se fosse de avião). A forma como
pyka opera para os Xikrin, não seria muito distante de como a categoria “terra” opera no
imaginário dos não indígenas, pois essa palavra pode remeter também a elementos amplos
como os questionados por Onça.

De qualquer forma, me parece que a maior importância da polissemia da categoria pyka está
contida na imanente ligação com a categoria memória, a qual me parece mais importante de
abordar para este trabalho. Pois a memória, vista em termos de produção de conhecimentos,
sugere uma relação predominante entre a experiência prática no espaço-tempo, as narrativas e
o devir dos sujeitos caçadores. Observo que a floresta está constituída por um sistema de
códigos que de forma antrópica -e multiespecífica- dá significados concretos a cada lugar. Essa
ideia é factível de ser colocada num sentido semelhante ao de Kohn (2021a), onde as relações
florestais - ecológicas operam através de signos, pois há sentidos comunicativos que estimulam
a memória, permitindo que haja um sistema de orientação definido entre sujeitos e o meio por
onde transitam. Em consequência, aquilo que representa um lugar reconhecido para uns, pode
ser completamente alheio para outros. Cabe se perguntar quais são esses códigos e como se
materializam através do exercício de bà kam tem, pois a conjunção entre o sistema de técnicas
e o compêndio de lugares por onde se transita, parece ser a chave para compreender a expressão
material da cinegética Xikrin.

Para esse contexto, é importante se valer de uma metodologia etnográfica que destaque o
conjunto de gestos, movimentos e sequências no ambiente. Assim, entendo que há um grande
potencial analítico através da cadeia operatória (Leroi-Gourhan, [1964] 1990) inserida numa
preocupação pelas técnicas de caça e os contextos. Vale dizer que o ponto de partida para
compreender algumas manifestações da cinegética, como as formas de caçar, os espaços por
onde se transita, os tempos onde se opera, assim como os tipos de expedições efetuadas, ainda
que consista na atenção dada aos aspectos operacionais, não irá permanecer apenas como um
modelo de análise classificatório, já que o meu interesse no campo material é a busca por atingir
o campo relacional, o qual irá a evidenciar vínculos societais numa conjunção mebêngôkre
179

(humanos) – outros-que-humanos (mry [animais de caça], artefatos, coisas, entidades, mortos,


plantas) - bà (floresta como ambiente).

Ingold (2007; 2013) propõe que o movimento dos indivíduos é dado através de desempenhos
habilidosos nos quais os viajantes devem “sentir o trajeto” em direção ao seu objetivo. Os
sentidos e a percepção são fundamentais, permitindo que cada indivíduo ajuste continuamente
seu movimento de acordo com a linha que segue. O autor assemelha o movimento àquele feito
em um labirinto, onde mais do que interromper um trajeto para tomar decisões que mudam os
trajetos (forma como operaria o movimento no mundo moderno), o viajante apenas deve cuidar
de não sair da linha que transita. Nesse sentido, propõe a categoria wayfinding, relacionando
as linhas -ou caminhos- como um convite ao passeio, uma provocação a se movimentar. Ingold
apresenta o movimento como uma série de destinos interconectados que igualmente em um
mapa de rotas, podem ser enxergados de uma vez só.

A proposta do autor parece-me importante para pensar os fluxos contínuos que emergem da
atividade de andar na floresta, uma vez que a formação de lugares e sua interconexão emergem
como redes as quais com frequência são reforçadas pela memória manifesta nos traços dos
caminhos: os lugares envolvem a passagem do tempo, eles não são passado, presente, futuro,
mas todos os três reunidos em um. Contudo, para Ingold (2013) o movimento ganha sentido
sempre que seja campo temporal, se afastando das pré concepções espaciais que um viajante,
no caso um caçador, possa ter. Disse o autor “sabemos enquanto avançamos, não antes de
partirmos” (Ibid, 239, tradução minha). Pode ser que para os Xikrin, e seu conhecimento
ecológico, seja necessário não apenas reparar nas linhas como uma sequência temporalmente
ordenada de vistas, senão também como um circuito espacial que requer planejamentos e
demanda tomar decisões enquanto se caminha. Pois no caso de Juca, parece ser que o motivo
de seu extravio não foi a falta de conexão com a memória e os traços temporais, e sim com a
falta de domínio espacial e por conseguinte a incapacidade de decisões acertadas. Devo voltar
neste assunto no capítulo final para analisar com maior cuidado a premissa ingoldiana de linhas
e movimentos e como se aplica ao ato de bà kam tem.

Por outra parte, se para os caçadores há lugares específicos prediletos para encontrar presas,
estes espaços operam primeiramente como condutos que facilitam o ir e vir das corporalidades.
Logo, como são esses condutos? Tenho observado que são caminhos ou trilhas (pry), os quais
saindo de pontos mais acessíveis como a aldeia, roças e beiras de rio, percorrem extensões
medianas da floresta até encontrar outros caminhos que formam um cruzamento, ou também
180

até encontrar lugares representativos, como uma grande pedra, um igarapé, uma estrada, uma
antiga roça ou capoeira, uma grota, entre outras possibilidades.

Contudo, há manifestações concretas desses condutos que requerem maior atenção, pois apesar
de apresentarem a mesma essência das trilhas, se inscrevem em códigos técnicos muito
particulares que fazem com que a prática da cinegética seja única. Portanto, requerem uma
observação específica. Para tal caso, tenho observado que além das trilhas, há espaços como as
atuais estradas que comunicam as aldeias com o exterior da TITB, as quais são atualmente
fundamentais na caça. Ademais, artefatos como espingardas, lanternas e botas tem viabilizado
com eficiência a caça noturna, facilitando que os caçadores acessem as temporalidades
vespertinas. O rio, e me refiro ao Bacajá como tal, tem sido adotado desde o contato dos Xikrin
como um cenário essencial para múltiplas práticas que vão desde um modo de transporte até
um método de obtenção de carne através da pesca. Porém, este é também um conduto que
possibilita a mobilização de caçadores até atingirem pontos estratégicos onde descem para
entrar na floresta com fins cinegéticos.

Todas as formas de caça que abordarei daqui para frente -salvo a caça de espera- são nutridas
pela mobilidade. Antes do contato, os Xikrin apresentavam um modo de vida seminômade
(mey, õn tomoro), dedicando uma grande parte da época seca para se deslocar através de
caminhos que lhes levavam a percorrer grandes distâncias durante meses. Na atualidade,
morando em aldeias fixas na beira do rio, a mobilidade tem se reduzido consideravelmente,
sendo que as expedições mais extensas podem levar apenas alguns dias. Contudo, o princípio
se mantém, já que o grosso da carne animal provém de expedições de caça.

A esse respeito Fausto (2014, p. 169) identifica que nos Parakanã, ainda parecendo mais
sedentários na atualidade, deve se observar com atenção os novos tipos de mobilidade, seja
através de carros ou barcos, pois o volume de caça continua sendo expressivo. Essa premissa
me parece fundamental para o caso dos Xikrin, já que uma das questões guias deste capítulo e
do seguinte, consiste em definir que as estradas e o rio, junto com os veículos que por ali
transitam, compõem novas formas de caça, iguais de eficientes à forma principal, sustentada
em andar através de trilhas.

Na tentativa de destrinchar cada uma dessas formas particulares, as dividirei.Não que com isso
elas operem de forma separada, já que no sentido prático estão completamente entrelaçadas.
Uma caçada ao longo de uma estrada leva até o começo de trilhas onde os caçadores podem
se introduzir na mata. Uma trilha que sai de uma roça pode fazer um percurso circular que
181

conclui na beira do rio, ou qualquer uma dessas práticas pode acontecer durante a noite,
seguindo apenas algumas outras requisições, havendo sempre uma ampla mobilidade. Tendo
feito esse esclarecimento, procederei a tentar compreender cada um desses condutos que, em
suma, me permitirão explanar um assunto importante neste trabalho, relacionado com a
compreensão de como e de que formas os Xikrin caçam e aprendem a caçar.

Pry – trilhas

Como apresentei no capítulo anterior, bà kam tem (andar na floresta) constitui uma espécie de
engrenagem fundamental nas sociedades Xikrin Mebêngôkre, já que a pessoa Xikrin
(principalmente a masculina) é determinada em grande parte pela sua experiência acumulada
e exercida com motivo da caça. Isso leva, num segundo momento, à necessidade de tentar
compreender como ou através de que formas é possível se locomover na floresta. Essa premissa
tem guiado uma boa parte da minha etnografia, pois uma vez que percebi que o movimento em
direção à mata tinha especificidades as quais faziam com que a cinegética fosse um âmbito
único e privilegiado, dediquei uma grande parte do meu campo a aprofundar cada um dos
componentes do movimento cinegético.

Ao falar em movimento na caça, mas com a possibilidade de ser aplicado a outros âmbitos,
entendo este no sentido de Leroi-Gourhan (2002 [1965]), segundo o qual o movimento não é
apenas ações em si, senão ritmos inseridos num contexto específico, que operam como uma
linguagem enquanto criadora. Um movimento é determinante de espaços e tempos. Por isso na
caça, quando se fala em se locomover, se refere a um fenômeno concreto, onde corporalidades
se inter-relacionam, compondo cenários que ganham significados materiais92.

Bechelany (2013; 2017, 21) por exemplo, inspirado na proposta de Leroi-Gourhan, entende o
movimento dos caçadores Panará e suas espingardas como exercícios inseridos em ritmicidades
que são criadoras de formas, sendo movimentos corpóreos em relação a outros movimentos,
no caso, o das presas. Nessa lógica cabe se perguntar quais são essas formas emergentes a partir
da interação rítmica que contém corpos, objetos e gestos recriados a cada experiência. Os
caçadores Xikrin irão responder demonstrando uma primeira forma, pry: o das trilhas ou
caminhos que compõem a floresta.

92
Essa premissa é herdada da tradição maussiana que entende o ser humano como efeito de relações materiais
com o mundo.
182

Hoje um grupo de homens saiu de Bacajá rumo ao rio para ir atrás de caça. Pegando
um casco, desceram pelo fluxo da água e passaram um pouco mais de quarenta
minutos navegando até parar num ponto onde Meretti desceu e me chamou para lhe
acompanhar. O grupo se dividiu: pelo que meu colega de caça me explicou, daí em
frente iriam descer duplas ou subgrupos em pontos diferentes para buscar castanha
ou caçar, enquanto os responsáveis pela embarcação ficariam na beira do rio
pescando. Ao consultar o Merettí sobre a nossa localização, ele me disse pukákamré.
Logo entendi o sentido do nome, pois de fato o lugar é um barreiro e o chão é
avermelhado.

Andamos mata adentro durante uma hora e apesar de ter encontrado múltiplos
rastros de mamíferos, não foi possível dar com eles. O percurso foi em certa forma
reto e o meu colega manteve um passo firme até atingir um lugar que parecia ser
uma mata um pouco mais fechada … Já era meio-dia, paramos, descansamos e
decidimos voltar.

O regresso foi uma experiência um pouco traumática, pois Merettí se esgueirou


rapidamente entre a mata e só pude testemunhar seu distanciamento gradual através
das respostas sonoras aos leves gritos que eu emitia para tentar localizá-lo. As
respostas dele foram cada vez mais distantes até eu perceber que não tinha mais sua
companhia. Não tive mais alternativa do que me sentar num tronco e pensar como
proceder. Devia ficar ali aguardando ou devia tentar avançar e achar o pique que ele
teria aberto no seu deslocamento? Conclui que me correspondia tentar me
movimentar, já que os caçadores daqui tem uma certa expectativa de mim, graças a
que Onça tem se dedicado a falar através do radioamador sobre como eu o tenho
acompanhado em suas andanças recentemente.

Ajustei minhas botas, levantei meu olhar e tentei pensar numa rota de saída daquele
lugar. Devo ter andado durante uns quarenta minutos, nos primeiros dez desisti de
alcançar o Merettí e comecei a me preocupar simplesmente em voltar para o rio, já
que esse seria o melhor ponto de encontro, seja com ele ou com os caçadores que
desceram com o casco e deveriam passar por ali até o final do dia.

A memória de trekking que eu possuo ainda é muito limitada, senti uma enorme
dificuldade para reconhecer lugares por onde passei no percurso de entrada, tudo é
praticamente igual ou minimamente semelhante, portanto, não fez sentido, pelo
menos para mim, dizer: “claro, vou procurar aquela árvore X ou voltar naquele
ponto B do barreiro”. Tentei ir no sentido de onde tinha ouvido a última resposta de
Merettí e ir achando padrões, olhando a passagem e distanciamento entre uma
183

vegetação e outra e reparando na sequência formada por certas copas de árvores.


Pensando que no caso de observar um certo fechamento, provavelmente não seria
por ali por onde meu colega teria ido.

Um pouco depois de estar caminhando, achei as primeiras pegadas de sapato em


sentido inverso, sendo um indício do movimento do meu colega. Andei por mais
uns minutos e comecei a perceber, como nunca antes tinha conseguido, o que parecia
ser um caminho. Não é a primeira vez que observo que há caminhos na floresta, mas
sim a primeira em que sou consciente de um padrão constituído pela altura de certas
árvores médias, a presença de terra mais firme (em algumas partes removida) e,
ainda, um mapa de rastros de humanos e animais que passaram pelo mesmo lugar,
provavelmente há alguns dias.

Acho que nunca tinha sentido a real necessidade de debruçar a sequência de um


caminho como desta vez, disso dependia meu retorno. Eu não sei se o Merettí o fez
de propósito, mas o que posso dizer é que a sua atitude, que aparentava estar me
deixando para trás, me facilitou a compreensão sobre uma pergunta de pesquisa
importante.

Com o passar dos minutos e na medida em que fui avançando, foram aparecendo
mais e mais traços definidos na terra: havia sola de sapatos, mas também uma que
outra marca de cascos. Me parece que eram de caititu e veado, ademais de uma com
três grandes dedos, sendo possivelmente de anta. Com isso, tive a certeza de que
estaria indo pelo caminho certo. Fui me encorajando e acelerei o passo até
finalmente chegar num alagamento do rio onde tinha a certeza de ter atravessado
algumas horas atrás, quando entramos na mata.

Ali, do nada, apareceu Merettí muito perto de mim, estendendo seu braço me
ofereceu um frutão (pariri) enorme. Continuamos juntos até chegar na beira do
Bacajá. Estando no aguardo do casco, quis compreender minimamente o que
acabava de acontecer, pois tinha sentimentos cruzados. Por um lado, uma certa
angústia por ter me sentido perdido na floresta, e por outro, uma satisfação por ter
dado conta de retornar para o lugar de entrada. Não caberia lhe questionar
perguntando “porque me deixou para trás?”, já que provavelmente ele não iria
compreender a minha questão e, pelo contrário, poderia me colocar numa posição
enfraquecida de alguém que não consegue nem lidar consigo mesmo. Preferí puxar
assunto consultando pelas formas em que eu posso melhorar a minha localização
dentro da mata.
184

Merettí não é muito falante, mas é uma pessoa bastante inteligente. O pouco que
tenho lhe ouvido me dá questões importantes para serem consideradas. Não é à toa
que ele é um dos atuais chefes da aldeia mais antiga dos Xikrin. O que ele me disse
dessa vez está relacionado com a atenção que deve ter um caçador: “tu pára e olha
o caminho. Tu pode ir para um lado e para outro, mas deve saber por onde que
entrou. Tu tem que olhar pro chão e ver o que tem ali também, vai ver pegada de
bicho, mas não pode ficar olhando toda hora pro chão, porque aí tu vai ficar
confuso. Tu sempre tem que estar olhando para frente e aí vai vendo com calma”.

Eu lhe consultei sobre o que ele chamou de “olhar o caminho”, pois já venho
confirmando através de observações e relatos que para os meus interlocutores a
floresta está cheia de caminhos, não sempre visíveis. Merettí respondeu “caminhos
são as trilhas. Quando tu já conhece, tu vai vendo que tem caminhos por onde é
mais fácil de andar, é mais fácil de achar bicho porque eles também andam ali.
Aqui (no pukákamré) sempre tem porcão e veado, é fácil de achar. Meio-dia eles
param para descansar embaixo de árvore com fruta e a gente acha perto daqui,
mas hoje também tá chovendo e aí eles não vem muito. Eu já matei muito porco
andando pelo mesmo caminho que tu veio”.

Aprendendo a identificar caminhos de caça. Diário de campo 12/03/2018

As passagens da experiência acima descrita trazem a possibilidade de pensar numa questão


inicial que cruza todos os âmbitos técnicos da cinegética, referida aos lugares e padrões que se
constituem junto das corporalidades e os cenários onde acontece a predação. Refiro-me aos
caminhos, que por vezes são o campo que comunica e viabiliza a mobilização e as múltiplas
velocidades na mata. Vale lembrar que quando um caçador vai para a floresta, diz bã bà kam
tem, o que indica que irá caminhar ou se deslocar através desta. Contudo, existe um
complemento a essa expressão que apesar de não ser muito usado, descreve com clareza a
importância que tem os caminhos ao longo das múltiplas atividades que podem ser realizadas
na mata. Consiste na categoria pry, que se refere a um conduto ou uma via. A expressão
completa seria bã bohka pry tem, o que poderia ser entendido como “vou andar numa trilha
pelo mato”.

Dessa forma, para abordar a cinegética entre os Xikrin, deve partir-se da premissa de que esta
é praticada através de um compêndio de espaços concretos, possivelmente interconectados
através de caminhos. Ademais, esses caminhos são compartilhados, já que como Merettí
185

indicou “... eles (os animais) também andam ali”. Se previamente tenho dito que os caminhos
facilitam o deslocamento de corporalidades, devo esclarecer agora que não me refiro apenas
aos caçadores, mas também aos mry que provavelmente conscientes do possível encontro com
predadores, decidem frequentá-los, pois aqueles caminhos são transitados há muito tempo e
com certa frequência pelos Xikrin.

Quando se observam cenários compostos por interações multi-espécie, é necessário entender


que ali há um sistema dinâmico de informações mútuas que emergem enquanto se vivenciam,
o que Ingold (2002b) define como uma modalidade comunicativa entre caçadores e animais,
compondo um ambiente específico. Portanto, entendo que as diferentes formas, sons, cheiros,
dentre outras formas perceptivas, que integram os lugares onde humanos e outros-que-humanos
se encontram, são antes de mais nada, formas em movimento.

Por outra parte, a configuração de lugares de caça a partir da interação na floresta não deve ser
abordada de forma ligeira. Fausto (2014) menciona que as antas, por exemplo, são fiéis às
trilhas onde também passeiam eventualmente os caçadores. Num sentido semelhante,
Bechelany (2017) identifica que os mamíferos de grande porte parecem habitar as mesmas
trilhas dos Panará. Esses contextos validam a ideia de relações entre humanos e não-humanos
(mry), formando um sistema de trilhas multi-espécies. Não posso evitar pensar com influência
perspectivista que se um caminho tradicionalmente transitado por um caçador ou um grupo ou
uma família guarda um sem número de experiências particulares que são relembradas a cada
certo tempo, uma anta, de igual forma, ratifica a memória da sua espécie sempre que circular
por onde outras antas já circularam.
186
186
187

13. Prancha 3: Entre


trilhas e emaranhados
188

Prancha 7: Entre trilhas e emaranhados

Foto 1: Kroí usa a espingarda do seu avô. Costuma deixar ela no colo ou apoiada no ombro,
sempre perto do braço esquerdo. Os momentos anteriores a uma expedição entre trilhas longas
e distantes são usados para descansar, comer e conversar sobre qualquer tipo de assunto. Muitas
vezes, aqueles que não são abertamente abordados nos espaços domésticos.

Foto 2: Kroí se adentra através de uma trilha relativamente distante das roças. Geralmente os
acessos são tapados por matos e capoeiras que dificultam a passagem. Contudo, mata adentro,
os lugares de trânsito podem ser abertos graças à sombra de grandes árvores que evitam a
proliferação de espécies secundárias. Vale dizer que a orientação e percurso entre as trilhas
pode estar relacionado a períodos sazonais, pois dependendo da época, os caçadores e mry irão
seguir caminhos que levem até árvores frutícolas em produção.

Foto 3: Após uma perseguição bem sucedida, Kroí leva os queixadas até a estrada onde espera-
se que passe uma camionete e transporte as presas até a aldeia. Na ocasião, um bando de ngrú
foi achado a 25 minutos a pé da estrada, sendo necessário transportar os abatidos.

Foto 4: A orientação é fundamental enquanto se transita entre trilhas relativamente distantes da


aldeia e roças, pois qualquer distração pode levar o caçador mais longe do previsto. Ademais,
as trilhas costumam se entrecruzar em certos pontos, fazendo com que haja necessidade de
conferência de tomada de decisões. Meití observa atentamente e decide se desviar do caminho
que vinha fazendo, optando por continuar através de uma trilha mais fechada.

Foto 5: Após alguns minutos, Meití encontra na terra traços pequenos de ungulados, tudo indica
que pode haver caititus nas proximidades. Os olhos são apenas um indicador de que por ali
passou há pouco tempo um mry. Contudo, o caçador levanta seu olhar e dá prioridade a outros
sentidos que lhe permitirão dialogar com sua presa potencial a uma distância maior. Queixadas
e caititus costumam emitir cheiros fedorentos que podem ser sentidos a distâncias
consideráveis, e dependendo da hora do dia, são mais ou menos barulhentos, facilitando as
possibilidades de localização para um caçador com ouvidos aguçados.

Foto 6: A visão na floresta perde importância enquanto ao seu uso mais comum, servindo para
conferências e reações rápidas. Outros sentidos, como olfato e ouvido, geralmente são mais
precisos. Na imagem, encontra-se um pequeno mry que tenta fugir do caçador após descobrir
sua presença, embora, em muitas ocasiões o olho humano não consiga acompanhar a
velocidade de fuga de animais silvestres. Neste caso, a obturação da câmera fotográfica foi
lenta (1/80), se assemelhando à capacidade de visão do olho humano, dando uma impressão da
percepção visual real.

2 3

1
4

5 6
189

O trabalho de Rival (1999; 2002) demonstra como os Huaorani, quando se deslocam através
de caminhos, são extremamente engajados, igual a outras espécies, em percorrer distâncias com
o propósito de identificar frutos e vegetais, o que determina que haja sempre áreas
compartilhadas. A autora define esses contextos nos quais transcorre grande parte da vida desse
povo como “being in and with the forest”, que se relaciona com a ideia de uma floresta
composta a partir de significantes e significados.

Como disse no meu relato de campo acima, achei múltiplos tipos de pegadas na trilha enquanto
tentava voltar para a beira do Bacajá. De acordo com a explicação de Meretti, um dos fatores
que motiva o alto trânsito de mamíferos -e quelônios- nos arredores das trilhas, é a presença
voluminosa de árvores frutíferas que lhes servem de alimento. Isso talvez permita inferir, em
concordância com Kohn (2021a), que as trilhas de caça são traçadas entre predadores e presas
a partir de padrões influenciados por pontos de encontro entre espécies arbóreas e fontes
hídricas (deverei aprofundar esse aspecto um pouco mais à frente), o que de forma geral
configura uma ecologia multiespecífica.

Quero voltar mais uma vez à analogia que fiz no capítulo anterior, onde a floresta de caça se
equipara a uma grande urbe. Uma cidade possuindo espaços concretos - como centros
financeiros, shoppings e ruas comerciais, lugares históricos e espaços turísticos, áreas
residenciais e demais - permite que distintas corporalidades se desloquem através de sistemas
de transporte e avenidas, facilitando deslocamentos entre áreas definidas para distintas
atividades (trabalho, residência, lazer, etc.). Contudo, uma cidade, apesar de possuir certos
padrões que facilitam a vida moderna, pode ser muito diferente de outra. Assim, se um
habitante de Campinas saísse da sua cidade e estivesse em Curitiba, entenderia como se
deslocar usando algum sistema de transporte, mas se perderia facilmente se não agisse com
precaução. O mesmo acontece na floresta: Juca entendia como andar na mata, mas não conhecia
a especificidade dos caminhos de Pytakô pelos quais transitou o dia no qual se perdeu.

Após eu ter tido a oportunidade de acompanhar, durante um lapso de tempo, múltiplas


expedições, tanto em Pytakô como em Bacajá, encontrei que em Pytakô há aspectos da
cinegética particulares. Ali há uma extensa rede de trilhas em constante expansão, produzindo
interconexões recentes. É como se a mata estivesse sendo explorada progressivamente e
houvessem lugares em processo de (re)descoberta. Já em Bacajá, se procede de forma mais
sistemática, usando a navegação para acessar trilhas e capoeiras que foram, há tempo, roças.
Apesar da cinegética ser semelhante nas duas aldeias, denota aspectos relevantes que as
diferenciam. Vejamos.
190

Para os caçadores da aldeia de Bacajá é indispensável o rio93. Isso está associado a vários
fatores, mas o principal se sustenta no histórico de moradia dos últimos cinquenta anos. Como
expliquei no capítulo 1, os Xikrin não são um povo ligado diretamente a grandes rios, mas após
o contato de 1959, se estabeleceram na aldeia de Bacajá (velha Bacajá), onde foram
gradualmente acontecendo cisões e a etnia foi se dispersando ao longo da atual Terra Indígena.
Cinco décadas tem servido para que os Xikrin do Bacajá tenham adotado o rio como parte
essencial no seu modo de vida, ademais de possuir um amplo conhecimento sobre os arredores
da aldeia localizada na parte ocidental da TI94.

Contudo, os habitantes dessa aldeia migraram durante 2017 para uma nova localidade (Nova
Bacajá), com casas de alvenaria localizada na parte oriental, ficando há uns vinte minutos a pé
da beira do rio. Até 2018, época em que andei por ali, constatei que - senão a totalidade - pelo
menos sim a maioria das incursões na mata são realizadas do lado ocidental da TI, usando como
referência a aldeia em ruínas, além do rio por onde se deslocam em sentido norte e sul. Com
isso, o que evidenciei é que apesar de que o novo padrão de moradia impõe um certo
distanciamento físico do rio e da antiga aldeia, os Xikrin optam por manter uma estreita relação
prática que os obriga a fazer caminhadas todos os dias até a beira e cruzar o rio para se
ocuparem de atividades como roças e, principalmente, trilhas de caça. Não houve muito
interesse, durante o período em que foi feita essa pesquisa, na exploração de novos caminhos
na parte oriental.

Os depoimentos de Tekakprekti (Coronel), um mekrarere-tum (homens adultos com muitos


filhos e netos) sustentam os acompanhamentos que tenho feito durante a minha estadia em
Bacajá, já que, como o meu interlocutor manifesta, as expedições nessa sub-região são
baseadas em visitas a lugares ecologicamente conhecidos, seja para extrair castanha-do-pará
no inverno, para cortar açaí na seca, tirar batata-doce nas roças e sempre, para caçar.

93
A grosso modo, todas as aldeias da TITB possuem uma relação com o rio Bacajá. Não obstante, na atualidade
há diferenças em relação aos modos de uso e principalmente à frequência com que se usa. Assim, há aldeias que
são mais dependentes do rio para se locomoverem, como há outras mais voltadas ao consumo de peixes. A aldeia
de Bacajá usa mais o rio como meio de transporte e principalmente como meio de obtenção de alimentos, em
comparação a Pytakô. Ademais, ao norte da TITB, onde localizam-se nove aldeias próximas, que compartilham
uma via de acesso terrestre, a caça através da estrada é muito concorrida. Por isso, aldeias como Kenkudjoe têm
práticas semelhantes a Bacajá, ou seja, optaram por cruzar o rio e visitar trilhas na região ocidental.
94
Para termos de localização, uso como referente divisório o rio Bacajá, sendo que a parte oriental estaria
composta pela beira do rio até os limites da TITB com os municípios de Novo Repartimento, Pacajá e Anapu (ali
encontram-se as estradas que comunicam as aldeias com o travessão e posteriormente com a BR-230
Transamazônica). Já a parte ocidental, está constituída desde a beira do rio até os limites com as TIs Araweté,
Koatinemo e Ituna Itatá (ver mapas 1 e 2).
191

Aqui nós temos muitos lugares para andar na mata, nós conhecemos tudo isso por
aqui, por trás da aldeia onde nós morava há muita puru tum- antigas roças, muito
caminho também. Mas nós também conhecemos do tekapôt-ngô (rio Bacajá) para
baixo.

Ali para cima também tem lugares, mas o povo da Morotidjam (aldeia) costuma
usar, aí nós vamos mais para baixo... Aqui (em Bacajá), há quatro lugares onde nós
vamos principalmente porque sempre há bichos para matar, castanha tem muita, tem
fruta também...”.

Depoimento de Tekakprekti. Bacajá 14/03/2018

É significativo que o meu interlocutor não só enfatiza sobre a circulação dos Xikrin através de
trilhas, senão que estabelece existirem lugares e caminhos de predileção. Como o Merettí me
disse e eu mesmo tive a oportunidade de acompanhar, há um ponto característico por ser um
barreiro e alagação em época de chuva, chamado pukákamré. Tekakprekti coincide em definir
este como um dos quatro lugares mais propensos a encontrar mry.

Além desse lugar, os caçadores de Bacajá costumam visitar os caminhos kenkudjoe95 (pedra
grande), localizado rio acima em sentido da aldeia Morotidjam; ngô-tukre (água preta),
localizado em sentido norte pelo rio; e o kokakrodjá96. Há também uma enorme capoeira em
restauração descendo pelo rio, chamada de bananal, que fora uma antiga roça instaurada pelo
velho chefe Bep-Tok- Onça. Atualmente esse lugar é usufruído por múltiplas famílias e é
costume que os caçadores parem ali sempre que passarem pela frente, para conferir se há algum
bando de queixadas nas proximidades.

Bananal, a puru tum- (antiga roça) de Onça, da época em que morava em Bacajá, hoje uma
parte dela abandonada vindo a ser capoeira, é talvez um dos espaços prediletos para observar
a premissa de Posey (1985, pp. 139-158) enquanto à capacidade de “managers of tropical
forest” dos Mebêngôkre. Nesse espaço acontece abertamente um manejo transitório entre o
aproveitamento de espécies comestíveis e medicinais, enquanto são aproveitadas as constantes
visitas dos mry (animais de caça) em meio de uma mata secundária em processo de

95
Há uma aldeia com esse mesmo nome ao norte da TI, não se deve confundir com o ponto de caça mencionado
aqui.
96
Os caminhos aqui mencionados, aos quais têm sido adjudicados nomes, correspondem a linhas antigas que,
dada a sua trajetória, são mais comuns de serem visitadas. Não obstante, existem dezenas de caminhos menores
ao longo das aldeias onde realizei meu campo, os quais nem sempre possuem nome (não abertamente reconhecido
pelos grupos), mas operam com a mesma função dos que têm.
192

regeneração. William Balée (1989), através de levantamentos florestais feitos no médio Xingu,
sugere que as matas de cipó seriam áreas modificadas pela ação humana.

As roças antigas e as capoeiras (ibê) mereceriam um espaço à parte para serem analisadas, já
que elas integram de forma híbrida os modos de vida entre o semi-doméstico, o sedentarismo
e a mata97. As roças antigas e as capoeiras são os pontos de confluência onde é possível fazer
(re)plantios, colher frutos de plantas abandonadas ainda em produção, e ao mesmo tempo
encontrar mry como caititus, pacas, inclusive bandos de queixadas, que indo atrás de frutos,
ocupam provisoriamente esses lugares. É mais um espaço que se configura a partir de novos
sentidos multi-espécies. Inclusive, Posey (Ibid) propõe definir esses espaços como game-farm
orchards ao identificar que ali confluem múltiplas espécies a curto e longo prazos (desde
batatas até castanha-do-brasil) e uma renovação de animais de caça.

Esse cenário é válido no cotidiano dos Xikrin, já que as expedições de caça, quando feitas a pé,
na maioria dos casos passam preliminarmente por capoeiras antes de se adentrarem na mata
densa. Em concordância com Posey, para os caçadores é importante o controle populacional
de mamíferos nas capoeiras, pois a tendência é que essas estejam alocadas em áreas próximas
de roças em uso, o que pode causar problemas ecológicos a longo prazo, pois os animais podem
optar por se alimentarem nas roças vizinhas.

Por outra parte, em Pytakô também há múltiplos caminhos de caça e coleta. A respeito deles,
Txuak, morador dessa sub-região desde a época na qual a aldeia foi aberta em 2005, destaca
três: pí-uh-kô (lado ocidental), ngô-mólgrire (lado oriental) e acocojám (lado oriental). Esses
lugares são usados normalmente para caçar durante todos os períodos sazonais do ano. Não
obstante, possuem a característica de serem usados principalmente durante o período de
inverno e vazante, quando acontece a safra da castanha. Inclusive, o primeiro caminho
mencionado pode ser traduzido como “o lugar da castanha”. Adicionalmente, há um lugar mais
ao norte, no lado ocidental, que foi historicamente impactado por kubén desde a época da
seringa e mais recentemente com extração de madeira ilegal. Esse lugar é o jericuá (ao qual
Onça faz constantemente referência nos relatos sobre madeireiros). Ali ainda há uma alta
população de castanheiras sendo usada atualmente pelos Xikrin para a quebra e extração de

97
Esses espaços são possivelmente os mais representativos para observar a divisão do trabalho mebêngôkre, já
que famílias inteiras confluem nas capoeiras e dividem funções durante períodos contínuos.Por exemplo, mulheres
podem ficar colhendo frutos; velhos procurando plantas medicinais e caçadores andando nos arredores em procura
de sinais dos mry.
193

amêndoas, cabendo a possibilidade- ainda que pouco provável- de algum caçador ir até ali
apenas para caçar.

Como mencionei anteriormente, para os caçadores de Pytakô não é necessário realizar grandes
deslocamentos para atingir pontos e caminhos, assim, os caminhos acima mencionados são
relativamente próximos da aldeia e não são tão frequentes quanto os caminhos de Bacajá. Dessa
maneira, é pertinente dizer que os três lugares de caça em Pytakô não têm a importância dos
quatro lugares de Bacajá. A dependência que tem os segundos é muito mais alta e faz com que
sejam constantemente referidos esses destinos nas suas expedições. Em termos gerais, isso faz
com que haja um fator diferencial enquanto às formas de proceder na execução de expedições
nessas duas aldeias, já que se para os caçadores de Bacajá é fundamental se deslocar pelo rio
para atingir os pontos referidos, para os caçadores de Pytakô é essencial caminhar através da
estrada para atingir dois dos três caminhos identificados.

Adicionalmente, em Pytakô há um leque de caminhos não identificados que são relativamente


frequentados por distintos caçadores. Ou seja, há caminhos que nem possuem nome, sendo
piques conhecidos por um ou outro caçador, e, portanto, nem todos têm acesso. Kudjwu é um
dos expedicionários que mais diversidade de caminhos conhece, sendo raro que ele transite
pelos três que mencionei acima. Ao lhe consultar sobre nomes e pontos de referência, me disse
que ele conhece vários lugares relativamente próximos de Pytakô, onde só ele e o seu irmão
Picapau, andam. Esses lugares, ou esses piques, foram “abertos” por ele mesmo e manifesta
não ter lhes dado nomes ainda.

Em conversa com Prîncare (Americano), que chegou a Pytakô vindo de Bacajá no começo de
2018, o mesmo afirmou dar bastante atenção para a floresta de Pytakô, já que foi ali onde se
perdeu seu irmão Juca. A família frequenta o mato normalmente acompanhada de outras
famílias miradoras dali há mais tempo e se valem da safra de castanha para reconhecer os
lugares e avaliar o potencial de caça. Prîncare disse-me estar acompanhando o Kudjwu em
múltiplas caçadas, pois reconhece ser ele um dos caçadores mais ativos da aldeia, ademais de
estar abrindo novos caminhos de circulação.

Adicionalmente, Americano andou bastante pela serra nas proximidades de Pytakô na época
na qual múltiplas expedições tentaram localizar o Juca. Afirma ter achado nas suas caminhadas
múltiplas grotas, castanheiras e babaçu, lugares que estaria tentando acessar na atualidade
através de eventuais atividades de trekking. Txuak também tem manifestado, em várias
ocasiões, o potencial que tem a serra oriental, por trás da aldeia, onde praticamente ninguém
194

vai. Meu interlocutor explica alguns parâmetros que devem seguir as trilhas: “uma trilha não
pode passar por lugares onde é difícil andar, também não pode ser muito longe, tem que estar
perto de outras trilhas para a gente conseguir voltar”. Isso explica por que os habitantes de
Pytakô não se interessam o suficiente pela serra nas costas da aldeia:o nível de inclinação
dificulta o trânsito das pessoas e principalmente o transporte de animais abatidos. Além disso,
dita elevação natural funciona como barreira entre as áreas próximas ao rio e à floresta mais
profunda.

Um outro aspecto elementar para se considerar são as espécies arbóreas, determinantes para
definir os trajetos dos caminhos de caça. Txuak disse: “os caminhos passam por piques de
castanha, onde tem uma árvore de fruta que os porcos gostam, ali a gente passa. Lá para trás
dessa serra, quando eu fui, eu cheguei a ver muita fruta, mas fica longe. A gente tem que ir
primeiro pelo rio, aí desce e vai abrindo picada até subir a serra, precisa ir marcando”. O
meu interlocutor confirma que um caminho de caça pode ser formado a partir do volume de
árvores frutais as quais vão sendo interconectadas através de caminhos, ademais de que essas
formações espaciais devem levar até lugares com outros potenciais extrativos ou de coleta. A
seguir, apresentando algumas das espécies frutais mais comuns, no que se refere à composição
de trilhas e encontros com mry (animais de caça).

Figura 11. Espécies frutais consumidas por mry.

Nome mebêngôkre Nome em português Animais que comem o


fruto

Bàjrerek Cajá Jabuti, Veado, Anta, Paca

Atwyrytí Embaubão Jabuti, Veado, Anta, Paca

Kamõktí Frutão Jabuti, Anta, Porcão


(Semente), Caititu

Djudjêkamrek Coqueiro Bacuri Jabuti, Veado

Kubekrãnti Cacao Do Mato Jabuti (Flor)

Pidjôkrãnhytí Jabuti, Veado, Anta


195

Kamere Açaí Aves, Jabuti, Cotia

Kamerekrãti Bacaba Aves, Jabuti, Cotia

Pytàti Veado, Anta, Jabuti, Paca,


Tatu

Koknhoko Ingá Macacos, Aves

Bàrin Mamuí Anta, Veado, Jabuti, Porcão.

Pijarepore Paca, Veado, Jabuti

Mrôti Jenipapo Jabuti, Veado, Anta, Paca

Adicionalmente, o Txuak menciona que deve haver uma “marcação”, me parecendo ser uma
alusão a que o processo de exploração de novos caminhos deva ser realizado com certas
considerações, provavelmente para evitar incidentes como a desorientação. Kudjwu - quem
parece ser o caçador o qual mais realiza essa prática exploratória em Pytakô - me explicou que
a forma de encontrar98 caminhos é andando, ou seja, a prática frequente da caça é o fator que
leva à necessidade de explorar mais e, por conseguinte, reconhecer novos caminhos e lugares.

A orientação para Kudjwu é também fundamental para se aventurar por espaços em processo
de reconhecimento. Ele disse considerar o movimento do sol ao longo do dia para ter noção da
direção na qual se encontra o rio. Também fala, igual à Txuak, de fazer marcações em árvores
caso fique desorientado e precise voltar por onde previamente passou. Ademais, Kudjwu disse
ter feito uma prática quando era menoronure, a qual lhe ajudou a ter melhor orientação hoje:

Kukrut-anta é um bicho que nunca se perde, pode andar e andar e sempre sabe para
onde ir e por onde voltar. Anta sempre sabe onde tem todo tipo de coisa, sabe ir nas
grotas para tomar banho, sabe onde tem árvore que tá dando fruta, sabe onde tem a
gente querendo pegar ela. Kukrut anda livre pelo mato, por isso quando nós ainda

98
Encontro um pouco de resistência a usar a categoria “abrir” caminhos, já que como tenho explicado, os caminhos
são produto de uma conjunção entre os caçadores com os animais e ainda as espécies vegetais as quais os atraem,
sendo limitante adjudicar o caminho apenas à intervenção antrópica. Assim descobrir me parece uma categoria
mais acertada.
196

somos novinhos e estamos começando a ir pro mato, a gente pega uma pata de kukrut
e passa pelo corpo, assim a gente pega o jeito, para não se perder no mato.

Aquisição de orientação. Kudjwu

Foi acompanhando o pai de Kudjwu, o Bep Kaire-Junior, através de uma trilha a qual saindo
da estrada se estendeu pela mata até uma grota, que entendi melhor a questão das marcações.
Nas proximidades da grota encontramos várias pegadas frescas de cascos em forma de dois
polígonos conjuntos, sugerindo a recente passagem de um bando de queixadas por ali. Apesar
de estarmos só os dois, o Junior decidiu seguir os rastros que iam em sentido oposto do caminho
por onde tínhamos chegado. Tenho a impressão de que os caçadores da categoria, mekrare-
tum, costumam ser mais persistentes do que os novos, não se importando tanto com andar
durante horas atrás de um único objetivo. Nessa ocasião, segui o meu colega por mais de 120
minutos sem sequer ter o mínimo de indícios da nova localização dos queixadas.

O Junior nunca me notificou sobre sua desistência em buscar os porcos, contudo, pouco tempo
depois percebi que diminuiu a velocidade de seu andar e voltou seu olhar com maior frequência
para parte inferior de árvores com vegetação secundária. Isso me demonstrou que ele tinha
mudado de interesse e optado por dar andamento ao típico “plano B” dos caçadores quando
andam sem foco nos grandes mamíferos. Me refiro à captura de jabutis. A procura pelos
quelônios também não deu fruto, mas contrário a desistir, o Bep Kaire continuava a andar.

Em algum lapso da nossa expedição, notei que o Junior começou a realizar um tipo de
sinalização através de algumas árvores. Não tenho certeza de em qual momento deixamos de
estar numa trilha reconhecida pelo meu colega de andança. Suspeito que o caminho acabava
na grota e a única razão para ter avançado além era o prometedor encontro que ele esperava ter
com os queixadas. O fato é que fazia um tempo estávamos num lugar pouco conhecido e o
Bep Kaire tinha feito deslocamentos para um lado e outro, sendo muito difícil para mim ter
noção sobre como retornar até a grota. Não obstante, ele, sendo um mekrarere-tum, usualmente
caçadores expertos e solitários, não se confiou, decidiu deixar rastros por onde voltar caso
perdesse a sua orientação.

As marcas pareceram simples e rápidas de fazer, levando apenas segundos para serem
efetuadas com ajuda de um facão. Consiste em abrir um corte de tamanho visível no tronco de
uma árvore mediana sem ir a desprender completamente a casca. Uma vez aberto o corte, é
introduzido no meio outra casca, prendendo-a com a pressão da casca do corte contra o tronco,
197

dando aparência de uma cruz. Com esse procedimento se garante que a marca seja visível a
maior distância e haja certeza de que foi feita pelas mãos do explorador, evitando o risco de se
confundir com alguma outra marca natural que possa haver em outra árvore. Ademais, graças
à pressão com a qual é colocada a casca em sentido horizontal, ela tende a permanecer ali por
bastante tempo (ver figura 11)99.

Figura 12. representação da sinalização feita por Bep Kaire nas árvores.

Estando próximo o pôr do sol, notei que continuávamos muito distantes da estrada e não tive
outra opção do que cobrar o Junior pelo nosso retorno, já que esperava estar de volta em Pytakô
esse mesmo dia. Ele ficou um pouco zangado, pois acredito que deve ter me culpado em parte
pelo infortúnio do seu dia. Nossa volta foi rápida graças às marcações, conseguindo sair com
destreza daquele lugar. Não duvido que sem a sinalização nosso retorno não teria sido possível
no mesmo dia, já que a floresta escurece velozmente. Inclusive, quando atingimos a estrada,
já era de noite.

Recapitulando o exposto até aqui, posso dizer, com base nos meus interlocutores, que a floresta
opera a partir de um regime de significados gerados a partir de relações de interdependência
entre espécies. Sendo os caminhos a forma operacional na qual acontece a mobilidade dos

99
Ditas marcações são elaboradas apenas em lugares pouco conhecidos ou por caçadores que não reconhecem a
área pela qual transitam. As trilhas mais frequentadas, geralmente não possuem marcas, sendo visíveis apenas
através da abertura feita pela constante locomoção dos corpos. Assim, não se deve considerar que todo caminho
possui marcações, já que estas são pouco recorrentes nas redes de caminhos dos Xikrin.
198

sujeitos. Ademais, os caminhos levam a lugares (caminhos também podem ser lugares)
concretos no ambiente, onde acontece a dinamização e transformação das experiências. Esses
lugares, sejam de exploração cinegética ou de coleta, são geralmente identificados através da
linguagem toponímica, vindo a ocupar o centro de atenção na medida em que são gradualmente
incorporados pela experiência prática. Ou seja, um ponto rico em árvores frutíferas, geralmente
frequentado por mry, é incorporado pelo coletivo de caçadores de uma aldeia na medida em
que um ou mais caçadores começam a frequentar aquele lugar com certa periodicidade. Por
vezes, esses caçadores dão um nome para o lugar. Os nomes, geralmente coincidem com o
aspecto físico , as espécies vegetais ou a uma experiência concreta de interação com outros-
que-humanos. Por exemplo, kenkudjoe em Bacajá ou pí-y-kô, em Pytakô, fazem referência a
espaços com lajes e castanhais, respectivamente. Ou então, lugares com nomes de animais ou
predadores, ganham a denominação através de um encontro representativo.

Fisher (1991, p, 122) apresenta um leque de denominações através das quais os Xikrin
identificam pelo menos dois grandes tipos de florestas: florestas primárias ou com grandes
arvores: bàràràra, bà kamrek ou bà ké; e, florestas secundárias com vegetação baixa (bà tyk,
utîm). Ademais, em concordância com o que mencionei no parágrafo anterior, o autor dá alguns
referentes que serviriam para identificar subcategorias florestais de acordo com a densidade de
espécies, dando três exemplo:: pí-y-kô, Rapkô, Kamere-kô, ou seja, bosques de castanha-do-
brasil, bosques de rap (uma espécie de arvore sem fruto), e bosque de açaí. Também define o
conceito de kapot referido a áreas abertas ou de savana, identificando que a pista de pouso seria
o lugar com essa característica para os Xikrin. Eu tentei encontrar se a estrada que comunica
as aldeias com o exterior da TITB, usada amplamente com propósitos cinegéticos (ver capítulo
4) poderia possuir essa denominação na atualidade, porém, percebi que ela é chamada de pry
(trilha) ou então com seu nome em português, estrada. O autor também inclui na sua análise a
categoria puká ke/ibê, área de transição entre periferia da aldeia e a floresta, composta por
gramas, arbustos ou pudendo ser associada também a capoeiras.

Resumindo, o autor sugere que para os Xikrin, as florestas densas ou secundárias, seriam
espaços prediletos para usos ecológicos. Pois ali, na bà tyk, é possível identificar cenários mais
ricos em espécies comestíveis (mry), cipós (usados na medicina ou mesmo na pescaria), terra
fértil, apta para abrir roças (vale indicar que tyk se refere a escuro, ou seja terra preta). De fato,
as chamadas bà tyk são mais frequentadas pelos caçadores e possivelmente sejam espaços com
alto volume de trilhas emergentes, podendo ser incluídas ali as antigas roças ou capoeiras (ibê).
Contudo, tenho acompanhado frequentemente expedições que levaram aos caçadores até
199

lugares de vegetação primária (kamrek, terra vermelha) com grandes espécies como samaúmas,
castanheiras ou angelim, espaços caracterizados por serem amplos e/ou abertos.

Quero sugerir que as denominações que os Xikrin dão à floresta, apesar de serem um parâmetro
importante, não deve ser usado como vetor principal para analisar o reconhecimento que os
caçadores fazem da floresta na prática, pois sua classificação ecológica não se reduz apenas
aos aspectos físicos dos lugares. Isso porque esses apelativos ou toponímias não esgotam as
experiências contidas no ato bà kam tem, o qual evoca uma compreensão da floresta como um
cenário móvel ligado a um sentido de periodicidade (temporalidade), por cima da
espacialidade. Em outras palavras, um lugar de floresta adulta com espaços abertos para
transitar ou uma floresta secundária com espaços fechados e alta densidade de cipós, são para
os Xikrin indicativos de possibilidades, seja para coleta, caça ou abertura de roças; mas, o que
define a circulação, constância e uso dos espaços é a relação específica que se constrói no
cotidiano, sendo geralmente temporária e produto da interação com outros-que-humanos,
igualmente móveis.

Vou dar dois exemplos para elucidar essa questão. O primeiro referido aos igapós. Durante a
época de vazante, os xikrin frequentam esses lugares, chamando-os de buanhoro,
principalmente para capturar peixes que desovaram. Não obstante, em épocas secas esses
mesmos espaços ganham a denominação ken (lajes), ou inclusive pukákamré, onde há árvores
que dão certos frutos que caem. Assim, se o nome é indicador de lugar reconhecido, é a
especificidade das relações humanas e outras-que-humanas, incluídas as vegetais, que acabam
designando um tipo de floresta, mudando após um certo tempo seu significado.

O segundo exemplo é baseado numa explicação de Txuak: “nós vamos na roça velha
(capoeira) mas se ali tá fraco (sem alimento), o bicho não tá mais ali. Nós já vamos,
frequentamos lugar de pidju (frutão), o mato mostra para onde ir. A gente vai por onde o bicho
vai, tem vezes que ele vem também...”. Ou seja, a floresta e seus lugares ganham forma e
significado sempre que houver uma sincronia entre caçador-presa-mata. E, essa sintonia é
factível de permanecer enquanto um e outro estejam em constante mobilidade, provendo
encontros na maioria das vezes em florestas densas, mas também nas áreas primárias. Ademais,
sempre que tiver espécies vegetais que sustentam a alimentação. De maneira que faz sentido
tentar pensar em uma compreensão ecológica dos espaços florestais de acordo com o tipo de
mobilidade multiespecífica que se dá.
200

Para efeito dessa premissa, o trabalho de Tourneau (2007) e Albert (2016) entre os Yanonami
é fundamental, ajudando na compreensão de uma cartografia espaço-temporal de acordo com
as relações ecológicas dos caçadores e coletores desse povo indígena. A diferença de outros
estudos ecológicos sobre uso e ocupação de áreas florestais entre povos indígenas amazônicos,
incluído o estudo de Posey (2002, 34-41) entre os Kayapó - no qual se entende o exercício de
caça e coleta de forma concêntrica - Tourneau & Albert (2007) propõem que o exercício de
mobilidade entre trilhas e consolidação de lugares é dado de forma reticular, desenhando um
circuito de interconexões onde há espaços próximos sem interesses exploratórios, enquanto
outros, distantes, com alta exploração. Ademais, há sempre uma conexão entre os centros de
exploração através de trilhas. É um cenário semelhante a um território-rede, para usar a
categoria proposta por Haesbaert (2004).

Esse pressuposto se adapta ao esquema de ritmos e lugares que os Xikrin frequentam durante
as distintas épocas do ano, havendo uma possível cartografia reticular, a qual partindo das
aldeias, se adentra entre uma floresta de transição e atinge lugares mais distantes: lugares que
os caçadores definem como badjà (lugar onde se anda/visita). Ademais, há também aqueles
lugares vazios (kapryp), atravessados apenas por trilhas. Dessa maneira, a forma mais próxima
de uma cartografia ecológica dos Xikrin seria a partir da oposição entre lugares de confluência,
lugares vazios e uma rede de caminhos100 que fazem as interações serem possíveis.

Por outra parte, tenho observado que havendo uma vasta rede de caminhos na floresta, não
todos são de proporções semelhantes, existindo caminhos muito extensos pelos quais é possível
se locomover durante horas, e caminhos que - sendo curtos - são em muitas ocasiões mais
transitados. A distância dos caminhos talvez possa se relacionar diretamente com o tipo de
pessoas que neles transitam, o que por vezes constrói especificidades de uso para cada um
deles. Sobre esse aspecto, Descola (2006, p. 153) define que há caminhos próximos dos núcleos
habitados os quais são normalmente frequentados por mulheres e crianças com propósitos de
coleta e pescaria com timbó, sendo que uma vez são ultrapassadas essas áreas, pode se
identificar áreas dedicadas especialmente à caça. Esse contexto é muito semelhante com a
cartografia de Bacajá, sugerindo uma divisão do trabalho Xikrin relacionada com as trilhas e
com ênfase nos caminhos e lugares onde se dedicam expedições com propósitos estritamente
cinegéticos. Para destrinchar essa questão, me permito sugerir uma classificação em trilhas
curtas e trilhas longas, a qual pode facilitar a análise.

100
Podem, haver algumas exceções: caminhos independentes que não se comuniquem com outros caminhos,
embora o padrão seja sempre uma rede.
201

Zanotti (2016, 137), analisando os usos e funções que tem as trilhas próximas das casas e
aldeias, identifica uma variação semelhante à que proponho e irei apresentar a seguir,
definindo que as trilhas mais próximas servem como lugares de coleta de múltiplas espécies
florestais que se reproduzem ao longo dos caminhos transitórios que irão se conectar com locais
mais distantes, os quais se caracterizam por serem acampamentos de pesca, lugares de caça,
caminhos até outras aldeias ou pontos de referência histórica marcados por usos e/ou ocupações
no passado.

Trilhas curtas

De forma geral, caminhos que saem da aldeia e traçam perímetros relativamente próximos,
assim como caminhos que chegam em grotas ou que guardam proximidade com uma roça, são
os mais frequentados: homens e mulheres, assim como a maioria das categorias de idade
transitam por estes caminhos, especialmente os mebenget, meprire e menoronure. Ou seja,
caminhos próximos são mais usados por crianças, adolescentes e idosos que circulam para
procurar pequenos mamíferos, peixes e frutas ou, no caso dos velhos, para extrair algumas
madeiras com o propósito de elaborar reformas nas suas casas e quintais. Onça, por exemplo,
durante a etapa final do meu campo, costumava me pedir para lhe acompanhar até um bosque
um pouco além de uma velha roça abandonada. Ali, a gente cortava um tipo de madeira que
após um período de seca procedemos a transportar com o propósito de começar reformas no
ngobe de Pytakô. Não consegui acompanhar a construção como tal, embora, algum tempo
depois, recebi algumas fotografias que evidenciam o êxito da empreitada do velho. Ao finalizar
a jornada, ficávamos mais um tempo na roça, à espreita de caititus e pacas.

De qualquer forma, me parece que esses tipos de caminhos são uma forma predileta para
exercitar a memória agonística dos mais velhos, sendo lugares de reencontro entre a floresta e
aqueles que já foram caçadores e hoje permanecem na aldeia. A diferenciação entre trilhas
longas e curtas parece traduzir-se numa espécie de revezamento geracional, já que se por uma
parte os velhos andam nas trilhas próximas, os mekrare (adultos) optam por trilhas mais
distantes, com a expectativa de capturar grandes animais. Com isso, talvez possa ser dito que
todos os caminhos possuem um campo relacional – e geracional - que lhes faz estar sempre
ativos
202

Figura 13. Projeção de tipos de caminhos nas proximidades de uma aldeia, usando como
referência Pytakô.

No caso de crianças, mas principalmente de menoronure - homens novos e solteiros,


geralmente entre 10 e 15 anos -, sua circulação está circunscrita a um difuso compêndio de
experiências. Garcia (2018) descreve que a exploração da floresta pelas crianças e adolescentes
Awá Guajá é feita de forma a vasculhá-la exaustivamente a cada expedição. Para os Xikrin,
tenho observado que a exploração é lenta e progressiva, as experiências mais intensas se
restringem às trilhas curtas e rara vez a expedições em espaços mais distantes. As trilhas curtas,
que saem da aldeia e chegam em roças, grotas ou o rio sempre estão sendo visitadas por grupos
de meninos que de forma agonística vão e vêm todos os dias. Vidal (1977) descreve como na
época em que ela fez campo entre os Xikrin do Cateté, os homens dessa categoria de idade
deixavam de morar nas casas das suas mães, permanecendo no ngobe. Tal processo facilitaria
a consolidação de metades, facções e grupos os quais, a partir desse período, passariam a
experimentar um processo acelerado de aprendizagem prático que outorgaria uma certa
madurez e independência pessoal.

Onça vivenciou o contexto descrito por Vidal, indicando que a sua geração foi uma das últimas
a experimentar esse aspecto que costumava ser parte elementar na organização das categorias
de idade Mebêngôkre. Ademais, outros mebenget da mesma geração de Onça como Bep
Pumatí, Tapiex, Domingo e Nhoiprê relatam terem morado no ngobe e terem aprendido a andar
no mato e a caçar a partir de expedições efetuadas quando eles eram adolescentes. Essas
203

expedições contavam com um chefe de categoria menoronure - um ngokónbôri - sendo Onça


em Bacajá.

Hoje em dia nem os menoronure, nem outras categorias de idade moram no ngobe101, salvo
alguns casos nos quais, havendo se programado um metoro, os visitantes de outras aldeias se
instalam na casa central durante vários dias. A festa do bó, é também um acontecimento que
costuma reunir representantes de todas as categorias de idade durante as tardes para entoar
cantos e ouvir discursos ao longo de vários dias prévios à atividade central102. Contudo, a
dinâmica de agrupamentos e o potencial de expedições a partir de iniciativas de homens novos,
não tem sofrido mudanças estruturais103, dando-se continuidade à formação de alianças, que
traduzidas através de amigos formais, agitam a expectativa de grupos de meninos para se
aventurarem pela mata.

Alguns dos meus interlocutores que atualmente são mekrare, na faixa dos 30 anos, casados e
com filhos, como Bep Nhô, Bep Krá, Kudjoeire, Brí e Bep Kamrexti chegaram a me manifestar
a importância que tem para eles manter as alianças concebidas na época em que foram
menoronure. Alguns deles, como Bep Krá, que atualmente é chefe de Bacajá, apesar de terem
agendas ou funções que lhes levam a permanecer contínuos períodos fora da aldeia, encontram
um espaço para ir caçar com seus amigos formais e cunhados. Durante a minha estadia em
Bacajá pude observar a constante movimentação de grupos de meninos que, saindo da área de
residência, se adentravam por algumas trilhas. Após algumas horas, voltavam completamente
encharcados e sujos, trazendo algum peixe nas costas ou algum pássaro sob o braço, rara vez
apareciam sem presa alguma. Um ambiente alegre lhes acompanhava, entre piadas e
gargalhadas faziam notar seu retorno.

Essa dinâmica está ligada ao treinamento de habilidades como a orientação na mata, a pesca
nas grotas e o rio e a caça de pequenos mamíferos entre roças e árvores. Ademais, também se
estabelece um forte vínculo emocional que consolida alianças a longo prazo entre membros de
uma mesma categoria de idade (para entender as subcategorias de idade ver Box desta tese e
para uma análise teórica sobre o aprendizado entre menoronure, veja o capítulo 7). Ademais,
se hoje os menoronure não habitam o ngobe, senão que continuam morando nas respectivas

101
Cheguei a visitar seis aldeias Xikrin e em nenhuma havia moradores ou inclusive, jovens que chegaram a
frequentar com regularidade o ngobe. Colegas que têm transitado em outras aldeias, também em Cateté, me
informaram que essa tradição também não é mais evidenciada.
102
Para aprofundar detalhes sobre esse ritual, veja (Gordon 2006; Cohn, 2005; Tselouike, 2018).
103
Pelo contrário, avanços tecnológicos como celulares que abundam nas aldeias, têm sido aderidos ao cotidiano
das atividades dos mais novos, sendo comum encontrar vídeos que mostram de forma jocosa as experiências
coletivas na mata.
204

casas de suas mães, isso traz consigo um caráter de responsabilidade retribuída que liga as
expedições entre meninos com a oportunidade de levar algum tipo de alimento ou carne para
suas casas. No passado, o rendimento das expedições era levado em muitas ocasiões até o
atykbe (casa de morada dos homens antes do ngàb), ou ngobe, e ali um mebenget elaborava
uma refeição coletiva. Hoje, essa prática se transladou ao quintal das casas (rõpte) onde são
feitas refeições com um caráter geralmente familiar.

Os filhos de Merettí são talvez o caso mais evidente dessa relação. Dois irmãos, o mais velho
com quinze anos e o caçula com treze. Ambos costumam acompanhar as expedições da família
e serem engajados na procura de presas durante momentos em que os pais, tios e avós se
dedicam a atividades como a quebra de ouriços de castanha. Durante o tempo que passei em
Bacajá era comum ver neles uma atitude agonística exagerada, chegando a fazer com que eles
vissem em múltiplos momentos mry, onde não havia. Durante algumas tardes em que a família
permanecia na aldeia, os meninos sumiram. Alguma vez me propus a esperar no final do dia
seu retorno para observar com atenção o desfecho das suas saídas. Efetivamente eles tinham
tomado uma trilha e se adentrado através de uma mata que circunda o rio Bacajá. Voltaram
com um par de macacos-prego nas costas e entregaram diretamente para a sua mãe, quem
procedeu a acender a fogueira.

Uma das coisas que mais chamou a minha atenção foi que apesar de ser uma expedição de
apenas dois, o mais velho tinha levado consigo a espingarda do pai. Assunto inusual, pois os
novos não usam normalmente esse instrumento. Se as expedições de menoronure nas
proximidades da aldeia correspondem a um assunto comum que perpassa e conecta passado
com presente, é também comum encontrar relatos sobre o passado que descrevem as atividades
dos menoronure baseadas no uso de bordunas, arcos e flechas, servindo como um campo de
treinamento para agudizar habilidades as quais posteriormente poderão ser exploradas com
maior eficiência através de espingardas.

Contudo, essa questão constitui um aspecto que acaba por conectar geracionalmente velhos e
novos, mebenget e menoronure, pois estes têm em comum aqui dois aspectos: primeiro, ambos
circulam através de caminhos subjacentes às aldeias com propósitos semelhantes. Segundo,
ambas gerações optam pelo uso comum de implementos tecnológicos mais rudimentares, como
arcos, flechas e bordunas. Claro, há exceções, há velhos que preferirão andar pelas trilhas com
uma espingarda no braço, assim como há casos como o que tenho descrito dos dois irmãos, nos
quais menoronure um pouco mais avantajados, conseguem emprestar a espingarda de seus
parentes.
205

Há ainda um aspecto adicional que conecta de forma intergeracional as duas categorias de


idade, referido ao sentido simbólico -e prático- que os caminhos próximos das aldeias
outorgam: se esses espaços se revelam aos menoronure como um sistema de experiências que
se desenvolvem a cada momento, esses mesmos lugares operam como um dinamizador da
memória para os mebenget, trazendo consigo um cenário de aprendizados que - estando em
dois extremos temporais - se complementam num mesmo sentido. Devo voltar nesse aspecto
um pouco mais adiante, para abordar as distintas aparências que as expedições tomam através
das categorias de idade, gêneros e parentescos. Não obstante, é preciso trazer aqui um último
assunto relacionado com os caminhos curtos.

Como tenho dito no final do segmento anterior, a formação da floresta significante entre os
Xikrin pode ser entendida a partir de um padrão reticular (Bonnemaison 2005; Albert e Le
Tourneau, 2007). Isso aplicaria também para os caminhos curtos. Aquelas vias que comunicam
os espaços domésticos com roças, grotas e o rio (ver figura 12). Ou seja, ao invés de uma padrão
concêntrico, essas trilhas e lugares próximos das aldeias são o começo de uma rede, operando
através de um ponto inicial que tem como destino outro ponto. Por exemplo, no caso dos grupos
de meninos que costumam se aventurar nas proximidades de Bacajá, numa tarde qualquer,
saindo através de uma trilha que tem origem a própria aldeia, é provável que esta os leve até
um lugar de interesse como uma grota onde tomarão banho, brincarão e acabarão pegando
alguns peixes para si e a sua família. Assim, o ponto inicial é a aldeia, o ponto destino, uma
grota e esses os dois, conectados através de uma ou várias trilhas, são as vias de trânsito.

Há também uma outra prática entre caminhos curtos ou de transição que apesar de ser pouco
usual, está presente. Me refiro a andanças de redescoberta dirigida. Caminhadas onde parentes
como pai e filho, avó e netos ou tio e tadjuos se deslocam104. Esses deslocamentos são
cartograficamente circulares e seguem sinalizações ao longo de áreas que, sem ser estritamente
próximas de uma aldeia, não vão muito longe na floresta. Um depoimento de Brí traz com
maior clareza esse assunto.

Quando eu era menoronure gostava de acompanhar meu pai (Coronel), a gente ia


para a roça e para o mato. Ele sempre me levava, eu sou o filho mais velho... levava
outros meninos também, tinha vezes que era ele (o pai) e mais um grupo de meninos
(tadjuos). A gente saia da nossa roça e andava, eu via que ele marcava com facão as
árvores. Quando meu pai fazia isso ele falava, ele dizia que a gente quando anda no

104
Os deslocamentos e expedições são abordados com maior detalhe no capítulo 5 com o proposito de apresentar
uma certa “tipologia” que explique a composição dos grupos e propósitos de cada expedição.
206

mato tem que olhar para cima e ver os galhos das árvores, não pode só ficar olhando
para baixo, disse que as marcas eram para saber voltar. Eu via que ele fazia as
marcas, mas nem sempre as voltava a ver, era mais como para mostrar que a gente
tinha que ter uma precaução. Eu acho que a gente dava uma volta grande porque
ainda que depois eu não via as marcas, a gente voltava no mesmo lugar, perto da
roça.

Como aprendi a andar no mato. Depoimento de Brí.

Figura 14. Projeção do percurso descrito por Brí, considerando o estilo de movimentação entre
a roça familiar e a floresta.

Tal como o Brí explica, esse caminho traçado com padrão circular que conecta uma roça com
a floresta, é um tipo de experiência instruída que busca introduzir aspectos básicos de
orientação para um homem o qual apenas está começando a se relacionar com ambientes
alheios. Essa é uma forma de aprendizado experiencial menos comum do que as expedições
coletivas organizadas pelos próprios menoronure. Contudo, revela um aspecto bastante
pertinente relacionado com a mobilidade e a cartografia dos caminhos Mebêngôkre, já que o
padrão ilustrado acima (figura 13) é mais habitual do que possa se pensar105, principalmente

105
Uma exceção ao estilo de andança ilustrado na figura 13 é descrito por Fisher (1991), na qual os menoronu
estariam na frente e adultos atrás. Durante o meu trabalho, tenho observado os dois estilos, podendo ser
207

quando a atenção se desloca para as trilhas longas e distantes, frequentadas pelos caçadores
experientes (plenos). Vejamos.

Trilhas longas

Até aqui tenho falado sobre os caminhos mais próximos das aldeias que tem por característica
serem curtos. Contudo, sugiro que tanto as trilhas curtas quanto os longas têm em comum uma
cartografia equiparável à descrita por Bruce Albert e Le Tourneau (2007), na qual o uso de
espaços entre roças e a floresta é realizado através de uma formação reticular que explora
conexões entre pontos de referência e linhas que os comunicam. Adicionalmente, em Bacajá
há áreas de pouco interesse exploratório em contraste a outras que são constantemente
visitadas, ocasionando que haja amplos deslocamentos através de caminhos até atingir lugares
ou pontos onde as atividades cinegéticas e de coleta são mais frequentes, dando origem a
caminhos longos ou que se adentram por vários quilômetros na floresta.

Contudo, tenho percebido uma questão suplementar no entramado reticular, relacionado


diretamente com os ritmos e gestos do ato bà kam tem. Os caçadores não se deslocam apenas
entre pontos e linhas, senão que a sua atitude comportamental os leva constantemente a sair
das trilhas e traçar novos percursos com aparências circulares. É um tipo de deslocamento que
partindo da conexão com uma linha, ou melhor, uma trilha, os tira desta para explorar novas
áreas contínuas, representando mais oportunidades de caça e coleta.

Essa outra movimentação está vinculada à intencionalidade por abranger e inspecionar espaços
mais densos e menos transitados. Ao recriar a alternância entre caminhos e as inspeções
contínuas, é possível descrever uma cartografia de revezamentos entre movimentos retilíneos
e semicirculares. Ou seja, as incursões além das trilhas outorgam um reconhecimento de áreas
contínuas e concluem com o retorno à mesma linha, porém, um pouco mais à frente.
Igualmente, esse comportamento pode ser evidenciado através de formas de caça que usam
como fonte de deslocamento o rio (ver figura 14).

evidenciado que, em qualquer uma das duas hipóteses, os adultos ocupam um papel como sutis observadores e
orientadores dos noviços.
208

Figura 15. Projeção do percurso entre caminhos e incursões na mata, revezamentos retilíneos e
circulares.

Em certo dia, enquanto conversava com Meretti, quis consultar o tipo de percurso que ele tinha
realizado em pukákamré naquela ocasião em que eu tinha me extraviado. Na minha experiência
de retorno, o caminho que realizei para voltar foi relativamente reto106, seguindo pelo mesmo
caminho por onde tínhamos entrado. Contudo, ele passou um tempo completamente sumido.
A sua resposta me confirmou que ele tinha saído do caminho em vários momentos, o motivo
era a presença de árvores de pariri (frutão) que estavam em período produtivo. Uma árvore foi
lhe levando a outra e assim por diante, fazendo com que ele transitasse entre uma e outra área
contínua. Inclusive, por isso que ele tinha vários frutões nas suas mãos quando o reencontrei.
Eu mesmo não tinha visto essas frutas ao longo do trekking que realizei.

106
Os caminhos nunca são estritamente retos, essa expressão faz alusão mais à condição de caminhos que
seguem uma sequência linear e vão de um ponto a outro.
209

Porém, Meretti com seu domínio e orientação, tinha conseguido encontrar várias árvores dessa
espécie e tinha ido atrás com a esperança de dar com algum rastro de mry ou pelo menos com
jabutis. O meu interlocutor indicou que ele tinha saído do caminho, andado através de áreas
contínuas e voltado fazendo uma circunferência até o caminho, em dois períodos diferentes.
Me lembro de ter percebido que as pegadas da sola do seu sapato desapareceram do caminho
em mais de uma ocasião, indicando os pontos onde ele abandonou o caminho, retornando só
na frente.

Figura 16. Projeção de percurso feito por Meretti em pukákamré.

Dessa maneira, há uma forma na qual seria possível diferenciar o movimento dos caçadores
dos caminhos como tal. Se as trilhas operam como linhas que conectam pontos de referência;
os deslocamentos dos caçadores não são sempre lineares, o que faz com que as formas de
deslocamento apresentem padrões, mas não sejam rígidas. Talvez possa ser dito que as linhas
operam como o lugar de segurança para um caminhante na floresta, ali é sempre possível
transitar sem ter que se preocupar muito com a orientação. Não obstante, o êxito de um caçador,
em muitas ocasiões, depende -apesar de ser possível encontrar mry apenas andando pelas
linhas- da sua locomoção além destas. Em outras palavras, havendo uma configuração retilínea
das áreas mais exploradas pelos caçadores Xikrin, há uma variação a essa forma cartográfica
no procedimento em que eles transitam nas linhas entre um ponto de exploração e outro, sendo
essa variação um movimento semicircular.
210

Esse aspecto é mais comum de ser observado nas trilhas longas, nas expedições prolongadas,
onde os caçadores necessitam se valer de múltiplas habilidades cinegéticas. Quando um
caçador de categoria mekrare (e outras categorias derivadas) decide andar na floresta, é muito
provável que inicie sua travessia a pé saindo de uma trilha próxima da aldeia, mas com o passar
dos minutos e na medida em que sua corporalidade vai se deslizando através de um ou vários
caminhos, a distância se torna cada vez mais marcante, o que faz com que seja possível
diferenciar a sua experiência da dos menoronure e mebenget (adscritas às trilhas curtas).
Usando as figuras 12 e 15, é possível imaginar uma sequência na qual num primeiro momento
um caçador experiente circula pelos caminhos que saem da aldeia e chegam na roça ou no rio.
Uma vez que atravessa uma roça ou se desloca através do rio, usa uma conexão ou
entrecruzamento entre uma trilha e outra (semicírculos na figura 15) e atinge o setor das trilhas
mais longas e distantes, o que muda o sentido da sua atividade e abre finalmente a possibilidade
de perceber locomoções semicirculares.

Nesse caminho é mais comum encontrar mry107: antas, veados e queixadas ajudam a definir
esses caminhos. Ademais dos seus rastros convidam o caçador a não sair da linha. Em
consequência, entre mais um caçador se desloque por um caminho, mais é possível que retorne
através de outro. Txuak tem dado algumas luzes a esse respeito.

Rapaz, quando tu anda no mato caminha por uma trilha e se ali tu não acha nada,
tem que continuar. Tem que andar mais para dentro do mato, mas tu não vai
seguindo só para frente, tu vai andando para um lado ou para outro até ir voltando.
Tipo aquele dia que nós entramos pela estrada atrás de árvore de fruta, a gente não
achou nada, nem jabuti. Então, o que que a gente fez? Continuou caminhando e foi
rodando até voltar na estrada, só que a gente foi dar lá na frente. Aí a gente entrou
de novo no mato e fez a mesma coisa, andou rodando até voltar na estrada.

Dado que ele explica que um caçador opta por tomar diferentes rotas, cabe se perguntar como
isso é influenciado, já que - como tenho dito - os semicírculos são a forma de abranger áreas
contínuas ou paralelas e de ter a oportunidade de voltar para o caminho. Mas, e se o caçador
encontrar uma presa durante a sua incursão, o percurso muda? Efetivamente, pois a locomoção
que tenho descrito é a base para andar na floresta com um sentido agonístico, mas o fatídico
encontro entre espécies pode mudar o panorama.

107
Podem haver casos em que queixadas usando os caminhos curtos acessam as roças e comem os plantios. Onça
chegou a relatar uma ocasião em que a aldeia foi “visitada” por porcos do mato. Sua descrição apresenta um
episódio no qual um bando de queixadas atravessou o campo do centro da aldeia.
211

Figura 17. Projeção de percurso semicircular com encontro de mry.

Quando a gente vai andando atrás de uma caça, se a gente não achar nada, a gente
volta para trilha. Mas se a gente achar, vai atrás. Dependendo do bicho a coisa muda,
os porcão eles não são todos que saem correndo, os machos da frente ficam para
brigar e a gente acaba pegando-os. As fêmeas, elas vão longe com as crias, a gente
prefere a carne da fêmea, mas nem sempre dá de pegar, cachorro ajuda muito. Já as
antas, elas andam sozinhas e gostam muito de trilha, então a gente as pega
geralmente próximas de onde a gente vem andando. Veado é complicado, ele é
muito rápido... veado é igual a anta, só que ele sai fugindo e vai longe demais. Veado
e anta, eles vão parar nas grotas ou nos rios, então a gente tem que ir até a grota e
212

depois voltar com ele nas costas até o lugar onde a gente achou. Aí depois é tentar
voltar pra trilha.

Tipos de locomoções além das trilhas. Depoimento de Txuak.

De acordo com a figura 16 e o relato de Txuak, os percursos traçados nas áreas contínuas aos
caminhos são extremamente flexíveis, sendo factível de mudar no caso de encontrar um animal
de caça ou de achar alguma árvore em época produtiva. Inclusive, cabem os trajetos lineares
ao longo das áreas contínuas, se a presa impor esse tipo de deslocamento. Como meu
interlocutor disse, usando como exemplo os veados e as antas, estes buscam se refugiar em
grotas, o que faz com que seja necessário segui-los até lugares distantes. É como se cada evento
na mata trouxesse um novo capítulo o qual, sendo aberto, deve ser concluído, seja encontrando
uma nova interface ou então voltando até onde tudo começou.

Com isso quero dizer que nas expedições dos mekrare (adultos: mẽnoronure-tum, mẽmudjê-
nu, mẽtuyaro, mekranure, mekrarere-tum [ver segmento: categorias de idade]) fica mais
verídica uma grande rede de circuitos ao longo da floresta. Vejamos.Um caçador saiu a pé da
sua aldeia, cruzou os caminhos que chegam até uma roça e depois tomou um cruzamento que
o levou até um lugar denso da mata. Ali, deverá continuar se deslocando através de uma trilha
definida. Assumindo que não ache presas à sua frente, começará a fazer incursões
semicirculares. Vamos supor que durante uma dessas incursões achou um mry, que percebendo
o perigo, fugiu num sentido inverso ao caçador e lhe obrigou a irromper num novo percurso
além do semicírculo. Esse percurso pode ser de uma ou outra forma, pois dependendo da
espécie do animal, lhe levará mais longe do caminho. Finalmente, assumirei que o desfecho
teve como lugar uma grota, onde o caçador conseguiu abater o animal.

Agora terá que retornar até a aldeia, onde finalmente a carne será consumida pelo grupo de
parentes e afins. Assim, o retorno dele começa no lugar da grota e terá como princípio
reaproveitar o caminho que veio sendo feito durante a perseguição. Ou seja, o caçador voltará
até o ponto de encontro com a presa, para depois retomar o caminho que vinha fazendo além
da trilha, para finalmente atingir este. Ali, seja sozinho ou auxiliado por outros, terá que voltar
até os caminhos curtos das roças, que finalmente o levarão até sua residência.

Um outro aspecto que influencia geralmente os movimentos e principalmente as distâncias


percorridas pelos caçadores, é a questão do auxílio na caça. Ou seja, não é o mesmo para um
caçador estar sozinho ou em dupla (ainda que seja esse o estilo geralmente em que se caminha)
213

do que estar com um grupo de pessoas nas proximidades, até porque há mry, como os
queixadas, que adotam estratégias de andar em bando. No caso de antas, sendo grandes
mamíferos que ultrapassam os duzentos quilos em estágio adulto, representam um problema
para transportá-las. Normalmente comparecem vários homens ao local do abate e,
esquartejando o animal, procedem a levar as partes nas costas108. Dessa forma, quando um
caçador sozinho anda por um caminho principal e encontra um bando de porcos do mato ou
uma anta, a sua primeira ação será ir atrás e tentar através de audácias como o sigilo -ou em
alguns casos a balbúrdia- surpreender sua presa e tentar garantir o abate. Contudo, se o animal
conseguir fugir, o caçador tentará ir atrás, mas a tendência será desistir após um período de
perseguição sem resultados contundentes.

Não obstante, quando a origem de uma expedição tem como quadro a saída em massa ou em
coletivo de homens, as condições mudam, já que um caçador, apesar de estar sozinho e
encontrar queixadas e antas, sabe que há outros colegas rondando em áreas próximas e
eventualmente poderão apoiá-lo. No meu campo, a maioria das vezes em que acompanhei uma
caçada, os grupos partiram por caminhos próximos da aldeia ou pela estrada ou pelo rio e
avançaram até áreas mais distantes, onde finalmente foram conformadas duplas. Ou seja, na
maioria das vezes houve apoio de colegas nos arredores, garantindo a liberdade de tentar ir
atrás dos maiores mamíferos.

Expedições em solitário são menos frequentes e normalmente correspondem a mekranure (pai


com filhos pequenos) e mebenget (velhos) através de trilhas próximas, garantindo também que
no caso de precisar de apoio, seja viável retornar até a aldeia em pouco tempo. Quando são
abatidos animais pequenos como cutias, pacas, veados, inclusive caititus, os caçadores retiram
as vísceras, dobram a presa e a amarram com casca de embira, procedendo a pendurá-la nas
suas costas, utilizando como apoio a testa ou o ombro (ver foto 4, prancha 4). Há casos mais
específicos onde caçadores muito espertos e em processo de descoberta de novas trilhas, fazem
caçadas solitárias e distantes. Uma vez que a composição das expedições é uma questão
bastante relevante, dedicarei o capítulo 5 para expor uma descrição mais detalhada sobre cada
tipo de expedição. O que me interessa destacar aqui é a relação que há entre deslocamentos,
tempos e distâncias e, finalmente, como isso impõe um certo estilo técnico de caça.

Numa das narrativas que o Onça discursou às noites desde o quintal da sua casa, mencionou
que uma expedição, para ser bem-sucedida, deve normalmente ser integrada por múltiplos

108
Atualmente os veículos têm se tornado um grande auxílio para o transporte de antas e queixadas, sendo
frequente que os animais abatidos sejam transportados em sua totalidade até a aldeia.
214

membros. O velho, que costumava ilustrar suas falas através de traços explicativos no chão,
debruça uma estratégia de caça de queixadas frequente na sua juventude. Tanto seu relato como
a sua ilustração dão luzes sobre um dos tipos de deslocamento na floresta, a formação de
subgrupos e os gestos que estão implícitos na atividade.

Quando eu era novo caçava muito. Tinha só uma aldeia, era lá no Bacajá. Eu ia
direto pro mato, ficava por lá... a gente era forte, andava muito Mebêngôkre junto.
A gente escutava o barulho dos porcos, porque eles fazem barulho demais:
ghhruuurrr... ghruurr... eles roncam quando estão dormindo. A gente sente o cheiro
também, eles tem cheiro de porco, tem cheiro forte, de guerreiro. Quando alguém
sentia o cheiro já ia chamar os outros, a gente já ficava esperto e começava a andar
em volta do lugar.

Quando nós acha um bando de porcão tem que aproveitar e matar muito, a carne
deles é boa demais. Então, a gente se separava e ficava em várias partes esperando
para pegar eles, não todos tinham espingarda, então tinha que ser com borduna. Era
muito mebêngôkre de borduna no mato...

Se alguém tinha espingarda já ficava na frente, quem tinha borduna ficava por trás
dos porcos e tinha também outros que ficavam pelos lados esperando, porque tem
vezes que os porcos saem correndo pelos lados, aí tem que ter alguém de borduna
ali pertinho. A gente espera um pouco... aí pronto, começa. Quem tinha espingarda
já chegava e começava a atirar nos porcão, rapaz! Aí os porcos saiam assustados,
correm, é pouco que fica. Aí atrás já tinha outros Mebêngôkre esperando, eles atiram
ou dão cacetada, é na borduna mesmo.

Se tiver muito porcão vindo tem que subir na árvore e esperar, mas eles ficam muito
assustados porque estavam dormindo, aí não sabem, sai todo mundo correndo, então
nós descemos da árvore e batemos neles. É assim que a gente matava lá no Bacajá
quando eu era novo, hoje tem pouco porcão lá, aqui (Pytakô) tem muito ainda, mas
novo (menoronure, mekranyre) não sabe pegar porcão.

Caça de bando de queixadas. Narração de Onça.


Tradução de Txuak.
215

Figura 18. formas de locomoções: assédio coletivo de queixadas. Depoimento de Onça.

Há vários aspectos que configuram a caça de queixadas descrita por Onça. Primeiramente, o
condicionante de ser uma experiência grupal, já que, segundo o velho, essa prática parece
conter uma cuidadosa coordenação entre tempos e posicionamentos, dando lugar a uma
distribuição a qual, sendo circular ou circundante, outorgauma função importante para cada um
dos presentes durante diferentes momentos: quem possuir a espingarda procede a realizar as
primeiras ações; já num segundo momento, enquanto os animais estão desorientados, os
protagonistas são aqueles que - aguardando nas laterais e traseiras - aparecem com o propósito
de arrematar as presas.

Não obstante, não se deve confundir coordenação com explicitação, pois assim como no relato,
que se baseia numa experiência do passado, no presente, é possível observar que a coordenação
cinegética se dá desde um âmbito implícito. Ou seja, cada caçador, sabendo do seu potencial,
habilidade e ferramenta que traz consigo, se coloca numa função correspondente, sem ter que
ser definido ou explicado na prévia do assalto. Inclusive, as categorias de idade e os gêneros
ocupam um lugar importante aqui, pois menoronure, mebenget/i e menires se alocam na
retaguarda, deixando o confronto principal para os mekrare, mekranure, mekrarere-tum.

Em um sentido semelhante, o mekrarere-tum Bep Kaire – Junior descreve como durante a sua
juventude a caça de bandos de queixadas era uma das práticas prediletas para as quais eram
organizadas expedições grupais na mata. Segundo o caçador, a caça através de encurralar as
presas era uma estratégia relativamente frequente entre os menoronure com acompanhamento
de alguns mekrarere-tum ou mebenget que lhes guiavam. Junior acrescenta que no prelúdio das
incursões no mato eram elaboradas algumas ferramentas de caça. Inclusive, destaca que uma
das atividades mais comuns entre jovens e velhos no ngobe é a confecção de implementos,
216

como pequenas bordunas, arcos e flechas. Outra questão interessante é a possível participação
de cachorros durante as expedições.

Igual ao relato de Onça, uma vez que um bando de queixadas é localizado, se dá uma tácita
distribuição de funções onde os que tem espingarda (arco com flechas, em alguns casos) vão
na frente (normalmente os mekrare ou caçadores experientes). Os usuários de bordunas
(geralmente menoronure) se distribuem ao redor da área onde foram identificados os ngru
(queixadas). Ademais, os cachorros, em alguns casos, são amarrados com cipó titica e
transportados pelos caçadores que irão iniciar o ataque, isso com o propósito de evitar que estes
entrem em ação antes do tempo certo. Uma vez que transcorre um tempo, o suficiente para que
os múltiplos caçadores se desloquem nos arredores, os caçadores à frente excitam os cães com
barulhos, procedendo a soltá-los enquanto começam a atirar com espingardas ou arcos. Os
portadores de bordunas esperam para determinar o lugar de fuga do bando, procedendo a fazer
emboscadas.

Figura 19. Formas de locomoções: assédio coletivo de queixadas com cachorros. Depoimento de
Bep Kaire.

Esses dois estilos técnicos são parte do compêndio de movimentos sincronizados ao longo dos
caminhos na floresta, cabendo mais uma vez, sair destes para ir ao encontro dos mry através de
estilos de encurralamento coletivo. Contudo, na prática, tenho observado movimentações
grupais um pouco mais aleatórias quando achados os rastros de queixadas. Lembro-me de pelo
217

menos duas ocasiões nas quais,andando com um grupo de caçadores, nos deparamos com
rastros recentes de um bando. Um fator determinante além das pegadas é o cheiro, pois assim
como o Onça relatou, o fedor que circula no ambiente é pungente, permanecendo no ar durante
um certo tempo109. Naquelas duas ocasiões, os caçadores não chegaram a se distribuir através
de encurralamento coletivo, no sentido estrito da explicação de Onça e Bep Kaire, apesar de
detectarem com antecipação o bando descansando à sombra de árvores frutais. O que se deu
foi uma distribuição rápida de subgrupos, os quais saindo desde uma trilha ou um ponto de
referência, se abriram caminho mata adentro sem ter em consideração o tempo dos outros. Digo
isso porque sempre fiquei junto de outros caçadores ouvindo os tiros das espingardas dos que
tinham ido na frente. Inclusive, esse foi um motivo de reclamação dos que ficamos atrás, pois
considerando que a técnica de encurralamento seria mais eficiente, não foi executada em
detrimento dos que chegaram depois.

Em relação ao uso de cães, houve uma ocasião em que presenciei uma emboscada a um bando
de queixadas. A situação é um pouco semelhante à descrita por Bep Kaire, já que apesar de não
ter toda a infraestrutura de encurralamento ao bando, houve uma agressão frontal de caçadores
os quais, estando na frente, levaram consigo os cachorros, enquanto os excitavam através de
sons vocais (tshiuuu, tshiuuu). Nesses casos, os cães levam a principal atenção dos queixadas
machos, seus latidos, assim como a sua ação em bando (esse tipo de práticas reúnem pelo
menos dez cães), fazem com que os machos alfa dos porcos foquem em repelir os cachorros.
É uma verdadeira batalha entre as duas espécies, na qual geralmente os cachorros acabam
levando vantagem pela sua destreza corporal. Contudo, é normal que os cães fiquem com
ferimentos, em alguns casos mortais, após os confrontos.

Como tenho exposto até aqui, a caça de queixadas tem algumas conotações especiais que
consistem em especificidades técnicas as quais evidenciam ação em grupo. Inclusive,
multiespecífica: a sincronia dos mebêngôkre com os rop (cachorros) em contra dos ngru
(queixadas), estratégias de ataque e defesa, respectivamente. Essas ações refletem sobre
âmbitos de aprendizagem situada (Lave & Wenger, 1991) e aquisição de skills (Ingold, 2002b;
2002c) que deverão ser considerados no capítulo final desse trabalho, pois a experiência
coletiva demarcada através da adoção de estilos e técnicas parece ser muito dinâmica.

109
Os estilos técnicos de abordagem das presas podem mudar dependendo da época, número de pessoas,
conhecimentos, fadiga, entre outros fatores. Uma questão que não muda, corresponde ao âmbito dos gestos e
signos que operam como ferramenta comunicativa, seja para repassar uma instrução, uma determinação, um
convite ou até uma repressão. Assim, sempre que observei uma movimentação coletiva, o repasse de informação
através dos olhares e os movimentos corporais foram importantes.
218

No caso dos caçadores, quando estes usam espingardas ou se valem de cães, estão
reformulando a eficiência de fórmulas mais antigas onde não teriam nem um, nem outro. Não
obstante, o padrão de rastejamento, abordagem, captura e transporte de presas demarcam um
aspecto que não necessariamente muda com o tempo, referido à intencionalidade, ao desejo e
à atitude por andar na floresta e pelo confronto com queixadas. Em outras palavras, a ordem
implícita que demanda a caça de queixadas, incentiva uma recriação de conhecimentos e
valores de masculinidade os quais, vindos há gerações, são colocados no cotidiano das visitas
à floresta na atualidade. Ademais, é talvez a forma mais didática de observar a profunda
coordenação tácita que há entre procedimentos, gestos e movimentos (fora da conotação
xamânica abordada no capítulo 6) entre caçadores, cachorros e queixadas ao longo das trilhas
e lugares. Adicionalmente, posso dizer que a caça de porcos é atualmente, e através das
reformulações técnicas e tecnológicas, uma prática que facilita a observação de um outro estilo
de mobilidade na floresta, o qual sem ser estritamente um caminho, na sua essência não deixa
de sê-lo. Me refiro à estrada.
219
219

14. Caçadores na estrada de Pytakô.


220

Capítulo 4. Formas de caça: estrada, água e imitação

Dando continuidade à exploração das técnicas cinegéticas dos Xikrin, este capítulo aborda as
formas complementares à rede de trilhas (pry) por onde os caçadores e os mry (animais de caça)
frequentemente transitam. A estrada que conecta a aldeia Pytakô ao exterior da TITB, tem se
destacado como uma alternativa cada vez mais comum para a prática de caça nos últimos anos.
Proponho que, em vez de irromper criando distúrbios na cinegética, a estrada tem se integrado
à rede de trilhas de caça, tornando-se uma importante via de mobilidade onde continuamente
surgem ritmos inovadores que intensificam a interação entre humanos e outros-que-humanos.
Além disso, uma parte da análise é dedicada aos usos dos corpos d’água, passando pela pesca
no rio Bacajá e dando ênfase à atividade de bater timbó. Finalmente, é apresentada uma prática
relacionada ao campo da imitação: o esturro com poh tik, que envolve a imitação do rugido das
onças com o objetivo de atrair sua presença para os caçadores. Este capítulo também aborda
estilos, procedimentos, sequências e ritmos como componentes fundamentais a serem
discutidos.

Estrada110

Da mesma forma pela qual uma trilha configura o cenário propício para que a movimentação
pela floresta seja possível, as estradas no interior da TITB, nos últimos anos, vieram
configurando uma forma particular de atividade cinegética, semelhante aos ritmos de
movimentação através de caminhos. Cabe dizer que desde os anos 1980, quando houve abertura
de alguns ramais com o propósito de extrair madeira ilegal, os Xikrin se relacionaram com
aberturas de tipo retilinear. Inclusive, naquela época, costumavam sair em grupo desde a aldeia
Bacajá, se locomovendo durante pouco mais de seis dias através das suas trilhas até atingir a

110
Em alguns casos os Xikrin se referem à estrada como pry, indicando que esta é também uma forma de trilha.
Adicionalmente, pode ser usado de forma complementar o adjetivo karêrê (limpo), indicando que a estrada seria
um caminho limpo (pry karêrê). Embora, essa conjunção de duas palavras parece não esgotar o significado
multifacetado que tem as vias que conectam as aldeias com o exterior da TITB. Isso porque uma estrada, apesar
de apresentar todos os padrões cinegéticos de uma grande trilha, extrapola tecnicamente as formas de caça das
trilhas, pois faculta outros tipos de mobilidade (em veículos) e formas de abate (à distância). Assim, opto por
apenas ressaltar a categoria em itálico, com o propósito de refletir o complexo sistema de significados, técnicas e
experiências que atualmente são mediados por e na estrada.
221

estrada dos kubén (não indígenas) e dali até o local hoje chamado como vila da Pista, onde
negociavam mercadorias com os colonos da vila.

Recentemente, a partir de 2013, algumas dessas aberturas foram reativadas através de ações
relacionadas ao PBA-CI da Norte Energia, dando como resultado vias as quais, saindo desde o
travessão que comunica as vilas e fazendas nos arredores da TITB, chegam até o interior da
mesma. Nessas estradas há pontos de controle de entrada e saída instalados pela Funai e
administrados por empresas terceirizadas. Tais pontos seriam o limite prático que divide a área
dos Xikrin com o exterior111. Pytakô, até 2018, contava com uma via exclusiva com uma
extensão de trinta e cinco quilômetros entre a aldeia e o posto de controle, sendo essa a estrada
à qual quero me referir daqui para frente. Vale dizer que dita via não tinha mais de quatro anos,
em 2018, e foi feita aproveitando partes de uma antiga estrada madeireira que fora abandonada
uma década atrás.

A grandes traços, uma estrada é uma via retilínea que comunica dois pontos e permite o trânsito
de corpos e coisas ao longo da mesma com certos ritmos. Para os Xikrin, essa definição seria
válida. Não obstante, pode ser que a mesma seja ultrapassada com frequência, pelas múltiplas
práticas que ali acontecem. Sendo a estrada a única via que comunica a aldeia com o exterior,
sem interconexões com outras estradas num sentido estrito - pelo menos não dentro da TITB -
cabe se perguntar que conotação tem a estrada para os caçadores Xikrin.

Pois bem, a resposta está implícita na maioria de expedições efetuadas na atualidade. Foi um
dia em no qual acompanhei o Txuak que compreendi melhor esse assunto. Ele me disse como
de costume “bora...bà kam tem...”, assentindo, lhe acompanhei. Não obstante, a gente saiu pela
estrada e andou durante umas quantas horas em sentido oriental, em direção ao posto de
controle. Durante o percurso, saímos da estrada e entramos em alguns caminhos os quais
pareciam não ser improvisados, pois tinham algumas marcas de pessoas que teriam transitado
por ali não muitos dias atrás. Essas breves incursões na mata normalmente chegavam até
alguma árvore de frutas ou uma castanheira. Não encontrando mry, voltávamos para a estrada,
elaborando os semicírculos explicados no capítulo anterior.

Devemos ter andado umas três horas até chegar em uma ponte onde passa uma das maiores
grotas. Ali, há uma casa abandonada. Esse local era o alojamento (nome que os Xikrin ainda
dão) onde ficavam obreiros que trabalharam na abertura e reativação da estrada, anos atrás.
Digo isso porque esse local é um ponto de referência importante entre caçadores, seja como

111
O limite formal da TITB se estende além do posto de controle alguns quilômetros mais à frente.
222

limite para os deslocamentos a pé, para divisão de áreas quando se caça através de caminhonete
(como demonstrarei à frente) e para efetuar pescaria de timbó. De fato, chegando nesse lugar
paramos para descansar um pouco, nos alimentar e conversar. A partir desse ponto, voltamos
em sentido ocidental, da aldeia, e fomos realizando as mesmas ações do que na ida, ou seja,
fomos fazendo breves incursões na mata procurando árvores frutíferas e por conseguinte
mamíferos e quelônios. Foi assim até retornarmos ao nosso lugar de moradia.

Dado que o convite de Txuak se referia a andar no mato (bà), poderia se esperar que em algum
momento deixaríamos a estrada para nos internar na floresta, seguindo trilhas onde poderíamos
encontrar pontos de confluência de espécies de caça, embora, isso nunca tenha acontecido. O
que pode ser explicado uma vez que a estrada consiste em uma espécie de grande trilha para
os Xikrin, ela opera como um caminho que atravessa a TITB, e, ao ser larga, facilita a
caminhada. Ademais, ela está interconectada a múltiplos caminhos menores que, se originando
da mesma, ou atravessando-a, levam até lugares como barreiros e castanhais. Em outras
palavras, A estrada veio a se constituir em uma espécie de artéria que guia e se comunica com
a rede de caminhos que existiam e estão sendo explorados na atualidade. Por isso sua relevância
e a necessidade de ser abordada de forma separada. Além disso, hoje talvez seja o caminho
principal para os caçadores – e os mry-, incentivando práticas que devem ser abordadas com
detalhes.

Começarei por trazer mais uma vez a caça de queixadas, colocando-a à luz do uso da estrada.
Foi no começo de dezembro, quando apenas as chuvas começavam e era frequente ouvir as
pessoas querendo visitar as grotas em procura de peixes. Dessa vez, saímos dez homens, a
maioria mekrares, com a exceção de um par de meninos, filhos do Negão (Kwynhdjy) e
Picapau, que estavam começando a participar de expedições. O propósito era bater timbó,
assim, chegando na ponte do antigo alojamento, nos separamos em duplas e cada um foi atrás
de cipó. Eu fiquei junto de Meití, um dos jovens que veio morar com seus sogros Dezoito e
Ngrei-rô alguns meses atrás, quando se juntou a Irejômetí, filha mais velha deles. Nos arredores
das grotas há múltiplas trilhas que levam a uma e outra direção. São trilhas exploradas que
facilitam o acesso até áreas onde se extrai com frequência o cipó usado para envenenar a água.
Eu e o meu colega caminhamos durante pouco mais de uma hora até achar a planta. O cipó é
cada vez menos frequente nas áreas conhecidas e demanda deslocamentos mais longos para ser
encontrado. Isso provavelmente esteja relacionado com a constante extração nas áreas mais
próximas das grotas.
223

Após retornarmos à grota com os cipós cortados e organizados, prontos para serem usados na
pescaria, um dos menoronure estava agitado e disse que minutos atrás todo mundo tinha saído
em fuga atrás de um bando de queixadas. De fato, os cipós das pessoas estavam jogados de um
lado da grota. Fizemos o mesmo, deixamos o peso e saímos à procura dos nossos colegas. Meití
andou uns quinhentos metros pela estrada em sentido oriental e ali, achando a vegetação
removida no lado esquerdo da estrada, entrou na mata. Logo menos, encontramos mais quatro
caçadores com os quais trocamos um par de palavras para conferir a informação do menino.
Logo nos separamos e continuamos a andar. Passaram apenas alguns minutos até começarmos
a ouvir tiros na distância. Aconteceu que quando chegamos, já tinham sido abatidos perto de
uma dúzia de porcos e só restou ajudar a limpá-los, retirando as vísceras e carregando-lhes de
volta até a estrada.

Com isso, foi evidente como em uma trilha, os caçadores usam como ponto de referência a
estrada para sair de esquemas e voltar neles após alguma vivência na mata. Ademais, é possível
determinar através desta experiência que há sempre operando uma preferência por certos tipos
de carne. Neste caso são os porcos, já que sua carne é muito mais apetecida do que a da traíra,
tanto que o cipó coletado se perdeu (horas após extraído, a substância que age contra os peixes
tende a perder seu efeito). Ademais, uma dezena de porcos significa um dia de muito êxito para
os caçadores, não cabendo nem pensar na perda do cipó.

Igual ao relato sobre a caça de porcos por encurralamento, aqui não houve um planejamento
explícito, até porque a atividade programada se referia a bater timbó. Assim, os que estavam
próximos da estrada no momento em que detectaram os porcos, foram na procura destes
enquanto deixaram um menoronure na beira da grota para dar aviso aos que foram voltando.
O deslocamento com as presas nas costas se deu de forma retilínea desde o ponto de abate até
a estrada, cabendo apenas encontrar breves trechos de referência dos lugares por onde
tínhamos entrado. Chegando na estrada, nos restou aguardar durante um par de horas enquanto
alguns caçadores que tinham voltado para aldeia, retornavam com uma caminhonete para
completar o transporte dos angrô.

Assim, se na atualidade a estrada constitui uma espécie de caminho principal, este tem um
valor significativo enquanto à diminuição do esforço para retornar com grandes mamíferos
abatidos. A estrada é a forma mais eficiente de se locomover hoje para acessar trilhas distantes,
grotas, castanhais, barreiros e açaizais, já que os veículos de quatro rodas que por ela transitam
tem se constituído em coisas complementares à caça. Tem também incentivado a prática
cinegética em outros tempos, como à noite. Portanto, é possível dizer que se a caça pela estrada
224

realizada apenas a pé não tem muita diferença da caça feita através das trilhas internas na
floresta; a grande novidade do uso da estrada, encontra-se no crescente uso de veículos com
fins cinegéticos.

Os Xikrin têm acessado nos últimos anos, veículos de alto rendimento em estradas rurais. O
PBA-CI facilitou a aquisição de caminhonetes traçadas para uso nas aldeias, as quais foram
destinadas, em um começo, para transportar os indígenas entre a aldeia e a cidade, além de
carregar mercadorias das vilas e matérias-primas produzidas na roça. Complementarmente, os
Xikrin encontraram nos veículos uma oportunidade para se locomover com fins cinegéticos ao
longo da estrada de trinta e cinco quilômetros que conecta a Pytakô com o posto de controle
da Funai. Essa última prática vem sendo cada vez mais adotada, pois os caçadores perceberam
ótimos resultados quando alguém permanece com uma espingarda na caçamba de uma
caminhonete enquanto atravessa a TITB. Apesar do barulho que possa fazer o veículo, é
frequente encontrar mamíferos cruzando a estrada ou pastando nas proximidades. Nesses casos
é uma grande vantagem que haja alguém posicionado na parte alta da caminhonete, facilitando
o enquadramento da espingarda e o disparo.
225
226
226
227

Prancha 8: Caça na estrada

Foto 1: Meití, Bep Tok (pica-pau), seu filho mais velho e um tabjuo (filho de Kwynhdjy),
ajeitam suas coisas (espingardas, facões, paneiros, roupas) na caçamba da caminhonete na
véspera de uma caçada pela estrada de Pytakô. Geralmente, essa forma de caça é feita no
começo do dia ou à noite, quando o tempo favorece o deslocamento ao longo dos 40km de
estrada entre a aldeia e o posto de acesso da TITB.

Fotos 2 e 3: Caçadores experientes costumam permanecer de pé na frente da caçamba durante


os deslocamentos. A estrada costuma ser uma linha de trânsito progressiva, na qual, o final do
caminho não tem muito significado enquanto haja o processo de trânsito ao longo da mesma.
Tudo pode acontecer, um mry distraído, uma onça atravessando, um bando de queixadas
assaltantes... A caçamba do veículo consiste em um palco privilegiado onde os caçadores
podem virar protagonistas de uma estória por acontecer.

Foto 4: Quando um subgrupo de caçadores abate animais de porte médio, como ngrú, o
transporte é feito de forma individual após a retirada das vísceras. Existe uma sutil variação
entre quem abate e quem transporta, nem sempre sendo a mesma pessoa. Isso para prever o
contato direto com a energia vital de um animal que ainda pode querer vingança. Pontes ou
lugares sombreados podem servir como ponto temporário para acumular os mry abatidos
enquanto chega o veículo que irá levar as presas até a aldeia. Tedjire transporta um noviço, um
queixada macho de idade mediana.

Foto 5: Quando uma anta é abatida numa trilha longa e afastada, geralmente o esquartejamento
acontece próximo ao local de morte do animal, havendo uma equipe solidária que contribui
com o transporte de presas em troca de alguma parte da carne. Contudo, hoje, antas abatidas
na estrada ou proximidades, são transportadas inteiras na caçamba dos veículos, acontecendo
o esquartejamento na beira do rio Bacajá. Pica-pau procede a retirar o couro do kukrut enquanto
um dos seus filhos observa atento o procedimento.

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2

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228

No começo, essa prática era complementar, ou seja, sendo a caminhonete usada com outro fim,
era aproveitada a viagem com alguém que ficava na parte superior da caçamba. Gradualmente,
foi se tornando uma atividade cada vez mais importante, até ganhar o peso de se justificarem
viagens de caminhonete apenas com fins cinegéticos. Contudo, muitas -ou todas- as
caminhonetes que foram entregues pela Norte Energia (consórcio que constrói a UHE Belo
Monte) com motivos do PBA-CI para os Xikrin, acabaram sendo danificadas, intercambiadas
ou simplesmente revendidas por eles mesmos112. Ainda assim, como os funcionários do posto
de controle da TITB e os técnicos de implementação dos projetos do PBA-CI que visitam as
aldeias113 possuem caminhonetes traçadas, assuntos vinculados a pegar emprestados os
veículos viraram um âmbito de negociação política do cotidiano. Questões como a repartição
de pedaços nobres, geralmente um pernil ou umas costelas de porco ou anta, são os benefícios
em troca por facilitar uma caminhonete durante algumas horas.

As expedições costumam sair da aldeia levando consigo entre oito e doze caçadores
experientes, cada um com a sua espingarda. Dentro do veículo vão alguns deles ou no caso de
ser programada a coleta de açaí durante o período de seca, os assentos são deixados para as
mulheres. Na parte superior da caçamba instalam-se a maioria dos homens, dos quais pelo
menos dois ficam à espreita com as espingardas acessíveis, caso apareça um mry no percurso.
Eu sempre lhes acompanhei ali em cima, tive a oportunidade de ver uma grande multiplicidade
de espécies que surgiam do nada: desde jabutis que encontravam-se atravessando a estrada;
aves que se alocam nas copas das árvores; tamanduás que - ficando parados - observam o
veículo ir até eles; gatos do mato que fogem desesperados, uma vez que os caçadores começam
a ameaçá-los com gritos; até as tão apreciadas kukrut-antas que pastam na beira.

Uma vez que os veículos começam o trânsito, se deslocam até o ponto final que pode ser o
posto de controle ou um par de quilômetros antes deste. Durante a viagem de ida o carro vai
parando e descem entre dois e três caçadores por vez, formando-se duplas. Os pontos de parada

112
Pytakô chegou a ter pelo menos uma caminhonete na época em que o PBA-CI (projeto de compensação dos
povos indígenas considerados impactados pela construção da usina Belo Monte) começou a ser implementado por
volta de 2013. Embora, fiquei sabendo que o veículo que estaria valorizado em mais de R$100.000,00 na época
da aquisição, foi deixado na vila da Pista como forma de pagamento para numerosas dívidas que tinham os Xikrin
com os comerciantes deste local. Os indígenas normalmente frequentam esse lugar com motivo de adquirir
“rancho” (alimentos) e roupas. Mesmo que eu não tenha conseguido saber o valor real da dívida (pois ir atrás
disso teria me levado um bom tempo, em detrimento de outros interesses de pesquisa), através dos depoimentos
do chefe Kudjoeire, calculei uma média de R$30 a R$40 mil reais de dívida, o qual significa um desequilíbrio
total (30%) em relação ao valor real do veículo.
113
Durante o tempo do meu campo não houve uma semana em que essas visitas não fossem executadas, é
surpreendente ver quantas equipes de kubén associadas aos projetos PBA circulam nas aldeias, cada uma com
temáticas, ofertas e cursos diferentes.
229

são normalmente as pontes onde passam as grotas. Por vezes, são três a quatro pontos de
parada, onde os caçadores descem começam a caminhar em sentido ocidental, ou seja, em
sentido da aldeia, enquanto a caminhonete continua seu percurso em sentido oposto. Essa
técnica faz com que a estrada em seus trinta e cinco quilômetros acabe sendo abrangida pela
expedição, concernindo a cada dupla ou trio de caçadores uma média de doze quilômetros para
caminhar (ver figura 19).

Ao finalizar o percurso o motorista permanece estacionado umas quantas horas (tem vezes que
prefere voltar na aldeia e esperar ali), dando tempo para que os caçadores realizem sua
caminhada em busca de presas. Uma vez que o veículo começa o percurso de retorno, os
primeiros caçadores a serem contatados voltam a se alocar na caçamba do veículo, com motivo
de aproveitar o percurso e a possibilidade de encontrar ainda presas vivas na estrada. Assim, a
caminhonete realiza o trajeto de volta, ou seja, em sentido da aldeia, recolhendo os caçadores
ao longo da estrada e coletando os resultados da expedição.

Quando uma dupla abate algum tipo de animal, seja na estrada ou através das suas breves
incursões no mato ou em trilhas menores, transportam as presas até a beira da estrada e as
deixam ali com alguma marcação, podendo ser alguns galhos amontoados ou uma estaca
enterrada no chão, continuando a andar sem ter que transportar peso além da sua espingarda e
facão. É comum que uma dupla deixe vários tipos de presas para serem coletadas pelo motorista
e os caçadores que voltam na caçamba. Uma vez que todos os caminhantes são recolhidos, o
veículo volta na aldeia, sempre tendo pelo menos um caçador à frente da caçamba que fica
atento a qualquer novidade.

O uso de cães para caçar ao longo da estrada varia dependendo da situação. Quando um
caçador sai a pé da aldeia, é comum que os cachorros lhe sigam, porém, quando se usa uma
caminhonete, os cães saem correndo desesperados atrás dos seus donos, restando apenas aos
mais novos e saudáveis conseguir acompanhar a velocidade com a qual se desloca o veículo.
Por causa disso, é comum que os primeiros caçadores a descer sejam os que se acompanhem
de cachorros, já que os cães permanecerão com os primeiros humanos que acharem no
caminho. Há alguns casos mais especiais onde donos, querendo dar um trato e/ou treinamento
preferencial para algum cachorro de estimação, o transportam na caçamba, ficando juntos no
lugar onde lhes corresponda descer.
230

Figura 20. Projeção de circulação com caminhonete ao longo de uma caçada diurna na estrada.

Vale mencionar que essa mesma técnica é realizada com certa frequência durante a noite,
representando uma novidade entre as formas de caça Xikrin. A sequência de ações à noite é a
mesma que acabo de descrever em relação ao dia, salvo algumas particularidades que menciono
a seguir. Na verdade, os Xikrin têm adotado gradualmente, ainda que pouco, uma forma de
caça comum entre os kubén (não indígenas) da região conhecida como lanternagem. Essa
prática consiste em andar ou permanecer num ponto à espreita, na obscuridade. O caçador
acende uma lanterna a cada certo período com o propósito de se localizar no espaço e conferir
se há na área visível algum outro corpo. Geralmente as presas são detectadas pelo efeito de
reflexão que emitem seus olhos quando são iluminados com a lanterna, o tamanho dos olhos e
a distância entre um e outro, são alguns dos parâmetros para determinar a natureza da espécie.

Para o caso dos Xikrin, a lanternagem está implicada apenas no andar através da estrada, sendo
praticamente inexistente a realização de atividades como a caça de espera durante à noite
através da fabricação de mutás (há uma exceção, que apresentarei como referência mais à
frente). As caminhadas noturnas têm como propósito a procura de mry noctívagos,
especialmente antas e veados, com a possibilidade de encontrar em menor escala pacas e tatus.
Os queixadas, assim como os macacos, são rigorosamente diurnos, nunca sendo procurados.
Contudo, a caça noturna tem riscos maiores, já que animais peçonhentos como cobras,
escorpiões e aranhas também caçam durante esse período, sem contar que as onças também
231

têm hábitos noturnos. Sendo algumas das causas para que os caçadores realizem essa atividade
apenas ao longo da estrada e quando tem auxílio de veículos.

Figura 21. Projeção de circulação ao longo de uma caçada noturna na estrada.

Existe uma variação ao procedimento de caçar pela estrada com veículos até aqui apresentado.
A mesma consiste em um deslocamento que tem como único ponto de parada uma ponte, onde
se encontra o alojamento abandonado, a 15 km da aldeia aproximadamente. Uma vez que a
caminhonete atinge esse local, todos os caçadores descem e formam duas turmas: uma vai em
sentido oriental e a outra em sentido ocidental. Nesses casos, o carro normalmente volta para a
aldeia e permanece ali durante algumas horas. Este procedimento se realizou apenas duas vezes
durante o período do meu trabalho de campo, não havendo bases suficientes que justifiquem
um maior ou menor rendimento em contraposição ao procedimento mais comum. Pelo
contrário, teoricamente, o outro procedimento deveria garantir maiores resultados, já que são
abrangidas mais áreas ao longo da estrada. Quando consultei a respeito de uma ou outra
escolha, a justificativa sobre o procedimento que divide a turma em dois grupos veio mais no
sentido da vontade do motorista de não querer ir muito longe. Contudo, ao se considerar
rigorosamente as distâncias percorridas pela caminhonete, entre ir e voltar duas vezes entre a
aldeia e a ponte, a distância é basicamente a mesma do que ir uma vez até o posto de controle
e voltar. Pelos demais detalhes técnicos, esse procedimento é igual aos que já apresentei acima,
seja para caça diurna ou noturna através da estrada.
232

Figura 22. Projeção de circulação entre a aldeia e a ponte para duas turmas.

Adicionalmente, há um par de questões importantes a serem consideradas. A noite é apreciada


como um momento de maior eficiência para abater antas. Os caçadores dizem que aquelas
permanecem quietas por um instante quando são descobertas por uma onda de luz que as deixa
enceguecidas. É como se elas ficassem surpreendidas pelo efeito da luz e por conseguinte
entrassem num efeito de desorientação, dando um breve instante para o caçador agir. Da mesma
forma acontece com algumas aves, como os mutum, que ficam perplexas -ainda no dia. De
qualquer forma, o sigilo do caçador é também aqui um parâmetro fundamental para seu
sucesso.

Por outra parte, seja durante o dia ou à noite, os mry, igual aos caçadores de Pytakô nos últimos
anos, têm adotado hábitos de estrada. Se eu tinha mencionado anteriormente serem os
caminhos desenhados de forma multiespecífica - o que faz com que sempre seja inevitável o
encontro entre humanos e outros-que-humanos -, a estrada, apesar de ser uma abertura alheia
que corta a floresta de ponta a ponta, constitui também um parque de circulação massiva e
transformação multiespecífica, um cenário exacerbado por encontros de todo nível. Aves que
costumam pernoitar à beira de igarapés são agora encontradas na estrada. Os bandos de
queixadas sempre estão atravessando, pois abundam rastros de seus cascos. Antas e veados que
se deslocam muito, sendo exemplo de caminhada e orientação para os caçadores, são vistos ali
descansando com muita frequência, da mesma forma que seus predadores (inclusive, foi na
estrada onde encontrei uma onça, como relatei no capítulo 2 deste trabalho).

Por outra parte, a estrada tem algumas conotações especiais relacionadas aos períodos sazonais
da região, pois como em qualquer outra estrada amazônica, no período de chuvas a circulação
fica precária. A via que comunica Pytakô pode até ser uma das melhores da TITB. Com apenas
quatro anos de ativação e ao serviço de apenas uma aldeia, é uma estrada que ainda não requer
muita manutenção. No entanto, durante o inverno, o rio Bacajá opera como a principal via de
233

acesso entre aldeias e para fora da TI e os meios terrestres perdem importância. Apesar disso,
as expedições de estrada nunca deixam de ser implementadas, uma vez que, embora em menor
número, ainda há veículos traçados por ali transitando. De fato, me arriscaria a dizer que no
período ngô-tup (inverno) as atividades cinegéticas pela estrada se mantém, com a diferença
de que os deslocamentos a pé aumentam. Isso porque no inverno, quando mais abundam frutas
silvestres, aumenta a quantidade de mry gordos e sadios, desejados pelos caçadores.

Hoje tem sido um dia de aprendizados junto a Kwynhdjy e Txuak, ir com eles para
o mato não é simplesmente ir procurar uma “caça”, é presenciar no exercício da
caminhada um contundente compêndio de formas usadas para lidar com a floresta.
Saímos bem de manhã e voltamos só à tarde, choveu muito durante o dia, isso é um
problema na mata. Não só porque ficar horas com roupa molhada é irritante, senão
porque fica mais difícil de rastrear os bichos, pois os rastros se confundem. Apesar
disso, encontramos marcações perto de um barreiro, ainda que dessa vez não demos
com nada representativo, apenas jabutis que perambulam próximos de árvores com
frutos, também achamos caititus.

Uma questão marcante nessa época é a dificuldade para transitar pela estrada, ainda
que seja a pé, devido àquele desagradável cipó “unha de gato” que abunda nas
clareiras e em questão de dias se avulta entre os lugares de passagem. Hoje tivemos
que fazer uma fila para conseguir transitar durante um trecho da estrada, facão em
mão para ir cortando os cipós que já se abraçam de um lado e outro criando uma
parede, a estrada deve ter pelo menos uns 7 mts de largura, contudo, há trechos onde
parece mais estreita do que os caminhos no interior da mata.

Inclusive, hoje quando saímos em várias oportunidades da estrada e entramos na


mata, houve momentos em que certamente era mais confortável andar por essas
trilhas. De qualquer forma está tudo conectado, porque se entramos em alguma
parte, saímos por outra e depois voltamos na estrada.

Caçando sob a chuva. Diário de campo 31/03/18

Durante o período de pouca água no rio- ngô-gro, ou seca, foi quando mais acompanhei
deslocamentos pela estrada através de veículos. Já no inverno e parte da vazante (dezembro e
primeira metade do ano) identifiquei que havendo mais deslocamentos a pé, se dão mais
incursões a partir da estrada para explorar o mato. Em outras palavras, sem deixar de usar-se
a estrada como ponto de referência, as expedições que se valem de deslocamentos apenas a pé
são mais dinâmicas enquanto a movimentos, o que faz com que no inverno, apesar das
234

dificuldades impostas pela chuva, haja expedições mais dinâmicas e versáteis e traduzidas em
experiências na mata mais intensas.

A estrada, neste caso, constitui sem dúvida uma questão fundamental na história mais recente
dos Xikrin de Pytakô, com sua devida extensão para as outras aldeias da TITB e as vias de
acesso que estas possuem. Como já observado, a estrada pode ter uma forma de
representatividade como “principal caminho” para os caçadores da atual geração. No entanto,
não se deve apenas equiparar a estrada como se fosse uma das trilhas na cartografia reticular
formada pelas trilhas curtas e longas que se cruzam no interior da mata, pois a estrada guarda
certa independência da cartografia reticular. Isso porque a estrada apresenta sua própria
cartografia, provavelmente com uma forma onde ela poderia ser vista como substituta da aldeia
enquanto ponto inicial de partida ou referência para locomoções no mato. Ademais, levando a
pensar que atualmente há mais de um -ou vários- mapas de rede de trilhas na sub-região de
Pytakô, todos cruzados ou atravessados pela estrada. Na prática isso se explica pelas distâncias.
Ou seja, quando se sai a pé da aldeia para circular desde a estrada com incursões breves em
trilhas no mato, há ali um mapa de circulação. Mas, quando se sai de veículo e se avança ao
longo da estrada até atingir áreas que se distanciam em mais de trinta quilômetros da aldeia,
ali há um outro mapa, ainda não conectado com o mais próximo da aldeia, mas que apresenta
as mesmas características do primeiro.

Finalmente, devo dizer que a estrada como via que facilita os deslocamentos em termos das
corporalidades e a consolidação de ritmos, opera num sentido muito semelhante ao do rio
Bacajá, com precedentes históricos mais afiançados na época pós-contato. Não obstante, com
a grande vantagem de que a estrada dispõe cenários que aproximam a prática da cinegética
baseada no encontro-confronto com grandes mamíferos terrestres. Isso, por vezes, é muito mais
relevante para os Xikrin do que a pescaria, como ficou evidente naquele relato onde eles
abandonaram qualquer ideia de obter traíras numa grota, em troca da perseguição de um bando
de queixadas. No entanto, há um par de práticas cinegéticas ao longo do rio que devem ser
consideradas, pois demonstram como o rio pode ser usado como fio condutor para experiências
de caça que interconectam o interior da floresta com grandes fluxos de água.
235

Rio

Os Xikrin chamam o rio Bacajá de Tepka-Poti-ngô (grande água). Como expliquei no capítulo
1 e 2, eles são uma sociedade historicamente de terra firme na floresta, em contraposição a
alguns povos indígenas no Médio Xingu com modos de vida ligados aos rios114. Até antes do
contato, os Xikrin optaram por viajar entre as serras, abrir aldeias e acampamentos no interior
da floresta e pescar apenas em grotas e pequenos afluentes. As beiras do Bacajá, durante a
primeira metade do século XX, estavam ocupadas por seringueiros que habitaram essa região
com propósitos extrativistas (Fisher, 1991). Eram essas populações de não indígenas às que os
Xikrin se referem nos relatos sobre pilhagem, apropriação de bens e confrontos com brancos.

Após a segunda metade do século XX, quando os Xikrin foram contatados e alocados na beira
do Bacajá, num local comum aos não indígenas (antiga morada de seringalistas), é quando
talvez pode se enunciar uma mudança significativa dos modos de vida, passando de condições
de índole mais seminômade (mey) para condições de navegação através de canoas cascos e
motores, ademais do consumo crescente de grandes peixes, baseando-se no domínio de técnicas
de pescaria como as redes e arremessos. Contudo, proponho que no âmbito de técnicas de
obtenção de carne e da mobilidade, a moradia na beira do Bacajá evidencia uma hibridação
entre estilos de trekking com navegação115. O estudo de Zanotti (2016, 22) entre os Kayapó,
mostra de forma semelhante uma interconexão entre rio e trilhas, inclusive, a autora propõe
que o rio opera como uma trilha onde se pratica a pesca, se viaja e ademais serve como ponto
de acesso para trilhas de caça e coleta de frutos. Esses aspectos são mais factíveis de serem
observados na aldeia de Bacajá. Uma vez que ali, uma grande parte das expedições podem ter
início com a partida de uma embarcação, que ao deslocar-se pelo rio, alcança pontos de trilha
onde alguns caçadores adentram-se na floresta. Simultaneamente, pecarias de arremesso são
realizadas por outros que permanecem na margem, e assim por diante. Em Pytakô, ainda que
com menos frequência, essas rotinas também são evidenciadas.

Portanto, o rio é tudo aquilo que a autora define e ademais, é um ponto estratégico para técnicas
de caça específicas. O Tepka-Poti-ngô sendo um grande espaço que permite o deslocamento
de todo o tipo de corpos e coisas, deve ser abordado também como uma via que facilita a
implementação de algumas formas técnicas além dos pontos de referência que dão nome para

114
No caso do Xingu, os Juruna são um claro exemplo de um povo indígena que possui ampla trajetória
tecnológica em relação a um grande rio. Ademais, a história dos confrontos e guerras intertribais na região, fez
com que os Juruna se estabelecessem em ilhas e navegaram ao longo do rio. Para ampliar veja Lima (1995).
115
No final dos 80, Fisher (1991) já destacava como os Xikrin do Bacajá se valiam da navegação para ir rio abaixo
ou acima até atingir pontos onde desembarcavam para posteriormente praticar caminhadas na mata.
236

alguns caminhos (os quais identifiquei no capítulo 3). Ou seja, é possível evidenciar que no
Bacajá há pelo menos um estilo de caça que, mesmo não sendo estritamente dependente das
trilhas de referência, pode ser implementado.

Desde muito cedo nos preparamos para sair pelo rio, a névoa que recobre as águas
durante as primeiras horas do dia ainda estava instalada no porto. Kwynhdjy,
Picapau e Ted Jire decidiram explorar rio acima. Nessa época o Bacajá está mais
cheio e facilita a navegação com ligeireza. Não tinha muito claro como seria essa
expedição, pois geralmente saímos para caçar pela estrada ou mata adentro, por isso
me estranhei quando Negão (Kwynhdjy) me disse “nhara Poyre, gwai bà kam tem”
e seguidamente me pediu para lhe acompanhar até a beira do rio.

Logo, Negão que já tinha assobiado e atraído mais de doze cachorros se afastou do
casco e se adentrou numa das trilhas que bordeiam o Bacajá. Enquanto isso, nós
partimos num casco impulsionado a motor. Consultando o Ted Jire-Dezoito, sobre
porque o Kwynhdjy tinha decidido ficar de última hora, ele me disse que este não
tinha ficado, pois iria alcançar a gente mais na frente. Após uns 20 minutos de ir à
montante do rio desligamos o motor e nos estacionamos na beira ocidental.

Kwynhdjy tinha se adentrado na mata sem perder de distância o rio. Eu e o Bep-


Tok-Picapau ficamos sentados numa laje trocando uma que outra palavra, pois nem
pescar tentamos. Algum tempo depois de estar ali começamos a ouvir os cachorros,
o choro e o latir vinha de muito dentro na mata, Kwynhdjy devia estar alguns
quilômetros mata adentro, no lado oriental. Os cachorros faziam sons agitados como
quando estão correndo atrás de mamíferos velozes, no caso antas e veados. Com o
passar dos minutos os barulhos foram se tornando cada vez mais próximos e nessa
mesma progressão os dois caçadores que estavam comigo ficaram de pé.

Alguns minutos depois os latidos diminuíram e o barulho foi perdendo intensidade,


era claro que os cães poderiam ter achado algum mry mas não houve tiros do
Kwynhdjy, nem pressa dos meus colegas em cruzar na outra beira para conferir o
estado da situação. Aos poucos tudo voltou ao silêncio, embora, a partir dali o Ted
Jire tomando ar começou a emitir um grito agudo que penetrava a floresta e produzia
um eco estridente à distância “uuuhhhggg” – semelhante a isso. Kwynhdjy, com um
grito um pouco mais tímido começou a responder, em alguns momentos os gritos
dos dois caçadores se mesclaram com os latidos dos cães, formando uma frequência
de sons que rapidamente incomodou as aves na área, fazendo-as decolar. Os gritos
tinham algumas variações, cabendo a Dezoito compor mensagens de até três sílabas
capazes de serem pronunciadas numa única exalação. Por exemplo, ele gritou o
237

nome de Negão “Kwynd-jwyyyy..gg.” conseguindo manter a mesma frequência dos


gritos iniciais.

Ditos sons são característicos entre caçadores, usados principalmente para revelar a
localização de um e ajudar na orientação do outro. Ademais, a composição de gritos
com algumas sílabas podem ter mensagens relacionados a dar alguma alerta, pedir
apoio ou simplesmente manifestar a desistência de uma empreitada. A intensidade
com que se pronunciam os gritos é também um fator indicativo, principalmente
quando se tem que agir com pressa, também são usados com os cães para chamá-
los.

Poucos minutos depois a figura de Kwynhdjy apareceu entre os galhos que


fechavam o contato com o rio. Só nesse momento que decidimos atravessar de uma
beira até a outra para recolher o nosso colega. O quê aconteceu Negão?- Perguntei.
Rapaz, tinha um veado, os cachorros foram atrás, mas eu acho que os cachorros se
perderam, porque tem muito cachorro novinho ainda que não sabe pegar bicho -ele
respondeu.

Dezoito ligou o motor e cruzamos novamente para a beira ocidental, para minha
impressão, os cachorros não se amedrontaram com o rio, foram se lançando de um
em um até todos ficarem no meio da água. Teve uns dois que arrependidos tentaram
desistir, mas ao ouvirem o assobio de Kwynhdjy que lhes chamava, voltaram a se
incorporar no objetivo de cruzar nadando. Ao final todos atravessaram e começaram
a correr em paralelo pela beira enquanto nós avançávamos na montante.

Poucos minutos depois paramos e Kwynhdjy desceu, perguntei se devia acompanhá-


lo, a resposta foi negativa e em troca me disse que ajudasse quando aparecesse
algum veado. Em efeito, ele rapidamente se adentrou pela floresta junto aos cães.
Mais uma vez eu, Dezoito e Picapau levamos o casco até a outra beira do rio. Ou
seja, fizemos à inversa do que tínhamos feito na primeira vez, ficamos estacionados
do lado oriental enquanto Negão (Kwynhdjy) andava pelo lado ocidental. Isso
devido a que a nossa visão e audição abrange melhor os múltiplos lugares por onde
poderia vir a aparecer uma presa. Porém, dessa vez Dezoito não ficou sempre
parado, senão que fomos avançando na montante de remo, aos poucos e a cada certo
intervalo de minutos.

Periodicamente e após ter se deslocado, Dezoito emitia um grito, o propósito era


manifestar a Kwynhdjy à nossa localização. Um par de horas depois, Kwynhdjy
apareceu na beira do rio na mesma posição onde nós estávamos. Ele veio nos
seguindo até ir formando um semicírculo que abrangeu uma grande área. Voltamos
238

a realizar o procedimento, revezando a beira. Ou seja, deixando o Kwynhdjy do lado


oriental e nos posicionando do lado ocidental enquanto ele andava mata adentro.
Logo, avançamos remando aos poucos, Dezoito sempre cuidando de manifestar a
nossa localização através das suas cordas vocais.

Assim se foi esse dia, Kwynhdjy caminhando e nós remando, os cães por sua vez,
caminhando e nadando. Eu levei linha e anzol, mas não encontrei um momento
propício para usá-los, pois após a primeira tentativa em que realmente passamos um
tempo parados, as outras vezes sempre estivemos remando e nos locomovendo
lentamente pelo rio. Preferi imitar as ações dos meus colegas. De qualquer forma,
Picapau (Bep Tok) e Dezoito (Ted Jire) claramente tinham interesse em outro tipo
de fonte de carne, que veio lhes recompensar ao final da nossa jornada.

Na prévia houve um silêncio na área, o Kwynhdjy (Negão) já tinha uma hora sem
aparecer e os cachorros tinham desaparecido. Nós tínhamos estacionado o casco
durante uns quarenta minutos numa laje que sobressai no meio do rio apesar da sua
enchente, o cansaço me acusava e não tinha mais assunto para trazer. Contudo, os
cachorros voltaram a irromper com seus latidos afogados junto ao choro de alguns
que provavelmente tinham mais instinto do que experiência como tal, na mata.
Dessa vez, eles não estavam muito longe de nós, provavelmente um pouco mais de
um quilômetro. Apressadamente foram vindo na direção do rio, foi questão de
poucos minutos até presenciarmos que uma figura de considerável tamanho rompeu
na água. Ted Jire que já estava à espreita não demorou em atirar. Devo ter demorado
alguns segundos antes de entrar em razão, embora, era evidente que na nossa frente
tinha pulado um veado na água, atrás deste pelo menos oito cachorros.

Bastou um tiro para deixar o mry abatido, que já vinha sem força de tanto correr na
sua tentativa de fuga. Kwynhdjy reapareceu na beira pouco depois, dizendo que o
veado tinha topado com ele tempo atrás, na hora que ele tentou atirar o bicho tinha
sido mais ágil e saído da sua visão, no entanto, os cães fizeram sua parte. Foi assim
que conseguimos tão apreciado animal na dieta. Depois disso, restou ligar o motor
e voltar na aldeia. Os cachorros retornaram por sua conta cruzando os caminhos
através da floresta, comecei a vê-los pela aldeia duas horas depois de nós termos
chegado.

Caçando nas beiras do Bacajá. Diário de campo 13/12/17


239

Figura 23. Projeção de deslocamentos em expedição de caça pelo rio Bacajá.

Essa experiência junto aos três caçadores de Pytakô é uma demonstração condensada do que
implica se deslocar pelo rio com pretensões cinegéticas. Chama atenção que desta vez eles
optaram por não pescar, a diferença de Bacajá, onde sempre, independente da atividade
programada, há pessoas pescando peixes medianos, como piranhas. Me parece que em Pytakô
os caçadores são muito seguros em relação à alta possibilidade de uma atividade cinegética ter
sucesso quando praticada nessa sub-região.

A caça pelo rio, não sendo atualmente a mais frequente, dado o crescente uso da estrada, é uma
atividade que vem junto com a enchente. Ademais, é um tipo de caça que sem precisar de uma
equipe, demanda que haja pelo menos dois caçadores: quem entra na mata e quem aguarda e
se desloca pelo rio. Adicionalmente, essa prática é necessariamente feita com a companhia de
cães, especialistas em caça de perseguição, já que, segundo meus interlocutores, esse tipo de
incursões se fazem especialmente com o propósito de rastrear veados e antas. Esses animais,
caracterizados por fugas em longas distâncias, quando se sentem ameaçados, têm a tendência
de procurar fluxos de água como estratégia para tirar a orientação e criar barreiras naturais para
seus predadores.

Dadas as circunstâncias, os Xikrin têm implementado como resposta uma forma cinegética
bastante eficiente que prevê as ações de seus inimigos - e presas. Por um lado, os cachorros
recortam o problema da velocidade de fuga dos veados e antas; por outro, o(s) caçador(es),
prevendo a grande chance do mry se lançar à maior e mais próxima reserva de água, aguardam
240

sabendo que no caso de acontecer, será um contexto de fragilidade da presa, facilitando seu
abate. Portanto, para essa prática não se costuma ir atrás de queixadas (claro, sabendo que uma
expedição não necessariamente pode acabar como foi planejada, pois cada acontecimento no
mato pode mudar o interesse do caçador). Por isso entra só um caçador na mata. Inclusive, o
propósito primário desse caçador não é abater diretamente a presa, senão rastreá-la. Ele busca,
assim que achar uma possibilidade, criar um cenário dissonante onde o mamífero sinta extremo
perigo e opte por correr, pois os cachorros farão com que a vítima se desloque instintivamente
em direção à armadilha engendrada na beira do rio.

Essa pode ser a forma mais eficiente de caçar veados, pois nas caçadas que se valem apenas de
terreno firme, nos caminhos mais distantes e longínquos, é escasso o abate de more e nhak-iú.
De fato, durante toda a minha estadia entre os Xikrin, presenciei apenas uma vez a morte de
um veado mateiro em terra firme. Em contraposição, em cinco ocasiões nas quais esse animal
foi detectado pelo caçador e/ou por cães, uma vez que empreendeu a corrida, conseguiu se
escapulir com tanta destreza e nem os cães deram conta de seguir seu rastro.

Um outro aspecto a ser considerado é a forma na qual se dá a movimentação do casco ou da


canoa em um deslocamento com certas particularidades, em sincronia com a trajetória do
caminhante. Para que seja possível essa forma de caça, é necessário que haja minimamente
uma comunicação à distância com fim de prever o perímetro da beira do rio onde poderia
aparecer uma eventual presa. Os gritos agudos agem como signos indicadores durante a
expedição. É importante observar aqui como o movimento semicircular que o caçador faz ao
longo da floresta vai sendo acompanhado por um movimento reto com breves paradas em
paralelo entre uma beira e outra (ver figura 22), fazendo com que haja uma composição rítmica
entre corpos à distância.

Se caminhar na floresta requer de paciência e silêncio e depois a explosão de energia e


dissonância, uma vez encontrada a presa; no rio, os tempos e sons são marcados com as mesmas
pautas da floresta, já que o durante os deslocamentos se usam remos, se fala pouco, se emitem
gritos orientadores apenas quando necessário e se estoura em agitação quando um mry pula na
água.

Para finalizar, há uma outra prática realizada ao final de uma expedição de caça pelo rio e que
sem estar presente no meu relato, é factível de ser observada dependendo do contexto. Consiste
na procura por aves de consumo ao longo da beira do rio durante o pôr do sol e o amanhecer.
É uma prática simples e efetuada em silêncio, o que quer dizer que um caçador, saindo de um
241

ponto fixo, rema na montante ou jusante e, sem viajar longas distâncias, observa a copa das
árvores em procura de mutum ou jacu. Pode se valer do uso de lanternas caso esteja muito
escuro (lanternagem).

Uma vez localizada alguma ave acessível, o caçador - fazendo uso da espingarda - tenta atingi-
la. Normalmente os jacus estão em grupo, sendo possível capturar mais de um. No entanto,
essa prática ao longo do rio é cada vez menos frequente, pois está sendo substituída pela
caminhada através da estrada. Para esse caso, se teria em consideração as mesmas condições,
até porque as aves costumam pousar na beira das clareiras com propósito de descansar
(independente de se for à beira de um rio ou de uma estrada).
242
243
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244

Prancha 9: Cinegética no rio

Foto 1: Ngô-ka-ohn, grande corpo de água ou água grande. É assim que os Xikrin chamam o
rio Bacajá, maior fluxo fluvial que cruza a TITB, é também na beira deste rio onde localizam-
se a maioria de aldeias fixas, na atualidade. Na imagem, pode se apreciar a imponente figura
do rio. Ao cair a tarde, araras procuram seus ninhos para descansar diante da chegada iminente
da noite trazendo consigo nuvens de chuva.

Foto 2: Merettí (dessa vez de proeiro) e seu cunhado, viajam na jusante do Bacajá com o
propósito de atingir uma trilha de caça ao norte da aldeia. Deslocamentos em cascos, tendo o
propósito de emendar com longas caminhadas em trilhas, geralmente são feitos de forma direta
e rápida durante a ida. Isso está associado a objetivos mais claros em relação à programação
do dia. Não obstante, o infortúnio dos caçadores durante a caminhada, pode fazer com que a
volta seja lenta, dedicando grande parte do tempo à pesca.

Foto 3: Txuak e Tedjire (Dezoito), deslocam-se pelo rio com o propósito de realizar abatimento
de mry nas beiras do mesmo. O deslocamento é lento, através de remo para não afastar presas
com o barulho de motores. Enquanto isso, Kwynhdjy e mais uma dezena de cachorros
encontram-se na floresta dos arredores em procura de rastros de veados ou antas. Os caçadores
que permanecem no casco ou canoa, podem passar horas aguardando, no entanto, sempre tem
a espingarda próxima, caso seja necessário reagir para não perder uma presa.

Foto 4: Txuak e Txorei, seu filho mais velho, encontram-se de pesca durante à tarde. O
deslocamento através de motor é uma vantagem nesse caso, já que permite otimizar o tempo e
viagem até os poços onde costumam pescar. Txorei encontra-se em idade de acompanhar
pescarias pelo rio e bater timbó, embora não tenha chegado a observá-lo caminhando junto de
seu pai na floresta. Em depoimento de Txuak, me explicou que era uma escolha sua, pois
preferia que o menoronure esperasse mais alguns anos para se envolver diretamente com
experiências de caça com uso de espingarda. Durante esse dia, ao finalizar a tarde, foi possível
capturar dois jacus que pousaram nas árvores da beira do rio para descansar, o que indica que
a pescaria às tardes pode ter variações com o abatimento de aves que costumam passar a noite
nas beiras (geralmente jacu e mutum).

3
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Poços
Em concordância com Ribeiro (2015; 2017)116 o consumo de peixe pelos Xikrin está
relacionado com o nível de água durante os períodos sazonais ao longo do ano, de forma que
durante a cheia, quando as espécies aquáticas aproveitam a extensão do rio e as áreas alagadas,
os Xikrin diminuem o consumo de pescado. No entanto, isso não se aplica a todas as espécies,
já que como observei em Bacajá, o consumo de piranhas e pacu - tep pó é constante sem
importar a estação. Portanto, o consumo de peixes em relação aos períodos sazonais poderia
vincular-se à variedade de espécies aquáticas.
De modo geral, pode se dizer que grandes peixes como o pirarara -tep kamrêti, o tucunaré-tep
picó ou o surubim-kohram são consumidos principalmente durante os períodos de vazante, nos
chamados buah nhoró – igapós, onde essas espécies se esconderam e reproduziram
(desovaram) durante a cheia. E durante a seca, nos poços ou os lugares mais profundos do rio
onde costumam se concentrar. Dessa maneira, o consumo de peixes maiores para os Xikrin
está relacionado com uma certa preferência por algumas espécies, mas principalmente pela
concentração de espécies nas partes mais profundas do rio.
A respeito de pescaria em lugares profundos do rio:

Durante novembro o nível do rio está muito baixo, é praticamente impossível


transitar de canoa, tenho ido pescar com alguns homens. Saímos por uma trilha que
começa por trás da casa de Picapau, a gente vai andando durante uns dez minutos
até chegar numa baixada onde há indícios de alagamento, é possível ver em algumas
árvores o traço que deve indicar o nível que a água atingiu no último inverno. Após
cruzar essa área há uma poça de uns quinze metros de comprimento, ali, ainda há
uma que outra tehuá-piaba, pequeno peixe usado como isca.

Posteriormente andamos durante cinco minutos até encontrar um paredão de pedras


e lajes que sobressaem com certa anomalia, é praticamente uma barreira natural
entre a floresta e o rio Bacajá, tivemos que escalar algumas dessas roxas e pular
entre uma e outra para atingir a margem oriental do rio. Por essa época o corpo de
água é tão estreito que não deve dar mais do que 20 metros entre uma margem e
outra, com a possibilidade de encontrar em algumas partes áreas mais estreitas.
Inclusive, tenho visto que colocaram uma rede à noite entre um ilhote e uma roxa,

116 O autor relaciona a pescaria dos Xikrin como uma atividade econômica que busca prover uma fonte de renda.
Embora, não observei essa lógica durante o meu campo. Em contrapartida, encontrei um sistema baseado em
trocas entre os indígenas e os moradores das vilas: os Xikrin autorizam e facilitam o ingresso de pescadores kubén
na TITB para eles mesmos pescarem, em troca de mercadorias ou diminuição de dívidas adquiridas.
246

abrangendo 5 metros do rio, apesar disso, não houve bons resultados, pois na manhã
seguinte tinha apenas dois peixes medianos.

Kupatô, um dos jovens (menoronure-tum) que foi pescar viu que eu estava jogando
a linha na água desde uma pedra onde eu tinha achado conforto, aproximando-se me
perguntou por que estava pescando ali, eu não tive muito o que explicar, preferi
devolver a perguntar e consultar se tinha alguma coisa errada. A sua resposta indicou
que eu estava pescando fora da área onde costumam ficar os peixes, ele disse que é
importante aproveitar os poços, é nesses lugares onde há peixes grandes. Também
disse que era melhor pescar no final da tarde ou inclusive de noite, quando o sol não
está tão forte (...).

Pesca nos poços de Pytakô. Diário de campo 25/11/17

Txuak me convidou a ir pelo rio, esses dias são ótimos para pescar, a chuva vem
diminuindo enquanto o rio começa a esvaziar, as vezes, quando vamos no casco é
possível ver além da beira, nos igapós, alguns movimentos violentos que
estremecem a água, meus colegas me disseram que são tucunaré e pirarara e que
voltarão para pescá-los.

Entramos com Txuak e seu filho num igapó, a extensão dessas alagações são
enormes e se interconectam entre uma e outra, com um pouco de destreza entre um
proeiro e quem rema, é possível se locomover no interior. Foi ali onde pescamos,
pela primeira vez consegui pegar um pirarara.

Pesca nos igapós. Diário de campo 07/04/18

A época de seca é marcada pela visita a lugares que em muitos casos, como no relato acima,
são acessados a pé desde trilhas na floresta que se conectam com a beira do rio. A tendência
dessas atividades é procurar por grandes peixes, por isso os Xikrin optam por visitar lugares
onde eles sabem que o rio apresenta maior profundidade. Segundo Txuak, nas proximidades
de Pytakô há quatro poços que são acessíveis a pé durante o verão. Inclusive, é possível
observar que há preferência por alguns poços. Quando se consulta a um pescador sobre a razão
da escolha, este costuma identificar que em alguns desses locais há maior presença de certas
espécies. Por exemplo, no poço que se acessa durante a seca cruzando a trilha que sai por trás
da casa de Picapau, era costume ir em procura de krãiti, ou pescada.

Em uma outra ocasião, acompanhando o Kudjoeire, ele me convidou para ir pescar Surubim.
O convite dele foi específico. Em princípio achei que fosse apenas uma afirmação com base
247

num desejo que ele ou a sua esposa tivessem. No entanto, entendi que realmente eles estavam
indo num lugar onde tradicionalmente há maior presença daquele peixe, pois passamos por alto
um poço onde eu tinha ido pescar em outras ocasiões, indo um pouco distante dos lugares mais
frequentados. Ali, tive a sorte de pegar um Surubim, de maneira que eles ficaram felizes essa
tarde por terem me convidado para uma experiência que fez honra ao propósito inicial.

Por outra parte, os igapós são visitados durante a cheia e a vazante. Esses lugares costumam
ser acessados desde o rio através de canoas de não mais de três metros de comprimento, com
o propósito de conseguir transitar entre áreas fechadas por raízes de árvores e bancos de areia.
Para esses casos é importante a orientação de um proeiro além de quem impulsiona a canoa
desde a parte traseira. O proeiro vai dando indicações e direcionando a bajara com uma vara.
Naqueles lugares, é possível encontrar um leque variado de espécies de peixe, desde piaus até
pirarara.

Enquanto aos poços, são visitados normalmente na seca, mas também inspecionados durante o
inverno, tanto em Pytakô como em Bacajá (com maior frequência na segunda). Apesar do nível
do rio estar alto, os Xikrin costumam fazer paradas estratégicas para conferir se há
possibilidades de pescar nos lugares profundos, tendo, em alguns casos, resultados afirmativos.
Essa prática está relacionada principalmente a dois aspectos. O primeiro, é a necessidade de
suprir a carne quando uma expedição de caça não dá fruto, e o segundo, quando as expedições
são acompanhadas por mulheres e crianças, já que em muitos casos elas optam por consumir
parte do tempo pescando.

Em repetidas ocasiões pude acompanhar expedições em Bacajá onde se deslocaram famílias


inteiras (avós, filhos, netos, genros, nora...), quase sempre saindo do porto, avançando pelo rio
e chegando até roças para finalmente adentrar na floresta. Nesses contextos, se a caçada não
desse resultados significativos, o retorno para a aldeia não se dava direto até o porto, sendo
feito de maneira progressiva. As canoas param em diferentes pontos do rio - poços, por
excelência - e em alguns casos, se adentram pelos igapós. O propósito é pelo menos pescar
algumas tep-pó – piranhas que posteriormente são fritas e usadas como refeição no final do
dia.

Não há muitos preceitos técnicos em relação aos implementos necessários nessa prática, já que
basta contar com anzol, nylon e alguma isca. Enquanto aos limites temporais, as pessoas ficam
revezando entre poço e poço apenas levando em consideração não ficarem muito distantes do
porto ao cair a noite. Normalmente, quando acompanhei essas atividades, os grupos começaram
248

a pescar entre duas e três horas da tarde e foram se deslocando, chegando em lugares bem
próximos ao porto por volta das seis horas da tarde. Essa atividade é comumente realizada em
paralelo com a procura por jacus e mutuns nas copas das árvores na beira do rio, portanto, é
importante aguardar o pôr do sol.

Grotas: sobre bater timbó

A prática chamada ngô ka õm – bater timbó, depois do abate de mry, talvez seja a segunda
atividade que mais praticaram os Xikrin antes do contato no concernente a explorar a floresta
na época seca. Inclusive, a prática guarda uma íntima relação com a categoria mey/meú,
indicadora de percorrer a mata durante longos períodos, o que por vezes se refere ao caráter
seminômade que tiveram os Xikrin até antes do contato. Vidal (1977, 80-86) faz uma descrição
do mey a partir da sua experiência de campo durante os anos 1970. A autora identifica que as
expedições não se reduziam apenas à seca, tendo também atividades exploratórias durante o
período de chuvas (principalmente entre janeiro e fevereiro), com a diferença de que nessa
época do ano as expedições ocupariam menos tempo de estadia na mata.

Porém, bater timbó, como tal, é uma atividade restrita ao verão amazônico, pois essa técnica
só é possível uma vez que os corpos de água decrescem. Essa prática garante a obtenção de
carne na dieta alimentícia, dando proveito à concentração de peixes em poços ao longo de
grotas e igarapés. Ademais, essa atividade também possui uma índole ritual importante,
fazendo parte da consolidação de alianças que fortalecem comemorações como o mereremex,
que dá forma à nomeação. Ademais, é uma das provas de iniciação de menoronures. Dessa
maneira, a partir da prática de ngô ka õm são articuladas algumas das maiores comemorações
dos Xikrin, havendo também a possibilidade de realizar alguns tipos de metoro
(comemorações, danças) no meio das expedições. Para isso, se acampa nas proximidades do
lugar onde é feita a pescaria, tendo como princípio, ser amplamente includente de todas as
categorias de idade. Trago a seguir, um relato com as condições procedimentais de dita prática.

... se por uma parte a caça é realizada incisivamente nessa época (outubro), por outra,
há jovens menoronure e mekrares que costumam ir em algumas das grotas próximas
com o propósito de bater timbó, nesses casos, é comum ver mulheres e crianças indo
junto. É uma prática que facilmente pode ser articulada com outras. Por exemplo, o
Junior já me convidou para pescar e ao mesmo tempo disse que precisava de uma
planta para dor de barriga (pidjà) que cresce nas proximidades das grotas.
249

Hoje saí com um grupo diverso, estando na grota nos dividimos em duplas, cada um
vai durante pouco menos de duas horas na mata próxima em procura de um tipo de
cipó que é usado para envenenar a água e fazer com que os peixes fiquem sem
respirar. Na região, esse cipó é conhecido como timbó-açu e é comum a múltiplos
povos indígenas. A minha impressão é que o cipó é cada vez menos comum nas
proximidades da grota, por causa do seu incisivo uso, sendo necessário que haja
buscas cada vez mais distantes. O cipó correto, segundo Meití, é aquele que parece
um trançado de três cipós, sendo cada um deles unido por um talo no centro. Sendo
observado a partir da caule, o cipó tem forma triangular, mas não é fácil de
identificar. Seguindo a explicação do meu colega, tentei achar a planta, cheguei a
identificar dois cipós que cumprem com estas características, contudo, errei! pois
ele me disse que os cipós que eu tinha achado não prestavam. Segundo o Meití, deve
considerar-se também uma tênue veia que cada um dos cipós trançados tem no
exterior, na casca, cruzando o cipó em toda a sua extensão.

Por último, o cipó correto é flexível, fazendo uma breve demonstração, Meití
comprovou como o cipó que eu achei se quebra facilmente na hora de dobrá-lo,
enquanto o correto não se desmancha tão facilmente. A resistência do cipó é uma
questão importante, levando em consideração que é exposto a ser batido de forma
incessante durante a pescaria. Acabamos achando o cipó correto depois de afastar-
nos da grota, inclusive, Meití indicou que a partir de agora, esse seria seu lugar de
abastecimento quando precisasse, pois parece que em certos pontos mais distantes
o cipó chega a se reproduzir com êxito ocupando uma área considerável. O corte de
apenas cinco cipós bastou para essa ocasião, sobrando um alto volume para futuras
ocasiões.

A parte da planta usada na pescaria é apenas o talo maduro, enquanto as partes finas,
assim como a extremidade superior onde se encontram folhas e eventualmente flores
é descartada, ou na maioria das vezes, acaba permanecendo enrolada nas copas das
árvores por onde foi trepando durante seu crescimento. Uma vez selecionado o talo,
é cortado em pedaços de 40 cm e amarrado com casca de embira, formando
montinhos que podem ser pendurados na cabeça e as costas para serem transportados
até a grota.
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17. Prancha 6: Tirando


akrô - cipó timbó
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Prancha 10: Tirando akrô - cipó timbó

Foto 1: O cipó timbó (akrô) (Serjania laruotteana Cambess) é uma trepadeira que se espalha
através de outra vegetação, sendo possível de se achar sobreposta entre galhos. Sua retirada
pode ser dispendiosa, principalmente por causa do emaranhamento que caracteriza as espécies
trepadeiras.

Foto 2: Feixe de cipó timbó após ser cortado, selecionado e amarrado com embira. O corte de
cada vara pode ter entre 40 a 50 cm.

Fotos: 3, 4, 5 e 6: Uma das etapas mais dispendiosas no processo de “bater timbó”, consiste na
procura do cipó que contém a rotenona e timboína, substâncias que agem como toxinas,
paralisando a respiração dos peixes. A trepadeira costuma se enrolar entre árvores adultas,
dificultando a sua retirada. Homens ágeis costumam subir através do cipó para puxá-lo com
seu peso. Meití sobe através do cipó chegando a se suspender até três metros. Vale dizer que a
planta é extremamente resistente.

Foto 7: Após obter o cipó, Meití procede a cortá-lo em troços de meio a um metro e o amarra
com casca de embira, formando um maço. Esse procedimento facilita seu transporte através da
floresta e seu posterior uso na água.

3 4

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O akrô -cipó timbó ou tingui -é conhecido cientificamente como Serjania laruotteana


Cambess, da família sapindaceae, sendo uma trepadeira que contém a composição química de
rotenona e timboína que agem como toxina apenas entre espécies de sangue-frio, paralisando
a respiração (Araujo, 1987). Normalmente os mais afetados são os peixes de superfície, já que
a rotenona afeta a corrente sanguínea quando entra no organismo através das brânquias. De
maneira geral, os seres humanos não deveriam ser afetados pela toxina no contato com a pele,
nem no consumo dos peixes intoxicados (Ibid).

Txicão (2016) em seu trabalho sobre as conotações que tem o timbó para os Ikpeng, menciona
a existência de pelo menos dois tipos de variações no Xingu117. Igual que nos Xikrin, o autor
ressalta que o timbó-açu, ou o mais “grosso”, de aspecto trançado, é o mais comum na floresta
e o mais usado entre os Ikpeng. Contudo, o procedimento de uso das plantas com toxinas pode
variar, já que como descreve o autor para o caso desse povo, os feixes de cipó previamente
cortado, com um cumprimento inferior ao dos Xikrin (apenas trinta centímetros), são
amassados antes de entrar na água com o propósito de liberar a toxina. Assim, o ingresso na
grota ou lagoa se dá apenas com o propósito de mergulhar os cipós e espalhar a substância ao
longo da área. Inclusive, há casos como entre os Dêsana do alto rio Negro, onde é usada uma
leguminosa (tephrosia sinapo) cultivada nas roças (Oliveira & Daly, 2001). Vejamos como se
faz entre os Xikrin do Bacajá.

... Chegando na grota os homens instalaram uma rede de pesca no lugar por onde a
água desce para continuar seu percurso, o propósito é evitar que os peixes
aproveitando a correnteza, ainda que leve, fujam do lugar onde está sendo diluída a
toxina do timbó. Entraram cinco homens na água, enquanto as mulheres e crianças
ficaram apenas observando desde a beira, cada homem do lado do outro
conservando dois metros aproximados de distância. Desde o momento em que a
água chegou no quadril começaram a bater os maços de timbó previamente cortados
e amarrados com embira.

Posteriormente, entraram mais homens fazendo o mesmo procedimento, eu entrei


junto, fomos criando mais uma barreira conservando o mesmo padrão de ficar um
do lado do outro, assim até nos juntarmos aos que entraram previamente. Em outras
palavras, o cipó é batido desde um mesmo ponto inicial que por vezes é coberto por
homens formando uma barreira horizontal, seguindo sempre a mesma direção: nesse
caso foi desde a beira em direção ao fundo da grota. Estando ali, permanecemos

117
Segundo Ferrão (2001) se estima que no mundo são usadas aproximadamente 140 espécies de plantas com
efeitos tóxicos sobre espécies aquáticas.
254

durante pouco menos de uma hora batendo os tocos de cipó, de forma sincronizada.
Isso garante que a toxina seja disseminada de forma homogênea produzindo um
efeito gradual ao longo da área coberta, começando pela superfície e chegando até
partes mais profundas da grota onde podem habitar peixes maiores.

Pouco tempo depois de estarmos fazendo esse procedimento, os peixes começaram


a pular fora da água, muitos querendo fugir ficaram presos na rede previamente
instalada, os peixes que moram mais próximos da superfície foram os primeiros a
aparecer: lambaris, traíras e piaus foram os que animaram a atividade. Importante
dizer que apesar de ter peixes de pequeno tamanho (10-15cm) estes não são
desaproveitados, inclusive, são os preferidos pelas crianças na hora de tentar flechá-
los e posteriormente, comê-los.

Um pouco depois se apresentaram alguns peixes medianos, tal parece moram ou


tentam se escapulir indo na parte profunda da grota. Contudo, a profundidade não
alcança mais de dois metros, de maneira que a toxina deve alcançá-los em algum
momento. Apareceram traíras de maior tamanho e alguns curimatã no final da
jornada, ficando presos na rede, onde lhes arremataram com uma borduna.

Finalmente, foram recolhidos os últimos peixes que estavam boiando na água,


comemos os que foram assados ali mesmo e procedemos a voltar na aldeia com o
restante. Concluo que o mais difícil desse procedimento possa ser achar e preparar
o cipó, pois uma vez que se coloca energia no batimento dos maços, é questão de
tempo para os peixes pularem até nós, não sendo dificultosa a sua captura.

Procedimentos para bater timbó. Diário de campo 15/11/17

A participação de múltiplas pessoas facilita que as áreas da grota ou da lagoa sejam cobertas
com maior eficiência, o que por vezes faz com que um maior número de peixes sejam
capturados em coordenação com as pessoas que permanecem na beira ou nas proximidades da
rede. Em todas as expedições de bater timbó que acompanhei, o fator decisivo, me parece, é o
trabalho em conjunto. Portanto é lógico que para esses casos se juntem não menos de dez
pessoas118.

118
Apenas tenho observado o Bep Kaire – Junior, tentando efetuar uma pescaria com timbó de forma solitária, a
forma em que ele procede consiste em escolher um poço com água de pequeno porte e uma vez liberada a toxina
na água, fica aguardando os peixes boiarem ou pularem fora da água. Numa ocasião o vi voltar com mais de vinte
peixes menores, o suficiente para alimentar a sua casa e a do seu sogro.
255

Txicão (2016) descreve no seu trabalho sobre os Ikpeng que a pescaria é realizada apenas por
membros que guardam parentesco em primeiro ou segundo grau, e cada família tem um lugar
específico para desenvolver sua pescaria, se limitando a este quando é praticada a atividade.
Entre os Xikrin, não há uma distribuição específica ou de controle sobre áreas de grotas ou
igarapés onde algumas famílias possuam exclusividade para explorar. Ademais, o ato de bater
timbó, geralmente se dá entre pessoas que nem sempre tem parentesco. Com frequência reúne
categorias de idade e amigos formais. Adicionalmente, o autor disse que em muitos casos a
coleta do timbó é feita um dia antes da pescaria, deixando os cipós cortados e amontoados,
prontos para serem usados. Essa situação não parece ser muito aceita para os Xikrin, já que
eles consideram pouco eficiente a toxina com o passar das horas. Numa conversa a respeito,
um dos meus interlocutores me explicou que o timbó pode ser armazenado enquanto há outras
atividades na frente, por exemplo, um metoro, mas preferivelmente deve ser usado no mesmo
dia em que os caules foram cortados.

De qualquer maneira, pode ser dito para os Xikrin que, na atualidade, assim como nas gerações
que antecederam, o preceito fundamental condutor do ato ngô ka om consiste no caráter
vinculante e extremamente social o qual demanda, sendo uma prática que vincula desde
mebenget-idosos até meboktires-crianças. A prática convida uma alta população da aldeia a se
deslocar através de caminhos na floresta até o lugar onde será realizada a pescaria e
eventualmente -caso seja planejado- haja uma atividade ritual que evoca danças e cantos
(ngrere) ligados à atividade119.

Contudo, há uma diferença a destacar entre o passado e a atualidade, relacionada com o tempo
de permanência numa expedição. Anteriormente essa prática levava as famílias a se deslocarem
durante períodos longos na floresta. Vidal (1977, 81) chega a identificar que as expedições dos
Xikrin eram realizadas em todas as épocas do ano, sendo no período de chuvas percursos de
duas a três semanas, e na seca, vários meses, ocupando o ngô ka õm um lugar comum às
expedições.

Hoje, bater timbó é na maioria dos casos uma prática realizada com o fim de obter a fonte de
carne e levá-la até a aldeia, onde finalmente será consumida. Ou seja, normalmente se reduz a

119
Há cantos específicos usados nas expedições, relacionados com os animais que se desejam caçar ou com donos
que os controlam, assim como cantos que lembram como se bate timbó. Ademais, há cantos que trazem com
frequência à memória o repertório de nomeação masculina Bep. Vale dizer que os nomes que começam por essa
expressão foram concedidos através da relação entre o xamã com os seres aquáticos. Vidal (1977) faz referência
a que há certos ritos na floresta que relacionam os ciclos de nomeação feminina Payn e Ngrei, adicionalmente, a
autora traz o mito do wayangá que foi morar no rio, onde se dá uma explicação à origem de alguns nomes. Para
ampliar essa informação ver Vidal (Ibid, 221) e o capítulo 6 desse trabalho.
256

uma atividade de um único dia. O caráter ritual, presente em algumas ocasiões, tem sido
reduzido em grande maneira, chegando a ter práticas rituais nas proximidades de grotas uma
única vez no ano. Ou seja, atualmente o caráter ritual de ngô ka õm tem como propósito
principal “lembrar como os antepassados faziam”. É uma espécie de festividade ligada à
necessidade de não deixar perder por completo o seminomadismo, uma vez que os Xikrin agora
moram em lugar fixo.

Uma vez conversando com Kirire em Bacajá, irmão de Txuak, lhe consultei sobre metoro em
atividades de ngô ka õm, sobre o que ele me disse: “sei, a gente fez em outubro. Ele é mey, a
gente comemora uma vez no ano, a gente faz também a festa do bó”. O bó (babaçu)
corresponde a um tipo de festividade realizada também na época de outubro, Essa
comemoração tem o precedente de ser realizada aos poucos, tendo alguns cantos (ngrere)
entoados pelos mebenget às tardes no ngàb desde algumas semanas antes do evento principal.
O preâmbulo do bó se vê complementado por expedições na floresta, durante a qual é realizada
a prática de bater timbó, sendo destinada uma parte dos peixes para presentear aos que ficam
no ngàb.

Adicionalmente, o Kirire explica que na atualidade, quando se fazem atividades de bater timbó
com caráter ritual, se levam em conta pelo menos dois tipos de modalidades. Por uma parte, há
expedições que convidam as famílias a participarem, dando um sentido comemorativo e de
lembrança sobre as expedições do passado. E por outra, como caráter de iniciação, induzindo
os menoronure a praticar e ter êxito num ngô ka õm por categoria de idade. No primeiro caso,
vão as famílias numa grota - inclusive os mebenget -, constroem um barraco-ruop (moro) nas
proximidades dos corpos de água e acampam durante um ou dois dias, revezando entre bater
timbó e breves expedições de alguns homens para procurar mry. Às tardes/noites ocorre uma
reunião com o propósito de dançar e os velhos discursarem.

Um relato do mebenget Bep Joti, a respeito de ngô ka õm na época em que ele era novo, durante
o pré-contato, demonstra que não houve grandes diferenças em relação ao contexto descrito
por Kirire, nem ao relato anterior onde eu apresentei uma expedição de bater timbó na época
na qual foi efetuado o meu trabalho de campo.

O ngokonbari120 fica atento, quando o pessoal terminar de colher na roça, convida a


aldeia. Todo mundo se prepara: guerreiro, mulher, velhos. Aí chamam todo mundo:

120
Refere-se a o líder de aldeia, turma ou categoria de idade ademais de chefes de maracá. Anteriormente, a chefia
era precedida pela entrega de maracá para o chefe novo. Os ngokonbari fazem o chamado e incentivam as
257

“bora sair pro mato”. A aldeia se prepara, o pessoal leva borduna, espingarda, facão,
panela, também leva colar, bracelete, maracá... leva cachorro. Todo mundo sai pro
mato cantando medjú (um tipo de canto usado nas expedições). Ficamos muito
tempo no mato perto da grota, perto da serra.

A gente anda muito pelo mato, faz ruop- barraco e fica todo mundo junto. Depois
tem a festa, aí cantamos, aí depois para. Continua a andar, canta e continua, e assim...
vai parando cantando e dançando, depois continua andando, vários dias. Nhunjoi vai
na frente “cantar e cantar...”. A gente fica direto no mato, leva jucú – mandioca,
mulher faz ki-forno, quando as pedras ficam quentes já pode fazer jucupú-berarubú,
come direto jucupú... quando acabar o jucú, a gente volta (para aldeia).

O pessoal dança na festa e chegando à noite prepara tudo, fica pronto para bater
timbó. Todos param de dançar e entram na água para bater timbó, mas o Nhunjoi
continua, ele canta muito, dança muito até de madrugada. Ele canta e conta histórias.
Mulheres ficam de um lado esperando o peixe, quando o peixe fica doido e pula fora
da água, elas pegam e matam. Crianças ajudam as mães. Todo mundo fica alegre.

Todos os homens na água, juntos (quer dizer sincronizado). Quando dá hora, falam:
“já chega, bora subir” Aí deixam o timbó e sobem. Já com os peixes mortos, as
mulheres vão assar para todo mundo comer. Pegam urucum e misturam com óleo
de babaçu e passam nas pernas de todo mundo. Já com os peixes no jeito, primeiro
os guerreiros vão comer, depois todos comem juntos (...)

Bater timbó, no passado. Narração de Bep Joti.

Tradução de Bep Nhô.

Ngô ka õm não só vinculava as diferentes categorias de idade, senão que outorgava funções
sociais para cada uma delas, desde homens caçando e batendo o timbó, crianças assistindo na
pescaria, mulheres fazendo berarubú, velhos cantando e todos, ao cair a noite, dançando e
eventualmente ouvindo aos mebenget discursarem. Logo, bater timbó talvez possa ser colocado
como uma das experiências que são epicentro do aprendizado dos Xikrin no âmbito da práxis.
Inclusive, mostra como é possível encontrar na floresta um contexto de repartição de labores
que dão forma a um cenário de intercâmbio geracional. A prática de bater timbó constitui um
cenário privilegiado de engajamento no ambiente, no qual as skill - através de um exercício de

atividades durante uma expedição. A etnografia de Vidal (1977,84) identifica que uma parte dessa função, pelo
menos a de incentivar a caça e o canto, pode recair também no xamã (wayangá).
258

educação da atenção (Ingold 2002d, 2008, 2010) - são colocadas em circulação e desenvolvidas
através de mobilidades sincronizadas. Voltarei nessa análise com mais cuidado no capítulo 7.

Por outra parte, bater timbó com caráter de iniciação de menoronures tem algumas conotações
específicas, sendo também praticado em paralelo às comemorações entre outubro e dezembro.
Disse Kirire que essa atividade é chamada de ngô-mey-kuojkré e, apesar de ter sido diminuída
na atualidade, ainda se pratica. Nesses casos, um mebenget precede a organização da
expedição, incentivando os novos através de falas no ngàb. Uma vez que os menoronure saem
da aldeia, o velho permanece no ngàb ou vai para um lugar próximo em procura de lenha para
fazer uma fogueira. No retorno dos expedicionários, o peixe é levado no centro da aldeia e
colocado à disposição do velho que se encarrega de assá-lo e compartilhá-lo com os jovens
enquanto relata experiências de mey (longas andanças no mato) e relembra mitos Mebêngôkre.

A atividade ngô-mey-kuojkré possui conotações semelhantes ao amiy tá (bater no ninho de


marimbondo), apresentado no capítulo 2, pois os dois atos consistem - dentre outras coisas -
em um exercício ou repertório de provas sobre habilidades inseridas na reafirmação de valores
sociais. No primeiro caso, a capacidade de fazer expedições coletivas, orientar-se na floresta
próxima da grota enquanto procura o cipó e finalmente abater os peixes, que representam a
obtenção de comida. No segundo caso, o valor social é o da fortaleza física e mental, por
conseguinte, um corpo resistente e uma determinação guerreira. Pois vale lembrar que as
picadas dos marimbondos constituem a incorporação de substâncias vindas do embate e a raiva
produto de um encontro com inimigos (Bollettin, 2013). Seja em uma ou em outra atividade,
estamos diante de práticas que viabilizam e reforçam a consolidação de uma personificação de
masculinidade Xikrin, por vezes causada por uma interação multiespecífica entre Mebêngôkre,
peixes e marimbondos.

Esturrando no rio

Finalmente devo dedicar um espaço para descrever uma prática que tem uma índole particular
e/ou excepcional, referida à possibilidade de usar um grande corpo de água como cenário a
favor para tentar abater onças. Vale esclarecer que no cotidiano da cinegética não há expedições
com o propósito de abater esses mamíferos. Portanto, é possível que a prática que descreverei
não deva ser entendida propriamente como um ato cinegético ou como “caça de onças”. O
abate de uma onça, de forma geral, é efetuada quando as circunstâncias o facilitam: encontrar
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um rop-krori/rop-tukre- onça pintada/onça preta no mato e abatê-la, tem um efeito semelhante


ao do ato de bater no ninho de marimbondos enquanto ao fortalecimento da pessoa masculina
(ver capítulo 2).

Alguns mebenget como Bep-Tok e Bep-Joti tem me relatado que na sua geração havia um
metoro(comemoração) relacionado com onças, sendo entoados cantos (ngrere) alusivos,
ademais de usar-se durante a dança padjés nos braços, cintos no quadril e faixas na cabeça
confeccionados a partir do coro da onça-pintada. Por outra parte, tem me dito que em certas
ocasiões os menoronure usavam os dentes desse animal para se escarificar abrindo pequenas
feridas nos braços e costas com o propósito de deixar sair um pouco do sangue punure (ruim)
e incorporar um pouco da força da onça, isso na prévia de um metoro. É importante dizer que
a carne de felinos não se consome, salvo em ocasiões especiais em que os menoronure
poderiam comer a carne de felinos com o único propósito de adquirir a fortaleza, valor e
expertise que tem esse animal.

Adicionalmente, Bep Tok chegou a me informar que na região do estômago do animal há um


óleo que é usado com propósitos medicinais para aliviar dores específicas, conhecimento
adquirido de não indígenas (meu interlocutor aprendeu a elaborar um unguento a partir dessa
matéria-prima através de uma mulher não indígena) um tempo atrás. Foi com o propósito de
fabricar alguns padjés (braceletes) e elaborar o unguento que tive a oportunidade de
acompanhar a procura de uma onça através do rio Bacajá.

Uma noite espessa, hoje não há lua e o choro feminino a causa do reencontro entre
Irengrî e seus parentes de Bacajá tem feito com que haja uma sensação taciturna. Há
alguns dias Onça-Bep Tok tinha me pedido para lhe acompanhar uma vez que a lua
sumisse, hoje chegou esse momento. De alguma maneira eu já sabia, pois à tarde vi
que ele finalmente concluiu o remo ao qual dedicou os últimos dias, uma peça de
acabamento caprichado onde é possível passar as mãos de ponta a ponta sem sentir
sequer um farpo. Só não pensei que ele pudesse sair no meio de uma visita... de
qualquer forma, me disse em português: “cadê a tua camisa? põe ela e pega a
lanterna, bora chamar rop-krori”.

Era 20:00 hr quando descemos no porto de Pytakô, ele ficou num extremo enquanto
empurrei o casco e o direcionei em sentido jusante ao rio, ele foi remando sempre
que necessário direcionar o casco. A maior diferença sensorial entre estar à noite na
aldeia e no mato ou no rio, é sonora. Pois hoje nas aldeias Xikrin é impossível ouvir
coisa alguma além de um motor encarregado de fornecer energia até altas horas,
mais quando tem jogos de futebol. Assim, à medida que fomos descendo pelo rio o
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barulho foi desaparecendo e ficou cada vez mais factível ouvir o movimento do rio,
alguns pássaros na beira, peixes que se arremessavam para fora da água e claro, um
universo de sapos e insetos circulando no ambiente.

Passou cerca de vinte minutos até chegarmos num complexo de pedras que
sobressaem na água, nesse local o rio se estreita apesar de ter ali um poço profundo
onde é possível pegar peixes grandes. Encalhamos o casco entre duas pedras,
descemos e procuramos um lugar confortável para sentar-se. Bep Tok me deu uma
breve explicação a respeito do procedimento: “eu vou pegar poh tik, vou chamar
onça, ela vai responder, vai vir... quando chegar perto do rio a gente vai esperar
entrar na água, eu vou atirar”.

Ato seguido tirou da sua bolsa um bambu grosso de 40 cms cortado entre dois
diafragmas, o que faz com que haja uma peça única com fins sonoros, na parte
superior, por onde se assopra, o diafragma tem um pequeno orifício no centro,
enquanto na parte inferior é deixado aberto com o propósito de replicar o som com
maior frequência (ver imagem 14). Onça tomou ar e o primeiro sopro veio com
bastante força sendo prolongado, logo veio um segundo sopro com menos força num
intervalo menor, finalmente, mais dois sopros leves e curtos, ao todo quatro.

Fez uma pausa rápida e voltou a replicar a mesma sequência, assim durante pelo
menos cinco minutos. Posteriormente, se sentou e descansou enquanto ligava a sua
lanterna de forma intermitente iluminando a beira do rio... se passaram duas horas,
ele tocando o instrumento e eu eventualmente iluminando as beiradas do rio,
tentando identificar qualquer novidade, mas apenas havia pequenos olhos brilhantes
que se movimentavam de um lado a outro com rapidez, eram korokós- bacuraus.

Procurando por onças na jusante do Bacajá. Diário de campo 26/11/17


261

18. Prancha 7: Esturro da


onça com poh-tik
262

Prancha 11: Imitação da onça com poh-tik

Foto 1: A saída para esturrar com poh-tik se dá no final de tarde. Bep Tok-Onça se dispõe a
coordenar a direção do casco, seja à montante ou jusante. A função de quem está na popa
consiste em dar direção à embarcação.

Foto 2: As rochas no meio do rio são fundamentais, já que quem emite o esturro deve se
proteger através de uma barreira de água. Caso o felino apareça e tente se aproximar até o
imitador, este terá mais possibilidades de reagir enquanto o animal nada. Portanto, o esturro
que usa barreira de água é feito durante a época seca, quando o nível do rio desce e as pedras
são pronunciadas.

Foto 3: A paciência é fundamental nesse processo. A pessoa permanece longos períodos (às
vezes horas) esperando a resposta de uma onça. Os ouvidos devem permanecer aguçados e a
emissão de barulhos deve ser evitada. Apenas se escuta a água que escorre entre o casco ou as
pedras, concertos de sapos e eventualmente uma onça com choro ferido à distância.

Foto 4: Esturros vão e vem, se misturam. Uma vez que a onça se manifesta, o assopro com
poh-tik é enfatizado num ritmo acelerado que irrompe entre a rede de sons já assimilados pelo
ambiente noturno do rio.

Foto 5: Os encontros com onças são raros. No entanto, sempre que ocorrem, os caçadores
tentam predar o felino, assumindo que, caso contrário, poderá ocorrer uma contrapredação, seja
no momento presente ou no futuro. Além disso, a masculinidade é reafirmada por meio de atos
que expõem a capacidade de predar outros inimigos.

1
3
2

4
5
263

Se passaram alguns dias até voltar a procurar uma onça com Bep Tok, ao igual que
em dias atrás, descemos até o porto e nos organizamos rapidamente no interior do
casco. Embora, dessa vez subimos o rio, ele na proa guiando nosso movimento,
acendendo a sua lanterna para conferir que não houvesse pedras ou lajes na nossa
frente com as que pudéssemos bater.

O inverno está chegando, há chuvas miúdas que começam a encher o rio, ele está se
tornando mais navegável, embora, continue seco. Ir na montante é um desafio pois
há pequenas correntezas na contramão que devemos evitar enquanto aproveitamos
estreitas passagens, sair delas significaria ficar encalhados num banco de arena a
altas horas da noite.

Novamente encontramos uma laje onde Onça me pediu para encostar o casco, dessa
vez era um espaço mais fechado, ao nosso redor tinha pedras, lajes e um ilhote que
operou como divisor entre nós e a mata, foi nesse contexto em que o nosso chamado
começou, pois, uma vez em solo firme, meu interlocutor se apressurou a esturrar
com o poh-tik. Foi a mesma sequência do outro dia, a mesma cadência e
temporalidade, cabendo as pausas para descansar e oxigenar os pulmões:
“uuuuuuuhhrr, uuuuhhr uuuuhhr, uuhhr, uuhhr, uhr, uhr”.

Dessa vez houve uma novidade, após vinte minutos consecutivos de esturros de Bep
Tok me pareceu ouvir à distância uma resposta vindo da mata oriental, a primeira
vez pensei que seria um eco do esturro do meu interlocutor, mas depois conclui que
um eco geralmente é um efeito sonoro que retorna um instante depois do som
original ter sido emitido, enquanto nesta ocasião, a resposta estava vindo com uma
periodicidade maior, fora de uma certa autonomia. “Bep, bá mari rop krori” falei
para Onça, imediatamente ele soltou o ar, baixou os braços e relaxou o corpo
enquanto movimentava a cabeça posicionando suas gastas orelhas para frente, dando
a impressão de querer captar com maior facilidade o som.

Voltamos a escutar um esturro, não me cabia dúvida de que o som que eu estava
captando nesse instante era idêntico ao que o Bep Tok tinha feito. Pela primeira vez
estava escutando uma onça esturrar, seguidamente entendi que o som que vinha
emitindo o Bep era análogo em todos os sentidos, frequência, gravidade,
temporalidade... Onça disse “nhu mói, rop krori tum”, entendi que era uma onça
adulta – ou velha. De qualquer forma ele voltou a esturrar com mais frequência,
intensificando a atividade que tinha feito até esse momento, eventualmente parava
para ouvir a resposta do felino e me pedia para conferir, de fato, progressivamente
264

fui escutando como a onça foi se movimentando, pois seu esturro era cada vez mais
próximo.

Não sei com clareza quanto tempo levou esse rito de cortejo entre um esturro e outro,
mas penso que não foi mais do que alguns minutos. A onça enganada num primeiro
momento, parece que percebeu alguma irregularidade, já que sem estar muito
próxima nem muito distante, parou de nos responder. Nunca veio até a beira do rio,
pois os seus esturros davam para minimamente perceber que estava mata adentro,
ademais, as vezes que iluminei a beira não enxerguei novidade alguma. Contudo,
Bep Tok continuou a insistir na imitação, aguardamos mais um pouco, embora,
acabamos por desistir e retornar à aldeia.

Procurando por onças no montante do Bacajá. Diário de campo 01/12/17

Imagem 19. Poh - Tik

Quando se fala em caça Xikrin, pode se relacionar diretamente com andar pela floresta,
caminhar através de trilhas ou caminhos em procura de saciar certos desejos, geralmente os de
consumo de carne121. Por outra parte, a descrição acima apresentada tem conotações diferentes,
já que não se procuram onças para consumo, assim como não se caminha para achá-la. Talvez

121
Embora devo lembrar que caminhar na floresta nem sempre está relacionado com o ato de caçar como já
apresentei no capítulo 2, na parte referida a bà kam tem.
265

essa prática possa ser considerada tecnicamente como uma forma de “caça de espera", na
medida em que é de suma importância escolher um lugar fixo e traçar uma estratégia desde ali,
fazendo com que num eventual encontro o caçador tenha uma ampla vantagem. Não que as
onças não saibam nadar, mas o que se procura é diminuir sua destreza. No entanto, os
propósitos de predar uma onça só encontram forma no âmbito ontológico dos mebêngôkre,
onde a liberação, equilíbrio e desenvolvimento da condição akré (força) (ver capítulo 6 para
aprofundar a respeito) são o fundamento de atitudes agonísticas além da aldeia. Em outras
palavras, abater uma onça estaria mais relacionado com o âmbito do desenvolvimento e
equilíbrio da pessoa masculina (no mesmo sentido de bater nos ninhos de marimbondo- amiy
tá), do que com o ato de caça em si.

Por outra parte, em outros momentos conversando com Bep Tok, ele relacionava o esturro feito
com o poh tik com o cio da onça, expressando que normalmente quando a gente escuta mais
de um felino esturrando na mata é porque estão em período de acasalamento. Quando um
caçador imita o esturro com poh-tik, se insere num âmbito relacional onde ele convida ao ciclo
da reprodução, de forma que há na prática de assoprar o poh tik uma situação imbuída na forma
em que é dada a sedução. Encontro aqui uma representação sonora daquilo que Willerslev
(2012) denomina como “fazer amor” quando os Yukaghir incorporam corporalidades e cheiros
das renas. Ademais, essa prática pode ser uma das formas semióticas mais expressivas no
âmbito das percepções materiais multiespecíficas, como demonstra Kohn (2021a; 2021b) em
relação aos sons na floresta. Um dos elementos que mais chama atenção quando se imita o
esturro de uma onça é a sincronia de ritmos sonoros com os quais é realizada essa atividade: a
cadência, os tempos, o tom com que se interage a cada momento através do instrumento, fazem
com que a comunicação entre predadores (Mebêngôkre-rop-krori) seja altamente eficiente. Eu
vim entender aquilo quando finalmente apareceu um felino em cena, pois no chamado entre
um e outro, Onça e onça, foi confrontado de tal forma que a imitação se tornou a forma
originalmente manifesta.

Nesse ponto a enganação se torna a forma que guia a relação. Assim como os Yukaghir da
Sibéria oriental (Willerslev 2007; 2012) esperariam sua presa chegar muito perto, Bep Tok tem
como parâmetro ocasionar com que o felino fique tão excitado a ponto de entrar no corpo de
água e nadar até o lugar onde ele se aloca. Os caçadores, nesse caso, optam por se valer do poh-
tik para enganar, o rio para fragilizar e uma espingarda para matar122.

122
Vale mencionar que segundo relatos dos velhos, no passado quando ainda não contavam com espingardas, a
ferramenta por excelência com a qual confrontavam animais agressivos, incluindo as onças, era a koiaká ou
266

Partindo da descrição apresentada no relato, é possível identificar que dita experiência requer
de algumas condições as quais poderiam estar ligadas aos ciclos sazonais, pois no caso do rio
deve haver pelos menos duas condições123. Primeiramente, nível de água suficiente como para
garantir que haja um isolamento entre a beira do rio e o lugar onde o caçador efetua o chamado.
Segundo, deve haver lajes de grande porte como para estacionar uma canoa e o caçador ter a
possibilidade de se locomover de um lado para outro, conseguindo abranger a direção das duas
beiras do rio. Portanto, o momento ideal para essa atividade seria o período ngô-gró-mó ou
quando iniciam as chuvas e o rio começa a aumentar seu nível hídrico.

Cabe ainda dar atenção a um apêndice que expõe uma forma de caça semelhante à retratada
em relação ao rio, mas considerando apenas a terra firme no interior da floresta. Ainda que rara
vez praticada, os Xikrin são conhecedores da técnica de caça através de mutás (estruturas
suspensas), a qual consiste em escolher um ponto de referência e permanecer ali durante um
longo período aguardando a aparição de animais. Geralmente os lugares escolhidos são as
roças, os barreiros ou nas proximidades de árvores frutais onde antas e veados costumam
comparecer para se alimentarem.

Esturrando na serra

Geralmente, na floresta, o dia representa o período por excelência para se locomover. Ainda
no passado, quando eram mais comuns as expedições longas, os Xikrin estabeleciam ruop ou
acampamentos secundários onde pernoitavam. As noites têm um caráter ritual, festivo e de
oratória. Nos acampamentos, essas seriam as principais atividades até a madrugada. Hoje,
apesar dos aldeamentos fixos, essa característica em essência não tem mudado: bà kam tem
(caminhar na floresta) em formato de expedições curtas, se dá durante o dia. E as noites são
usadas para reunir as famílias: as mães mimam e adormecem as crianças no colo, os homens
conversam e fazem piadas sobre suas experiências, os mebenget falam sem necessariamente
ser ouvidos; inclusive, em casos de animação, velhos e crianças dançam.

Quase que pode se determinar uma separação rigorosa para os Mebêngôkre, na qual dia e noite
estão definidos enquanto a vida doméstica (noite) e andar na floresta (dia). Ou seja, a cinegética
é, em essência, matutina. É claro que há caminhadas noturnas, principalmente hoje, com a

borduna, a qual representaria uma experiência técnica completamente diferente, pois seria necessário estar a uma
distância muito mais próxima.
123
Essas condicionantes poderiam chegar a ser implementadas em outros corpos de água como lagoas.
267

estrada aberta, é mais comum encontrar grupos de caçadores circulando em veículos à procura
de antas (forma cinegética que já descrevi com detalhes no começo deste capítulo). No entanto,
o volume principal das experiências se dá à luz do dia. Carlos Fausto (2014, pág. 166) relaciona
mudanças nos hábitos de caça nos Parakanã com o domínio de espingardas e lanternas que
vieram a ser introduzidas com intensidade no final da década de 80. Esses dois implementos
têm favorecido a predação de espécies arborícolas e noctívagas, dando como resultado
atividades baseadas na espera. Ainda que nos Xikrin a chegada de espingardas e lanternas possa
se datar algumas décadas antes dos Parakanã, diria no mesmo sentido de Fausto, que os hábitos
noturnos de caça são paralelos ao uso e domínio desses dois artefatos.

Por outra parte, atividades que implicam permanecer em um único ponto aguardando não
poderiam ser associadas com um possível detrimento da cinegética Xikrin baseada na
locomoção, já que para praticar a caça de espera ainda é necessário recorrer a caminhadas
através de trilhas. Ademais, a caça noturna pode ser considerada apenas como uma variante,
sendo uma atividade pouco comum em Bacajá. Esse estilo não parece fazer parte do repertório
narrativo Mebêngôkre, sendo pouco referido entre mitos e falas. Assim, deve-se considerar que
a implementação dos preceitos e tecnologias que compõem essa forma cinegética obedecem a
casos muito concretos.

Fisher (1991, p. 430) relata alguns episódios de caça de espera durante a noite, sendo os galhos
de árvores frutíferas e as roças os lugares favoritos para permanecer aguardando veados e
roedores. Curiosamente, o autor descreve que quem realizava essa prática era o nosso
interlocutor, o Onça. Apesar da caça de espera ser uma prática pouco frequente, a busca por
dados relacionados a essa atividade entre os Xikrin tem me levado a considerar que, na maioria
das vezes, são construídas estruturas temporárias comumente conhecidas na região, como
mutás, que facilitam suspender uma rede no alto de árvores e permanecer ali durante horas
enquanto se inspeciona periodicamente os arredores.

Uma vez conversei com Kwynhdjy a respeito disso. Após ele insistir em que para os caçadores
é muito mais eficiente caminhar através de trilhas, procedeu a me explicar que ele fazia caça
com mutás em alguns casos, sempre no final da tarde ou à noite e quando tinha certeza de que
no lugar onde ele ficaria, estaria passando algum mry: “eu já fiz mutá na roça, quando vi que
os caititus estavam vindo comer a mandioca, também na árvore de frutão (pariri), para pegar
anta...”. Assim, meu interlocutor fez essa caça de espera em lugares onde previamente tinha
havido algum sinal por parte da presa.
268

Aproveitei para consultar se para essa forma de caça era necessário organizar uma expedição
coletiva ou de que tipo. Ele explicou que se faz em dupla ou também sozinho “o pessoal não
gosta de caçar à noite, então geralmente quem vai, vai sozinho, às vezes leva o filho ou irmão
para pegar o caititu que está comendo a roça...”. Durante a minha estadia em campo só houve
uma vez em que presenciei essa atividade, casualmente não foi para procurar carne de
alimentação, senão, uma vez mais, para imitar o esturro de uma onça.

Mais uma vez saí em dupla com Bep Tok, ele quis insistir em tentar o contato com
uma onça através do poh-tik, da última vez rop-krori respondeu, mas logo menos
desapareceu, isso tem feito com que Bep Tok queira persistir. Mas, dessa vez foi
diferente, pois ele previu que o felino (o mesmo da última vez) não cairia na nossa
armadilha caso aplicássemos a nossa estratégia anterior. Assim, tentou o contato
desde outra perspectiva.

Era umas 17:00 h, Onça não avisa com antecipação, me vê e um segundo depois
pronúncia uma alerta indicando que deveremos ir fora da aldeia, ato seguido eu
arrumo minhas coisas e me preparo para uma expedição. Porém, nesta ocasião me
pediu para levar a rede e pôr minhas botas, claramente não iríamos pelo rio... dessa
vez a aventura seria em terra firme: trocamos o porto pela roça coletiva, o casco
pelas nossas pernas e o remo por um facão bem amolado.

Saímos rapidamente da aldeia e entramos na trilha principal que leva até a pista de
pouso, dali seguimos para a roça e estando nela não demoramos em cruzá-la de um
extremo a outro, não sem antes inspecionar se havia alguma paca perambulando
distraída.

Avançamos através de uma trilha, depois de alguns minutos estávamos mata


adentro. Numa mão a lanterna iluminando o caminho e eventualmente as copas das
árvores, na outra, um facão com o qual abríamos passo entre algumas folhas de
palma e cipó unha de gato que tinha invadido o caminho. Aos poucos fomos nos
aproximando da área onde tínhamos ouvido a onça nos responder alguns dias atrás.

Fomos subindo uma serra, chegando no cume paramos para descansar um pouco.
No entanto, a noite estava vindo encima de nós e Onça se apressurou, o propósito
era esturrar desde ali, pois a parte mais alta da serra nos dava uma visão ampla do
redor, mas nunca como no rio. Bep Tok cortou um pau mediano, me pediu para fazer
várias cópias do mesmo tamanho. Enquanto isso ele descascou um pouco de embira
que posteriormente usamos para amarrar os cruzamentos entre os paus e as árvores.
269

A estrutura consiste em amarrar duas varas entre uma árvore e outra com uma
distância aproximada de 3.5 metros, uma vez que a primeira vareta se encontra
firme, se sobe nela e se amarra a seguinte na mesma posição da anterior com uma
altura o suficiente como para facilitar subir e descer entre uma e outra. O propósito
é criar dois níveis de altura que funcionam como uma escada, facilitando que um
caçador possa escalar através desta até atingir uma altura considerável do solo.
Fizemos duas estruturas, uma para cada, ficando uma contínua da outra. Uma vez
concluídas, procedemos a subir no segundo nível e atar a rede, dessa forma
conseguimos ficar suspensos a uma altura aproximada de 5 metros do chão.

Logo a escuridão tomou conta da selva e milhares de insetos e répteis apareceram


compondo um cenário de sons infinitos. Se passaram vários minutos antes de Bep
Tok se animar a fazer parte desse universo musical, mas finalmente começou a
imitar o esturro das onças com seu poh-tik. Cadências sonoras que eu já conhecia
tomaram conta do lugar, conservando o mesmo padrão que tinha apresentado
durante as nossas experiências no rio. Desta vez, Bep Tok parecia um pouco
impaciente, pois a cada certo tempo durante os intervalos de descanso o escutava
emitir um leve gemido indicando decepção, seus movimentos dentro da rede se
tornaram cada vez mais presentes em contraposição à ausência de respostas da onça.

Foram três horas ali, apenas nos comunicando através de breves palavras em tom
baixo, eventualmente iluminando ao nosso redor para inspecionar qualquer
alteração no espaço. Após a segunda hora, o Onça parou de esturrar e pediu para eu
ficar atento de mry, pois tinha a esperança de que alguma anta passasse pela trilha
que estava nas proximidades. Contudo, acabamos desistindo. Em questão de
segundos desatamos as redes, descemos e pegamos as nossas mochilas. Os mutás
não foram desmontados, por isso que há vezes em que andando na floresta é possível
encontrar estruturas abandonadas.

Voltando pela mesma trilha em que fomos chegando na pista de pouso percebi que
havia dois olhos grandes e brilhantes nos observando. Após conferir, Onça não se
excitou em carregar a espingarda e correr em direção ao animal, pois estava longe
da mira. Chegando um pouco mais perto, percebemos que este tinha se afastado,
mas continuava a nos olhar. Ao concluir que não seria possível chegar mais
próximo, Bep Tok atirou. O animal fugiu... apesar de procurar nos arredores não
achamos rastros. Foi assim que concluímos o ciclo de procura por onças.

Procurando por onças no mutá. Diário de campo 06/12/17


270

Apesar de ser um lugar relativamente próximo da aldeia (quarenta minutos de caminhada)


nunca voltei nele depois daquela noite. A principal razão é porque os caçadores não costumam
subir terrenos montanhosos, dando preferência para lugares baixos da floresta onde também
são mais comuns barreiros, lagoas e grotas. Onça me disse que no futuro poderíamos reutilizar
o mutá caso precisássemos voltar. De qualquer forma, essa estrutura é relativamente simples e
rápida de montar sempre que se identifiquem as varetas certas (paus que sejam resistentes ao
peso de um ser humano adulto). É interessante observar o contraste de usos e trânsito que há
entre lugares altos e baixos da mata. Normalmente se transita pelos mais baixos. Em casos
como o da nossa expedição, era importante garantir que o som do poh-tik se espalhasse o mais
longe possível. De qualquer forma, também chama atenção que ali houvesse uma trilha, que
dadas suas condições, parecia relativamente abandonada. Para os mebenget/i, e aqueles que
vivenciaram a região de Bacajá antes das aldeias fixas, as serras são um referente do
conhecimento territorial, possível de serem evidenciadas nas falas, onde se faz frequente alusão
a estas como fronteiras por onde transitavam quando praticavam atividades seminômades. As
serras fariam a função divisória de forma semelhante à do rio hoje.

Um outro aspecto que me chama atenção sobre o ciclo de saídas para procurar onças é que,
casualmente -e nem tão casual-, o felino veio nos encontrar na pista de pouso. Ou seja, um
lugar mais próximo da aldeia do que qualquer outro onde fomos imitar o esturro. Esse fato é
mais um elemento que reforça que assim como para os humanos hoje é mais frequente usar
estradas e pistas de pouso para transitar, esses lugares têm se tornado também para os mry e
seus predadores, grandes cenários ecológicos que de forma interdependente vão recriando
significados no ambiente.

Por outra parte, como o Kwynhdjy me disse, o mutá não é comumente utilizado, mas quando
se usa, se faz com propósitos de pegar antas, veados, pacas e até caititus, o que me parece, é
um indicativo de que para Bep Tok o exercício que fizemos em procura de onças foi uma
escolha individual e pouco factível de ser usada com esses fins. Portanto, a forma técnica
baseada no isolamento através de um corpo de água (não de altura em relação ao chão) seria o
procedimento principal. De qualquer modo, seja no rio ou no mutá, os princípios continuam
sendo o aproveitamento da noite, a imitação de sons de cortejo, a espera e, consequentemente,
o uso de lanternas para conferir.

Por último, cabe se perguntar se o contexto noturno da floresta faz parte do conjunto de
experiências que compõem o aprendizado de um caçador. Numa resposta quase que imediata
devo dizer que sim, pois um caçador deverá saber lidar com a floresta progressivamente até
271

chegar a se relacionar com dimensões menos frequentes, mas que podem fazer parte
eventualmente do repertório de atividades. Ou seja, para um caçador não é impreterível encarar
a floresta à noite ou elaborar mutás como prova ou iniciação, pois como tenho demonstrado, a
fonte da caça Xikrin se sustenta no dia e em caminhar. No entanto, experiências à noite podem
dar sinais de que uma pessoa está pronta para lidar com qualquer situação.

A respeito disso, devo reafirmar que na etapa menoronure costuma-se ir em grupos para lugares
próximos da aldeia e sempre durante o dia. É improvável que jovens dessa categoria de idade
e subjacentes experimentem por sua conta experiências à noite. Em contraposição, os caçadores
que optam por caçar à noite, seja pela estrada, o rio ou às vezes em mutás, são geralmente da
categoria de idade mekrare: homens casados com filhos que, em muitos casos tem o hábito de
caçar em solitário, o qual faz com que possuam uma ampla trajetória cinegética.

Um aspecto importante sobre possibilidade de caçar à noite, está relacionado com a ordem
cosmológica operante na interpretação que os Xikrin fazem da floresta durante esse período.
Para eles, os karón (aqui traduzido como espíritos, seja de humanos ou outros-que-humanos)
circulam muito mais durante esse período. Assim, alguém que acessa a floresta à noite, é
alguém que se expõe a uma possível predação pelos karón, visto representado pelo
adoecimento da cabeça (a loucura bibãnh) e sua progressiva morte. Isso está relacionado com
que à noite seja muito mais factível que um wayangá (xamã) visite a mata, do que um caçador,
pois o primeiro consegue transitar entre vários domínios cósmicos e se relacionar com outros
seres. Abordarei esse assunto com maior profundeza no capítulo 6.

Por outra parte, enquanto aos artefatos usados na prática cinegética noturna, a atividade se
reduz ao uso de espingardas e lanternas, fazendo com que os ritmos de caça noturnos sejam
pautados pelo abate de presas à distância. Normalmente os menoronure que caçam de modo
grupal, usam bordunas, o que também ajudaria a explicar por que as experiências noturnas não
fazem parte dos processos primários de treinamento e iniciação no mundo da caça.

Kirire disse ter, desde novo, um certo “temor” pelo mato à noite, achando que ele mudava
completamente ao cair do dia. Com quinze anos já dominava a espingarda de seu pai e
acompanhava expedições, mas veio se relacionar com a mata no período noturno apenas aos
dezessete, sendo um processo gradual. A forma em que Kirire expressa ter se relacionado com
a noite progressivamente, parece ser o padrão de experiências entre os caçadores Xikrin,
demonstrando também que os caçadores que se aventuram a circular na mata durante à noite,
o fazem assim que tem um conhecimento afincado sobre as redes de caminhos pelos quais
272

transitam. Em outras palavras, um caçador anda durante à noite através das mesmas trilhas que
previamente apreciou e com as quais já teve uma íntima relação durante o dia.

Até aqui tenho apresentado múltiplas formas em que os caçadores Xikrin transitam e caçam na
floresta, estando sempre imersos em lugares que se interconectam através de redes de
caminhos, dando forma a padrões reticulares. Esses lugares são variados, podendo ser desde
capoeiras ou roças, até barreiros, grotas, ilhotes de espécies arborícolas frutíferas, ou, inclusive,
as próprias trilhas, que como tenho demonstrado, também testemunham encontros entre
caçadores e mry com frequência, convidando a sair destas e voltar traçando semicírculos. Pode
ser dito que as modalidades ou formas de caça estão sempre entrecruzadas, fazendo com que
os ritmos que definem uma atividade possam variar e levar os protagonistas para outro destino.

Posey (1985; 1987) propõe que os Kayapó possuem um amplo manejo florestal, traduzido em
reconhecimentos entorno de espaços que passam por processos de humanização. No meu
trabalho, sobre as múltiplas formas em que os Xikrin caçam, isso pode ser evidenciado através
das formas práticas de andar na floresta. Essas formas são um fator central para entender a
configuração territorial. No entanto, devo advertir que estamos à frente de um complexo
sistema de trânsito consciente na floresta, no qual os processos de humanização são
frequentemente ultrapassados, dando lugar a um sistema de relações sociais que se configuram
a partir de âmbitos semióticos e multiespecíficos.
273

20. Prancha 11: Noite


274

Prancha 12: Noite

Foto 1 e 2: As noites são o momento preferido para que a oralidade domine o ambiente. Os
rõpte (quintais) reúnem várias famílias e são usados para compartilhar as experiências do dia,
preocupações coletivas, mitos e a cosmologia mebêngôkre, ensaiar discursos, dormir em grupo,
compartilhar sonhos e até mesmo dançar e demonstrar aos menoronu (como na foto 1) os
passos do metoro.

Foto 3: A estrada tornou-se, nos últimos anos, um local preferido para a prática da caça
noturna, seja a pé ou de veículo, onde os caçadores se deslocam utilizando lanternas para
iluminar o caminho e tentar detectar animais à distância.

Foto 4: A caça de espera usando mutás também é praticada à noite, embora com menos
frequência. Geralmente, o mutá é posicionado na roça, à beira de uma trilha ou próximo a
árvores frutíferas, pressupondo que nesses locais há uma maior movimentação de animais
notívagos.

1 2

3
4
275

Nesse sentido, o âmbito da nomeação de lugares, que apresentei nos capítulos 2 e 3, é


efetivamente uma forma de humanizar, mas essa é apenas uma parte da história toda, pois a
nomeação é dada de forma compartilhada com outros-que-humanos. Um lugar ou uma trilha
que recebe um nome, por exemplo, pí-uh-kô (como Txuak indicou para Pytakô), é para os
Xikrin enquanto as castanheiras operam como significante. Ademais, pí-uh-kô é provavelmente
portadora do mesmo significado, e em consequência o mesmo nome, para espécies que
interagem com as castanheiras, por exemplo as kukejre (cutias).

Isso provavelmente será reafirmado a partir de um estudo mais detalhado sobre as toponímias
que os Xikrin criam de trilhas e lugares por onde costumam caçar e coletar: se em Bacajá tenho
identificado quatro pontos que são comuns à caça, isso não significa que apenas sejam estes,
senão que estes são os que têm maior significado na memória coletiva como resultado de um
longo processo de uso compartilhado nas atividades cotidianas, através do tempo e no espaço
físico. Premissa que se reforça na ideia de substância histórica Descola (2006, p. 154). O autor
relata a respeito das suas experiências acompanhando os Achuar nas expedições de caça, como
os lugares por onde transitam são varados por milhares de acontecimentos que dão a uma
suposta floresta anónima, um significado.

O qual pode ser entendido também como um processo de memória da vida a partir de rastros,
ou como disse Roy Wagner (1986) a respeito dos Walbiri na Austrália: “a vida de uma pessoa
– e de um povo- é a soma dos seus rastros de andanças, a inscrição total dos seus movimentos,
através dos quais se mede a sua experiência” (pp. 20-23, tradução minha). Que por vezes,
demonstra que seguir, vivenciar e elaborar rastros através de trilhas (o qual inclui todas as
formas de caça independente de se é a pé, carro ou canoa) constitui um ato criativo, que coloca
todos os tempos: o passado dos ancestrais, o presente dos que andam e o futuro dos que estão
por vir e do que virá a ser a floresta, num contexto de recriação constante da memória.

Ademais, a partir do cenário apresentado é possível pensar que no Bacajá, caminhar na mata
(ou bà kam tem) é o fator que dialoga com os múltiplos significados do ambiente florestal. O
qual, desde a perspectiva do movimento, é determinado pelos ritmos das corporalidades, ou
seja, movimentos concretos acabam criando espaços concretos (Leroi-Gourhan, 2002 [1965]).
Isso para os objetivos desta pesquisa é fundamental, já que estando diante de um projeto
ecológico-político, é também, um cenário ontológico, que dá caminhos de resposta para o
aprendizado dos homens Xikrin. Portanto, voltarei nesse aspecto para tentar fazer uma análise
conclusiva no capítulo final deste trabalho.
276
276

21. Bep Tok - Picapau batendo


timbó.
277

Capítulo 5. Tipos de caça: andar junto, caçar em solitário, viver


em família

Neste capítulo, embora as formas técnicas continuem a estar presentes, o objetivo principal é
iluminar as experiências de caminhar na floresta (bà kam tem) à luz das dinâmicas de
composição dos grupos que fazem as expedições na floresta. Portanto, os laços de parentesco,
alianças, subgrupos e categorias de idade emergem aqui como princípios orientadores da
análise. Além disso, o papel das mulheres nas expedições é explorado com o intuído de
identificar com precisão a distribuição de funções e trabalhos na floresta. O texto propõe que
os Xikrin adotam pelo menos três formas fundamentais de organização ao deixar a aldeia e
adentrar a mata: as expedições grupais, nas quais geralmente participam todos os grupos,
categorias de idade e gêneros; as expedições individuais, que, como o nome sugere, se referem
a experiências individualizadas; e as expedições em família, nas quais a experiência é
compartilhada apenas entre parentes com consanguinidade ou afinidade. Por último, se dará
espaço à análise da conjunção entre cinegética e ritual, com o propósito de compreender como
essas práticas são interdependentes.

**
As florestas em Bacajá se configuram através de uma rede de trilhas que se expandem e
contraem de forma significativa ao longo de áreas de confluência multiespecífica. Cada cenário
é testemunha de relações que dão sentido às caminhadas dos humanos e outros-que-humanos.
Cada expedição nutre a venatória, evidenciando nas narrativas dos Xikrin as interações e
justaposições das corporalidades e seus pontos de vista, os imbuindo em relações predatórias
que parecem distanciar os meios enquanto conectam os fins. Nesse sentido, o ponto de vista
dos caçadores Xikrin é a demonstração exacerbada da convivência no mato: são as formas de
caça (apresentadas nos capítulos anteriores) a expressão prática dos encontros multiespécies,
enquanto o ato de bà kam tem ganha força como o ethos da locomoção.

Nesse raciocínio, os ritmos determinados pela locomoção são em essência heterogêneos, pois
as experiências selváticas determinam-se de acordo com os períodos sazonais, os tipos de
trilhas e, principalmente, a quantidade e tipo de pessoas -para este caso Xikrin- que praticam o
trekking. Dessa maneira, as formas de caça até aqui expostas (capítulos 3 e 4) não teriam maior
278

sustento de não serem identificadas as corporalidades, os ritmos, os parentescos e as categorias


de idade que integram a cinegética, cabendo ainda um esforço por determinar os formatos nos
quais os Xikrin vivenciam a floresta.

Uma experiência coletiva não é o mesmo do que uma experiência individual. Ainda que sejam
efetuadas em um tempo-espaço semelhante, os resultados das mesmas podem se situar em
extremos opostos. Igualmente, não seria possível concluir que uma experiência na mata,
conformada por membros de primeiro grau de consanguinidade (pai-filho), tenha as mesmas
atribuições de outra experiência que reúne afins e amigos formais (krodjwo) através de duplas,
da mesma forma como não seria igual uma expedição à luz de turmas e categorias de idade.
Em outras palavras, sem querer cair em determinismos, é necessário que a análise da cinegética
deva ser minimamente colocada à luz de uma proposta tipológica a qual examine os diversos
aportes que trazem as experiências coletivas, individuais e familiares na floresta, as quais
também irão trazer elementos para entender a relação caça – ritual, já que a conformação das
expedições parece ter a ver com uma ambivalência na qual uma comemoração motiva
experiências na floresta e experiências na floresta são motivo de comemoração.

Expedições coletivas

O dia apenas se abre, a luz aparece com sutileza deixando entrever os traços das
casas enquanto uma corrente de neblina atravessa a aldeia e se recusa a deixar os
caminhos que levam até a beira do rio. A visão é ainda incapaz de testemunhar o que
aos poucos vai se urdindo entre frases, sons e barulhos. Um facão sendo amolado,
um assobio convidativo, latidos e encrencas entre cachorros e uma L200 que se
estaciona no centro da aldeia. Hoje é um dia especial, porém, é mais normal do que
nunca. Os homens, quase todos, tem combinado de irem caçar: o posto de controle
da TITB emprestou a caminhonete... Os homens se ajeitam e sobem na caçamba,
somos doze comigo. As mulheres, quatro no total, põem seus paneiros junto conosco
e entram no veículo. A aldeia está se dividindo, uma considerável porção dos seus
membros irá encontrar a floresta.

Caçando em grupo. Diário de campo 17/12/2017


279

A cinegética Xikrin possui um amplo leque de formas nas quais as expedições são praticadas,
sendo as trilhas, e extensivamente as estradas, os formatos por onde mais se elaboram
repertórios de índole predatório. Ademais, a composição das expedições possui estratégias
seletivas em procura de extrair o maior proveito de uma experiência. Nessa lógica, a
conformação de grupos com o propósito de efetuar atividades coletivas, demostra ser um tipo
de prática comum entre os indígenas, como mostrarei neste segmento.

Em essência, uma expedição coletiva pode conter mulheres e membros de todas as categorias
de idade. Por exemplo, no acontecimento relatado acima, as mulheres se vinculam à empreitada
com o propósito de se deslocarem até um ponto onde optarão por ficar num lugar definido para
coleta de frutos. Como tenho mencionado em outras passagens, a presença de mulheres em
expedições e caminhadas pode variar dependendo do período sazonal e da categoria de idade:
épocas de chuva e a safra de castanha são momentos em que há maior participação feminina.
A participação de mulheres também é mais evidente na categoria mekrapõyn (mulheres casadas
sem -ou com- filhos pequenos). São esses fatores que determinam a presença feminina. Os
mebenget (homens idosos), não estão vetados de acompanhar uma expedição coletiva, embora
eles prefiram desenvolver atividades cinegéticas em solitário, como mostrarei mais à frente.
Atividades de caça e coleta coletivas são cenários e oportunidades para que meninos
(menoronure) se relacionem com outras categorias de idade, integrando as comunidades de
prática (Lave, 1991), assistindo aos caçadores experientes.

Com isso, indico que as expedições coletivas são um campo de socialidade privilegiada para
todas as categorias de idade, sexos, parentescos e afinidades. Não obstante, o fato de que haja
uma saída grupal em termos amplos, não implica que todas as pessoas (crianças, mulheres
velhos) irão ter as mesmas funções, pois em termos práticos, uma expedição coletiva tem a
tendência a se fracionar progressivamente, dando lugar a subgrupos com funções específicas.
Assim, o ato da caça, como tal, continuará sendo um cenário delimitado pela presença de
homens caçadores em sua maioria, alguns noviços e, rara vez, mulheres.

De maneira que uma expedição coletiva consiste em uma estratégia para se deslocar e abranger
mais áreas de caça e coleta, mas no fundo, é um conjunto marcado pela divisão de partes.
Inclusive, a carne de caça, não é compartilhada com todo o coletivo, imperando sobre a
distribuição as redes de parentesco, afinidade e amizade formal, já existentes124. Em suma, esse

124
Fisher (1991, p. 192) afirma que a carne pode ser usada como meio de pagamento para relações sexuais além
dos casamentos, como quando um homem presenteia uma mulher com quem tem uma ligação sexual, mas por
quem não assume responsabilidade. No meu campo não constatei casos dessa índole.
280

segmento aborda expedições que vinculam grandes porções de uma aldeia, situação que era
muito frequente em épocas passadas quando se mantinham modos de trekking prolongados
ligados ao período de seca (mey).

Descemos perto do alojamento abandonado, outros já tinham ficado um pouco atrás


e mais um grupo foi à nossa frente. De qualquer forma, após um tempo não muito
prolongado, acabamos topando os nossos colegas na caminhonete, pois alguns
quilômetros depois tinham enxergado as pegadas de porcão. Isso os fez voltarem.
Acabamos nos juntando seis homens e entramos através do buraco entre a mata que
os queixadas deixaram no seu passo. As mulheres retomaram o percurso com o
motorista e mais um homem que as acompanharia até um açaizal. Tempo depois, o
veículo voltou vazio.

Caçando em grupo. Diário de campo 17/12/2017

Em Pytakô, como tenho indicado no capítulo 4, a caça tem se direcionado bastante nos últimos
anos ao uso da estrada, o que por vezes recria estratégias de circulação que se valem de
veículos, constituindo a forma talvez mais usada para expedições coletivas. Caminhadas que
saem a pé da aldeia e seguem através de redes de trilhas na floresta tem se tornado cada vez
menos frequentes quando se trata de coletivos, me refiro a grupos de mais de quatro pessoas.
Nesse sentido, é factível relacionar caça de estrada e expedição coletiva numa síntese técnica.

Já em Bacajá, as estratégias coletivas se remontam ao rio e o uso de cascos para transportar


grupos e famílias. Não obstante, como tenho explicado no capítulo 4, a forma veicular do rio
pode ser equiparada à estrada, não representando mudanças consideráveis entre a forma como
os caçadores usam um e outro. De qualquer forma, deve-se continuar considerando que as
expedições coletivas não indicam que os sujeitos envolvidos caminhem sempre juntos, pois a
maneira como se executa a atividade, corresponde a constantes subdivisões do grupo e
reagrupamentos circunstanciais.

No relato exposto acima, é testemunhado um fracionamento em duplas que se ocuparam de


áreas predefinidas ao longo da estrada e, apenas em um momento importante, como a revelação
de um possível bando de queixadas, se dá a (re)agrupação de caçadores para executar uma
emboscada (ver figura 23). A respeito de Bacajá, quando se usa o rio como conduto de
locomoção, podem ser destacadas algumas diferenças sutis em relação ao caso da caça pela
estrada em Pytakô.
281

Fomos na montante até um ponto relativamente aberto na parte ocidental. Dessa vez
fomos três grandes núcleos familiares: quinze homens adultos, quatro mulheres,
uma criança e dois adolescentes, ao todo vinte e duas pessoas. Desde a beira até o
ponto onde eu parei junto com o núcleo que acompanhava (Pedro, Merettí),
caminhamos duas horas. Essa trilha tinha a particularidade de ser um caminho
principal, pois ao longo deste foram se separando outros subgrupos para pegar
outros rumos, alguns ficaram relativamente perto da beira, outros se distanciaram
por um caminho paralelo. Mais adiante, uns homens ficaram nas proximidades de
uma grota, meu grupo parou numa reboleira de castanheiras onde ocupamos o tempo
andando nas proximidades e quebrando castanha, algumas pessoas foram na frente...

Caçando em grupo II. Diário de campo 03/03/2018

Figura 24. projeção caminhada em kokakrodjá.

Importante destacar que na ocasião citada acima, o grupo que saiu do porto de Bacajá desceu
em sua totalidade num único ponto (ver figura 23), aspecto mais comum em época de safra de
castanha quando várias famílias se deslocam para extrair amêndoas em locais ou castanhais
como Pirarara em Bacajá e Jericuá em Pytakô.

Nos casos em que os grupos se deslocam a pé numa trilha, geralmente trilhas arteriais ou mais
frequentadas, pode observar-se com maior precisão do que nas estradas, a ritmicidade com a
282

que as pessoas caminham, sendo a conformação de fileiras um padrão a ser destacado, contudo,
inconclusivo. Em outras palavras, apesar de que homens sempre estão na frente e no final da
linha, é impossível adjudicar lugares a sujeitos em concreto, graças a que constantemente se
dão saídas e incorporações de pessoas ao grupo principal com o propósito de inspecionar os
arredores das trilhas.

Gradativamente o ritmo vai se reconfigurando, pois na medida em que o progresso da


caminhada vai acumulando quilômetros, aparecem trilhas menores subjacentes. Famílias,
subgrupos, trios ou duplas vão se separando para dar atenção a interesses particulares. Por
exemplo, na visita a kokakrodjá, depois de um pouco mais de uma hora de caminhada, havia
um córrego. Ali ficaram quatro homens com propósitos estritamente cinegéticos, seu objetivo
era encontrar um bando de queixadas, a propósito, comuns naquela trilha. Por outro lado, eu
permaneci junto do subgrupo de Bep Kanhê, Kirere, Merettí e seus dois filhos (menoronure).
Eles, apesar de estarem com duas espingardas, tinham o objetivo de coletar castanha. Assim,
uma vez chegamos numa reboleira de castanheiras, nos subdividimos. Enquanto dois ficaram
quebrando ouriços e enchendo sacos de juta, eu acompanhei o Bep Karire nos arredores para
verificar a presença de mry, incluindo cutias.

As expedições coletivas talvez sejam a máxima expressão de multiplicidade de ritmos


sincronizados de bà kam tem, sendo possível definir que esse tipo de experiências se compõem
de um conjunto de singularidades. Cada subgrupo tem um lugar dentro da turma principal,
assim como a turma, em sua totalidade, possibilita a execução dos interesses dos subgrupos.
Os entremeados de cada subgrupo são os que dão sentido ao grupo principal, por vezes, estamos
diante de um cenário aberto e difuso, no qual os meios podem ser múltiplos, mas o fim é a
interação com e na floresta. Que para a atualidade, se insere em temporalidades curtas: uma
vez desdobrados nas suas atividades, os subgrupos, com o passar do tempo irão se reagrupar,
havendo sempre um momento de retorno, geralmente, antes do pôr-do-sol.

Assim, uma expedição coletiva corresponde à conformação de um grande grupo de pessoas


que saindo de espaços domésticos movimentam-se através da floresta com fins múltiplos. Cabe
indagar ainda pela organização que segue a composição de um grupo e principalmente, os
subgrupos. Em princípio diria que não há regras fechadas enquanto à composição de subgrupos,
há pelo menos comportamentos ligados às redes de alianças. Ou seja, a forma em que se
organizam atividades coletivas na mata não vinculam pessoas aleatórias, pelo contrário, os
caçadores que se juntam compartilham vários tipos de laços, principalmente o de afins.
283

Uma vez que um grupo se divide em duplas ou trios, aqueles subgrupos são geralmente
compostos por vínculos de afinidade em primeiro (genro - sogro) e segundo (cunhados) grau;
ademais de vínculos em primeiro (pai - filho), segundo (avó – neto; irmãos) e terceiro (tio -
sobrinho) grau de consanguinidade, e, em alguns casos, por amigos formais. Um determinante
é a conformação de casas (lembrando que aplica um sistema uxorilocal), já que os resultados
de uma expedição, seja coleta ou caça, são normalmente centralizados através de casas que
albergam mais de uma família em um quintal principal125.

Parece haver uma relação direta entre a configuração das relações de comensalidade e os
subgrupos expedicionários que vão atrás de recursos na floresta. Por exemplo, em Bacajá a
casa de Bep Kanhê (Pedro) e Irekô alberga nos seus arredores mais três casas, duas de filhas e
genros (Bep Nap e Merettí) e a de um filho, Bep Kirire. No âmbito quantitativo, para esse
núcleo familiar há quatro cozinhas (uma para cada residência), não obstante, há um forno (kip)
principal instaurado no quintal de Ngrei yú, no qual frequentemente se alimentam os membros
das quatro famílias. Um outro caso corresponde ao quintal de Onça e Irengrî em Pytakô. Ali é
possível evidenciar que há pelo menos cinco famílias, cada uma com a sua moradia e cozinha,
mas que interagem entorno do quintal e forno do casal.

Ainda que não seja uma regra unívoca, pois há exceções126, na maioria das vezes os subgrupos
e seus lugares de comensalidade coincidem. Sendo assim, os dois casos mencionados podem
ser vistos como indícios importantes para ilustrar que as redes de parentesco atravessam a
conformação das atividades de andanças pela floresta. Isso também indica que a conformação
de subgrupos na floresta obedece a um arranjo que busca satisfazer a repartição de resultados
materiais de coleta e caça em concordância com a pertença a casas.

Um outro fator que motiva a conformação de grupos e subgrupos, ainda que em menor escala,
corresponde aos antecedentes das categorias de idade, pessoas que cresceram juntas e/ou que
são krodjuo (amigos formais). Geralmente esses cresceram juntos, compartilharam múltiplas
experiências e desenvolveram habilidades em simultâneo. Quando os caçadores que cresceram
e aprenderam na mesma turma continuam a morar próximos, mesmo havendo separação por

125
Quando falo em casas, em alguns casos posso estar me referindo a um conjunto de residências físicas, já que
na atualidade, as moradias podem se dividir em mais de uma unidade, porém, sempre albergando parentes nas
proximidades.
126
Apesar de Prîncare e Kwynhdjy não serem amigos formais, nem compartilharem espaços de comensalidade,
inclusive, estarem em categorias de idade diferentes. O primeiro, que era morador recente de Pytakô durante o
meu campo, optava por acompanhar em múltiplas expedições o segundo, isso com o propósito de conhecer e
aprender sobre as trilhas que integram o mapa cinegético da sub-região dessa aldeia.
284

casas, há ocasiões em que se juntam nas expedições coletivas e formam provisoriamente


subgrupos.

Para esses casos, em que se compõem subgrupos a partir de alianças não confluentes com as
mesmas casas, a repartição de presas é mais fixada, pois a preservação ou o futuro de uma
aliança depende da satisfação das partes envolvidas. Geralmente, quando se dá o abatimento
de algum mry no contexto descrito, os caçadores que integraram a empreitada independente de
quem encontrou a presa, quem atirou, quem derrubou, quem carregou ou quem chegou um
pouco depois do abate, acabam obtendo uma porção do animal.

Quando são grandes mamíferos como antas, é comum ver homens retirando o couro na periferia
da aldeia ou nas proximidades do rio, posteriormente desmembrando as partes. Seguidamente,
as mulheres tomam conta das presas e é ali em que se torna usual ver alguma mulher ou mesmo
uma criança levando um pedaço de carne (sempre partes nobres) de uma casa para outra, entre
consanguíneos e afins e potenciais. Quanto aos ngrú-queixadas, a repartição pode variar
dependendo do número de animais mortos, podendo se dar uma repartição em porcos inteiros.

No caso concreto dos espaços compartilhados por consanguíneos - como os quintais e fornos
que reúnem sogros, genros, filhas (os) - é comum que, por exemplo um neto, apesar de não ter
feito parte de uma caçada, possa ir ao quintal de seus avôs e se deleitar com alimentos
elaborados com propósitos grupais, por exemplo, um mrykupú- berarubú com carne de caça.

De qualquer forma, é importante considerar as expedições coletivas como canalizadoras dos


parentescos. Por um lado, porque as atividades que abrangem caminhadas e caça na floresta
estão fundamentadas principalmente na condução de responsabilidades e deveres entre afins.
E por outro, porque os resultados de uma expedição dessa índole incentivam o
compartilhamento e a circulação de presas obtidas entre casas e afins potenciais.

Além disso, é impreterível mencionar aqui que as expedições coletivas estão intimamente
ligadas com o caráter ritual, sendo a modalidade grupal a forma pela qual é viabilizada uma
comemoração ou manifestação ritual de índole festiva. A realização de reuniões como rituais
de passagem, nomeação, comemorações da colheita ou inclusive festividades incorporadas
mais recentemente, como a chamada festa do “dia do índio” em dezenove de abril ou o próprio
Natal, são precedidas por expedições coletivas que buscam prover um mínimo satisfatório de
carne. Mas essa é uma questão que merece ser aprofundada de forma separada. Assim,
reservarei o último segmento deste capítulo para este propósito.
285

Expedições em solitário

Em Bacajá mora Tekakprekti (Coronel), mekrarere tum, com quem conversei frequentemente
durante o meu campo. Ele indagava sobre a minha origem e se mostrava atento às explicações
que eu dava sobre lugares distantes (fora do norte do Brasil). Falar com ele é uma espécie de
reflexão em duas vias, onde um Xikrin busca entender a procedência de um kubén kayik
(estrangeiro) e eu (etnógrafo) tento aprofundar sobre âmbitos da organização social,
aprendizado e caça com o propósito da minha pesquisa. A propósito das atividades de trekking
na floresta, Tekakprekti (Coronel) tem uma perspectiva que talvez possa se associar como
prudencial e cautelosa, pois contrário à venatória que com certa frequência expõe a maioria de
mebenget, meu interlocutor expõe uma narrativa onde a floresta como meio é perigosa e devem
ser tomadas precauções associadas com a orientação nas trilhas por onde se transita. Dali surge
uma frase que tem me chamado a atenção: “para o mato se vai acompanhado”.

Dita frase exorta a planejar expedições coletivas que outorguem vantagens cinegéticas ademais
de maior segurança para cada individuo. Contudo, a expressão não deve se tomar à ligeira, pois
ela encerra um componente supeditado à ordem social onde se insere cada pessoa. Em outras
palavras, a regra toma forma assim que aplicada ao âmbito das categorias de idade. O que o
meu interlocutor quer dizer em essência é que os menoronure, ou os homens até antes do
casamento, não vão sozinhos para o mato sob circunstância alguma. Esse assunto se relaciona
de forma direta com o contexto que expliquei no capítulo 3, sobre trilhas onde grupos e turmas
de menoronure, que tem como propósito desenvolver habilidades agonísticas, se inserem em
dinâmicas cotidianas que os levam a circular ao longo de trilhas curtas e à beira do rio, com o
propósito de caçar mamíferos menores e pescar.

Adicionalmente, Tekakprekti (Coronel) explica que os grupos de menoronure começam a


explorar além da aldeia, incentivados por homens adultos que os orientam através de convites
para acompanhar breves percursos nos arredores das roças. É como se houvesse uma etapa na
qual através de certa lúdica, um adulto insere uma geração adiante a experimentar o princípio
da caminhada e por conseguinte da cinegética. Ademais, tenho constatado que esses momentos
não são, na sua maioria programados, fazendo parte do cotidiano das atividades. Por exemplo,
uma manhã de trabalho na roça pode evocar um incentivo a transitar por uma capoeira próxima,
ou a vontade de açaí pode levar a que uma família junto aos seus filhos e tabjuos transitem até
um açaizal. Ou então, no caso dos menoronure, as brincadeiras e desafios os levam a caçar
pequenos mamíferos ou pescar nos arredores da aldeia. De uma maneira ou de outra, essas
286

iniciativas são sempre efetuadas entre mais de uma pessoa (a possibilidade de um adolescente
se aventurar sozinho fora da aldeia, ainda nas trilhas curtas, é mínima).

Por outra parte, homens casados e com pelo menos um filho pequeno, ou seja, mekrakarô, são
talvez a peça que constitui uma exceção à regra coletiva. Em resposta à afirmação de Coronel,
encontra-se seu filho primogênito Brí (Bepkamro), o qual observei que sai da aldeia apenas
com sua esposa127. Na mesma conversa que tive com Coronel, o consultei: O Brí não teria que
andar pela mato com um grupo mais numeroso? Teria- foi a resposta de Coronel. Continuou a
dizer: “mas quando tem esposa e tem filhos, pode ir sozinho. A mulher também pode ir, só que
a mulher é melhor cuidar do plantio (roça)”. Na resposta há pelo menos duas questões
implícitas que valem a pena serem abordadas aqui.

A primeira refere-se à direta relação entre a união marital e a experiência cinegética, indicando
que um homem se “casa assim que caça”. Em outras palavras, as habilidades cinegéticas são
um elemento fundamental dentre os preceitos de uma pessoa masculina Xikrin, sendo um forte
indicador da passagem para integrar a categoria de idade mekranure, que por vezes indica
passar a compor uma nova casa, normalmente integrando-se à casa de seus sogros e passando
a possuir descendência através de filhos(as).

A segunda questão a se ressaltar refere-se à designação de responsabilidades paralelas e


complementares entre homens e mulheres, uma vez que passam a compor uma nova categoria
de idade. Nesse momento, o homem deve possuir a experiência necessária para aportar a carne
na sua casa, sem depender sempre do coletivo e sim das suas próprias habilidades; a mulher,
que no processo da união marital deixa de ser mekurêrê para ser mekrapõyn, deve ter a
capacidade de abrir e manter uma roça ligada ao novo casal, como explica Mantovanelli (2016,
pp, 211). Esse processo feminino, num sentido semelhante ao da caça individual ou em
solitário, é de suma importância, mas não é indispensável, pois em muitos casos os casais
passam a compartilhar ou possuir pequenas parcelas integradas a roças coletivas da família da
mulher recentemente casada.

Voltando no âmbito da prática cinegética, se a caça é por excelência coletiva, sua prática em
solitário é relativamente possível, sempre que um homem alcança a condição mekranure.
Kwynhdjy (Negão) é um referente a respeito. Ele participa em grande medida das expedições
coletivas que acontecem em Pytakô, no entanto, complementa essa atividade com caminhadas

127
É comum que os casais se desloquem fora da aldeia para ir nas roças. Não obstante, não me refiro aqui a esse
contexto, senão as atividades que tem lugar propriamente na floresta.
287

individuais frequentemente128. O comum denominador durante os dias em que ele está na


aldeia, pois também circula com frequência na cidade, é observar que se desloca em sentido do
mato. Essa versão é corroborada por outros caçadores, como Prîncare, que destaca o volume
das caminhadas e a frequência com que Kwynhdjy fornece carne na sua casa.

Em diálogo com Kwynhdjy, ele me indicou que a partir dos catorze anos começou a
desempenhar funções em expedições coletivas, sendo acompanhante de seu pai Bep Kaire -
Junior e seu avô Bep Tok-Onça. Kwynhdjy manifesta que a atenção que ele deu para os seus
dois mentores fez com que pudesse lidar com situações de risco, como encontros com onças, e
rastrear mry como antas, pacas e veados, sendo esses três animais os que ele normalmente
almeja quando vai caçar por sua conta. Em ocasiões quando abateu antas, voltou na aldeia e
chamou outros caçadores para o ajudarem a transportar o animal. Já nos casos em que o vi
voltando com veados e pacas, a repartição da carne se limitou apenas à sua casa (esposa e
filhos) e ao seu pai129.

Adicionalmente, Kwynhdjy parece ser um dos poucos que ademais de transitar pelas trilhas
mais comuns aos caçadores de Pytakô, eventualmente explora lugares onde identifica a
presença de árvores frutais e as pegadas repetitivas de mry, âmbito que no futuro poderia
constituir a consolidação de novas trilhas inseridas à rede de caminhos que cruza a floresta. Em
Pytakô é possível que apenas ele, e excepcionalmente o Onça130, sejam os caçadores que se
aventuram através da serra que fica na parte oriental, atrás da aldeia. Lugar o qual como
mencionei no segmento sobre caça de espera noturna, conta com pelo menos uma trilha, por
vezes velha e abandonada - pois seu uso seria mais frequente em décadas passadas, quando os
Xikrin praticavam expedições de índole mey ou seminômade. Ademais, Kwynhdjy também
opta por caçar do outro lado do rio Bacajá, parte ocidental da TITB, onde é pouco comum o
deslocamento dos moradores de Pytakô131.

A trajetória cinegética de Kwynhdjy, desde seu começo aos catorze anos até a exploração
gradual de lugares mais desconhecidos da floresta, parece ser o melhor referente para indicar

128
Para dar um exemplo, se durante uma semana acontecem duas expedições coletivas em Pytakô, Kwynhdjy
participa delas, e, adicionalmente sai da aldeia mais duas vezes por sua conta em dias diferentes.
129
Kwynhdjy na atualidade vive junto ao sei pai e avô, não seguindo a tradição de ir morar na caça de seus sogros.
Isso porque segundo consultei, a Nhakmirati (Joelma) esposa do meu interlocutor, é órfã por parte de mãe.
130
Fisher (1991) destaca que Onça na sua época de caçador ativo, era um dos caçadores mais habilidosos, sendo
um dos escassos caçadores que praticavam a caça individual, que chamo aqui como em solitário.
131
Na época em que fiz o campo, em uma dessas andanças em solitário Kwynhdjy achou na região ocidental um
bando de queixadas agitados correndo, ele empreendeu a perseguição dos ungulados e pouco depois descobriu
que uma onça também os perseguia. O fato se tornou um tema durante alguns dias para indicar que ele gostava de
andar no pé das onças, assim como em lugares afastados. A área ocidental na sub-região de Pytakô é considerada
pelos habitantes da aldeia uma área mais primigénia, onde eles pouco exploram até hoje.
288

aquilo que define uma expedição em solitário. Não é só o desejo de carne e a garantia das
melhores partes do animal os fatores determinantes (essas seriam as razões únicas para os casos
de caçadas em casal). Para Kwynhdjy o exercício de bà kam tem é um fim, intrínseco ao sujeito
do caçador: explorar a floresta, recriar a memória por onde outra geração de caçadores
andaram, descobrir os caminhos traçados por outras espécies são fatores que lhe convidam,
ademais de lhe fornecerem analogamente a carne necessária para sua casa.

Contudo, o pai de Kwynhdjy, Bep Kaire, talvez seja um referente em um outro sentido de um
caçador que constantemente pratica a cinegética de forma individual. Junior, como é
comumente conhecido, é um mekrarere-tum, um homem experimentado que beira os cinquenta
anos e seus filhos (as) estão todos casados. Ademais, é viúvo e de origem Kararaô (subgrupo
Mebêngôkre). Foi levado pelo SPI para Bacajá quando era ainda novo, o motivo foi uma forte
epidemia que quase acabou com os Kararaô contatados nas proximidades do Iriri. Em Bacajá,
Bep Kaire se emparentou com a casa de Bep Tok- Onça através da união marital com Kô I,
filha de Onça. Infelizmente ela faleceu e Junior passou a ocupar um lugar mais apagado na casa
do chefe Xikrin, embora sem deixar de participar do núcleo parental que o vincula com seus
sogros.

A situação parental de Junior é importante para entender o contexto no qual ele pratica suas
atividades, pois a viuvez masculina parece estar relacionada com um estado de isolamento onde
a pessoa não encontra mais vitalidade nas alianças que lhe outorgaram movimentação e
prestígio em alguma outra época. Inclusive, dentro da sua própria categoria de idade. Nesse
sentido, Junior, na atualidade, não encontra respaldo nas atividades que realiza em Pytakô,
incluindo a caça. Apesar disso, ele não deixa de colocar sua força de trabalho para produzir
roça e caçar, seja em coletivo ou de forma solitária, como é comum vê-lo. Os resultados das
suas expedições são compartilhados na cozinha de Irengrî, sua sogra, e eventualmente com
Joelma, sua nora. Inclusive, Junior é das poucas pessoas que batem timbó sozinhas: conhece
alguns lugares que durante a seca concentram pequenos peixes, aproveitando a redução dos
espaços e se valendo de um pedaço de malha, bloqueia vias de fuga e consegue extrair tantos
peixes como para alimentar a casa de Onça e Kwynhdjy.

Adicionalmente, devo esclarecer que apesar de ter me referido às experiências nas quais apenas
um caçador se movimenta através da floresta como em solitário, na prática, o caminhante está
geralmente acompanhado, pois os rop (cachorros) constituem aqui também um sujeito
importante. Se não todas, pelo menos a maioria das vezes em que Kwynhdjy e Bep Kaire saem
289

dos espaços domésticos, um grupo de cachorros lhes acompanham, integrando a expedição,


seja por convite ou teimosia dos cães.

Como tenho explicado no capítulo 2 (fundamentos da cinegética), os cachorros são essenciais


na caça de certos animais como veados e pacas, animais que normalmente são procurados pelos
caçadores que caminham pela selva por conta própria. Nesse sentido, a companhia de cães se
adapta perfeitamente à estratégia individualizada dos caçadores, sempre que sejam poucos
cachorros: Kwynhdjy por exemplo, costuma se deslocar com três a cinco cachorros, pois
considera que poucos cães chamam menos a atenção. Adicionalmente, os cachorros
proporcionam segurança, principalmente contra onças, já que detectam com rapidez a sua
presença e os felinos priorizam seus ataques contra os cães, ao invés dos humanos132.

Vale dizer que os contextos até aqui abordados os quais contemplam experiências em solitário,
referem-se a atividades cinegéticas inseridas em deslocamentos a grandes distâncias, as quais
por vezes podem ser relacionados com as que chamei trilhas longas. Em outras palavras, não
contemplei até aqui atividades individuais inseridas em trilhas curtas ou perímetros próximos
das áreas domésticas, onde também podem se encontrar algumas atividades praticadas
individualmente.

Diria que para o contexto das áreas próximas há uma prática que valeria destacar aqui, referida
à maneira na qual mebenget-anciões desenvolvem ações cinegéticas. Como tenho mencionado
em várias passagem deste trabalho, os homens velhos constituem pessoas que já foram
caçadores de amplia vivência, inseridos durante sua juventude em modos seminômades ou
expedicionários os quais lhes levaram a se relacionar com a floresta em intensidade. Um
homem idoso continua sendo caçador, porém, as limitantes físicas são determinantes quando
as caminhadas se estendem durante horas e em alguns casos dias. Nesse sentido, pessoas idosas,
ainda que espertas caminhantes, permanecem normalmente nas aldeias.

Bep Tok- Onça talvez seja um claro exemplo de um mebenget que já foi um destemido caçador
e hoje seu corpo o limita a não participar das expedições distantes, passando longos períodos
entre o quintal da sua casa, o ngàb e a roça. Contudo, sua velhice não o impede de praticar a
caça, já que sempre costuma ir à roça às tardes para esperar invasores que queiram pegar suas
mandiocas e batatas; caminha pela pista de pouso aguardando aparecer antas, ainda que a

132
Os caçadores costumam manifestar que as onças gostam de cães, enxergam eles como presas, sendo que apenas
fogem destes quando há muitos, para esses casos a situação se inverte e o grupo de cães persegue a onça até fazê-
la trepar em árvores.
290

probabilidade seja baixa; e, eventualmente, assume desafios como caçar e esturrar com pok tik
em formatos de caça de espera.

Essa atitude, em essência agonística, representa uma condição importante para os homens da
categoria de idade mebenget, relacionada com a necessidade de recriar a memória caçadora,
dinamizando a composição da pessoa masculina e colocando a figura dos velhos na de sujeitos
ativos, imbuídos com e pelo akré133. Não obstante, de forma semelhante ao que Clastres (2017,
pág, 27) apontou sobre a oratória e a chefia, para a cinegética, não é necessário que as ações
sejam respaldadas por outros em forma de centralização e reconhecimento, pois no caso de um
velho chefe como Onça, o fundamental não é que seus discursos sejam ouvidos e
reverenciados, senão que ele possa pronunciá-los. Na caça, o fundamental é que ele a recrie
sem importar os sujeitos, períodos e resultados. Nessa ordem, os mebenget e suas ações
cinegéticas são encaminhadas a uma prática comumente solitária.

De acordo com o panorama dos interlocutores aos que tenho mencionado como praticantes de
caça em solitário, é possível estabelecer que dita prática é conferida para casos concretos onde
as categorias de idade representam um valor importante. O fator que talvez mais se relacione
com esse tipo de andança se refere às skills, potenciadas de alguns caçadores, e a ativação da
memória agonística: aqueles que havendo desenvolvido hábitos de trekking não se conformam
com as rotinas cotidianas de um coletivo ou um grupo, estabelecendo como modo de agir a
exploração aguda de lugares; e, aqueles que havendo alcançado idade avançada, necessitam
(auto)demonstrar que a sua ontologia predatória, materializada através da cinegética, continua
estimulada.

Expedições familiares

Durante a minha estadia na aldeia Bacajá, ocupei a casa de Bep Nhô e Coitú. Nas primeiras
semanas fiquei sozinho, pois eles e suas duas crianças encontravam-se passando uma
temporada em Altamira. Apesar de naquele momento ser uma casa sem moradores além de
mim, costumava ser uma das mais agitadas na aldeia. Durante a noite, a TV da sala recebia
pelo menos uma dúzia de pessoas que se reuniam para assistir a telenovelas ou para
acompanhar jogos de futebol. Durante o dia, a porta da casa tocava desde as primeiras horas:

133
Categoria referida à força, raiva, potencial predatório que possuem humanos e alguns não humanos. Para
aprofundar sobre essa categoria consultar o capítulo 6.
291

os Xikrin me solicitavam para conversar, compartilhar alguma comida, solicitar café ou


bolachas ou para me convidar a fazer alguma atividade na mata. Residir na casa de Nhô me
ligava diretamente ao círculo social do meu interlocutor (ainda que ele não estivesse)134,
fazendo com que a maioria das expedições houvessem sido efetuadas através deles. Entretanto,
não me restringi a eles. Após algumas semanas nessa aldeia, minha rede de alianças se ampliou,
me permitindo participar de expedições de outros grupos, como o de Pedro (pai de Txuak).

A maior – e especial- característica que observei das experiências de caça e coleta por parte do
grupo familiar de Bep Nhô foi a alta presença de mulheres. A diferença de expedições em
Pytakô, onde a presença masculina é predominante, em Bacajá, tanto no grupo de Bep Nhô
quanto de Pedro é considerável a presença feminina. Isso pode estar ligado à safra de castanha,
sendo que durante os primeiros meses do ano acontece a época comercial da amêndoa. Não
obstante, não se reduz apenas a esse aspecto. Kanhokré, por exemplo, não se dedicava na época
a comercializar castanha, mesmo organizando expedições na mata diariamente. Nessas
expedições, o propósito era a coleta de batata-doce e o abastecimento de carne para sua casa.

Em repetidas ocasiões nas quais as manhãs se caracterizaram por ser chuvosas, vieram os
convites dele, num português relativamente fluído: “Poyre hoje vamos para o mato, bora!”.
Um café para esquentar o corpo e um pouco de bolachas marcava a prévia para deixar a aldeia.
Às vezes, quando a sorte me favoreceu, houve algum resto de carne de caça do dia anterior e
farinha. De qualquer forma, as experiências cinegéticas com Kanhokré foram prolongadas e
com alta presença feminina, colocando a minha resistência física no limite e a fome num
segundo plano.

Foi num dia como o descrito acima que descemos pelo rio Bacajá, navegando para a jusante
durante quarenta minutos até chegarmos numa roça relativamente abandonada: uma grande
campina na beira do rio, seccionada por áreas onde a família de Bep Nhô tinha plantios de
batata-doce junto de mandiocas ainda em crescimento. A outra parte da roça apresentava uma
capoeira densa com mata secundária e algumas poucas grandes espécies, como castanheiras.
Aquele lugar, segundo o Kanhokré, é atualmente usado por ele, Bep Nhô e Bep Krá, mas já foi
uma roça coletiva da época em que Onça era chefe de Bacajá. Dessa vez, permanecemos pouco

134
O grupo familiar de Bep Nhô em Bacajá é amplo, já que ele é casado com a Coitú, neta de Bep Tok- Onça,
entre seus parentes encontra-se Kanhokré, filho de Bep Pumatí (mebenget), ademais de Bep Krá, quem era chefe
da aldeia Bacajá durante o período em que realizei o campo. Embora, o grupo familiar junto do qual participei
principalmente em expedições é mais restrito, se limitando à Irepunú, mãe de Bep Nhô, Ngreitebén e Ire Y, irmãs,
Banhôkra irmão e apenas um cunhado, o Kanhokré.
292

tempo ali, pois rapidamente nos adentramos na floresta e passamos a caminhar através de uma
trilha visível, claramente transitada com certa frequência.

Geralmente, quando as famílias saem da aldeia, há uma distribuição de força de trabalho que
confere às mulheres a permanência em pontos semi-doméstico, como as roças ou espaços de
coleta, como açaizais, grotas e castanhais. De qualquer forma, as mulheres se inserem em
dinâmicas mais estáticas, marcadas pela permanência em lugares transitados, ficando apenas
alguns homens que assistem às mulheres na coleta de frutos enquanto outorgam o que parece
ser uma condição de segurança em relação a inimigos e predadores. Não obstante, a
particularidade da versão aqui apresentada, que chamo de expedição familiar, corresponde a
como em contextos concretos as mulheres se integram a uma dinâmica móvel que
necessariamente lhes dá um lugar na prática cinegética. Em outras palavras, se configura um
tipo de caça engajada por parentes de ambos os sexos em primeiro a terceiro grau de
consanguinidade, que determinam um ritmo em específico.

Diferentemente de quando se caminha entre homens, os grupos com várias mulheres usam uma
distribuição relativamente restrita pela conformação de uma fila onde as mulheres ocupam o
centro e os homens se revezam entre a ponta e o final do grupo enquanto se dispersam
eventualmente para conferir os arredores da trilha.135. Ou seja, a movimentação se dá através
de uma sequência de pessoas dispostas de maneira alinhada, onde um homem permanece na
frente com uma arma, geralmente uma espingarda. As mulheres, independente do número,
caminham atrás dele e, ao final, se localiza mais um homem para blindar o grupo (ver figura
24). No caso de haver vários homens, estes tendem a se localizar um atrás do outro na parte
dianteira da fila ou revezar entre a dianteira e breves inspeções nos arredores da trilha, que por
sinal, são inspeções de forma semicircular até voltarem a se incorporar na trilha e
consecutivamente ao grupo.

135
Não que seja um esquema inquebrantável, mas sim, um estilo de movimentação predominante.
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296

Prancha 13: Caminhando em família

Foto 1: Ireprî e outras mulheres caminham na floresta em procura de jabutis. O deslocamento


é feito em formato de fila. Os homens vão na frente, as mulheres no meio e um homem atrás.
Geralmente, são as mulheres as que carregam o peso, resultado de atividades de coleta.

Foto 2: Ngô-ka-ohm é uma das atividades que mais junta famílias inteiras Xikrin. Bater timbó
pode se considerar uma atividade grupal que pode chegar a reunir uma aldeia inteira. Contudo,
é também comum que seja praticada entre consanguíneos e afins, juntando de uma a três casas
da aldeia, o qual se traduz em uma atividade “lúdica” que junta mulheres, reativa velhos e dá
oportunidade para que crianças treinem e desenvolvam habilidades entre a floresta e as grotas.

Foto 3: Durante oficina de desenho realizada na escola de Pytakô, foi frequente observar como
mẽprintires fazem alusão a experiências nas roças e floresta junto de seus pais. Para eles, o
ideal de pais bonitos, em muitos casos, faz referência a mẽ-ok: estar pintados com jenipapo e
realizar trabalhos que levem à plantação de roças e a captura e/ou morte de espécies da floresta.

Foto 4: A época da castanha-do-brasil, no primeiro trimestre do ano, é sinônimo de expedições


familiares aos castanhais. Da mesma forma em que a abertura de uma roça coletiva pode juntar
filhos e genros, a procura por castanha costuma ser uma atividade que dinamiza casas próximas
ao redor da oportunidade de criar renda através da comercialização da amêndoa. Pedro se
dispõe a quebrar ouriços e encher os paneiros num castanhal próximo da margem ocidental do
rio Bacajá.

Fotos 5 e 6: Transitar entre roças e capoeiras, ademais de caminhar nas trilhas subjacentes -
entendidas aqui como caminhos que conectam roças com bosques- é um tipo de andança
relativamente comum. Mulheres, paneiros e facão compõem um ritmo único que com
frequência resulta na obtenção de mandioca, batata-doce e frutas nas roças, além da captura de
jabutis, coleta de plantas medicinais e corte de açaí na floresta.

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Prancha 14: Menire

Foto 1: Kôkonore, segunda filha de Rayane e Kudjoeire, está sendo apresentada diante de suas
tias no quintal de Bep Tok e Irengrî. Nas primeiras semanas após o parto, Rayane esteve no
hospital em Altamira. Assim que chegaram na aldeia, as mulheres da família estiveram
altamente assertivas com a nova criança. Irengrî, sua avó, foi a primeira a pegar a Kôkonore
nos braços e massageá-la para ajudar a formar seu corpo.

Foto 2: Ngrei-rô pinta o seu marido (Ted Jire) de tarde, no quintal de sua casa. Um hábito
comum entre as menire-mulheres Xikrin consiste em pintar à sua família nos quintais ou salas
das atuais casas. Contudo, essa é uma etapa resultante de outras que podem incluir expedições
na floresta para procurar a cortiça da arvore ou mesmo o jenipapo, ingredientes que após
passarem pelo fogo e virarem um único componente, resultam na tinta usada para pintar os
corpos, ok.

Foto 3: Ngrei-krú em festa mereremex na aldeia Kenkudjoe. As mulheres são parte central dessa
festa de nomeação, expressando através de reuniões exclusivas no Ngàb, toro de início em
homenagem às crianças, alianças entre aldeias e afiançamento de parentescos. Os mereremex
parecem ser espaços privilegiados para observar o papel político das mulheres na organização
social Mebêngôkre.

Foto 4: As mulheres da casa de Bep Nhô e Koitú, que gentilmente me receberam em sua casa
em Bacajá durante meu campo, preparam um forno de pedras nas proximidades de Bananal,
roça antiga um pouco distante da aldeia, porém a beira do rio Bacajá. Ali serão cozidas batatas-
doces, inhames e peixes que colhemos e pescamos durante nossa visita.

Foto 5: Nhakmoro assa a farinha no forno da casa de farinha de Pytakô. O ciclo da farinha é
uma das atividades familiares mais presentes na atualidade entre os Xikrin. Desde a coivara,
passando pela preparação da maniva, o plantio, a capina do roçado, a colheita, o descasque, a
trituração, a prensagem, até assar e embalar a farinha, são contemplados como trabalhos
familiares onde as mulheres e filhos (com a exceção da roçada, visto como um trabalho
masculino) estão constantemente engajados.

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Esse tipo de movimentação faz com que a caminhada seja relativamente lenta -em comparação
a deslocamentos apenas de homens- dando a impressão de que as expedições são longas, apesar
de na prática não haver deslocamentos a grandes distâncias. Durante o percurso, as mulheres
se ocupam não só de procurar jabutis, frequentes nas beiras dos caminhos que por vezes passam
nas proximidades de arvores frutais, senão também, de transportar todo o tipo de coisas que
integram a atividade: desde machados, facão, isqueiros, até frutos e plantas coletadas, ademais
dos quelônios e pequenos mamíferos abatidos. Adicionalmente, em caso de haver meprires -
crianças, serão as mães as responsáveis por transportá-las quando necessário. Os homens
apenas levam consigo facão, espingarda e munição.

Em conversa com um dos meus interlocutores, soube que esse estilo de movimentação é
frequente quando mulheres acompanham as caminhadas e se relaciona com a sensação de
segurança do grupo. Não apenas pela presença de figuras masculinas na frente e atrás de uma
fila, mas a liberdade que tem os homem nos braços para reagir caso um mry presa/predador ou
uma ameaça apareça. Esse estilo possivelmente possa se relacionar com um tipo de
deslocamento comum ao passado, quando os Xikrin possuíam uma característica seminômade.
Expedições de longa permanência no mato, nas quais famílias e aldeias inteiras poderiam se
deslocar, materializavam o padrão de uma fila onde homens encontravam uma maneira de
proteger mulheres e crianças de seus inimigos.

Durante nossa caminhada, houve um momento no qual apareceu a figura de uma anta na nossa
frente. Geralmente, os encontros diretos através de trilhas são improvisos e momentâneos. Se
o predador - no caso o caçador Xikrin - encontra-se em alerta com sua espingarda, é possível
que ali mesmo o encontro dê como resultado o abatimento de um grande mamífero. Não
obstante, é comum que os encontros resultem em fugas, perseguições, procuras e mudanças de
planos. Dessa vez, a anta que se encontrava aproximadamente a 20 metros disparou em fuga.
O grupo não tinha cachorros e apenas dois homens que se encontravam na frente da fila
romperam sua formação para ir atrás do mry. Poucos minutos depois, lhes encontramos com a
novidade de que o animal tinha se afastado o suficiente como para não colocarem mais
empenho nele.

Dessa vez não foi possível capturar mry e tivemos que nos conformar com as piranhas que
pescamos ao longo de vários poços enquanto voltávamos pelo rio, em sentido do porto da
aldeia. Enquanto à nossa caminhada, o tempo investido foi cerca de cinco horas e consistiu em
uma espécie de grande circunferência. Saindo de um ponto inicial, à beira do rio, se adentrou
através de uma antiga roça até encontrar uma trilha estendida ao longo de uma floresta mais
301

densa, posteriormente retornando até encontrar novamente a beira do Bacajá. Ali, fizemos uma
caminhada relativamente reta até encontrar o ponto inicial de saída, onde estava a nossa
embarcação136.

Figura 25. Projeção de expedição familiar e arredores.

Em outra ocasião, enquanto caminhava pela estrada de Bacajá junto a Bepkamro - Brí, filho
mais velho de Coronel, ele me compartilhou algumas de suas preferências sobre a experiência
cinegética. O meu colega manifestou optar com regularidade por um tipo de caça mais fechada
que envolve apenas a sua esposa e um de seus filhos. Ao consultar a razão para ir caçar de
casal, ele me disse que essa era uma forma de manter controle sobre o que se procura e com
quem é compartilhado. Em outras palavras, para ele, os propósitos de uma experiência
cinegética, por exemplo buscar um certo tipo de carne, é mais plausível de ser executada
quando se faz em dupla ou casal, ademais de considerar vantagem em não ter que compartilhar
parte dos resultados da expedição com mais de uma casa. No sentido uxorilocal da sociedade
Xikrin, a força de trabalho de Brí, apesar de caçar apenas com sua esposa, ou às vezes em

136
Parece-me que o padrão de deslocamento da figura 24 se assemelha ao ilustrado na figura 13 (capítulo 3),
referida às trilhas de instrução dirigida que eventualmente são usadas nas proximidades de roças para introduzir
os menoronure na prática de andar na floresta.
302

solitário (com menos frequência), os resultados da caça são colocados, na maioria dos casos, à
disposição de seus sogros, em específico o mebenget Mok-Mare.

Por outra parte, a respeito da distribuição de funções para caminhadas de casal, não há
variações significativas em relação ao estilo apresentado para caminhadas em grupos
familiares. O homem permanece geralmente na frente, livre de peso, empunhando sua
espingarda. A mulher leva consigo as coisas e crianças enquanto inspeciona as partes inferiores
da floresta em busca de plantas medicinais e quelônios, embora haja casos particulares, como
indicou o meu interlocutor, nos quais mulheres dominando a tecnologia da espingarda,
experimentam atirar em presas.

Particularmente, não cheguei a observar e/ou conferir essa questão sobre mulheres com
espingardas ou participando através de armas de longo alcance nas expedições que acompanhei
durante o meu campo. Inclusive, considero que é possível evidenciar através do aprendizado
prático como a aquisição de tecnologias e destrezas são distribuídas desde os primeiros anos
de vida entre homens e mulheres. Aos homens cabe desenvolver habilidades relacionadas com
apontar, calcular distâncias, regular o uso de força e controlar-liberar com empenho sua raiva.
Os grupos de menoronures (homens adolescentes) experimentam atirar em coisas e pequenos
mamíferos com arcos, flechas, estilingues, pedras ou lanças, ou então, regular a força nos
golpes com borduna. Já as mekurêrê (mulheres adolescentes) menos frequentes na
conformação de turmas, optam por assistir suas mães no cuidado de crianças menores. Cohn
(2000) tem aprofundado com maiores detalhes sobre a formação e aprendizado de crianças
Xikrin, ressaltando as funções e tarefas que adquirem as mulheres enquanto crescem (ver
também o capítulo 7).

Em essência, as expedições de índole familiar (assim como os subgrupos das expedições


coletivas) parecem ser as mais alinhadas em relação ao fim da obtenção de carne e alimentos,
pois se vinculam diretamente com distribuições mais sincronizadas de forças de trabalho e
responsabilidades de índole parental, sendo uma forma evidente da relação e compromisso
entre a prática da cinegética e a ordem uxorilocal. Essa relação, por vezes, leva a atenção à
comensalidade ou as formas nas quais se dão a repartição e consumo de alimentos.

Sem dedicar propriamente um segmento à comensalidade, tenho me valido de casos concretos


para explicar em detalhe a ligação que existe entre parentescos e alianças com a repartição de
carne e as cozinhas e quintais onde a alimentação ocorre. É possível observar, para os tipos de
grupos e subgrupos apresentados, o lugar e a forma nas quais os resultados afirmativos de uma
303

expedição são consumados. De qualquer forma, o próximo segmento irá fornecer mais
elementos que vinculam a cinegética com a comensalidade e, principalmente, com o ritual.

Caçar para comemorar, comemorar pela caça

Pensar em uma comemoração ou um ritual no âmbito dos Xikrin, passa pelo reconhecimento
de atividades que acontecem a priori ou em paralelo. Uma dessas atividades é a cinegética137.
Como tenho mencionado ao longo deste capítulo, a repartição de carne e, consequentemente,
a comensalidade, permeiam qualquer tipo de agrupamento que envolva, seja como meio ou
como resultado, o abate de um mry. A repartição da carne, assim como seu consumo em
cozinhas e quintais específicos, são parte integrativa e/ou complementar do processo de
andança na mata. Nesse sentido, a caça é um ponto de confluência que aproxima os laços
afetivos e a comensalidade, propiciando que haja um primeiro cenário potencial para o ritual,
o das alianças.

Além disso, a mobilidade na floresta pode ser associada ao campo ritual em termos da
temporalidade das expedições. Mas isso possui uma certa armadilha: se tempos de convivência
prolongada fora da aldeia estão associados a eventos rituais, pode se inferir que o passado dos
Xikrin seria consideravelmente mais ritualizado, pois como tenho explicado, a transição
migratória que os Xikrin mantiveram até meados do século XX em Bacajá, fazia com que estes
se mobilizassem amplamente (mey) durante o período da seca. Isso faz contraste com a
mobilidade atual, ligada a expedições com períodos de trekking reduzido e moradia
relativamente fixa138 em aldeias à beira do rio Bacajá. Não obstante, essa hipótese deve ser
abordada com cuidado, já que a redução dos períodos de caminhadas não necessariamente
podem significar uma mudança ontológica do ato em si. Como vim demonstrando, a relação
com a floresta continua sendo amparada por um complexo sistema de relações sociais que dão
sentido ao ato bà kam tem.

137
O campo ritual nos Mebêngôkre tem sido explorado desde múltiplas abordagens. Por exemplo: Turner (1966)
o faz analisando o campo da chefia; Vidal (1977) foca nas categorias de idade; Fisher (1991) explora a chefia, as
alianças e o faccionalismo; Gordon (2006) e Lea (2012) a circulação de nekrets em forma de bens e prerrogativas
(incluindo a nomeação e as mercadorias).
138
Digo “relativamente fixa”, pois o que demonstra um levantamento das cisões nos últimos cinquenta anos no
Bacajá, ao qual se refere o capítulo 1 desta tese, é que a proliferação de aldeias, a reprodução de chefias, o
crescimento e a inserção da população a lógicas do mundo não indígena, são uma forma expressiva de migração
dos Mebêngôkre, no caso, entre a conformação e desligamento de aldeias.
304

Diria que o princípio ontológico mey (traduzido aqui como a uma disposição seminômade) é
uma questão presente, transcendente na atitude dos caminhantes atuais e afiançada na
materialização da caça. Formas e tipos de expedições até aqui apresentadas e analisadas, são
em sua máxima expressão, uma composição endógena das formas de caminhada que
precederam aos Xikrin até sua fixação em grandes aldeias. Em outras palavras, apesar de hoje
não haver períodos de longas temporalidades de caminhadas, os preceitos guias das relações
ecológicas dos Xikrin na floresta se mantem através do exercício da mobilidade, perpetuando
o seminomadismo através do valor de estar ativo na cotidianidade.

Assim, partindo de que não há uma oposição entre passado e presente em termos do campo
ritual e a cinegética, proponho que há duas formas de abordar essas singularidades. A primeira
referida aos rituais como comemoração das experiências de andança e engajamento na floresta.
E a segunda, a cinegética como fundamento a priori para garantir a sociabilidade de uma
comemoração futura. Começo pela primeira.

Na atualidade, os Xikrin praticam uma atividade pelo menos uma vez por ano que tem como
propósito levar grupos familiares inteiros durante alguns dias na floresta (aproximadamente
três dias). A caça, bater timbó e construir um acampamento simulando a aldeia, são as
atividades que se procedem no primeiro dia. Durante a noite, há comemoração precedida por
falas formais, cantos e danças alusivas a como os “antigos” (abaktori) caçavam e batiam timbó
e como faziam guerra. Essas são temáticas que definem um componente ritual que busca
comemorar o ato de estar e vivenciar a floresta. A alteridade é expressa através de cantos
referidos a mry ou inclusive, partes comestíveis destes. Essa expedição, a qual os meus
interlocutores não me deram um nome específico, se diferencia das expedições que mencionei
acima (coletiva, em solitário e familiar) em dois aspectos: é feito um acampamento que simula
a aldeia e há permanência durante alguns dias no interior da floresta. Considero que essa
atividade deve ser vista como um exercício da memória. Uma maneira de “formalizar” a
ambivalência daquilo que já foi, mas continua sendo, parte do cotidiano. Disse Tapiex a
respeito do passado, mas com a possibilidade de ser estendido ao presente no contexto acima
descrito:

Eu era novo, fui ali na volta do rio...


Caçava, comia no mato... a gente dançava todos os dias, de noite. Homem saia para
pegar alimentação, matava anta. (...)
305

A gente andava e sempre tinha coisas para fazer no mato, fazia casa e fazia ngàb,
igual a aldeia. Velho cantava, todos dançavam... no mato era festa, a gente não ficava
parado. Tinha que acompanhar os outros...
Deslocamentos nas serras de Bacajá (mey). Narração de Tapiex.
Tradução de Txuak.

Aquilo que Tapiex define como habitus das andanças - características do mey, anteriores às
aldeias relativamente fixas - está presente hoje como a causa de uma comemoração, ainda que
pontual. O metoro é motivado pelo ato bà kam tem, que se traduz em uma caçada coletiva ou
uma atividade de bater timbó, para este caso. É nessa lógica que pode ser dito que é dada a
comemoração pela caça.

Por outra parte, a segunda forma de relação entre caça e ritual que observo, obedece a uma
perspectiva na qual o ritual é o ponto de partida para que aconteçam outras atividades. É de
comum acordo entre os Xikrin que uma comemoração demanda preparativos. Apesar de
tensões habituais entre casas, é considerado que haja um mínimo de harmonia durante períodos
de integração. A comunicação com os convidados de outras aldeias é importante. Portanto, o
chamado aos benadjwyry e aos mebenget que ostentam a fala e os cantos é feito com
antecipação139. Em concomitância, a alimentação dos participantes deve ser assegurada durante
os períodos prévios nos quais a festa apenas está sendo aquecida por alguns mebenget que se
reúnem no ngàb para entoar cantos e elevar o chamado para o ritual. Em outras palavras,
convidados não chegam apenas para o momento de efervescência de uma comemoração. Há
membros que podem chegar dias, até semanas, antes da integração coletiva.

Dessa maneira, para que reuniões de índole ritual, como uma cerimônia de nomeação
mereremex, ou uma festa bó ou Kwyrykangô tenham efeito, devem estar amparadas por um
crescente cenário de expedições com índole estritamente cinegéticas. Em outras palavras, caça-
se para comemorar. Os homens, na sua maioria moradores da aldeia onde será sediada a
comemoração, partem numa expedição coletiva rumo às trilhas longas. As atividades não
possuem temporalidades específicas, podendo-se efetuar caçadas de um dia ou, eventualmente,

139
Na atualidade é também observável que os chefes das aldeias demandem das empresas terceirizadas que
executam o PBA-CI, recursos relacionados à contratação de caminhonetes ou lanchas para transportar os
convidados entre uma aldeia e outra. O qual insere contextos em que os organizadores de uma comemoração ritual
e/ou os chefes das aldeias deverão possuir habilidades de gestão com empresas para que as famílias convidadas
possam comparecer. De qualquer forma, essas modalidades convivem junto com as expedições cinegéticas sem
que haja um detrimento da prática tradicional.
306

expedições de vários dias. Nessas expedições, os subgrupos, que geralmente andam juntos em
expedições coletivas são replicados durante a atividade. Acrescenta Turner (1992) que essas
atividades são organizadas principalmente por sociedades masculinas, onde os homens novos
(menoronure, mekranure) em processo de aprendizagem, tem espaço para recriar práticas
dirigidas a formar caçadores. É um cenário propício para observar uma exploração dirigida,
nas quais categorias de idade de caçadores experientes se misturam com categorias de noviços.

É interessante observar que presas menores ou algumas partes pouco estimadas dos mry são
consumidas pelos caçadores durante uma expedição, sendo reservada a melhor carne para o
contexto ritual na aldeia. Vidal (1977) menciona que durante essas expedições pode haver
participação de mulheres e se constrói uma representação da ordem das casas, incluindo o ngàb.
Isso seria concomitante com a primeira modalidade da relação caça-ritual que descrevi acima,
a qual, como disse, é feita uma vez no ano e consiste numa comemoração das práticas
seminômades do passado. Não obstante, tendo acompanhado ao menos em duas ocasiões
expedições com o propósito fornecer mry como preparativo para o ritual na aldeia, observei
uma prática mais semelhante à descrita por Turner (1992) sobre as sociedades masculinas, pois
em ditas experiências não houve participação além de homens e foram feitos acampamentos
para pernoitar, sem ngàb.

Bechelany (2017, 180,184) descreve em detalhe as formas adotadas pelos Panará para instaurar
acampamentos com o propósito de coletar carne para uma comemoração. Disse o autor que
esses espaços alcançam uma organização através de metades cerimoniais, estando em cada
ponta um ancião e sua família. Para esse caso, em semelhança com Vidal (1977), também é
mencionada a existência de uma praça central elaborada através de forragem no chão com
folhas de banana-brava. A descrição de Bechelany pode ser vista como uma forma predecessora
ritual, já que a distribuição espacial é acorde com a dinamização de cantos, partindo dos mais
velhos até vincular o restante do grupo. Apesar disso, a carne coletada é sempre enviada para
as casas que convocam o ritual na aldeia.

Adicionalmente, Bechelany (2017) aponta que os acampamentos Panara constituem momentos


especiais de alteridade, onde as interações com espíritos e animais estão sempre presentes.
Disse o autor: “é como se a passagem pela floresta fosse a alteração devida para que o ritual
possa se alimentar de pessoas diferentes, além da carne dos animais (Ibid, 181)”. A
compreensão cosmológica e as atuações xamânicas que observei no cotidiano dos caçadores
Xikrin na floresta, estão seguramente direcionadas no sentido de um amplo leque de relações
de alteridade multiespecífica, o qual, pretendo abordar no capítulo seguinte.
307

Finalmente, sobre o destino da carne, esta é enviada gradualmente para a aldeia. A cada certo
tempo, alguns caçadores mais novos transportam algumas partes moqueadas de animais com o
propósito de alimentar as famílias dos caçadores que se encontram no mato, assim como aos
convidados e velhos que passam longos períodos no ngàb entoando os cantos. Contudo, é no
retorno do grupo em que se traz a maioria da carne. Ademais da carne moqueada, alguns
homens elaboram longas escadas com as quais conseguem transportar grandes quantidades de
jabutis (kraprã). A chegada na aldeia é marcada pela agitação e a entrada heroica dos
caminhantes, que juntando-se de braços, emitem gritos de guerra e dançam durante alguns
minutos. Quanto ao preparo e a distribuição da carne, essa função é centralizada pela(s) casa(s)
que precede(m) a organização do ritual (ver Vidal, 1977, p. 182-192).
308
308
309

PARTE III

APRENDIZAGEM
310

Capítulo 6. Ver para mediar: xamanismo e caça

Este capítulo busca abordar os campos do xamanismo que se conectam com a cinegética.
Partindo da premissa de que em Bacajá há um cenário de “xamanismo sem xamãs”, são
exploradas as formas em que a cosmologia e o xamanismo se inserem na vida cotidiana dos
Xikrin. São explanados os domínios cósmicos, os donos, as agências, assim como as formas
em que a energia vital e as substâncias afetam aos caçadores. Observa-se como as prevenções,
tabus, doenças e a couvade operam no dia-a-dia dos caçadores e suas famílias. Os mortos
(karón) são abordados aqui, já que o estudo identificou como estes agenciam uma parte do
proceder dos Xikrin na floresta, no que concerne a lugares e horários (dia-noite). O wayangá
(xamã) ocupa um lugar importante na análise, evidenciando-se, a partir de três grandes
classificações (negociação, aprendizado e bélicas), como este age entorno das alianças, da
guerra, da cinegética e do aprendizado.

**
A etnologia de terras baixas da América do Sul tem demonstrado a íntima relação entre guerra,
caça e xamanismo (Seeger, 2014[1981]) (Viveiros de Castro, 1996; 2002) (Hugh-Jones, 1996)
(Fausto, 2001) e (Descola, 1998; 2006) e Bonilla (2005a; 2005b) têm evidenciado que nos
povos ameríndios, o xamã, visto em muitas sociedades amazónicas através dos olhos da
desconfiança, nunca esteve tão próximo da relação com seus afins do que durante os períodos
de invasão inimiga, expedições de caça e comemorações rituais. No entanto, não se deve
confundir a guerra com a caça, e estas por vezes com o xamanismo, como se existisse uma
conjunção unívoca que engloba as relações de predação na Amazônia.

Como vem demonstrando mais recentemente autores como Lima (1996) e Garcia (2012; 2018),
tanto a guerra como a caça consistem em perspectivas diferenciadas que estimulam um âmbito
de relações assimétricas, onde o lugar de cada sujeito é definido pelo repasse dele no outro.
Dessa forma, a guerra pode ser guerra, e a caça, caça. Apesar de que estas podem mudar de
acordo com a perspectiva desde onde seja levantada a premissa. No caso da relação entre os
Awá-Guajá e os macacos capelães, Garcia (2018, p. 471) irá apresentar a relação da predação
como uma verdadeira guerra para os capelães, enquanto os Awá estão indo caçá-los, com o
qual, a formulação do encontro acaba sendo um cenário de confronto de perspectivas também,
não havendo uma única determinação para o binômio guerra-caça.
311

Por outra parte, o xamanismo tem sido identificado como o lócus da passagem entre a caça e a
guerra, sendo que através dele é possível antecipar a perspectiva do outro e emergir com
potência no campo da intersubjetividade. O xamã, visto aqui no regime horizontal (Hugh-
Jones, 1996), é o personagem por excelência para transitar entre as perspectivas das múltiplas
espécies, enganar e se valer de feitiço, além de ter a capacidade de se comunicar com seres que
transcenderam na sua energia vital ou sempre foram energia criadora (Melatti, 1963) (ver
também: Kopenawa & Albert, 2015). A propósito dos Xikrin, o xamã denominado de wayangá,
é definido como aquele que transita entre a aldeia e a floresta, visualizando sempre o que outros
não conseguiriam normalmente enxergar.

Aquilo que só os xamãs conseguem enxergar -transitar, pudendo ser definido como o cosmos
entre as sociedades ameríndias, é geralmente partilhado, visto através de planos cósmicos,
outorgando aos campos suprassensíveis múltiplos cenários, sendo habitats e formas de relação
(Capiberibe, 2009; 2017). Para Giannini (1991b), esses planos, que a autora identifica como
domínios140, são dados entre os Xikrin como o céu, a terra, o subterrâneo e o aquático, aliás,
âmbitos que são frequentemente evocados pelos mitos Mebêngôkre.

Em aqueles domínios, é possível encontrar uma variedade de seres que ocupam um lugar
determinado pela ordem cosmológica. Assim, Giannini identifica o domínio terrestre, como
aquele onde habitam os animais de caça (mry), o Akrãre, e ainda os mekarón141. O domínio
subterrâneo traz uma conotação especial, pois engloba aqueles seres canibais, aqueles
primeiros seres que sendo predatórios, são vistos como seres que comem carne crua, moram
dentro de um buraco no Oeste e permanecem numa condição prévia a da humana142. Ademais,
o domínio aquático é apresentado como aquele onde os primeiros xamãs encontraram o
conhecimento, foi ali onde o Mrukaàk ensinou o uso de plantas medicinais que trazem a
capacidade de cura para os Xikrin. Assim, esse seria um mundo de estágio particular para os
xamãs que portam a capacidade de tratamento de doenças.

140
Dado que ao longo deste capítulo criarei um diálogo com a análise que Giannini (1991; 1991b) faz sobre os
múltiplos domínios cósmicos dos Xikrin, opto por usar essa categoria como elemento de análise da cosmologia e
o xamanismo na minha pesquisa.
141
Mais adiante irei abordar com maior detalhe a identificação dos seres e agências que povoam os domínios
cósmicos nos Xikrin, dando atenção especial à figura karón ou mekarón.
142
Em vários casos esses seres são associados a outros grupos étnicos que sendo inimigos, estão dentro de uma
estrutura predatória trazida pela história das guerras anteriores às relações com os não indígenas. Assim, esses
inimigos são concebidos como não humanos na cosmologia Mebêngôkre, sendo chamados de kuben-kamrik. Nas
minhas conversas com o Onça, ele chegou a determinar em repetidas ocasiões que os kubén-kôkre (subgrupo Jê)
seriam também seres pertencentes a esse mundo subterrâneo, o qual indicaria que estes seriam vistos como seres
num estado prévio ao “ser Mebêngôkre”. embora, nunca cheguei a ter uma confirmação dessa informação através
de algum outro interlocutor.
312

O último domínio cósmico, é relacionado ao céu e localiza-se ao Leste das planícies, constitui
um cenário particular para o xamanismo Mebêngôkre, já que ali acontece a iniciação e o retorno
de quem vira xamã. É o habitat do Akkaikritti ou gavião-real que precede a iniciação dos xamãs
(Giannini, 1991, p. 180). Ao Leste, nasce o dia e se gesta a luz, constituindo uma oposição
direta ao Oeste e seu mundo subterrâneo, que por vezes, é concebido como espaço do escuro.
Evidenciando um dualismo estrutural (Lévi-Strauss, 1963) (Turner, 1979b) que opera na ordem
social e cosmológica nos Mebêngôkre e nos povos Jê do Brasil Central.

Os registros históricos sobre os Xikrin do Bacajá indicam que estes praticamente não tiveram
xamãs entre eles. Nos registros de Vidal (1977), Fisher (1991) e Giannini (1991) é recorrente
a menção ao Nhiakrekampin, um xamã que transitou na segunda metade do século XX entre
Cateté e Bacajá, mas tendo como moradia principal o Cateté. Assim, poderia se pensar em
princípio que, o xamanismo como agência é irrisório entre os Xikrin do Bacajá, sendo um
assunto dispensável à análise. No entanto, o que a minha etnografia quer demonstrar neste
capítulo, é que o xamanismo no Bacajá é latente e faz parte da organização social e cosmológica
que guia os caçadores Xikrin. O fato de não ter um xamã formal143, não impede que a maneira
em que os homens vivenciam e recriam a floresta, esteja configurada por uma rede de relações
com outros-que-humanos que determinam suas formas de se engajar no ambiente.

Através do meu campo tenho observado entre os Xikrin do Bacajá uma ideia desenvolvida por
Stolze Lima (1995, p. 159) para os Juruna e Fausto (2001, p. 333-343) entre os Parakanã.
Referida a explicar a possibilidade de um contexto em que existe um xamanismo sem xamãs.
Demonstrando que entre esses povos, a apesar de não ter xamãs verdadeiros, o dia a dia das
pessoas está impregnado de aspectos que evidenciam um rico cenário de praticas com caráter
mágico. Premissa que irei seguir como linha conceitual ao longo deste capítulo. Já que como
demonstrarei, entre os caçadores Xikrin existem múltiplas práticas e formas de xamanismo
sendo praticadas através do ato bà kam tem (estar/locomover pela floresta). Com isso, proponho
que as experiências que inter-relacionam o corpo e os sentidos com as técnicas e ambiente,
vinculam também a cosmologia e aspectos magicos num objetivo concreto de predação no
cotidiano das expedições na floresta.

143
Para os Xikrin, os wayangá (xamã) são aqueles que são xamãs verdadeiros: aqueles que se transformaram a
partir do chamado no sonho. Segundo as narrativas míticas Mebêngôkre (ver epílogo de Vidal, 1977), aquele que
vem a ser wayangá, é aquele que cruza a grande teia de aranha que se encontra sempre ao leste, onde nasce o sol.
Entre os Xikrin do Bacajá existem práticas de cura através do uso de plantas e saberes, mas quem possui esses
conhecimentos não é diretamente associado a um wayangá. Mais adiante voltarei nesse assunto .
313

Etnografando a caça tenho adentrado em um mundo de sutilezas que sem ser enunciadas, fazem
parte do repertorio xamânico e intersubjetivo do caçador. É possível ver que existe uma relação
indissociável entre o xamanismo e a vida na floresta, sendo esta um dos alicerces da cinegética
Xikrin. Portanto, deve considerar-se que para abordar etnograficamente a metafísica da caça
entre os Xikrin, deve considerar-se que estamos diante a um âmbito quase vedado para os
caçadores que não pode ser abordado abertamente, apenas levado em consideração e praticado
no cotidiano por alguns deles. O qual, configura um panorama de xamanismo sem xamãs no
Bacajá.

Etnografia do tabu

Um dia, acompanhando um dos meus interlocutores Xikrin, enquanto procurávamos


persistentemente por algum rastro de mry, perguntei a ele sobre nossa presença no mato, a
minha interrogação trazia uma preocupação em relação a se estávamos só nós e os animais na
floresta. Ele comentou de forma concisa kuni (muito), e mudou de assunto. Percebi seu
desconforto e preferi me focar em contribuir com a nossa expedição, ainda que fosse com meu
silêncio (aspecto fundamental na prática de uma caçada). Voltando à aldeia e com o conforto
de estar num espaço mais aberto, barulhento e aberto à oralidade, comentei com ele sobre a sua
resposta – “Junior (Bep Kaire), nhara kuni?... mry kuni? Mebêngôkre kuni? (muitos animais,
muitos Xikrin... muitos o que?)” – respondendo, ele disse: “-ket, mekarón kuni”. Eu quis
entender melhor, mas Junior guardou silêncio e depois manifestou que “não sabia” (komari-
ket), sendo essa uma forma frequente com a que os Xikrin dão a entender que não querem falar
ou não podem falar.

Mekarón kuni traduz ao português “muitos espíritos”144. Assim, considerei que as incursões no
mato estão determinadas tanto pelo explícito como pelo invisível, a caçada constitui um âmbito
no qual tudo pode ser evidente e nada pode ser mencionado. Nesse mesmo sentido, o
xamanismo configura um assunto pouco falado, não tendo muita abertura para ser abordado
nos âmbitos de interação social.

Quando consultei diretamente entre os meus interlocutores, todos manifestaram-se sobre a não
existência de xamãs em Bacajá. Apesar de ter alguns casos particulares onde certas pessoas

144
Mekarón possui a mesma conotação de karón, no entanto, o “me” consiste num pronome indefinido que indica
“todos”: mekarón abrange todos os karón. Assim, a variação entre uma expressão e outra, não muda
substancialmente o significado da categoria.
314

estão se incorporando como xamãs e começando a ser identificadas como tal, incluindo um
caso na aldeia de Pytakô. Ademais, existem entre os Xikrin alguns casos específicos onde
foram feitas acusações por feitiçaria, sendo esse um modo de rastrear o xamanismo no interior
da comunidade: o título de xamã para esses casos, não é visto como honraria, e sim, pelo
desprezo da implicância contra alguém que fez um ato reprovado contra o outro, os trabalhos
de Carlos Fausto (2001, p. 242) e Hugh-Jones (1996) abordam com amplitude esse tipo de
situações na Amazônia.

Assim, o xamanismo na aldeia acaba se tornando um aspecto pouco falado e ainda,


minimamente reconhecido, fazendo com que abordá-lo seja uma experiência dificultosa. Como
lidar com uma situação do tipo? Em campo entendi que trabalhar com o tabu significa abordar
o mundo a partir da acuidade. Reparar em detalhes sem sentido podia determinar o porquê de
uma ação maior, tanto na aldeia como na floresta. O fato de alguém não sair para caçar quando
os homens tinham programado uma caçada coletiva, situações em que alguém acerta um animal
e ao mesmo tempo deixa para que outro carregue o corpo, leves sussurros quando se anda pelas
trilhas, assim como leves recitais enquanto se planta a mandioca (Kwyry dja), restrições
alimentares a certos animais e certos órgãos, inclusive, certas posturas corporais apreensivas
enquanto se observam os galhos das árvores nas beiras do rio Bacajá, constituem formas de
manter uma comunicação e distância do mundo dos “outros”, daqueles que sendo igual aos
Xikrin, ou ainda muito diferentes, tem um lugar e uma energia vital145 que pode afetar a dos
caçadores em casos em que uma certa ordem da floresta é transgredida.

Somado a isso, me dispus a aproveitar qualquer informação que pudesse ser validada através
das narrativas dos velhos como Bep Tok (Onça), Bep Joti e Konaipô. Em muitos casos, as
histórias destrinçadas desses interlocutores referem-se a experiências deles no mato, assim
como à memória mítica onde são mencionados antigos Xikrin e sua relação com seres que
habitaram ou habitam a floresta: múltiplos mitos acabam sendo uma forma de apresentação da
relação dos Mebêngôkre com os outros, incluindo os animais, donos, xamãs, mekarón entre
outros. Dessa forma, as narrativas dos velhos contêm um rico acervo de detalhes acessíveis
através de um bom tradutor. O que seria impossível de acessar ou entender no meio da floresta,

145
Usarei a categoria “energia vital” com frequência nesse texto, no mesmo sentido que é abordada pelos trabalhos
sobre a pessoa nos povos ameríndios de terras baixas, identifico ela como um dos componentes da pessoa
Mebêngôkre e a defino especificamente no âmbito do que não sendo físico, é o componente que possibilita a vida
e dá a personalidade a cada pessoa, fora de estar relacionada com o que permanece após o corpo se extinguir.
Assim, energia vital e karón serão progressivamente equiparados na parte final do capítulo.
315

veio até mim revelado através da memória oral de Onça a cada noite, no rõpte (quintal) da sua
casa.

Assim, era mais valioso observar e escutar, do que indagar ou ir atrás de aspectos específicos,
é claro que para isso seria necessário um campo prolongado onde pudessem ser compartilhadas
inúmeras experiências; no meu caso, sem ser um campo muito longo, dediquei uma grande
parte dele a estar na floresta junto com os homens. A cada dia e sem muita programação
acompanhei expedições no mato, ou mesmo no rio onde se faziam breves incursões. Não tenho
certeza de quantas vezes fui caçar, ou quantas espécies avistei, embora essa tenha sido minha
rotina. Mas isso não significa que eu fosse um caçador, de fato nunca fui visto como tal entre
eles, no entanto, desde os primeiros dias após a minha chegada na aldeia, fui convidado para
caçar junto com os homens, assim, na prática, reparar no movimento me tem levado a
dimensionar preceitos xamânicos em algumas práticas que descreverei a seguir. Meu propósito
será evidenciar como o sistema xamânico perpassa a vida na floresta e determina um conjunto
de relações que rege os caçadores, darei atenção a situações que acontecem na floresta e tem
impacto nas relações na aldeia. Também identificarei e classificarei os seres que habitam a
floresta e organizam as espécies valorizadas na venatória Xikrin. Esses recursos analíticos irão
me permitir uma análise mais ampla da caça e seu lugar no xamanismo.

A iniciação

Como mencionei no começo deste capítulo, em Bacajá é possível encontrar no cotidiano um


compêndio de práticas referidas ao xamanismo indo desde os cuidados e dietas necessárias para
o êxito do caçador até as incursões na floresta. Não obstante, continua sendo impossível falar
de um wayangá em termos formais, pois os próprios Xikrin ainda não chegaram a reconhecer
ninguém como “xamã verdadeiro”. Contudo, quero chamar a atenção sobre o surgimento desse
assunto nos últimos anos na aldeia Pytakô, sendo levemente reanimado o âmbito das discussões
a respeito, seja para legitimar, ou mesmo, para fazer acusações de feitiçaria146.

Desde 2017, quando comecei meu trabalho na aldeia, escutei com frequência assuntos referidos
à possível iniciação de um personagem que estaria virando wayangá147, inclusive, ouvi falar de

146
A revitalização de âmbitos xamânicos em lugares onde há uma trajetória de afastamento histórico ou mesmo
de desaparição da figura do xamã, é frequentemente dada a partir de acusações e desconfianças. Ver Capiberibe
(2007; 2017).
147
Opto por não dar seu nome como forma de protegê-lo, já que até hoje não conta com o reconhecimento legítimo
como um wayangá.
316

algumas práticas de cura de doenças que estaria realizando na Casai em Altamira. Em


conversas pessoais com esse personagem, ele manifestou ter recebido através de sonhos o
chamado do Ok-Kaikrit, assegurando ter se deslocado pelo céu, cruzado a teia de aranha e
recebido instruções específicas sobre como curar com fumo e certas plantas, ademais de
aprender cantos (ngrere) que ajudam a curar (referidos principalmente aos animais da floresta).

Este interlocutor afirmou ter trânsitado em inhum-djêk (teia de aranha). Em consonância com
a iniciação xamânica para outros povos, a iniciação nos Xikrin (passar através da teia de aranha)
acontece num contexto de “quase morte”, isto significa que o chamado acontece enquanto – ou
após que – uma pessoa passa por alguma doença grave (incluindo a loucura), um perigo
extremo ou mesmo, morre durante alguns minutos148. Assim, a dificuldade para voltar à terra
habitada pelos Mebêngôkre uma vez que se cruza a teia de aranha, refere-se à proximidade
entre encontrar a morte e virar wayangá. Constituindo a causa para que muitos desejem não
receber o chamado, já que no processo é sacrificada parte da energia vital em troca da
capacidade de enxergar e exercer a função de mediador entre os diferentes domínios.

Omunh, que pode ser traduzido como ver, constitui o sentido predileto de um wayangá,
relacionado com a capacidade de enxergar além. O qual equivale a que alguém que se torna
xamã é uma pessoa que irá transitar -enxergar- vários domínios no suprassensível. Essa questão
é importante para pensar o lugar social das pessoas e a relação que tem com os sentidos. Já que
assim como tenho demonstrado, escutar/ouvir (mari) é sinonimo de entender e aprender. Da
mesma forma que falar (kaben) é sinonimo de falar bem, o que equivale a ter uma posição
importante nos âmbitos públicos e cerimoniais.

Aqui poderia se identificar uma dualidade: se mari e kaben são valores intrínsecos à pessoa
masculina, adscritos à vida publica Mebêngôkre. Omunh, é um valor restrito e reservado à
experiência individual de cada wayangá. Em soma, escutar e falar são qualidades pelas quais
todos os homens Xikrin se vinculariam nos campos sociais, enquanto ver, estaria restrito aos
xamãs, sendo uma expressão de índole associal. Não obstante, essa formulação é apenas
plausível desde uma perspectiva da vida social dos Xikrin como partícula essencialmente
humana, pois no fundo, enxergar outros domínios cósmicos, outorga aos wayangá facultades

148
Nesse sentido Lux Vidal (1977) confirma em sua maioria as informações proporcionadas pelo wayangá
iniciante no Bacajá; ao descrever que quando alguém é mordido por um porco, uma cobra ou algum bicho do
mato ele fica aibã (louco) e pode se tornar wayangá. De noite ele sonha: “vai no mato acende um fogo se deita
encima, depois sob a forma de pássaro sobe e dirige-se ao koikwa-krai, ao leste, para atravessar a teia de aranha -
inhum-djêk (Ibíd, p.212).
317

de estabelecer relações sociais, traduzidas em alianças com afins potenciais, mesmo que outros-
que-humanos. Como mostrarei a seguir.

O mediador

Apesar de não existir formalmente xamãs entre os Xikrin do Bacajá, a figura do wayangá está
sempre presente na retórica dos mebenget (velhos). As narrativas constantemente remetem ao
passado dos Xikrin dando lugar a contextos históricos e míticos onde o wayangá integra a vida
na aldeia, mas principalmente, as experiências expedicionárias. De tal forma que não deve ser
omitida uma categorização especifica que apresente e localize o xamã dentro da cosmologia
Mebêngôkre.

Para isso considero pertinente a definição dada por Giannini (1991), já que a autora define o
wayangá como esse alguém que transita entre os domínios cósmicos. Considero que essa
apreciação é fundamental para entender a posição social que ocupa um xamã, já que mesmo
que ele seja alguém que pode ter a capacidade de jogar feitiço (kaprem) ou curar o feitiço nos
outros outros, é também aquele que opera como tradutor entanto faz compreensível aos seus
semelhantes a linguagem de outros-que-humanos. O xamã Mebêngôkre, possui a capacidade
de enxergar além do que outros enxergam, isso lhe permite uma ação comunicativa abrangente,
determinando os termos de muitas das relações estabelecidas entre os caçadores e os outros
seres da floresta.

Esse fato dá ao xamã uma posição ambivalente, que é também uma agência interdependente: a
visão do xamã irá desfazê-lo como agente particular e refazê-lo como sujeito inter-natural. Ou
seja, a capacidade de visão (omunh) e a comunicação do xamã além do que outros Xikrin
enxergam, faz com que ele deva estabelecer uma relação específica de troca com os inimigos,
relação que de forma exacerbada faz dele um ser intersubjetivo, com várias perspectivas.

Existe um risco quando se transita nesses domínios, como Lima (1996) bem disse, o tropeçar
na perspectiva do outro, implica a derrota na caça – ou na guerra. Mas, além disso, o maior
risco é a falta de confiança plena nas relações estabelecidas pelo wayangá. Este é um ser que
visualiza, que transita e que assume mais de uma perspectiva, sendo assim, aquele que é um
múltiplo sem ser claramente unidade alguma, vem a ser sujeito de alianças flexíveis. Dali a
relação de desconfiança que os Xikrin tem contra ele.
318

As narrativas que descrevem acontecimentos onde os wayangá tem parte, trazem consigo
expressões que questionam a natureza do xamã, as traduções têm por eloquência mencionar
“será que tu é pajé mesmo?”, inclusive, existem mitos onde o enredo central consiste na
comprovação das habilidades do wayangá e a vingança dele para com os que o questionaram.
Onça conta como os questionamentos são resolvidos a partir da habilidade do wayangá em
transformar coisas como pedras e paus em jabutis e cobras, respectivamente. Além das
transformações do próprio xamã em animais predadores da floresta como a onça, com o
propósito de assustar e dar escarmento para os que o julgam.

Um wayangá viu que tinha um homem fazendo flechas na aldeia. Ficou olhando de
longe... o homem tinha falado que o wayangá não era xamã, falou “será que ele é
mesmo? esse cara aí não é não...”. Um dia que o homem saiu para andar pelo mato,
andou e achou uma grota que era bom de caça, tinha muito bicho que ia beber água
ali.

O wayangá veio até o igarapé na forma de anta, marcou várias pegadas na areia que
estava úmida e adentrou pela trilha até chegar longe. O caçador pensou “isso é de
anta, eu quero essa anta aí, vou matar ela”, saiu atrás das pegadas e levou arco e
flechas. Depois de andar achou a anta: era grande, gorda! Pegou uma flecha e
preparou o arco, atirou direto no coração para que a anta morresse ali mesmo e não
saísse correndo ferida, porque anta ferida corre e vai longe e depois tu não acha mais
ela, ela vai e morre longe.

O caçador lançou a primeira flecha e bateu bem no peito da anta, onde ela tem o
coração. A flecha não furou o peito, ela quebrou todinha. O wayangá tinha colocado
uma pedra grossa dentro do peito dele para não ser morto. O caçador pensou “isso
está estranho, mas vou matar, vou acertar de novo”, disparou outra flecha no peito,
mas foi a mesma coisa: a flecha quebrou! Ficou insistindo e foi atirando e atirando
até ficar sem flechas, quebrou as pontas das flechas.

Depois foi e pegou os cachorros na aldeia e veio até o igarapé para seguir o rastro
da anta, subiu pelo mato, chegou até um morro onde tinha visto a anta e quebrado
as flechas, ali estava o wayangá e perguntou para ele “tu não viu não uma anta aqui?
ela não morre”, o wayangá respondeu “não vai mais atrás dela, a anta sou eu”. O
caçador ficou zangado e perguntou “por que tu fez isso? Olha que eu passei tempo
fazendo as flechas”. Wayangá disse “para de brincar comigo, fica falando aí de mim,
eu fiz porque queria quebrar todinhas tuas flechas”.

Wayangá e as flechas do caçador. Narração de Bep Tok - Onça.


319

Tradução de Txuak.

Há também confrontos entre wayangás, porque estes questionam e criticam a capacidade de


ação uns dos outros. Nesses contextos, explica o Onça que as disputas se dão através de doenças
temporárias onde a dor é aguda em órgãos do abdômem e tem como objetivo ridicularizar a
pessoa, fazendo com que esta tenha de se jogar no chão e suplicar por ajuda. Essas situações
nunca acabam em morte, pelo contrário, consistem em testes raros, mas necessários para
determinar o respeito e autoridade que tem um wayangá sobre o outro, virando apenas
episódios de anedotas cômicas.

Isabelle Giannini (1991) conclui que o xamã ao ser concebido no domínio do céu e tendo o
acompanhamento do gavião-real, se constitui como uma ave, podendo alcançar um patamar
celeste, sendo um ser de luz. No entanto, como venho dizendo, ele é um ser que se desloca
entre mundos ou domínios. Assim, o domínio do céu seria apenas um dos estágios nos quais
ele pode se apresentar, existindo a possibilidade de que um xamã possua uma relação
igualmente próxima com outro domínio além do céu.

Por outra parte, assim como Giannini identifica a relação dos xamãs Xikrin com o gavião-real
e sua proximidade com o domínio do céu, Onça descreve um cenário de relações e possíveis
alianças entre xamãs e os mry (animais terrestres de caça ou aptos para o consumo), ou seja,
sua presença no domínio terrestre.

Metumre (indica antigo), um Mebêngôkre levou torotí para o wayangá e falou –


come essa banana, ela é para ti, aí depois tu vai no mato e vai trazer angrô – porcão
para nós, os homens vamos matar esses porcão e depois vamos fazer metoro
(comemoração)-. Wayangá respondeu – tá, não sei onde tem, onde será que tem?
Não vi nada, vou procurar. Depois, quando ficou um pouco de noite, o wayangá
virou angrô: gritou e correu fazendo o mesmo som que fazem os angrô com os
dentes. Havia um velho que estava acordado e ouviu ele, aí disse “acordem, tem um
porco que viu nós e correu”. O wayangá – angrô sumiu.

Depois andando pelo mato, encontrou um bando de queixadas e gritou com eles.
Um queixada falou pros outros – quem é esse que chegou? – respondendo o
wayangá angrô, disse – Bakrantú / Txuak – enquanto o bando comia pukkein (fruta).
Bakrantú continuou chamando os porcos e perguntou – vocês vão ficar aqui? –
porcos: -não, nós vamos, ainda tem mais parentes lá para o Pukárarakré- então o
wayangá foi atrás deles.
320

Ali no Pukárarakré juntou mais angrô, eram muitos. Wayangá falou – bora fazer
metoro, vamos dançar”, o bando perguntou – onde? - wayangá – bora! Ali perto.
Foram voltando todos os que tinham juntado, wayangá foi levando-os para perto da
aldeia. Pararam perto de uma lagoa para beber água, uma velha chegou perto de um
meprire (criança) e falou “bora longe daqui esse pessoal que está indo não vai dançar
não, vai brigar, vai ter briga... quando eu era jovem eu brigava e eu podia correr,
mas agora estou velha e se me pegarem vão me matar”. Wayangá ouviu e perguntou
– qual o nome desse meprire? – é o mekoibokré. Tinha outro Meprire perto, esse era
o Koinjire. Foi o grupo andando até chegar numa clareira, ali falaram para o
Wayangá -tem um Mebêngôkre que gosta de matar nós, briga com nós, seu nome é
Karangré-. Wayangá respondeu – é, Karangré que gosta de matar vocês.

Chegando numa outra parte os porcão pararam, um porco levantou e fez uma dança
e parou. Outro guerreiro porcão se levantou, dançou e estalou os dentes “truck-truck,
truck-truck”. Depois outro fez igual, foram animando todos, todos os guerreiros
dançavam e estalavam os dentes. Voltaram a andar de novo...

Depois um velho falando alto, disse – nós temos que cantar porque estamos perto,
estamos quase chegando...foram cantando.

O pessoal da aldeia estava todo acordado, menoronure, mekranyre, mekrarere-tum.


Tinha mebenget também, estavam todos no ngàb, era bem de noite.

Os queixadas subindo a serra começaram a cantar, todos os porcos de todas as idades


começaram a cantar e dançar, assim, foram descendo a serra. Os Mebêngôkre
estavam tocando o poh-tik149, os angrô ouvindo disseram – para! Para! Estamos
perto da aldeia- um guerreiro continuava tocando o poh-tik-, algum ngrú falou –
não, esse som aí é um tuk-tik.

O grupo foi descendo até chegar numa roça, o wayangá ficou no meio deles, mas
depois abriu um buraco na terra, entrou ali e virou Mebêngôkre, saiu num outro
buraco bem na frente de onde estava o bando de ngrú. Ninguém viu ele. Os porcão
foram para um lado e para outro mais ninguém encontrou o wayangá.

O wayangá entrou na aldeia e o primeiro a vê-lo foi o velho, o mebenget foi e falou
para o pessoal no ngàb – acordem, Bakrantú voltou. Bakrantú entrou primeiro na
sua casa, pegou seu cachimbo, tinha fogo ainda, depois atravessou o pátio até chegar
no ngàb e disse – Karangré está aqui? Karangré – estou. Bakrantú – os porcão estão

149
Instrumento acústico feito a base de um bambu, funciona através de vento, ao soprar emite notas graves.
321

prontos, vocês vão ter que se preparar para brigar, agora os guerreiros vão para roça
para procurar ngrú.

Primeiro foram dois Mebêngôkre e viram que tinha muito queixada, o resto do
pessoal já se preparou, pegaram arco flecha e borduna e foram indo, encontraram
com os dois que foram primeiro, eles avisaram que tinha muito porcão mesmo. Os
guerreiros falaram – bora! Levaram até os cachorros... o pessoal chegou na roça e
se dividiu em dois grupos para rodear os ngrú, por um lado e por outro. Gritaram e
começaram a brigar, os Mebêngôkre flecharam os porcos, bateram com borduna, os
cachorros morderam. Os ngrú pegaram três Mebêngôkre, morderam eles, um deles
era o Karangré. Mataram um monte de queixada, outros fugiram. No meio dos
mortos o wayangá começou mostrar – esse daqui foi o que pegou o Karangré, esse
daqui dançou, esse daqui era criança... Os Mebêngôkre mataram até os filhotes de
porcão, o wayangá pediu os filhotes para ele comer, os queixadas grandes sobraram
para o pessoal. Foi assim que o wayangá fez, foi assim que o wayangá trouxe angrô
para perto da aldeia.

Wayangá e angrô. Narração de Bep Tok - Onça.

Tradução de Txuak.

O relato de Onça mostra não só que o xamã transmuta na sua corporalidade, senão que opera a
partir de uma alteridade cognitiva e sensorial ao mesmo tempo que se incorpora no sistema
cultural angrô. Nesse sentido é possível evidenciar, num primeiro momento, que os angrô são
determinados a partir de uma rede social e parental que guia tanto o seu proceder quanto a
designação de nomes. Assim, eles irão possuir uma identificação particular, por isso as crianças
queixadas foram rapidamente identificadas uma vez que o wayangá indaga pelo nome delas.
Por outra parte, os angrô possuem um sistema ritual equiparável ao dos Xikrin, eles dançam e
repassam um ao outro num ato coletivo um conjunto de gestos, técnicas e falas, por exemplo,
comemoram a sua honra guerreira através do estalo dos dentes.

É esse relato de Onça um claro exemplo de como caça – guerra se misturam, prevalecendo uma
ou outra forma, a depender da perspectiva. Se para os angrô, o encontro era uma guerra
iminente, para os Mebêngôkre, podendo se equiparar nesse mesmo sentido, não deixa de ser
em sua essência, uma caçada. Pois o motivo pelo qual o xamã foi ativado, é o fornecimento de
carne na alimentação coletiva, vindo a ser uma economia simbólica da predação (Viveiros de
Castro, 2002).
322

A linguagem usada entre Bakrantú e os guerreiros ngrú é equiparável à linguagem usada entre
ele e os guerreiros Mebêngôkre: existe um momento de desconfiança entre as partes. Por um
lado, os Mebêngôkre dão banana para o xamã e exigem dele uma reciprocidade; por outro, os
ngrú solicitam do xamã que ele se identifique e deixe claro o que ele quer, concordando em
segui-lo uma vez que ele esclarece que poderão ter uma comemoração. Então, o domínio da
terra, e sendo mais específico, o domínio da floresta150 consistiria também em um domínio por
excelência para o xamã. Desse modo, indo além da definição de Giannini, diria que o wayangá
não seria apenas um ser de luz, mas também um ser das profundezas – ainda que escuras – da
floresta.

Além disso, a possibilidade de pensar num xamã com múltiplas alteridades ao longo dos
domínios cósmicos, faz pensar numa equação de irredutibilidade na qual existem relações de
afinidade, negociação e troca. Não obstante, parece existir também a possibilidade de um
cenário com relações de domínio e força, que determinam uma possível predação. O wayangá
não possui apenas uma relação com outros-que-humanosa partir da permissão para caçar,
relação comumente encontrada quando se aborda o xamanismo, a caça e sistema de donos da
floresta; senão que, estabelece também âmbitos de disputa direta onde a imposição é também
uma forma de ultrapassar a perspectiva do outro.

Nesse mesmo sentido, ele não mantém uma forma única de relação com seu povo, estando
sempre latente a desconfiança como valor. Ele pode curar ou atrair a caça, sendo bem visto e
recompensando, mas também pode lançar feitiço ou mentir, ocasionando uma perseguição
pelos seus afins. O que virá a determinar a relação, vem da forma como são agenciados os
termos de compensação das partes, ou seja, o wayangá é claramente um “diplomata”, um
tradutor, em palavras de Carneiro da Cunha (1998); que traz consigo a possibilidade para que
os que não podem enxergar diretamente possam ter acesso, por meio de sua visão, aos termos
que determinam o equilíbrio no mundo cósmico e ecológico.

Na narrativa sobre Bakrantú e os ngrú encontra-se a partir da primeira aproximação aos


queixadas uma chave para entender o que venho falando: uma vez que o wayangá-porcão
interpela o bando, o que parece ser uma desconfiança enraizada dos ngrú e uma estratégia de

150
Geralmente nos estudos clássicos sobre os Jê, é indicada a dualidade (o domínio da terra) entre floresta e
clareira. O primeiro, referido ao mato como tal e tudo o que ali se encontra, ali opera um sistema de relações
instáveis sendo um espaço de riscos lotado de inimigos, incluindo os mortos. O segundo, consiste no espaço
doméstico, o da aldeia, onde as redes de parentesco e afinidade operam determinando a vida dos vivos em
sociedade. Para ampliar essa ideia se recomenda ver (Vidal, 1977) para os Xikrin, Posey (2002) para os Gorotire
e Carneiro da Cunha (1978) para os Krahô.
323

enganação por parte do wayangá é, no fundo, uma negociação bélica onde Bakrantú age como
enviado pelos Mebêngôkre abrindo a possibilidade para que os ngrú aceitem ir ao encontro de
seus possíveis algozes, o convite para uma festa é uma pauta para a batalha. Além disso, os
ngrú concordam com o confronto, isso fica claro uma vez que a queixada velha, numa tentativa
de evitar que as crianças assistam ao embate, adverte que ali terá briga. Mas, o que motiva os
ngrú a irem perto da aldeia dos Mebêngôkre? Aqui encontra-se a essência da mediação do
xamã: ele prometeu aos queixadas o Karangré!

A relação de reciprocidade através da vingança é a forma que permite dessa vez ao wayangá
encaminhar as duas partes. Por um lado, os Xikrin desejam saciar sua vontade de carne e por
outro, os ngrú desejam brigar para vingar o excesso predatório acometido pelo Karangré. A
respeito desse último, o excesso, na contramão da prática moderada (Overing, 1999), no
consumo de animais, pode ter conotações específicas, seja a doença ou o arrebatamento da
vitalidade, de qualquer forma, uma contrapredação151, como demonstrarei adiante.

Observa-se aqui aquela relação descrita por Garcia (2011, p. 329) referida ao contexto em que
os Guajá saem para caçar os capelães, já que para os segundos, a presença dos Guajá significa
a aproximação dos inimigos, o que determina a relação da guerra, para os capelães. Desse
mesmo modo para os Mebêngôkre e ngrú, o encontro representa uma experiência de predação,
na qual se dá também, aquilo que Lima (1996) e Viveiros de Castro (1996) descrevem como
um encontro-confronto de perspectivas. Ainda que a narrativa acabe por insinuar que uma boa
parte dos porcos encontraram a morte, ela deixa aberto o fato de que o Karangré e mais alguns
outros, sofreram a predação pela perspectiva dos ngrú.

Assim, é possível entender a posição do wayangá como aquele que precisa oferecer para
receber, que sem a necessidade de estabelecer uma relação estável e duradoura, através da sua
mediação traz para as partes uma satisfação momentânea que garante o equilíbrio do sistema
de predação, demonstrando ser um agente que acessando outros patamares e domínios,
configura a base para a continuidade da ordem social e cósmica da floresta.

Para encerrar esta parte, diria que, apesar de que para Giannini (1991) o wayangá também se
constitui como um mediador por excelência, premissa com a qual a minha análise concorda.
Para a autora, a mediação configura uma conjunção de relações sociais que evocam o ideal de

151
O sistema de valores que guiam o consumo regularizado de carne de caça, assim como os preceitos de respeito
por outras espécies na prática cinegética, é visto quando quebrantado, como motivo de panema (azar). Categoria
que extrapola as sociedades ameríndias, sendo amplamente difundido entre comunidades tradicionais amazónicas
como ribeirinhos, beiradeiros, seringalistas, pescadores, entre outros. Ver Galvão (1976), Maués (1990), Almeida
(2013) Shepard (2014) e Vieira (2017).
324

humanidade Xikrin, fazendo dos xamãs um tipo de seres plenos. Na minha abordagem, não
cabe ao wayangá tal categorização, pelo contrário, um wayangá está longe de ser aquilo que
poderia definir um sujeito como ideal da sociedade em que habita. O xamã não só é um ser sem
unidade específica, e, portanto, sem lugar concreto; senão que ademais, é desprovido de uma
característica intrínseca ao ideal de humanidade, me refiro a kaben mei (fala formal), habilidade
básica dentro do ideal da pessoa Mebêngôkre.

Tendo me ocupado principalmente de indagar a respeito da figura do wayangá a partir do


caráter que este assume ao longo dos domínios onde transita e após defini-lo como um ser
mediador/tradutor Carneiro da Cunha (1998), acredito que cabe pensar nos tipos de relações
que são interpostas entre ele e os múltiplos seres que povoam os diferentes domínios cósmicos.

Âmbitos de relações xamânicas: negociação

Em primeiro lugar, devo me referir ao âmbito das relações de negociação, sendo essas talvez
as principais, ou pelo menos, as mais comuns como propõe (Melatti, 2006) para os Jê. Como
foi dito, o wayangá é um diplomata, possui um amplo leque de possibilidades para negociar e
sempre que possível, busca deixar as partes que entram no contrato, satisfeitas. Nesse sentido,
Giannini (1991, p. 162) apresenta a negociação do wayangá como uma condição básica para a
prática da caça, isso nos termos das expedições coletivas onde é comum os caçadores coletarem
uma ampla gama de espécies comestíveis. A autora define o princípio da negociação a partir
de um tipo de relação simétrica na qual o wayangá negocia com os donos dos animais a
possibilidade de praticar a predação.

Aliás, a negociação se dá em termos de uma forma de evitar doenças (kane) entre os caçadores.
Transgredir normas de convivência estabelecidas com outros seres, não respeitar a boa medida
da caça (Overing, 2012), pode acarretar doenças físicas, ou inclusive, chegar a afetar o
princípio vital da pessoa, com a possibilidade de se expandir para a família. A função de cura
que possa ter um wayangá é só um passo posterior ao que lhe compete em relação ao controle
de doenças, me refiro ao âmbito da prevenção, já que antes de acontecer adoecimentos entre
caçadores o wayangá deve estabelecer acordos. A dinâmica de prevenção é um assunto
recorrente no xamanismo ameríndio, inclusive, nos povos andinos: a prevenção, o “refresco”
como modo ritual de limpar a pessoa de perspectivas contrárias e potencializar o próprio ponto
de vista, é considerado um aspecto básico de cuidado a ser praticado ao longo dos períodos em
325

que se transita fora da família e da comunidade (Escobar, 2017). Do mesmo modo, no ideal da
caça Xikrin, deve acontecer um processo prévio de negociação do wayangá com os donos para
determinar o que pode ser caçado e ainda, o que será dado em troca.

Durante a minha permanência em Trincheira Bacajá, não foi possível evidenciar que esse
processo aconteça na atualidade, penso que principalmente pela falta de um wayangá
verdadeiro. Porém, pude observar algumas práticas xamânicas no meio da caçada que
ajudaram a estabelecer que ali estaria acontecendo senão uma negociação, pelo menos sim um
pedido de permissão para executar a predação. Por exemplo, um dia acompanhando o Onça à
tarde na roça, enquanto esperávamos a possível aparição de uma paca embaixo de uma capoeira
próxima do plantio de mandioca (Kwyry dja), este pronunciava entre seus lábios quase que de
forma imperceptível um leve canto, disse-me que era um canto específico para esse momento:
– é canto de paca, paca gosta, se cantar a paca irá gostar e vir-, sequencialmente empunhava a
sua espingarda (atóm) e procedia a permanecer abaixado observando os pés de mandioca. Ao
não perceber mudanças no espaço, voltava a pronunciar o leve canto.

O canto aparece frequentemente nas narrativas Mebêngôkre atravessando múltiplos âmbitos


da vida social e a ordem cosmológica, por exemplo, uma fala formal no ngàb consiste num
compêndio discursivo revezado entre frases elaboradas e cantos de imitação, vale lembrar que
uma fala formal consiste num dispositivo de revitalização de conhecimentos, uma forma de
dinamizar a memória diante de outras gerações presentes (ver capítulo 7). É através das falas
que os mebenget relembram gestas próprias ou dos antepassados e elevam chamados e
convocações pedagógicas para aprender na prática.

No âmbito do xamanismo, o canto, com a possível extensão para a imitação (ver segmento
esturrando no rio, capítulo 4), pode ter vários significados, constituindo principalmente a base
para encantamentos. Onça, por exemplo, usa o canto como forma de iludir a paca, funcionando
aqui como um chamado que irá fazer com que a espécie sinta vontade de chegar perto pois está
sendo convocada através de uma letra que a honra. Fisher (1991, p.427) descreve que durante
a época em que fez seu trabalho e campo frequentemente eram entoadas canções em
homenagem a certos animais, de acordo com a estação e o local.

Rodrigues (2017) destaca que entre os os Kayapó é igualmente comum que sejam usados
cantos na prévia a uma caçada coletiva, inclusive, é possível encontrar uma relação direta entre
o sonho e o canto. Relação essencial no xamanismo ameríndio como Chaumeil (1998) explica.
Rodrigues destaca entre os Metuktire a propósito de festas de nominação Bep, que o papel
326

premonitório que tem o wayangá no planejamento de uma expedição coletiva com motivo de
reunir as carnes de caça necessárias para a realização da cerimônia, é dado através do repasse
do canto. Operando como agência que busca aproximar tanto aos caçadores como as presas: “o
xamã forneceu novas letras para os cantos da última noite, depois de tê-las ouvido em sonho
profético (...)” (2017, p. 156). Em outra ocasião, pude observar o Tapiex expressar um leve
sussurro rítmico enquanto plantava maniva em sua roça, essa prática parece ser um tipo de
encanto que busca fazer com que a planta germine e esteja protegida ao longo do seu período
vital.

Por outra parte, Giannini (1991) identifica que os cantos na caçada são mais comuns após a
morte do animal, disse a autora que os Xikrin do Cateté costumam pronunciar um forte grito
com o propósito de que todos os que estejam perto, ouçam, assim o canto começa
principalmente após o confronto (Ibid, p. 81). Essa prática possui um único propósito que seria
o de “enxotar os karon dos animais mortos”. Disse Garcia (2012) que a morte de um animal
constitui um momento de abertura para que o princípio raivoso que compõe aos seres da
floresta seja liberado, esse ha’aera como o conhecem os Guajá, pode ser o conduto para uma
vingança por parte dos abatidos, a doença é o modo de operação: um caçador pode adquirir
desde uma dor física, até azar na caça, o que o privará de expedições futuras, ou inclusive, pode
encontrar a morte.

No Bacajá, observei alguns casos pontuais onde após uma forte confrontação, principalmente
na caça de porcos ngrú, alguns menoronure tum e mekrares costumavam entoar um breve canto
de euforia, isso pode estar relacionado a dito sistema de reação para evitar a vingança dos
mortos, embora, me pareça também que consiste numa espécie de advertência para os karón,
determinando que por direito da guerra foi superposta a perspectiva dos homens. Segue um
trecho do diário de campo que reforça essa questão.

No meio de novembro saímos constantemente para caçar, foram cinco dias seguidos
entrando no mato, em algum momento da manhã alguns deles pararam para conferir
o que parecia ser uma picada de uma vara de porcos. Após alguns minutos, nos
dividimos quase que por inércia, sem expressar palavra alguma nos separamos em
pares ou em alguns casos, individualmente, sempre é assim, passamos mais tempo
parando para conferir algum rastro do que nos separando e adentrando na mata.
Dessa vez, eu fui atrás de Junior, apesar de ser comum que acompanhasse o Txuak.
O Júnior mostrou a sua habilidade para encontrar rastros de ngrú na terra e através
327

de galhos quebrados. Ele foi definindo a rota que seguimos, determinando um


padrão que pareceu formar uma linha reta de deslocamento.

Em poucos minutos comecei a sentir um fedor inesquecível, semelhante ao de um


curral suíno só que mais intenso, em seguida ouvi dois estrondos quase que
superpostos, um deles era o de um tiro de espingarda, o outro, era o de uma multitude
de queixadas entoando gritos. Nós dois, que só tínhamos borduna e facão, ao
perceber que a mata se mexia com violência na nossa direção, pulamos em duas
árvores, logo apareceu à minha frente dezenas de famílias ngrú, um espetáculo.

Um pouco depois apareceu Dezoito (Ted Jire), quem se encontrava fatigado de


correr atrás do bando, o Junior num impulso de honra desceu rápido da árvore, pegou
a espingarda do Dezoito e revezou com ele, saindo atrás dos ngrú. Eu fiquei no
mesmo lugar, sendo que ali caíram alguns dos porcos ainda se mexendo e tentando
fugir, escutei o último suspiro de dois deles enquanto os guerreiros chegavam aos
poucos e tiravam o último fio da vitalidade através das bordunas que desciam com
toda potência sobre a cabeça dos animais.

Ali, nos reunimos Dezoito, Picapau, Kwynhdjy, Kroí, Txuak, Junior e eu. No total
houve quatro queixadas mortas, uma delas era uma cria. O que mais me chamou a
atenção é que eles deram um grito de euforia, um sorriso e seguido uma rápida
conversa, sendo que Kwynhdjy, um dos mais fortes, não carregou porcos. Ele abateu
dois se não me engano, mas fui eu quem carregou o adulto.

Uma caçada coletiva. Diário de campo I (17/11/17)

Acredito que o ato do canto, mas principalmente os dos sons agudos e altos (“uuuuhhhhn”)
após uma caçada bem sucedida, opere de forma intrínseca à pessoa masculina Xikrin, sendo
que a comemoração das vitórias na guerra e na caça fazem parte da satisfação no repertório de
provas e passagem na organização das categorias de idade masculinas. Não é à toa que os
primeiros a se manifestarem após uma matança de ngrú são os adolescentes em formação,
manifestando detalhes da proeza.

A sobreposição da perspectiva da pessoa masculina Xikrin parece ser inerente ao ato da captura
da caça, embora existam regras que são consideradas ao longo do processo. No relato citado é
possível evidenciar que após a confrontação e com a corroboração do último exalo da presa,
segue um período de afastamento para com esta. Quem deu morte procura evitar pelo menos
num primeiro momento, o contato direto com a vítima, por isso que o Kwynhdjy apesar de ser
328

o direto responsável, não transportou os corpos dos dois ngrú que matou. Esse comportamento
parece estar relacionado com o resguardo e a prevenção diante da possibilidade de ser afetado
pelo karón da presa que ficou livre e enfurecido. A procura de uma vingança que faça resvalar
o caçador na perspectiva da pressa. Além disso, essa prática está diretamente relacionada com
o âmbito das restrições alimentares, aspecto que irei abordar mais adiante.

Os cantos e cuidados de contato com o corpo da presa constituem um modo de entender como
os Xikrin se amparam no conhecimento xamânico para se engajar com a floresta em busca de
desenvolver a cinegética, sendo que um simples ato de precaução consiste num episódio ligado
a um sistema ontológico maior. Esse conjunto de práticas determinam um processo de
circulação de saberes que irá ser acionado de forma implícita, quase que oculta, ao longo do
ato da caça; é por isso que os cantos na cinegética se erguem como um termo de passagem para
entender um segundo âmbito das relações xamânicas, este é o do aprendizado.

Âmbitos de relações xamânicas: aprendizado

Aqui é válido indagar sobre como chegaram cantos (ngrere), nomes e danças (toro) até os
Xikrin, já que a génese deste kukradjà (Lea, 1986; 2012)152, irá destacar o wayangá como um
personagem que, transitando entre domínios, acaba sendo portador de um grande conjunto de
conhecimentos que alimentam o mundo Mebêngôkre. Giannini (1991) expõe o que parece ser
um sinal:

Antigamente, ao descer do céu, os Mebêngôkre ao chegarem no rio para


banhar e beber água, morriam todos. O xamã chegou na beira do rio e falou
para Mrykaàk [dono no domínio aquático]: “espera”. Mrykaàk pergunta:
“você é meu parente, você já me conhece?” O xamã diz que não. Mrykaàk
convida o xamã para a sua casa, no buraco debaixo da água...ali já está
ensinando todos os remédios de bicho...Mrykaàk falou para todos os bichos
que o xamã é parente deles...o xamã ensinou para Bepnhikrati (xamã
Mebêngôkre neste mito). O Bepnhikrati já ensinou para outro xamã.
(Giannini, 1991, p. 92)
A autora apresenta uma narrativa na qual ela relaciona a água com o conhecimento de remédios,
e ainda, com o reconhecimento dos Xikrin diante dos bichos (espécies aquáticas), chama a
atenção a equiparação das perspectivas entanto que os bichos começam a ver aos Mebêngôkre

152
Esse conceito, que em outros momento tenho usado para designar uma concepção de tradição entre os Xikrin,
tem um significado amplo e difuso. Sendo ambíguo determinar uma tradução específica ao português. Dessa vez,
me parece que a definição que Lea (1986; 2012) dá para kukradjà, é próxima da análise que quero fazer aqui. A
autora entende esse conceito como um conjunto de tradições e conhecimentos intrínsecos às ações no mundo
Mebêngôkre. O qual, busca abranger bens materiais e imateriais, sendo necessário incluir aqui artefatos e enfeites,
partes do corpo, mas também, prerrogativas rituais como falas, cantos e nomes.
329

como parentes a partir da mediação entre Mrykaàk e Bepnhikrati. Ainda que ao começar o
relato se faça ênfase na primeira época, na qual os Mebêngôkre seriam inimigos dos seres que
habitavam na água, é só até que se dá o contato entre domínios partir do wayangá, que a relação
muda. Guerreiro (2012; 2015) mostra para os Kalapalo uma relação semelhante entre humanos
e peixes à descrita no relato de Giannini. Segundo o autor, para esse povo, os peixes são aliados
dos humanos em contraposição aos animais terrestres predadores como a onça, que vem a
ocupar um lugar de relação como o dos primos cruzados.

Por outra parte, Lux Vidal (1977, p. 221) apresenta uma narrativa semelhante à de Giannini
onde um xamã após sofrer queimaduras em várias partes de seu corpo, desceu na água e ficou
durante três invernos e três verões. Durante esse tempo, ele observou os peixes e participou de
cerimônias de nominação que aconteceram no fundo. Nesse relato não se faz menção direta ao
Mrykaàk, mas se descrevem pautas que demonstram que o wayangá morou nesse outro
domínio e criou alianças com os seres aquáticos. Após o período mencionado, o wayangá
voltou na aldeia e chegando no centro da praça (ipôkri) começou a dançar um tipo de dança
que ninguém conhecia, logo chegando na casa da sua irmã deu os nomes Bekwe-bô às mulheres
e Be-tuk-ti aos homens que eram seus tabjuos. O período que o xamã passou no fundo do rio
foi uma etapa de aprendizado onde ele conseguiu através de alianças as danças e os nomes que
depois deu aos seus tabjuos, o que representa hoje as cerimônias de nomeação Bep.

Nesse sentido, o wayangá representa um mensageiro de kukradjà, através dele os Xikrin teriam
acessado a múltiplos conhecimentos que constituem parte da coluna vertebral da sua ordem
social e ritual. A respeito da narrativa de Giannini (1991, p. 92) é pertinente se perguntar ainda
pela forma em que a relação de aprendizado é dada, observando não só a posição do wayangá,
senão também a do Mrykaàk. Em um primeiro momento Giannini descreve ele como um dono-
controlador que possui autoridade sobre os peixes, além de ser visto como um ser que lança
feitiços podendo causar a morte.

Além disso, pode entender-se através do relato que Mrykaàk tem a faculdade de transitar entre
vários mundos ou domínios, já que para contatar os Xikrin e manter uma relação direta com os
peixes seria necessária ter a capacidade de ver além de uma única perspectiva. Desse modo,
pode ser entendido que o Mrykaàk é também um wayangá, o que leva a experiência do contato
entre as partes a um âmbito de interlocução entre xamãs: estamos face a um cenário no qual o
diálogo é feito de forma horizontal entre wayangás, o dos Xikrin e o do domínio aquático.
Sendo essa uma condição necessária para que haja aprendizado.
330

A origem dos nomes Bep e ainda os cantos e danças são aspectos que são compartilhados a
partir de um encontro de perspectivas variáveis entre wayangás. Ademais, o xamã Xikrin
também pode ensinar ao xamã do outro domínio. O uso de plantas apresenta uma condição
nesse sentido, pois constitui um campo de compartilhamento de conhecimentos entre seres nos
domínios cósmicos. Por exemplo, é comum o uso do fumo e o cachimbo como meio de
reciprocidade, o que representa também o ensino de uma forma específica de lançar feitiço e
encantamento, ou melhor, um uso específico de um tipo de planta.

O campo das plantas medicinais também está direcionado no mesmo sentido, pois o leque de
usos, seja como feitiço ou como remédio, está supeditado ao ensinamento que os seres
cósmicos, os donos e as próprias essenciais vitais das espécies mry ensinam ao wayangá. Na
cosmologia Xikrin, é comum encontrar relatos que se relacionam com o adoecimento do corpo
e a alma através do contato com certos animais venenosos ou o consumo de carne de mry. Para
esses casos, existem remédios específicos (bà kam pidjú) que foram ensinados pelos próprios
seres (animais) como presente para os wayangá153. Por exemplo, se alguém consumir anta
(kukrut) e começar a passar mal, dor de barriga -mas também dor de cabeça- e se sentir fraco,
é visto como uma afecção vinda do akré e karón do kukrut (ver o segmento akré e karón para
aprofundar a respeito), sendo necessário usar a planta conhecida como kukrut kane (remédio
para dor da anta). Assim, respetivamente para múltiplas espécies, principalmente os mry,
consumidos com frequência.

Devo agregar ainda uma questão quanto aos cantos, dessa vez transcendendo o âmbito da caça,
mas sendo fundamental para entender mais um pouco sobre os patamares de aprendizado aos
quais um wayangá tem acesso. Ao se destrinçar um canto154, é possível compreender um pouco
sobre a trajetória dos antepassados Xikrin na floresta, mas também na agricultura, é recorrente
o uso de expressões que se referem a animais, plantas e seres. Quando se faz no âmbito de uma
cerimônia se traz consigo uma narrativa ao mesmo tempo que se declara um nome herdado,

153
Nas narrativas dos Xikrin, os primeiros a aprender sobre o uso de plantas que evitam o adoecimento por animais
e entidades da floresta foram os wayangá. Não obstante, é explícita a menção de que esse conhecimento não ficou
apenas neles, sendo repassado aos sobrinhos e netos dos wayangá. O quais, sem serem xamãs, começaram a
dominar o uso de plantas especiais após atingirem uma idade avançada (os novos não poderiam usar as plantas,
pois correm o risco de adoecer). Essas pessoas que, sem serem xamãs, usam plantas da floresta, são conhecidas
como pidjú-mari.
154
Acessar ao entendimento de um canto consiste num desafio etnográfico enorme, isso porque os cantos são na
sua maioria relatos antigos carregados de fonemas e expressões linguísticas em desuso, são poucos os Xikrin de
gerações recentes que conseguem entender uma expressão desse caráter, no caso do meu tradutor, ele entende
apenas alguns apartes, quando solicitei para ele traduzir algum canto entoado pelos velhos da aldeia consegui
perceber que apesar de certas repetições na entonação, existe uma rica variedade de letras dispostas para cada
contexto, cerimônia ou momento.
331

nome que irá ser outorgado a um tabjuo para o qual se esteja cantando. Esses nomes são na sua
base nomes de animais155, nomes de donos na floresta e nomes referidos a seres que possuem
karón156.

Em uma oportunidade o Txuak tentou traduzir um dos cantos (ngrere) entoados pelo Onça na
abertura de uma cerimônia Kwyrykangô realizada na aldeia Pytakô no começo de 2018, não
ficou claro se o canto consiste numa única peça ou está estruturado em dois momentos, mas
ele organiza-se mais ou menos assim:

Mandioca, eles plantam

Eles plantam, e comem

Vamos comer frutas ...

(nome pessoal) vai plantar mandioca

E ela crescer. Todos vamos dançar

Vamos ficar dançando...

Angrôre (caititú) vai comer

(nome pro angrôre) vai vir e comer mandioca

Todos vamos pegar e ele vai comer

Nós vamos comer...

De modo que os cantos – e a onomástica – Xikrin consiste numa herança xamânica vinda de
uma relação de aprendizado na qual se apresentam práticas antigas e se faz menção direta a
certos seres da floresta, principalmente mry (espécies comestíveis). Eles são uma ferramenta
para demonstrar o vínculo que existe com a mata e a relação histórica de alianças e conflitos
que ali acontecem, fora de que são usados como elemento recriador de uma memória que busca
chamar a atenção sobre o que tem mudado.

155
Turner (1991; 1993) sugere que as cerimônias sejam atos coletivos destinados a socializar ou domesticar o
caráter selvagem da floresta.
156
Para uma descrição detalhada dos nomes descritivos, sua onomástica e sua relação com o mundo florestal, veja
o capítulo 2 da dissertação de Isabelle Giannini (1991).
332

Âmbitos de relações xamânicas: bélicas

Finalmente, quero apresentar um terceiro âmbito de relações xamânicas que esteve mais
presente no meu campo e que me parece configurar um introito dentro do sistema de relações
xamânicas possíveis entre os Xikrin, esse refere-se ao âmbito das relações bélicas. Até aqui
vim tratando de contextos de relações mais flexíveis dentro do xamanismo. No entanto, no
contexto dos povos do Médio Xingu a abordagem da relação de negociação deve ser vista junto
ao campo das vias de fato, ou seja, no campo da guerra. Os estudos de (Seeger, 2014[1981]) e
(Giannini, 1991) esboçam amplamente a respeito da ambivalência entre uma figura xamânica
negociadora e uma figura guerreira.

No contexto específico dos Mebêngôkre, me parece que existe um leque de ação xamânica, em
coerência com a trajetória histórica das cisões que apresentei no capítulo 1, o qual traceja pelo
âmbito da guerra, colocando o xamã como um personagem que contribui não só desde a
perspectiva das permissões, as alianças e as prevenções, senão que dá relevância ao papel que
este tem nas incursões bélicas. Nesse sentido, Turner (1988; 1991) traz como elemento
revelador aquilo que ele chama de guerra invisível para identificar o papel do wayangá como
personagem ativo nas expedições guerreiras. Indo além, é válido notar que essa função
transcende o âmbito terrestre e se coloca no cenário dos domínios de seres que só ele pode ver
e a manipulação de forças que só ele consegue direcionar, por vezes, vistas como feitiços.

Onça traz uma narrativa que constitui um contraponto ao relato de Giannini (1991) a respeito
da aliança entre o Mrykaàk (xamã do domínio aquático) e o Bepnhikrati (xamã dos
Mebêngôkre), que como apresentei acima, instaura a relação de aprendizado quanto ao uso de
plantas que curam, nomes e estilos de cantos.

Metumre (antigamente...) o pessoal de uma aldeia juntou tudo. Homens tox (fortes)
decidiram ir para igarapé e pegar peixe. Foi mulher junto, foi velho, tinha um
wayangá, foi tudinho. Pessoal pegou na mata cipó e foi juntando muito na beira do
igarapé. Tinha muito peixe, dava para ver eles pulando na água, era muito peixe que
tinha ali, dava para todo mundo pegar. Os homens começaram a bater o timbó na água,
bateram, pouh...pouh... mas não pulou nada fora da água, o peixe sumiu, ninguém mais
pegou nada, tudo foi embora...as mulheres ficaram tristes e as crianças adoeceram.

O wayangá ficou zangado e foi lá e começou olhar, olhou primeiro em cima viu que
não tinha nada, ele enxerga além do que o pessoal, então ele foi para o fundo. Desceu,
foi lá procurar no fundo. Lá que ele viu, tinha outro wayangá, wayangá-mekarón, ele
333

cuida dos peixes. Ai que o wayangá viu que o outro estava segurando os peixes e falou
“vou trazer nkrut (tracajá) e tirar você daqui”.

Wayangá Mebêngôkre falou – bora tirar esse daí porque ele está segurando os peixes,
senão tirar ele vai vir e botar kaprem (feitiço) em nós. O wayangá foi embora e pegou
um nkrut que andava perto do mato, esse tipo de tracajá (nkrut) não é do mesmo que
tem na água, ele é diferente, de cabeça vermelha... então pegou esse nkrut e trouxe
para beira do igarapé e mostrou para os homens, todos os homens vieram e olharam o
tracajá, deixou o tracajá perto. Depois desceu e lutou, pegou o mekarón-Bep e foi
trazendo-o para superfície aos poucos, foram lutando. Puxou o wayangá peixe fora da
água e mandou ele longe, ele foi dar lá bem longe do igarapé e sumiu. Depois disso
veio muito peixe, apareceu peixe para todo canto na água. Os homens voltaram a bater
timbó e as mulheres pegaram muito peixe, todo mundo comeu. Parou a doença, todo
mundo ficou alegre.

Wayangá Mebêngôkre e wayangá dos peixes (Mrykaàk). Narração de Bep Tok.

Tradução de Txuak.

O relato mostra como se configura uma outra forma de relação xamânica na qual o wayangá
adota uma postura bélica como via de resolução de um problema. A intermediação aqui é
limitada e a passagem do xamã para o mundo aquático acontece apenas durante um período
breve com o propósito de enxotar o outro xamã e garantir a pescaria para seus aliados formais.
O wayangá vira um sujeito de guerra, por isso traz consigo os guerreiros Xikrin para lhe
fazerem guarda enquanto acontece a disputa pelo acesso aos peixes. O tracajá, aparece como
uma figura de proteção, um aliado na guerra invisível que evita o adoecimento ou
enfraquecimento dos homens. No relato de Mrykaàk que é apresentado por Isabelle Giannini,
a construção de uma aliança é o que dá sentido ao trânsito do wayangá entre domínios. No caso
do relato que eu apresento, é a manutenção de alianças a priori e a consecutiva predação dos
outros, no caso, os peixes e seu dono. Em outras palavras, a necessidade de consumar o ato de
andar na floresta e bater timbó que foi planejado com seus afins Mebêngôkre, e, no qual, ele
tem parte. Recriando a confiança que lhe foi dada.

O que mais chama a atenção do relato de Giannini para a versão de Onça, é a aparente inversão
no conteúdo, se por um lado se estabelece uma relação de aprendizado, por outro, é uma relação
bélica, no primeiro caso o wayangá é um diplomata, no segundo, é um mensageiro da guerra.
No entanto, num contexto amplo, o wayangá opera como mediador nos dois casos
334

apresentados, já que no último relato o wayangá lança uma advertência antes de proceder com
a luta: “trarei o tracajá, irei te tirar daqui...” a advertência opera como um dos princípios da
relação.

Vale se perguntar se no mito do wayangá e angrô existe também uma relação bélica, já que
como mencionei, os porcos sabem que estão indo para a guerra, aceitando acompanhar o
Bakrantú motivados pela sede de vingança. Em princípio, poderia existir esse tipo de relação
de forma periférica, embora, a negociação não deixa de ser o eixo dessa história, já que a
diferença do relato dos peixes onde o wayangá Xikrin se aproximou do outro mostrando uma
figura hostil; no caso dos angrô, o wayangá agiu através de uma figura social, misturando-se
entre o bando, conversando com os velhos e ainda indagando pelos nomes dos queixadas mais
novos.

Acredito que os três âmbitos de relação que apresentei constituem formas possíveis de
interação xamânica, servindo como via de aproximação aos cenários de representação na
cosmologia Xikrin. Do mesmo modo, aplica-se para as práticas xamânicas no cotidiano,
inseridas principalmente no ato que se conhece entre os Mebêngôkre como bà kam tem o qual
indica mobilidade pelo mato. Com isso não pretendo limitar as possibilidades de análise do
xamanismo nos Xikrin e de forma extensiva nos Mebêngôkre. Pelo contrário, me parece que a
minha proposta serve como um grande esboço que eventualmente permite a inclusão das
múltiplas manifestações que emergem da experimentação suprassensível ao longo dos
domínios visitados pelos wayangá, pudendo ser inteligíveis através do campo da aliança e a
guerra, estando no meio a possibilidade de negociar e aprender no decorrer da experiência.

Os seres intangíveis da socialidade Xikrin

Até aqui explorei o xamanismo a partir das premissas dos domínios, as funções e as relações
possíveis nos campos cósmicos Mebêngôkre. Ainda falta dedicar uma análise mais profunda
aos seres com os que o wayangá se relaciona. Entende-se que as relações xamânicas são
possíveis apenas através da visão, portanto, é necessário conhecer os personagens aos quais é
possível acessar quando se possui essa capacidade sensorial aguda.

Dedico a minha análise principalmente ao âmbito da floresta (bà), pois independente de se esta
constitui apenas um tipo de cenário ligado ao domínio terrestre como bem explorou Giannini
(1991), é nesse espaço onde acontece talvez o maior número de atividades referidas ao
335

xamanismo, além de ser, o cenário que motiva a caça, objetivo principal de análise. No decorrer
do texto tenho indicado já alguns elementos que servem como ponto de partida para supor a
existência e o tipo de seres que integram o mundo cósmico, dessa forma pode ser dito que
donos, espíritos, animais e mortos são parte desses cenários, cabe agora fazer uma aproximação
começando pelos donos.

É complexo falar de donos no contexto dos povos amazônicos, já que o conceito abrange um
amplo leque de significados, ao se falar de dono no sentido amplo, seria necessário contemplar
como indica Fausto (2008) e Guerreiro (2015; 2016), a posse e propriedade sobre objetos,
coisas e lugares; a maestria e especialização em conhecimentos, cantos e rituais; o cuidado e a
responsabilidade sobre animais entre outras formas de manifestação de domínio,
conhecimento, cuidado e prevenção157. Para os Xikrin, uma análise profunda sobre o conceito
de dono, deveria contemplar essas premissas, pois assim como pode haver donos de objetos e
artefatos, também há donos de cantos, falas e rituais. Não obstante, meu objetivo aqui é analisar
os donos que agem nos domínios cósmicos e como produzem agências concretas. Digo isso
porque quero centrar à minha análise apenas nesse último aspecto, buscando me debruçar sobre
os donos-controladores dos animais de caça na floresta, o quais influenciam a experiência de
caminhar dos caçadores.

Dentro do xamanismo Mebêngôkre, falar de donos faz sentido sempre que seja considerado
um marco de alianças e inimizades que opera de forma intrínseca na ordem social, portanto, é
necessário observar aos donos de outros domínios cosmológicos dando atenção aos parâmetros
de controle, proteção e negociação. Num mesmo sentido, para Kohn (2021e), o âmbito dos
donos mestres surge como o campo de entrelaçamento na floresta. A partir dali, é possível
encontrar um complexo heterogêneo de relações entre os Runa, os animais, os espíritos dos
mortos e ainda os donos: “Este domínio etéreo de continuidade e possibilidade é o produto
emergente de toda uma série de relações trans-específicas e trans-históricas, É o produto do
peso imponderável de tantos mortos que tornam possível um futuro vivo.” (Ibíd, p, 218).

Quanto aos donos-controladores, Giannini (1991) volta a aparecer como a pesquisadora que
talvez tenha dedicado maior atenção ao xamanismo entre os Xikrin, trazendo consigo
elementos valiosos sobre os distintos seres que povoam os chamados domínios cósmicos. A
autora identifica em cada domínio (terrestre, aquático e celeste) um possível dono-controlador

157
Também os trabalhos de Bonilla (2005a); Fausto & Heckenberger (2007); Cesarino (2008; 2010); e Costa,
(2013) abordam amplamente as múltiplas facetas da noção de dono para os povos ameríndios de terras baixas.
336

que intervém como um ser que regula moralmente a ação predatória dos humanos, sendo que
em alguns casos estes seres criam alianças com os humanos permitindo a predação limitada.

A autora apresenta primeiramente o Akrãre (1991, p. 78) definindo-o como um dono ligado ao
mundo terrestre com domínio sobre os mry158, animais de caça, este ser se especializa em lançar
feitiço (kaprem) para quem altera a ordem na floresta. É importante destacar que o feitiço é
lançado através da carne de caça, ou seja, consumir carne afetada pelo Akrãre se relaciona com
doenças por feitiço, podendo causar a morte (Ibid., p. 79).

Viveiros de Castro (1977) demonstra que o sangue constitui uma substância altamente
perigosa, pudendo causar doença ou então deixar o corpo vulnerável para ser afetados por
outros seres ou forças. O autor explica que para os Yawalapití o sangue de animais predados
possui flechas que podem afetar aos humanos através da ingestão de carne. Dali a importância
de moquear ou assar a carne, sendo a forma de eliminar qualquer tipo de substância que possa
virar feitiço. Nesse aspecto é comum encontrar uma relação com outros povos amazônicos que
determinam a importância do consumo da carne após passar pelo fogo, ou mesmo pelo intenso
calor. Vale dizer que este fato está diretamente relacionado com a eliminação do sangue e a
relação que este tem com o conceito de vitalidade ou energia vital. Nesse mesmo sentido Garcia
(2011, p.110) aponta sobre os Guajá que os mal-estares dos feitiços são repassados através das
substâncias, sendo que o sangue constitui um conduto de incorporação do princípio vital
referido à raiva, ira e dor de um morto, o ha’aera.

Existe aqui uma estreita relação entre o mito do fogo da onça e a condição da identidade
Mebêngôkre que bem tem explorado Turner (2017, p. 37), dado que o fogo constitui um
elemento separador do ser Mebêngôkre para com os outros seres incluindo a própria onça que
come cru. A carne cozida determina o ponto de quebra do que vem da floresta e faz parte dela,
com o âmbito doméstico e das alianças (Lévi-Strauss, 2004 [1964]). Passar a carne pelo fogo
ou simplesmente coser ela para eliminar o sangue faz com que a força primária no animal –
que pode ocasionar dano através do feitiço e a loucura (bibãnh) fazendo com que o ser
Mebêngôkre volte para um estado primário (predador absoluto) da floresta, evocado pela onça
– seja eliminado e dê passo ao componente doméstico e da comensalidade.

158
Giannini apresenta um duplo significado para a categoria mry, esclarecendo que, por um lado, esta define num
sentido taxonômico os animais terrestres de forma geral (os que não são aves nem peixes). E por outro, concerne
num sentido mais estrito aos animais contemplados pela caça. Nesse trabalho eu uso a segunda definição, embora
deva advertir que para os Xikrin do Bacajá, não existem os dois tipos de caça que a autora propõe: “mry mei” –
caça boa e “mry kakrit” - caça comum ou pouco valorada. Para os meus interlocutores, mry se refere a todo o tipo
de animal que é caça boa.
337

Ao consultar o Onça sobre o Akrãre, este o definiu como um “espírito que parece pássaro, anda
pelo mato, gosta de grota e pode provocar doenças contra os caçadores” – quando matam muita
caça. Pode ser dito que esse ser constitui um ator de supervisão no exercício da caça, agindo
quando o caçador antepõe a sua vontade predatória sobre qualquer outra questão moral (ver:
Fausto, 2008; Aparício, 2014, Almeida, 2013 & Garcia, 2018). No entanto, este não constitui
o maior perigo dentro do processo de bà kam tem e mry bi (matar um animal de consumo).

Após ter acompanhado múltiplas modalidades de caça em diferentes momentos do ano, com
diferentes propósitos e com vários atores, a maioria dos caçadores não demonstrou uma
preocupação tão considerável em relação à presença do Akrãre e seus efeitos, quanto à
possibilidade de encontrar algum karón. A maioria dos caçadores em Bacajá se preocupa mais
com a possibilidade de encontrar algum morto na floresta. Não que Akrãre não possua a
condição de karón (espírito), pois no sentido amplo ele entraria nessa categoria. No entanto, os
poucos caçadores que se animaram a abordar esse assunto deixaram claro que os karón aos que
eles temem primeiramente são os espíritos dos que já foram vivos e passaram por um processo
de morte, abordarei esse assunto com mais detalhes uma vez que acabe de apresentar o referente
aos donos controladores dos animais.

Ademais, dentro da mesma categoria do Akrãre é possível colocar o Mrykaàk, sendo este um
ser de índole dono-controlador / dono provedor que se ocupa mais do mundo aquático e os
seres e animais que ali habitam. O Mrykaàk é mais frequente dentro das narrativas Xikrin,
sendo possível achar ele em diferentes relatos concernentes aos wayangás, já descrevi em dois
momentos a sua figura: primeiramente, por meio do relato da Giannini foi possível reconhecê-
lo como um ser que, apesar de possuir uma grande capacidade para fazer feitiços, é também
um mestre que repassa seus conhecimentos e faz alianças se for gratificado. E, em um segundo
momento, mostrei como este é evocativo de relações bélicas onde se confere uma guerra
invisível entre wayangás pelo controle e consumo de peixes. De qualquer forma, o Mrykaàk
pode ser abordado como um dono estritamente cuidadoso e protecionista em relação aos peixes,
sendo necessário combatê-lo em alguns momentos para efetuar pescarias.

A respeito da forma que possui o Mrykaàk, Onça o descreve como um “espírito cumprido”,
uma espécie de cobra aquática que não pode ser vista normalmente – É claro, apenas os
wayangá teriam a visão necessária para enxergá-lo. Giannini (1991, p.91) apresenta este ser
através de uma ilustração elaborada pelo xamã Xikrin Nhiakrekampin, evocando uma espécie
de xenodon, altamente nociva nos seus feitiços lançados, causando febre na vítima e logo a
morte. A autora menciona que basta vê-lo para receber o feitiço, embora seja difícil enxergá-
338

lo por causa que mora na profundeza das águas. Mas isso não é uma barreira para receber um
feitiço, pois basta frequentar um lugar onde ele esteja, como realizar uma pescaria, para
adoecer.

Existe uma variação ao Mrykaàk, relacionada a um formato terrestre, habitante nas


proximidades de pequenas grotas ou baixadas no meio da floresta. Neste caso, os Xikrin o
relacionam com aparência semelhante a um tatu, com uma espécie de casco nas costas e
morador de cavernas. Tem o mesmo efeito da versão de serpente, adoecendo aos Xikrin quando
circulam nas proximidades do lugar onde ele se encontra.

Os dois seres até aqui mencionados são categorizados como seres com um amplo poder mágico
e de caráter indomável para os Xikrin, constituindo-se como seres míticos que ganham
protagonismo tanto nas narrativas que descrevem alianças, como nas que outorgam relevância
à capacidade bélica dos Mebêngôkre. Não obstante, é importante se questionar sobre o que faz
deles serem donos. É possível inferir que um dono possui um amplo domínio sobre os espaços
que habita, além de conter um grande potencial na prática da feitiçaria e encantamento.
Ademais, é implícito que os donos transitam entre espaços e domínios cósmicos, já que para
jogar feitiço ou controlar algum tipo de espécie eles vão e vem desde o lugar que habitam e o
lugar dos outros, manipulando formas, transmutando corpos e exercendo controle físico através
da proteção e da agressão. Nesse sentido, para ser um dono, é necessário ser um wayangá, ou
vice-versa. Akrãre e Mrykaàk, são donos enquanto são xamãs.

Por último, me permito apresentar mais um ser que pode ser problemático categorizar como
um dono-controlador, mas cumpre com um princípio que o determina como tal, ou seja, é
considerado wayangá. Me refiro ao Ok-Kaikrit, gavião-real. Ele pode ser considerado o mestre
dos xamãs Xikrin, sendo que dentro da cosmologia é indispensável ser iniciado por ele.

A iniciação xamânica está ligada ao mito que descreve as primeiras passagens na origem dos
Mebêngôkre, onde se descreve a descida do céu para a floresta que é ocupada na atualidade. É
possível outorgar uma referência locativa para esses acontecimentos, sendo que com frequência
se relaciona o leste ou o lugar onde nasce o sol. Vidal (1977, p. 18) descreve que os Xikrin do
Cateté localizam esse lugar ao leste dos rios Araguaia e Tocantins, encontrando-se ali uma
grande teia de aranha que desce do céu em direção à terra. A passagem através da teia leva até
a moradia do Ok-Kaikrit, ali o iniciante é furado na nuca pelo gavião-real que outorga
faculdades para o xamã começar a ver ou transitar entre outros mundos/domínios. O mito sobre
339

a iniciação xamânica, descrito em detalhe por Lux Vidal (1977, p. 18-22) aponta a dificuldade
para transitar nesse domínio, sendo perigoso que o iniciante não possa voltar.

A respeito do Ok-Kaikrit, este talvez seja o dono mais próximo dos Xikrin, sendo na maioria
dos casos um forte aliado. Através da sua ajuda os wayangá conseguem combater aos mekarón
(Vidal, 1977, p. 210), que representam talvez o maior temor para os Xikrin que vão à floresta.
Apesar de que o Mrykaàk seja uma fonte de conhecimento xamânico sobre o uso de plantas, é
só através do contato direto com o gavião-real que um Xikrin se torna wayangá. Aliás, segundo
a cosmologia Xikrin, o gavião-real é o primeiro ser a ocupar os céus, sendo que dele surgiram
as outras espécies Ak (aves) uma vez que os guerreiros ancestrais Kukrut-Kako e Kukrut-Uire
lhe deram morte, ao ir sacudindo as penas do gavião-real abatido, foram se formando os
diferentes tipos de aves.

Desse modo, acredito, como Giannini (1991a), que o gavião real constitui um dono. No entanto,
em oposição ao Akrãre e o Mrykaàk, este não lança feitiços sobre os Xikrin. Pode ser que isso
esteja associado a que ele não seja um dono-controlador, ou seja, um dono que prende, cuida e
regulariza às outras aves. Ademais, como apresento no capítulo 2, o consumo de aves para os
Xikrin é reduzido, limitando-se apenas a três tipos (principalmente mutum e jacu).
340

25. Prancha 10: Suprassensível


341

Prancha 15: Suprassensível

Foto 1: Os mekarón gostam das beiras dos rios e lagoas, ademais de transitar livremente durante
o período noturno. Assim, as atividades durante a noite nos rios são consideradas âmbitos de
perigo onde as fronteiras entre o sensível e suprassensível diminuem. Fogos-fátuos às vezes
aparecem durante a noite, podendo ser associados a um mekarón perambulando.

Foto 2: Após horas de esturrar e tentar imitar uma onça, Bep Tok permanece contido em si
mesmo. A espera durante a noite escura no Bacajá se assemelha a um período de transe onde
parecesse que a energia vital do imitador saísse por alguns períodos para circular na floresta
em busca “desse outro”, que veio seduzir.

2
342

Feitiços: Akré e karón

Abordar o sistema de prevenções e regulações que intervém no processo da caça implica


dedicar uma parte da atenção à magia que existe no meio do processo e que opera de forma
prática ao longo de várias etapas: a preparação, o deslocamento, o encontro, mas
principalmente a morte do animal, seu transporte e finalmente, seu consumo. É nessas últimas
três etapas onde se evidencia a capacidade de ação de donos e agências vingativas que podem
chegar a mudar o curso para um caçador Xikrin.

O âmbito da caça, assim como o da guerra, representa um confronto de pontos de vista, em sua
essência. A predação não é uma formulação ecológica unilateral onde apenas caçadores se
saciam de animais comestíveis, pois no âmbito das ontologias ameríndias é sempre factível a
possibilidade de uma contrapredação. Assim, um caçador que sai da sua aldeia e vai andar na
floresta, está se expondo a um contexto no qual outros-que-humanos possuem também uma
condição agonística. Os confrontos, que podem ter consequências físicas (histórias de acidentes
ou tragédias onde outro predador como uma onça, ou inclusive, um bando de queixadas,
feriram caçadores) abundam nos contextos da cinegética amazónica. Não obstante, o principal
confronto sobre os pontos de vista, é dado no âmbito dos ataques às essências vitais, tanto do
caçador como dos mry. Sendo nesse cenário onde acontece a emissão de kaprem-feitiços e
tendo como causalidade o resvalar na perspectiva do outro.

Mas, de que forma um caçador pode sofrer um feitiço na floresta? é preciso determinar que os
mry emitem kaprem quando a sua perspectiva é predada, ou seja, quando são abatidos. Sendo
essa via, a forma de kaprem mais frequente por ser uma constante incondicional no decorrer
das expedições. No entanto, o que faz com que os mry lancem feitiços? ou, quais são as
condicionantes que possuem para que isso aconteça? Diria que são duas: ao igual que os
Mebêngôkre, os mry possuem karón e akré. Começarei pela segunda.

Akré corresponde a uma categoria intrínseca da pessoa masculina Xikrin, característica dos
homens em sua fase mais agonística (menoronure, mekranure ou então homens em período de
guerra), representada por valores como a raiva, a força, a ira e a valentia (a categoria inversa a
essa é uabó: uma pessoa que é medrosa, mansa, fraca e que carece de qualidades
expedicionárias). Nesse sentido, disse Gordon (2006) que os Xikrin hoje podem considerar-se
mais uabô e menos àkrê do que foram um dia. Mas é porque, justamente, esse é um processo
infinito e de mão dupla, que lhes ocorre desde o princípio dos tempos. O autor diz: “sua história
343

pode ser vista, a partir do momento em que puderam tornar-se àkrê, como um contínuo deixar
de ser akré̂, não deixando nunca de o ser” (Ibíd, p.231).

Encontramos que o Akré integra a noção de pessoa Xikrin sendo repassado de forma
hereditária, o que faz com que seja possível encontrar algumas pessoas com maior akré do que
outras, e por vezes possua melhores capacidades guerreiras. Nesse mesmo sentido Rosaldo
(2000, p. 25) destaca como a ira junto às incursões guerreiras fazem parte da reprodução de
valores sociais dos Ilongot, fazendo com que deem continuidade a um conjunto de emoções
que de outra forma se contraporiam, por exemplo, a ira é uma forma de equilibrar a tristeza.

Para Uirá Garcia (2018) a raiva é definida como ha’aera entre os Guajá, destacando-se como
um dos elementos que junto ao princípio vital- hajtekeera e o corpo-ipirera integram o ser. Nos
Xikrin, esta classificação do autor é relativamente orientada dessa forma, já que o akré
configura o princípio da força, traduzido em raiva e sendo intrínseco ao caráter guerreiro.

Por outra parte, Akré não se limitando apenas ao âmbito dos valores guerreiros, pois como
acrescenta Cohn (2000, p.94) esse elemento se manifesta também na política, sendo necessária
para a oratória que um chefe Mebêngôkre deve exercer sempre. É claro, um benadjwyry deve
possuir força, valentia e coragem, mas também, generosidade, oratória e cantos. A autora
também destaca a já mencionada contraposição entre akré e uabó: “(...)Um homem que não é
feliz na caça ou não vai com a frequência necessária a ela é uabô. Além do mal caçador, ele
indica também o guerreiro que não é bravo (ou corajoso) e o homem que não fala publicamente
(Cohn, 2000, P.90)”.

Assim, os Xikrin identificam a fúria como um valor necessário, mas que deve ser controlado,
do contrário existe o risco de voltar a um estado primário, ou melhor, a um estado selvagem
onde não se possuía o fogo, onde se comia cru e se matava uns aos outros sem controle. A
onça, por exemplo, após perder o fogo para os Mebêngôkre (segundo o relato mítico), passou
a comer cru, possuindo sempre uma concentração de akré desbordada.

Ademais, o akré é uma condição inata que está sempre instalada no corpo. Uma vez me disse
o mebenget Bep Joti, a respeito da sua velhice: “akré sempre esteve aqui... nunca foi embora,
está aqui”, indicando que na sua senectude ele pode incorporar akré. Âmbito que para o caso
dos mebenget, deve ser visto principalmente como motor das suas falas, cantos e danças. Esta
344

qualidade, como tenho indicado é repassada de forma substancial159, assim, não deve
confundir-se com as skills que como demonstrarei no capítulo final, são um principio adquirido
pela experiencia e mobilidade dos homens ao longo de suas vidas. Para os menoronure (homens
adolescentes, caçadores noviços) o akré não é adquirido, e sim, potencializado pela experiência
de andar na floresta. Ademais, o akré deve ser contido para não extrapolar outros princípios
vitais, sendo liberado apenas em momentos específicos onde deve imperar o caráter predador,
como na caça e na guerra ou na fala, no caso da política.

Quanto aos mry (animais de caça) estes também estariam investidos de akré, só que, ao
contrário dos Xikrin, não conseguem regulá-lo ou suprimi-lo, vivem numa espécie de “akré
puro” indo e vindo pela floresta, alimentando-se de coisas cruas, de presas ou mesmo de
carniça, acometendo contra outras espécies aleatoriamente e se colocando em risco de morte
constante. Ao indagar pelos mry, sendo na sua maioria herbívoros terrestres (ver figura 7), o
que se observa é que estes estão dotados de akré, embora em quantidade inferior à dos animais
carnívoros e predadores, como os felinos.

Disse Gordon (2006 p. 218-227) que os Xikrin se encontram num processo de mão dupla, onde
a condição akré e a condição uabó operam de forma contínua num processo de redefinição
constante onde é necessário ser pacífico e ser beligerante num mesmo contexto histórico.
Ademais, Gordon comenta que a supressão do akré garante a consolidação de alianças,
permitindo os laços de parentesco, condição básica para a reprodução da ordem social
Mebêngôkre. No entanto, me parece que não fica claro se para os mry a condição das alianças
fica vedada por causa do akré liberado, já que o que nos demonstram mitos clássicos como o
“fogo da onça” (Turner, 2017), ou mitos mais restritos como o do “wayangá e ngrú” que
apresentei acima (pág. 301) é que as alianças constituem um eixo fundamental para as
sociedades multi-espécies. Por exemplo, no mito do fogo da onça seria impossível pensar numa
interlocução entre o moço menoronure e a onça e entre a onça masculina e sua mulher, a onça
feminina, se não fosse XYZ; assim como seria inviável a mediação xamânica entre domínios e
mundos, sem que o wayangá se vincule através de alianças e nomes herdados dos seres da
floresta.

Voltando no assunto da feitiçaria e doença e sobre como esta é repassada pelos mry que habitam
a floresta, pode considerar-se o akré como a fonte do acontecimento. É através da liberação

159
Algumas pessoas possuem mais akré do que outras, herdado pelas condições de seus progenitores. Por
exemplo, espera-se que o filho de um chefe orador, ou, de um guerreiro reconhecido, possua maiores qualidades
oratórias ou expedicionárias em relação aos seus semelhantes da mesma geração.
345

absoluta da raiva quando o mry morrer para o caçador, que se desencadeia o ato que pode
acarretar num conflito maior. Consiste num processo de vingança, já que após a morte,
contrário a desaparecer, o akré sofre uma provocação que lhe insta a ir atrás de quem acabou
com a forma material do ser, podendo lhe contaminar no ato da morte ou na posterior ingestão
do sangue. Por isso num primeiro momento é importante que o caçador evite carregar a presa
e deixe para outro essa função, ou mesmo se for necessário que ele a transporte, é importante
realizar uma limpeza provisória extraindo as vísceras, lugar onde existe a concentração de
akré160. Já em outro momento, é essencial que a carne seja moqueada ou mesmo assada, pois
como mencionei acima, o sangue é o conduto que transfere o feitiço.

Cabe ainda uma questão a ser colocada, como se manifesta o kaprem (feitiço)? O ataque de
uma energia vital imbuída pela raiva é principalmente patológica. Garcia (2018) analisa para
os Guajá que a manifestação da raiva das presas abatidas, o ha’aera, é uma das causas dos
males a acometer um caçador e a sua família: “uma forte dose de ha’aera vindo de uma
vingança, é capaz, inclusive, de expulsar o hajtekeera (princípio vital) do corpo e deixar em
troca o panemuhu- doença” (Ibíd, p. 522). A perda da consciência e a desconexão da pessoa
do seu princípio vital, vem em muitos casos da contrapredação numa expedição de caça. O
akré lançado por vingança teria o mesmo efeito nos Xikrin, sendo relacionado com a loucura
(bibãnh), no entanto, parece não estar diretamente implicado no azar do caçador.

Ao ser abatido um mry (o qual implica no apagamento da sua energia vital) o akré é liberado e
direcionado como forma de vingança, dando como resultado uma disputa de perspectivas que
se traslada ao patamar do inconsciente. Dessa forma, o contato direto com o akré consiste num
processo experiencial que leva por princípio a imposição de um self sobre outro: fazer adoecer
ou causar a loucura é apenas a manifestação de que outro ser está disputando seu lugar no corpo
de uma pessoa.

Aqui é fundamental a intermediação do wayangá, já que ele é o indicado por excelência para
mediar nessas situações. No entanto, não deve se confundir a ação do xamã com a do
curandeiro-mari161, já que este último fazendo uso do seu conhecimento em plantas nativas,

160
Essa prática tem duas conotações, por um lado faz com que a maior parte do akré fique no mato sem muitas
possibilidades de ir atrás do caçador. E por outro, consiste numa técnica que alivia o peso do bicho morto,
facilitando os deslocamentos com a carga. Uma vez tentei calcular o peso de um porcão com e sem vísceras,
percebi que a diferença tem uma média de 8 a 10 quilos.
161
A categoria mari corresponde a um tipo de conhecedor de plantas que servem para curar dores no corpo e
aliviar feridas. Não necessariamente alguém que é mari tem a ver com a categoria wayangá, já que a manipulação
de remédios da floresta é um conhecimento que pode ser operado por qualquer um que saiba ou tenha herdado
essa maestria. Não é necessário um chamado nem uma iniciação xamânica para exercer a prática. No caso de
Pytakô, por exemplo, algumas vezes o Onça foi procurado por uma mulher com uma criança doente, para que lhe
346

tenta mitigar doenças relacionadas com dores no corpo. No caso da ação do wayangá, este
procura a cura da doença com plantas e cantos a partir da tentativa por equilibrar a perspectiva
da pessoa: procurando sempre enxotar a perspectiva alheia e trazendo de volta a própria, o
wayangá é capaz de trazer o karón (alma) ao lugar que lhe corresponde.

Adicionalmente, vale entender melhor no que concerne o princípio vital que possui cada ser e
que possibilita que o kaprem (feitiço) seja operado por akré. Para os Xikrin, ademais do akré,
toda pessoa se compõe de um corpo físico (ngàikrã) (pele, cabelo, órgãos). Esse corpo age
como suporte do karón, princípio vital que talvez poderia ser traduzido ao português aqui como
espírito/alma162. Ngàikrã e karón são recíprocos: o karón é aquilo que faz com que o ngoikrã
(corpo) se movimente, ainda, ocupando um lugar específico uma vez que o ngoikrã-corpo é
deixado. Em outras palavras, o corpo se movimenta enquanto tiver o karón, mas o karón é
passível de deixar o corpo e continuar se movimentando.

Se para os Xikrin, donos como o Akrãre, Mrykaàk e Ok-Kaikrit estão inscritos num contexto
pouco frequente, o que acaba fazendo com que estes sejam principalmente lembrados por vezes
nas narrativas dos mebenget/i; os karón, por outra parte, animam bastante o dia a dia dos que
começam a frequentar a mata, refiro-me principalmente aos homens das categorias de idade
menoronure e mekranure, mekrare, mekrarere-tum e às mulheres kurêrêrê e mekrapõyn, pois
os velhos mebenget/i rara vez abandonam a aldeia e as roças coletivas. É comum escutar às
noites enquanto se reúnem as pessoas no rõpte (quintal das casas) para confraternizar ou
simplesmente descansar, que alguém viu um karón durante uma expedição, ou que um karón
estava perto da trilha seguida pelos caçadores, entre outros relatos cotidianos.

subministrasse um unguento. Apesar de não puder afirmar que ele era um mari, quando consultei um outro
interlocutor, este me disse que o Onça era.
162
Energia vital e karón são apresentados como aspectos diferentes por Giannini (1999), já que a autora relaciona
a vitalidade com o “kadjuo”, que inclusive, seria um elemento localizado no fígado e em desenvolvimento com o
crescimento do corpo, possibilitando o aprendizado. No entanto, Clarice Cohn (2000) faz uma crítica
argumentando que essa categoria não tem relação com o aprendizado, ademais, sendo os olhos e ouvidos os órgãos
definidos para esse fim. No mesmo sentido de Cohn, eu nunca ouvi os meus interlocutores se referirem ao kadjuo
como princípio que sustentaria a vida e possibilitaria o acionar do corpo. Ao indagar pela composição da pessoa
me deparei com o corpo (pele, sangue, órgãos), akré e karón (força de vida, alma): um Xikrin é determinado a
partir do equilíbrio destes, a falta de um, implica a ausência do outro, e, portanto, a impossibilidade de estar vivo
e pleno. Fisher (1991) define a composição da pessoa a partir de karón, corpo e conhecimento cultural, dando ao
último a conotação de exercer o kukradjà.
347

Os mortos

Até aqui vim apresentando como o akré é a substância presente no confronto entre o caçador e
os mry, correspondendo a um fluxo de energias e substâncias que tem como resolução a
supressão da subjetividade de uma das partes. Não obstante, o karón como princípio vital
abrange vários cenários da vida do ser Xikrin, sendo necessário abordar este assunto a partir
da compreensão que os Xikrin têm da morte e o que corresponde ao post-mortem. Ainda que o
karón esteja ligado ao akré e ao ngoikrã, é só ele, o karón, o que permanece quando um Xikrin
falece, tendo como propósito inicial ir à procura da metuk nho puká ou a aldeia dos mortos,
mas circulando sempre entre múltiplos espaços como mostrarei a seguir.

Nesse sentido, a respeito dos Krahô, uma sociedade Jê, Manuela Carneiro da Cunha (1978)
indaga sobre o significado do sistema funerário e sobre como este contribui na definição da
pessoa krahô, assim, a autora irá dar atenção para o sistema de representações que determinam
o papel do morto na ordem social. Manuela apresenta seu trabalho em contraposição à tradição
antropológica britânica de análise dos sistemas funerários que determina o legado e a passagem
como um foco de análise. Para os Krahô, disse a autora, o morto não é mais a pessoa que foi,
este se reconfigura sendo definido como um extremo da alteridade da sociedade da qual já fez
parte, recriando relações hostis com os vivos.

Os mortos, segundo a autora, não são mais seres sociais, pelo contrário, evocam uma figura de
solidão e individualismo exacerbado, isso pode ser corroborado na forma como a aldeia é
configurada, pois a diferença das aldeias Jê onde existe ipôkri - uma praça no centro destinada
ao âmbito público e da interação comunitária; na aldeia dos mortos esse lugar é vetado (ibid.,
p.124-125). Nos Xikrin é possível encontrar vários elementos que dialogam com o estudo de
Carneiro da Cunha, principalmente no que se refere à rede de relações hostis e defensivas que
os Xikrin determinam com os mortos na tentativa de evitarem que os karon voltem para a
aldeia.

Contudo, Rodrigues (2017) descreve como nas narrativas dos Kayapó da aldeia Kapoto é
possível encontrar alguns elementos que podem ajudar a pensar numa possível sociabilidade
dos mortos. Segundo o autor, a aldeia dos mortos é uma representação alinhada da aldeia dos
vivos, estando presente um intercurso geracional: “inclusive, no ciclo de vida, onde as crianças
cresceriam e morreriam, transformando-se em redemoinho. Estas aldeias localizam-se,
segundo os informantes, no alto das montanhas e existem três perto da aldeia Kapoto (Ibíd,
2017, p.138).
348

Um dia, um interlocutor chamado Bep Kanhê, contou-me uma experiência que teve no caminho
para o rio Bacajá. Ele disse que na beira de uma área alagada pela temporada de chuva
encontrou duas mekrapõyn (mulheres novas solteiras), uma delas, usando como reflexo a água
da lagoa, penteava seu cabelo e tirava algumas sujeiras dele, enquanto permanecia com certa
passividade; a outra mulher, pintava a sua companheira (ók). O meu interlocutor curioso e
achando estranho, pois apesar de lhe parecerem personagens familiares, percebeu que era uma
situação não usual, decidiu se aproximar. Logo percebeu que a cor da pele delas era pálida.
Sentindo-se intimidado, ele deu uma volta para trás e continuou seu caminho sem deixar de
reparar nos detalhes da pintura que as mulheres tinham e que uma delas estava registrando na
pele da outra.

Bep Kanhê deu ênfase no seu relato sobre a aparência das mulheres, afirmando serem iguais
aos vivos Em seguida, mencionou: “assim como nós (...) os mortos também fazem, eles se
pintam, eles raspam a cabeça, eles gostam de dançar e de se enfeitarem (...)eu nunca tinha visto
mekarón, mas esse dia vi, eles são iguais a nós, e eles também têm uma aldeia para eles”.

Sobre a metuk nho puká (aldeia dos mortos) os Xikrin a descrevem como um lugar com muitas
casas, também dizem que a aldeia se encontra muito longe sendo difícil chegar até ela,
inclusive, os mortos devem ser motivados a continuar o caminho até chegar nela, por isso são
colocados em alguns casos alimentos no túmulo e acendido um fogo às tardes163, para que o
mekarón se alimente e não sinta frio, podendo ficar fortalecido para viajar até sua nova aldeia.
Vidal (1977, p.171) menciona que a aldeia dos mortos se localiza sempre a leste, de forma que
os mortos são enterrados direcionados para essa localização com o propósito de ajudá-los na
orientação.

Porém, os mortos constituem para os Xikrin um motivo de preocupação e tabu relacionado


principalmente à sua constante presença nos lugares que são transitados pelos vivos. Apesar
dos mekarón possuírem uma aldeia para eles, parece que permanecem numa constante variação
de lugares. A figura do karón é evocada de várias formas pelas diferentes categorias de idade,
as crianças mẽkukuero (que apenas engatinham) são amedrontadas pelos parentes a não irem
longe dos âmbitos domésticos com o propósito de evitar serem raptadas164, as mulheres

163
Essa prática tem sido frequentemente executada pela Irengrî após o falecimento do Onça. Quando me relataram
sobre isso, ela já completava mais de seis meses acendendo uma fogueira às tardes perto do túmulo de seu marido.
164
A respeito da primeira idade das crianças, vale mencionar que Cohn (2000, p.88) no seu estudo sobre a infância
Xikrin, encontra que corpo e karón da criança estando em estados prematuros são altamente suscetíveis de ser
afetados: as mulheres, normalmente as kwatui-avó, passam horas aquecendo suas mãos no fogo e dando
massagens no corpo e cabeça da criança para ajudar na formação, já que no momento do nascimento a criança
não viria com a formação corporal acabada; quanto ao karón da criança, ela possui este desde um primeiro
349

mantêm um certo receio e cospem quando passam perto de um cemitério. Os homens


igualmente cospem em ocasiões nas caminhadas pelas trilhas na floresta como forma de rejeitar
os karón. Fisher (1991) explica que os cachimbos são também usados com esse propósito.
Além de satisfazerem a vontade de fumar, a fumaça é vista como uma forma em que os
caçadores afastam espírito. Atualmente não é muito frequente ver homens novos fumando nas
expedições, sendo mais uma prática dos mekrarere-tum e mebenget.

A pintura corporal é também importante como prevenção de afecções. Os olhos, vistos como
um ponto de saída ou entrada do próprio karón, são considerados frágeis diante da possibilidade
de o akré de um animal abatido ou um karón de um morto quiserem afetar a pessoa. Por isso,
em expedições prolongadas como quando são feitas caçadas para reunir a carne para uma
comemoração ritual, é colocado jenipapo nas áreas próximas dos olhos, buscando evitar
qualquer alteração alheio. De qualquer forma, todos os caçadores temem encontrar um karón,
fazendo com que fiquem na defensiva e evitem falar demais enquanto estão em lugares
afastados, já que o barulho das vozes pode atraí-los. Sempre permanece latente um ambiente
de desconfiança, considerando-se que os mekarón agem com doenças e gostam de ir à aldeia
dos vivos com o propósito de pegar o karón dos frágeis e levá-lo para lhes fazerem companhia.

Txuak disse-me que a aldeia dos mortos Xikrin é um lugar onde impera o sentimento da tristeza
e a saudade, principalmente porque os mortos são solitários e sentem falta dos seus parentes,
querendo sempre voltar a morar na aldeia deles. Assim, se dá uma constante tentativa pelo
reencontro, o que acarreta riscos para os vivos, pois seus karón são factíveis de ser arrebatados.
Por isso, quando uma pessoa fica doente, ou inclusive, quando se encontra em estado de tristeza
e saudade por um motivo maior como a morte de um parente, tomam-se maiores precauções
na atenção para com essa pessoa, prevendo que se encontra passível de ser despossuída do seu
princípio vital.

Os lugares com altos volumes de água são também frequentados pelos karón. Uma das práticas
que acompanhei com frequência durante meu campo foi a pescaria, e um dos interlocutores
com os que eu mais compartilhei essa atividade foi o Txuak, quem mencionava com frequência
a possibilidade de ver mekarón na copa das árvores ao cair o dia. De fato, uma vez enquanto
voltávamos de uma pescaria infortunada e depois de remar por algumas horas, pois começou a
chover muito e o motor da lancha parou de funcionar, o Txuak ficou nervoso e falou para mim

momento, no entanto, é muito fácil que ele saia do corpo, por isso devem ser tomadas medidas e cuidados
necessários para evitar que qualquer influência externa ocasione a fuga ou o evasão do karón, fato que significaria
a morte da criança.
350

“rapaz, olha lá a ponta da árvore, tem um mekarón bem ali” fiquei reparando e o que observei
foi um forte vento que balançava a ponteira dos galhos sem um ritmo definido.

Respondi para ele descrevendo o que eu enxergava, foi assim que o Txuak me explicou que os
mekarón agem com o vento, eles aparecem como o sopro de uma ventoinha e se deslocam pelo
ar – Txuak: “eles são como o vento, são leves e se movimentam rápido, quando você escuta
um vento como se fosse num único lugar, é porque tem um mekarón passando...”. Os rios,
como confirmei com os mebenget, são um lugar onde os mekarón gostam de ficar, a facilidade
para se deslocarem pela água e o conforto da sombra das árvores na beira, são seu lugar
predileto.

Ademais, durante as comemorações e os ritos de passagem mereremex, onde uma criança é


homenageada podendo ganhar nomes, prerrogativas ou se tornar menoronure (em alguns casos
específicos para os homens), é comum os participantes sentirem a presença de mekarón165,
inclusive, se diz que quando a comunidade se desloca para o ngàb ou fica no ipôkri dançando
e ouvindo os cantos e falas do dono do canto e/ou quem precede a festa; as casas são ocupadas
pelos mekarón que vem para assistir ao metoro e presenciar a nomeação das crianças
homenageadas166 (Cohn, 2000, p.74).

Se os espaços domésticos durante as comemorações, o cemitério que normalmente se localiza


a poucos metros da aldeia, o rio que constantemente é frequentado às tardes, e as trilhas na
floresta que representam uma grande rede, são os lugares onde existe a possibilidade de se
deparar com a presença dos mekarón, pode entender-se que eles são sujeitos do cotidiano,
sendo parte importante nas paisagens onde acontece o modo operante da vida dos Xikrin.

Kanê: o universo das doenças

Tendo se aprofundado sobre o lugar dos mekarón e a forma como agem, agora só falta entender
a relação que tem o sistema alimentício e as restrições dos Xikrin com o contexto mágico da
caça e a prevenção e cuidado das doenças. A respeito das enfermidades pode ser dito que existe

165
A pintura corporal e a cor utilizada agem como ferramenta de proteção contra os mortos, Vidal (1987; 1992) e
Turner (1995; 2012) descrevem a pigmentação avermelhada do urucum como uma das formas práticas de
prevenção utilizadas pelas mulheres e nas crianças durante os rituais. Por outra parte, a tinta de jenipapo (escura)
nas proximidades dos olhos é vista como proteção pelos caçadores durante suas expedições.
166
É comum que a criança homenageada seja também o foco de atenção para os mekarón que participam como
assistentes distantes do mereremex, nesse sentido, tomam-se mais cuidados e atenção para com a criança, com o
propósito de evitar qualquer tipo de ação dos mekarón que possa prejudicá-la (Cohn, 2000, p.163).
351

um sistema Xikrin de classificação que se encontra referido principalmente na origem das


doenças. Isso quer dizer que uma afecção vinda do mato não é a mesma coisa que uma doença
kubén (vinda dos não indígenas), e, por conseguinte, existem formas diferentes de abordá-las
com o propósito de cura-las.

Quando se indaga sobre as doenças por kaprem (feitiço) vindo pelo akré dos mry, donos ou
xamãs de outras aldeias e etnias, os meus interlocutores tendem a chamá-las como kane tum,
referindo-se a que são doenças antigas ou mesmo, doenças prévias ao contato com o mundo
dos não indígenas167. Essas doenças afetam também o corpo causando febre e constante dor de
cabeça, embora, o maior fator para seu diagnóstico consista em uma aparente deterioração das
capacidades vitais, vistas através do transtorno na personalidade da pessoa, em outras palavras,
uma loucura transitiva. Entende-se que esse estado é a manifestação de que o karón da pessoa
está sendo afetado pelo akré de outro ser, a raiva desse outro teria entrado no corpo da pessoa
e estaria enfraquecendo seu princípio vital, podendo desencadear em que a alma saia e o corpo
entre em estado inerte.

Para esses casos, a magia é a base que opera como conduto de estabilidade corporal e
emocional, sendo o wayangá o sujeito por excelência para determinar o estado da pessoa
afetada. A operação consiste em “trazer de volta” o karón como a ação a ser executada.
Observa-se que tal ação começa pelo enxote da força causante de kane e, por conseguinte, da
busca e acompanhamento na passagem que o karón original precisa fazer até voltar ao seu
corpo. Neste caso, ngoikrã e karón são abordados como componentes justapostos. A afetação
do corpo é indício da fraqueza do karón, e a perda do karón implica a inércia do ngoikrã.

Em dezembro de 2016, aconteceu em Pytakô um infortúnio com Juca, irmão mais novo de
Dezoito (Tedjire). Após um grupo de homens ter saído para caçar na véspera de Natal, Juca se
extraviou no mato. Conta o próprio desventurado que enquanto andava pelo mato em
companhia de Kwynhdjy, ambos viram mry. No meio da perseguição, os dois caçadores se
separaram e o Juca se enfurnou com toda a pressa no mato, deixando para trás seu facão e a
maioria da munição. Pouco tempo depois, o caçador reparou que não tinha noção de por onde
tinha transitado. Ao querer voltar, afastou-se do grupo e, caindo a noite, perdeu qualquer

167
Fisher (1991) propõe uma classificação a partir de doenças que afetam o corpo e doenças que afetam o karón.
Sendo necessário tratar as doenças que tem origem na afetação do karón através de plantas específicas da floresta.
Embora, nos depoimentos coletados durante o meu campo, encontrei uma relação habitual entre afetação do karón
e afecções físicas como febre. Dessa maneira, opto por não fazer uma separação estrita entre afecções físicas e do
karón. Fisher (1991) também relaciona as doenças que afetam o karón dos caçadores com o contato destes com o
karón dos animais. Eu destaco que não é propriamente o karón, mas o akré – a força- do animal abatido a que
busca afetar o karón do caçador.
352

chance de orientação. No total, foram mais de quarenta dias perdido na floresta (ver o relato
completo no capítulo 3).

Conta o seu irmão, Prîncare (Americano), que foram feitas múltiplas expedições em busca do
Juca. Com o passar dos dias, e sem resultados, o desespero tomou conta da maioria das pessoas
que estava à sua busca. Americano disse: “será que o Juca morreu, algum bicho comeu? Meu
irmão é forte, ele deve estar vivo... será que ele virou mekarón? (...). No caso de ele ter virado
um karón, o Americano sugere que continuaria perdido sem achar um ponto de retorno, sendo
impossibilitado de achar a aldeia dos vivos, assim como a dos mortos.

Meu interlocutor informa que, depois de algumas semanas de incertezas, contrataram um


wayangá Kayapó com o propósito de indagar sobre o estado do Juca. O Wayangá manifestou
que, no caso de o Juca estar vivo, ele iria achá-lo e, viajando através da floresta, iria cuidar de
seu karón e guiar o corpo para trazê-lo até a aldeia.

O trabalho do wayangá se estendeu por algumas noites. Meu interlocutor me conta que apesar
das repetidas tentativas, o wayangá dissera que o corpo de Juca estava muito fraco, que não
conseguia tratar mais do corpo, pois não tinha como fazer que ele voltasse, já que o Juca tinha
se afastado muito da aldeia e estava muito doente. Disse, inclusive, que era possível que Juca
já estivesse morto, pois a doença tinha consumido ele e não estava sentindo mais um karón no
ngoikrã dele. Exortou os parentes a se resignarem.

A interlocução do wayangá Kayapó trouxe consigo uma resposta em relação ao estado da


conjunção corpo-karón. O corpo estava sem força e o karón estava sem latência, o que nos
confirma que o enfraquecimento do segundo implica a inoperância do primeiro. O Juca não
seria mais o Juca, por isso, segundo o wayangá, seria melhor esquecer ele. Para um feliz
término, o Juca voltou por conta própria, apesar de apresentar um quadro de desnutrição
avançado e continuar desorientado, foi encontrado na estrada que conecta a aldeia Pytakô com
o posto base de acesso à TITB.

O outro grupo de doenças é aquele sobre o qual os Xikrin descartam a possibilidade de origem
na floresta. Essas doenças são chamadas de kane kubén, referindo-se ao leque de alterações
que chegaram junto com o contato com o mundo dos não indígenas. Nos relatos históricos, os
Xikrin relacionam diretamente a sua pacificação com a perda substancial da população,
identificando como causante a gripe, a malária e a me-kwy-kanê (doença das fezes)168. A

168
Para aprofundar sobre a história recente dos Xikrin do Bacajá e os processos de contato, ler o capítulo 2 deste
trabalho e o capítulo 2 da tese de Fisher (1991).
353

existência das doenças recentes – ou atuais, como alguns se empenham em enfatizar – além de
não estar contida num cenário de ações xamânicas, está ligada a um contexto de gestão
constante da saúde em termos institucionais, de forma que a maioria do atendimento para essas
doenças passa pela implementação de políticas públicas e o posicionamento de atores indígenas
que buscam garantir que a medicina ocidental e/ou convencional chegue até as aldeias.

Ao consultar recentemente o meu interlocutor Txuak, quem também é o representante da aldeia


Pytakô em temas de saúde frente às instituições responsáveis do atendimento e saúde, ele me
disse a respeito das kane kubén: “se o kubén trouxe um bocado de doenças que a gente
antigamente não tinha, agora o kubén deve trazer o cuidado para essas doenças, tem coisa
que o wayangá não cura; aí é bom ter enfermeira, médico, pessoal da saúde...”. O raciocínio
do Txuak evidencia que para os Xikrin tem assuntos que, ao vir com os não indígenas,
extrapolaram o manejo habitual sobre as kane. Meu interlocutor me disse também: “o wayangá
até pode tratar doenças de kubén, não sei se curar, mas ajuda que a pessoa sinta alívio. Agora,
curar... tipo curar a Covid, aí é kubén que sabe. Porque se ele que trouxe, ele sabe o que trouxe
né? ele tem que dar uma resposta para a gente...”.

Teve uma ocasião na aldeia Bacajá em que as diferentes casas começaram a apresentar um
quadro de conjuntivite aguda afetando principalmente às crianças, eu costumo levar para
campo uma bolsa com medicamentos básicos para feridas, alergias e dores corporais; nesse
período a Maria (Ngrei Tó), irmã do Onça, veio me falar que seus olhos coçavam muito e o
remédio da enfermaria não estava ajudando. Por curiosidade fui à enfermaria, foi ali onde
encontrei uma fila de mulheres com crianças chorando desesperadas passando as mãos nos
olhos e rostos.

A técnica de enfermagem me informou que estava aplicando cloridrato de nafazolina nos olhos
das pessoas, substância que é indicada para qualquer tipo de irritação ocular e é vendida nas
farmácias sem prescrição médica. Apesar de não ajudar na conjuntivite aguda, as menires e
seus filhos não deixavam de aplicar a substância nos olhos. Sentindo pena por eles decidi
arriscar e chamei a Maria no privado e ensinei para ela o meu colírio de uso pessoal com
cromoglicato dissódico 4%, fórmula medicada para conjuntivites e alergias mais agressivas.
Poucas horas depois, a fila de mulheres na farmácia tinha se trasladado à porta da minha casa...
é claro, a Maria ao sentir um leve alívio espalhou pela aldeia que Poyre tinha pidjy mex-
medicamento bom.
354

Com esse episódio, somado à arguição de Txuak a respeito da medicina do não indígena,
pareceria que existisse um atrelamento dos habitantes de Pytakô e Bacajá ao remédio dos
kubén. No entanto, não deve confundir-se a ineficiência especifica para combater uma certa
doença como se fosse uma transposição do xamanismo e das práticas de cura indígenas para a
medicina dos não indígenas, pois isso pode trazer uma radicalização no âmbito da negação
entre um domínio e outro. Pelo contrário, o que me parece ter acontecido, na ocasião da
conjuntivite, consiste numa correlação entre a doença externa e uma forma de tratamento
eficaz. Em outras palavras, se eu tivesse proporcionado um tipo de remédio do mato que
tratasse da afecção, teria tido o mesmo efeito e a fila de mulheres teria se abatido na porta da
minha casa da mesma forma. É como Capiberibe (2017) indica a respeito da superação dos
estados de “crise”, onde as estratégias para a cura podem acumular um compendio de
manifestações híbridas entre variações da medicina e vertentes religiosas desde o xamanismo
até as crenças cristãs (Ibid, p, 323).

Então, a doença do kube e as doenças antigas ou do mato – assim como as formas de tratá-las
– convivem em simultâneo através de um campo experiencial, no qual, um técnico de saúde ou
um culto cristão podem fazer parte da cura, ademais da atualização no âmbito do xamanismo
como forma de resposta. Vale lembrar que ao ser o ngoikrã e o karón uma conjunção
indissociável, o "alívio" está relacionado ao cuidado do princípio vital. De maneira que um
wayangá especializado em trazer de volta o karón até seu corpo, pode atender os casos de
doença de kube, mas isso não significa que tenha a cura. Todavia, um técnico de enfermagem,
que atualmente habita com os Xikrin (cada aldeia tem uma enfermaria e um técnico
responsável), será constantemente cobrado pela atenção e provisão de atendimento na maioria
de afecções que se apresentam no cotidiano169, cabendo a possibilidade de ser procurado
quando uma pessoa apresentar transtornos de atenção, cognição e ainda, depressão, sintomas
que poderiam ser diagnosticados pela ciência médica, mas que para os Xikrin têm conotações
diretamente relacionadas com a fragilização do karón.

Para finalizar, é necessário apontar que os Xikrin têm uma compreensão coletiva das doenças,
o que faz com que uma afecção sofrida por uma única pessoa cause uma série de reações

169
Entre as afecções mais comuns que presenciei enquanto morei durante um par de meses numa enfermaria,
estão: dor de cabeça, dor nas costas, alergias, diarreia e enjoo. Atualmente também existe um quadro de diabetes
crescendo entre os idosos, e os problemas de pressão tem virado uma constante. As mulheres grávidas também
constituem uma população que frequenta muito a enfermaria, já que os Xikrin têm optado nos últimos anos por
se submeter ao acompanhamento dos médicos kubén, assim, o pré-natal e o pós-parto (incluindo as cesáreas) são
âmbitos que caíram nas mãos dos profissionais da saúde. Ainda assim, quem mais frequenta as enfermarias são
as crianças meboktire (primeira etapa de vida), não só por causa de afecções, mas também para seguir o calendário
de vacinação programado.
355

práticas num grupo familiar. Em finais de 2017, enquanto Pedro (Bep Kanhê) encontrava-se
pescando na beira de um igarapé, sofreu o ataque de um jacaré que pegando a sua perna lhe
causou profundas feridas na panturrilha. Durante os dias posteriores ao acidente, Pedro esteve
incapacitado e permaneceu tomando sedantes e antibióticos, chegando a apresentar febres.

Eu me encontrava com seu filho Txuak, em Pytakô. Um dia depois de que ele foi notificado do
acidente, os homens organizaram uma expedição pela estrada que comunica a aldeia com o
posto de acesso à TITB aproveitando a chegada de um dos carros dos contratistas da Norte
Energia que vieram na aldeia. O Txuak não nos acompanhou na expedição, para esse momento
eu já tinha uma amizade próxima com ele e me arrisco a dizer que gostávamos de fazer dupla
nas caçadas coletivas. Estranhei a sua ausência e quis perguntar para ele diretamente, já que
como de costume, entre homens existe uma tendência a julgar uns aos outros se tratando de
mukangare – passivos, preguiçosos quando algum deles permanece em casa.

Esse dia foi frutífero, já que voltamos com uma anta adulta que daria para satisfazer a todas as
famílias envolvidas. Foi feito um jwkupú (berarubú) na cozinha no quintal da casa de Onça e
Irengrî, todos comemos, incluindo a família do Txuak, quem se ausentou da expedição.
Perguntei-lhe pela sua ausência e ele me disse que não se sentia bem, Txuak: – estou doente...
– seguido a isso reparei que sua esposa, suas crianças, desde o mais velho, Bep Txorei, até o
mais novo, Rop Krori, comiam tranquilamente enquanto ele permanecia sem mexer no jwkupú
mas pegava quantidades generosas de farinha e enfiava na boca. – Txuak não vais comer
kukrut? Perguntei. Ele me disse – hoje não, não quero –. Para com isso, eu sei que tu gostas
demais disso aqui – respondi. Sorrindo, ele me explicou: “jacaré pegou a perna do meu pai,
lembra? Hoje falei com ele pelo rádio e ele disse que está doendo e que tem febre. Quando pai
ou mãe está doente, filho não pode comer caça. Isso é coisa de filho com pais e de pais com
filhos, (...).

Diante dessa descrição feita pelo meu interlocutor, continuei a perguntar quais seriam as
ligações parentais, já que a sua esposa e filhos estavam comendo kukrut (anta). Assim, ele
voltou a insistir:

Não! Isso é entre pais e filhos e de filhos com pais, a minha mulher não tem nada a
ver com meu pai. Agora se o pai ou mãe dela adoecerem, é com ela, ela com os pais
dela, gama? Igual eu com meus filhos. Se meus filhos adoecerem, eu não posso ir ao
mato caçar nem aceitar carne de caça, igual quando eles crescerem e possam caçar no
mato, se eu ou a mãe deles adoecemos, eles não podem comer carne de caça. Fora
356

isso, se minha mulher adoece ou parir filho, eu também não posso comer carne, gama?.
Aruk bakumá – respondi, querendo indicar que entendi.

De fato, entendi com maior amplitude a leitura que os Xikrin fazem sobre as doenças, que não
é alheia ao comportamento de outros povos das terras baixas da América do Sul, relacionada
com prescrições e dietas em sistemas de couvade (Riviere, 1974; Capiberibe 2009). Para os
Xikrin a prática da caça e a ingestão da carne são práticas intrínsecas ao estado do corpo da
pessoa, sendo por sua vez a afetação do corpo um parâmetro que se estende aos consanguíneos.

Em um sentido semelhante Fisher (1991) apresenta como as restrições alimentares extensivas


entre conjugues operam durante o período de gestação das mulheres:

As fisiologias das mulheres e dos homens diferem e existem alguns animais que os
homens consomem livremente e que são evitados pelas mulheres. A cutia é uma
delas, mas, como a esposa de Bemoro estava grávida na época, ele também se absteve
de comer essa carne para não colocar em risco o filho ainda não nascido. (ibid, 275,
tradução minha).

Outro aspecto representativo na saúde dos Xikrin e nas dieta alimentares, se refere ao estado
do corpo e da idade. Existem restrições para as crianças e os menoronure principalmente,
orientadas a fortalecer o corpo e especificamente os órgãos que lhes fazem ser fortes e destros
durante a etapa de crescimento. Cohn (2000) no seu estudo sobre a infância e aprendizado entre
os Xikrin indaga sobre os cuidados e restrições alimentícias que devem ser tomados,
identificando que existe uma grande atenção em que os olhos fiquem bons e os braços sejam
fortes e precisos, o que garante que uma pessoa vire um bom caçador.

O mel, por exemplo, é um alimento que os homens evitam em múltiplas ocasiões, como na
véspera de uma caçada ou quando um filho nasce, pois ele é considerado alimento uabó-suave,
sendo relacionado mais ao âmbito feminino e em alguns casos ao dos idosos. O fígado de jabuti,
anteriormente também era considero uma comida de idosos, sendo restringido aos novos. Hoje
essa característica não é mais representativa, havendo jovens que consumem o fígado sem cair
em algum tipo reprensão. Por outra parte, carne de animais agressivos como queixadas é vista
como uma comida predileta entre os jovens. Relatos coletados apontam que o consumo de
carne de onça também seria uma prática, ainda que rara, entre caçadores noviços, com o
propósito de adquirir fortalezas (tox) desse felino.

Num sentido contrário, mas com o mesmo propósito, existem alimentos que são consumidos
com o propósito de afetar os animais alvo de caça, os mry. Nesses casos as qualidades dos
caçadores não são potencializadas, mas as destrezas dos mry são diminuídas. Nesse sentido,
357

Cohn (2000, p.125-130) observa que os homens comem tyk it (arara azul) para que a caça fique
uabó, e especificamente para que os olhos da caça não enxerguem quando o caçador está
próximo.

Como vem se analisando, a relação entre o caçador e a caça consiste num processo de mão
dupla onde se misturam substâncias, forças e principalmente perspectivas; do mesmo modo, a
alimentação e as respetivas restrições entram nesse cenário de disputa, sendo ademais, um
âmbito xamânico que possibilita potencializar ou afetar o outro, por sua vez, preparando com
anteposição o preludio do confronto.

Neste capítulo, vim demonstrando que a caça Xikrin está impregnada de elementos do mundo
xamânico que ocupam um lugar difuso, sem deixar de estar presente. De forma que não é
possível estudar a caça sem ter parâmetros de análise que contemplem o mundo cosmológico,
dando lugar a um sistema de representações e ações multiespecíficas. A floresta que em
algumas facetas pode se apresentar como o lugar do desconhecido, um ambiente de riscos e,
de perspectivas o indomáveis, é também o lugar do convívio masculino, do teste e
fortalecimento físico e mental, e configura o cenário onde talvez mais se dinamizam as práticas
e lembranças do que os Xikrin denominam metumre, referindo-se aos Mebêngôkre que
percorreram a região do Bacajá e Cateté, antes do contato. Assim, me ocuparei no capítulo a
seguir em demonstrar como a caça e o aprendizado na prática estão intimamente relacionados.
358
358

26. Bep Inere, filho de Kwynhdjy, navegando no Bacajá para pescar.


359

Capítulo 7. Caça, ambiente e aprendizagem na prática

Este capítulo tem como propósito encerrar a tese por meio de uma ampla discussão teórica em
torno de como a cinegética e a aprendizagem na prática são campos inerentes aos modos de
produção de pessoas masculinas Xikrin. A abordagem da aprendizagem situada e do
desenvolvimento de skills constituem chaves analíticas para demonstrar como os homens se
tornam caçadores. Ademais, se explora como a aprendizagem está intrinsecamente ligada aos
processos de interação cotidiana nos quais os Xikrin se inserem ao integrar categorias de idade,
como a dos menoronu. Em contraste com sistemas verticais de instrução, como as escolas, se
argumenta que os homens são constituídos pela aprendizagem que ocorre desde as brincadeiras
até o redescobrimento dirigido. Por último, se explora o campo das interações semióticas como
ponto de interação multiespecífica na floresta, aderindo à ideia de que os outros-que-humanos
operam como produtores de signos em contextos nos quais as experiências sensoriais se tornam
a matriz do conhecimento.

**
Ao longo deste trabalho tenho me debruçado a respeito de campos cosmológicos, atos
xamânicos e formas técnicas inseridas em ritmos e procedimentos que vinculam, em um campo
perceptivo, aos caçadores Xikrin -suas ferramentas ou artefatos-, os mry e a floresta. Através
da descrição de formas e tipos operacionais que geram as relações florestais, tem-se
evidenciado como que humanos e outros-que-humanos desempenham performances concretas
nas experiências de andança e habitus na mata. A descrição dos processos dos caçadores -
expedições de apenas homens adultos, de adultos e adolescentes, de apenas adolescentes, de
famílias - são algumas das formas que demonstram que a cinegética Xikrin é amplamente
inclusiva das pessoas masculinas, expressa pelas múltiplas categorias de idade imbricadas e
engajadas, cada uma de forma concreta no ambiente.

Não obstante, vale retomar ainda o propósito que veio guiando a descrição e análise etnográfica
deste trabalho, o qual reside na preocupação por entender “como os Xikrin viram caçadores”,
questão que de forma extensiva pode ser colocada à luz de entender como os homens aprendem,
como seus corpos se desenvolvem e como as possíveis divergências geracionais são resolvidas
no âmbito experiencial. Esses assuntos devem ser considerados para compreender a formação
da pessoa masculina Xikrin. Assim, cabe realizar um esforço para enlaçar todos os aspectos
360

apresentados a respeito da “ontogênese cinegética Xikrin” diante de uma análise que proponha
discutir a aprendizagem através dos campos da vida cotidiana, como eixo da consolidação das
relações multiespecíficas.

...Eu era bem pequeno, minha mãe me cuidava, fazia comida e me dava. Eu sempre
estava perto dela. Meu pai saia, ele ia atrás de comida. Mas o tempo passou e quando
eu cresci me distanciei. Eu e os outros meninos da minha época (grupo de
menoronure) ficávamos brincando no ngàb, saíamos para andar e matávamos
passarinho ou pegávamos peixinho-tephuá. Quando Kudjoeire nasceu, ele já foi
nosso chefe, ele juntava nós e saímos atrás de passarinho, ali, pertinho da aldeia
(Bacajá). Às vezes a gente pegava cutia, mas bicho é esperto e foge da gente.
Quando a gente pegar nós volta, fica saindo e voltando sempre, os menoronure.

Com quinze anos eu via meu pai indo pro mato e eu já saía com ele, eu andava atrás
dele ‘toc, toc, toc…’ indo atrás foi que ele me mostrou lugares. Aprendi onde tem
grota, onde é bom de caça, comecei a andar muito. Entramos no mato e fomos
subindo até encontrar a grota, até pegar o caminho certinho. Senão, em dias de festa
o pessoal entra em grupo no mato para procurar as coisas. Desde antes o pessoal vai.
Aí com dezesseis-dezoito anos eu fui para ajudar carregar as coisas. Tu vê um lugar
assim certinho, quando você vem sozinho você entra lá, vem cortando, e tu vê onde
que dá para varar lá no caminho.

Eu acho que com dezoito anos eu já estava bem acostumado, consegui a espingarda
do meu sogro e aí já matei porcão, veado, anta, já me virei. Com o tempo você vai
pegando o jeito de andar, consegue achar bicho mais fácil. Quando eu era
menoronure ficava doidinho para caçar, mas é com o tempo e depois de arrumar
atóm que começa andar direito. Depois de tudo isso, por aí com uns vinte anos é que
vira guerreiro, aí já pode juntar o pessoal ‘bora trabalhar, bora fazer as coisas no
mato’.

Como aprendi a caçar. Depoimento de Prîncare.

O relato de Prîncare parece-me uma alusão completa sobre o processo em que um Xikrin
(homem) torna-se caçador, e por vezes, guerreiro170, indicando que uma pessoa desenvolve as

170
Com frequência a categoria guerreiro em português, koiâk (que bate) ou Topdjure (que convoca) em língua
Mebêngôkre, pode ser associada à consolidação da figura masculina. Não obstante, neste trabalho tenho feito um
recorte etnográfico dedicado a analisar especificamente a figura caçadora individualizada, o qual tem me levado
361

habilidades de forma progressiva enquanto vai se inserindo em múltiplos espaços de


socialidade (Strathern & Toren, 1996). Um adolescente que se relaciona com outros da sua
geração ou então vai atrás de seu pai/tio, seja em atividades próximas da aldeia ou através de
acompanhamentos dirigidos a lugares mais afastados, amplia seu espectro de vínculos, o qual
irá mostrando os cenários do ambiente em que se insere enquanto o vivência.

Um adulto que se consolida em um grupo de homens, como disse o meu interlocutor, pode
expressar “bora fazer as coisas do mato”, o que é proporcional a ter as condições de convidar
a uma expedição e garantir que se mantenha no ato. Tal questão pode ser observada desde
vários âmbitos, por exemplo, o dos parentescos: quem convida uma expedição coletiva, em
muitos casos, é consanguíneo ou afim (irmão/primo/cunhado) de quem organiza uma festa de
nominação para um dos seus filhos. Pode também ser observada no âmbito da chefia: quem
convida uma expedição pode ser o chefe ou estar a caminho de sê-lo, assim, a figura
benadjwyry e topjure se misturam. Vale dizer que homens sem a figura de chefe também
podem convocar expedições, sempre que houver um motivo: um sonho, por exemplo, que
mostra a possibilidade de uma caçada efetiva. De uma forma ou de outra, o depoimento de
Prîncare pode servir como ponto de partida para pensar a aprendizagem como um processo
criativo e de engajamento perceptivo. Assim, pretendo utilizá-lo como referência em diversos
momentos do diálogo teórico-analítico que aspiro desenvolver.

Da cognição à aprendizagem situada

Pensar o aprendizado à luz da vida cotidiana e como resultado de engajamentos práticos insere
a preocupação pela forma em que o conhecimento é elaborado e enunciado em torno do campo
sensorial. De acordo com Constance Classen (1993) os sentidos e a forma como estes são
dinamizados, seja olfato, toque ou visão, estão inseridos em contextos sociais que determinam
a forma como o mundo é percebido. Isso sugere que as informações ou conhecimentos
produzidos por um tipo de sentido que entra em interação no ambiente, poderiam ter variações
ao longo do tempo. Nos grupos Jê seria importante observar também como os sentidos são
compreendidos a partir da produção de corpos, já que como Seeger (1975; 1987) mostrou a

a explorar o campo perceptivo das relações no ambiente através do ato bà kam tem. Nesse sentido, a experiência
de caminhar pela floresta nem sempre poderia ser associada à figura guerreira, pois apesar de que caça e guerra -
podem ser equiparadas em termos ontológicos como predação - desde o perspectivismo ameríndio; Andar, no
sentido estritamente experiencial, tem conotações que acabam vazando da figura da guerra. Portanto, prefiro não
enfatizar a figura do guerreiro como se fosse a mesma do caçador.
362

respeito dos Suyá, e Cohn (2000) sobre os Xikrin, a perfuração dos lóbulos das orelhas e no
lábio inferior durante o primeiro período de vida são fundamentais para que a pessoa
progressivamente se encaminhe como um bom ouvinte e um bom falante.

A proposta de Classen (1993, pp.135) busca desenvolver uma antropologia dos sentidos na
qual o campo perceptivo é compreendido como um canal para o processo mental, onde a
singularidade de um grupo social é previamente organizada. Ademais, a autora sugere dar
prioridade à análise da visão e audição por cima de sentidos como o da fala no contexto da
oralidade. Apesar disso, como ressalta Ingold (2008, p. 45) no contexto da antropologia dos
sentidos (Howes, 1991; Classen, 1997), tem havido uma insistência na ideia de que o
aprendizado em ambientes experienciais ocorre por meio de um processo no qual as pessoas,
partindo do material bruto da sensação corporal, constroem uma representação interna do
mundo exterior. Em outras palavras, a tradição cognitivista segue uma premissa cartesiana que
pressupõe uma separação entre mente e corpo, resultando em uma divisão entre as experiências
sensoriais e as ideias que se formam na mente, estas últimas as quais viriam a ser o
conhecimento.

De maneira semelhante, Toren (1993) analisa o aprendizado de crianças em Fiji e nos Abelam
(Papua Nova Guiné), enfatizando a inversão conceitual do entendimento das crianças enquanto
agentes ativos na produção de saberes. Para a autora, os conceitos das crianças são tão válidos
quanto os dos adultos. Sem dúvida, essa perspectiva é um grande avanço enquanto ao papel de
crianças como sujeitos criativos nas sociedades indígenas, onde o mundo infantil e adulto não
são enfaticamente separados (ver: Lopes da Silva & Nunes, 2002; Cohn, 2005; Tassinari,
2007). Toren entende a aprendizagem como um processo micro-histórico, no qual cada ser
humano desenvolve suas capacidades. Nesse sentido, o processo cognitivo se vincula com os
contextos sociais, sendo mediado por relações entre uns e outros, em um fluxo no qual o
conhecimento é produto e produtor de pessoas171.

Para Toren (1990; 1993), assim como para Classen (1993) existe uma arquitetura cognitiva na
qual o cérebro e o corpo são articulados através do sistema nervoso. Tal articulação, quando
em contato com contextos específicos, resulta na produção do conhecimento. Disse Toren
(1993): “os humanos são biologicamente estruturados para serem ao mesmo tempo produtos
e produtores de suas próprias histórias coletivas e pessoais” (Ibíd, 474) (tradução minha).

171
Christina Toren se baseia na abordagem da autopoiese desenvolvida por Maturana e Varela (1980), na qual
um complexo - seja biológico ou social - teria a capacidade de se auto reproduzir mantendo sua essência em
resposta a interações com o ambiente.
363

Na tradição cognitivista, os autores que analisam a aprendizagem podem ter oferecido


contribuições significativas relacionadas à formação dos corpos, à inversão da dinâmica
vertical de aprendizado (adultos-crianças) e à localização das potencialidades sensoriais - como
audição ou visão - em relação aos contextos sociais e históricos nos quais são aplicados. No
entanto, e em concordância com Ingold (2008), parece-me que a abordagem cognitivista pode
ser limitada, isso no propósito de gerar conhecimentos a partir de uma estrutura de abstração
mental. Ademais, projetos de natureza cartesiana costumam acarretar componentes de
hierarquias em que se vislumbram figuras assimétricas. Em outras palavras, a abstração do
mundo e a recriação do mesmo através da mente humana, podem conduzir a uma exclusão da
percepção de outros seres, outros-que-humanos. Voltarei nesse assunto no final deste capítulo.

Por outra parte, Jean Lave e Etienne Wenger (1991), que em um primeiro momento
compartilham junto a autores da tradição da antropologia dos sentidos (Stoller, 1989; Howes,
1991; Classen, 1997) a preocupação pelo campo experiencial e a relevância dos sentidos no
processo da aprendizagem em contextos históricos, optam por se distanciar desses autores em
relação ao processo em que opera a formação do conhecimento. Se para a tradição cognitivista,
a mente processa e constrói saberes a partir da informação repassada pelos sentidos, para Lave,
a mente está inserida em paralelo aos sentidos que operam intrinsecamente no campo da
prática. A autora propõe que, em contraponto às dicotomias (mente-corpo, objeto-sujeito) da
psicologia cognitivista, o estudo do aprendizado deve se basear em abordagens que valorizem
a emergência de processos grupais no campo das interações e dos sentidos. Seguindo essa
premissa, Lave direciona o seu escopo de análise para o “como” acontece o aprendizado e não
apenas para “o que é” o aprendizado.

Uma vez que Jean Lave se afasta da antropologia dos sentidos, opta por se inspirar na teoria da
prática social. Em termos dessa teoria, é enfatizada a integração do agente, do entorno e da
atividade em uma práxis que opera em um sistema de habitus e disposições mútuas (Bordeau,
1977). Essa abordagem privilegia uma perspectiva de descentralização em procura de evitar
determinações estruturais e hegemônicas. Portanto, a intencionalidade e o conhecimento como
fluxo contínuo de momentos reflexivos toma forma enquanto prática e engajamento (Turnbull,
1996). Para Lave (1988), os momentos reflexivos, ou então o fluxo de práticas, está organizado
em torno de trajetórias de participação. Ou seja, a vinculação contínua de indivíduos em
cenários da vida cotidiana leva a um processo insaciável de reflexão no qual a prática constitui
uma forma inextricável de aprendizado.
364

Se para a antropologia dos sentidos e a psicologia cognitiva, a abstração mental e a


preconcepção de condições formam o berço do conhecimento humano172; para a Lave &
Wenger (1991) é o modus operandi: a participação nas atividades diárias são as determinantes
para a cognição e a compreensão, sendo a vinculação direta em atividades concretas o que
determina a condição progressiva em que uma pessoa vem a ocupar um lugar. Dali emerge a
proposta de uma aprendizagem situada e de comunidades de prática como figuras analíticas
para examinar o lugar em que pessoas se inserem em círculos de aprendizagem no cotidiano.

A noção de aprendizagem situada (learning situated) contém um caráter transitório entre a


visão na qual os processos cognitivos são primários e a visão segundo a qual a prática social é
o gerador primário e a aprendizagem é uma de suas características173. Nesse sentido, Lave
(1996) propõe que a aprendizagem não está apenas inserida na prática, a aprendizagem é parte
integral da prática social, gerativa do mundo social. Isto é, agir na vida cotidiana e se
movimentar através de âmbitos sociais são condições inerentes nas quais as pessoas e suas
corporalidades são moldadas (Correia da Silva & Gomes, 2015). Cultura (no sentido de prática
social) e aprendizagem são sempre ambas as coisas, tanto uma quanto a outra, estando em uma
condição indivisível. Em outras palavras, viver é aprender, e, se aprende através da vida.

Até aqui, sabe-se que a aprendizagem é dada de forma simultânea junto ao processo de
interação social. Não obstante, como argumentam Lave & Wenger (1991), a participação é
dada através de contextos específicos, uma vez que aprendizes se inserem em grupos,
procurando ser membros. Os dispositivos em que pessoas, coisas e práticas se vinculam em
formas participativas são chamados de comunidades de prática pelos autores. No caso dos
caçadores Xikrin, essa categoria adquire força a partir do momento em que se observa que os
menoronure vinculam-se por iniciativa direta em circuitos de práticas que os levam até os pry

172
Vale ressaltar que o trabalho de James Gibson (1966; 1979) permanece como crítico dentro do campo da
psicologia cognitiva, propondo superar a dicotomia corpo-mente e realocar o conhecimento como produto do
engajamento dos sentidos no ambiente. Será da ideia inicial de Gibson sobre educação da atenção, que Ingold irá
se basear para propor uma abordagem além das representações do mundo, onde indivíduos, coisas e ambiente
estão integrados em um cenário contínuo de produção de significados.
173
Não pretendo neste trabalho entrar em discussões a respeito de formas de educação formal/informal pois
considero que esse assunto me levaria a uma discussão que extrapola os interesses da minha análise. Apesar disso,
vale orientar ao leitor indicando que geralmente os estudos sobre aprendizagem estabelecem uma dicotomia
formal/informal: a educação formal é aquela vinda de preceitos institucionais (geralmente a escola) onde os
sujeitos passam por processos de aprendizagem vertical, sendo repassados os conhecimentos através de
especialistas ou mestres. Ademais, os ensinamentos seguem padrões pedagógicos, não sendo sempre necessário
um vínculo contextual/relacional de quem aprende com o que se aprende. Por outra parte, a educação informal é
vista como todo tipo de educação além da formal, podendo ser prática, coletiva ou vivenciada (Strauss, 1984).
Não obstante, seja uma ou outra, é preeminente uma visão cognitivista onde mente-corpo (sentidos) e, portanto,
objeto – sujeito estão claramente definidos. Visão da qual faço questão em me distanciar enquanto considero a
experiência cognitiva como aprendizagem situada e, portanto, baseada no engajamento direto dos sujeitos com e
no ambiente.
365

(caminhos) na floresta. São comunidades de prática, encaminhadas a fortalecer a participação


de múltiplas gerações enquanto se explora a floresta, os grupos de homens compostos por
caçadores experientes e noviços.

Voltando no relato do começo deste capítulo, Prîncare explica: “...em dias de festa o pessoal
entra em grupo no mato... eu fui para ajudar carregar as coisas e para conhecer o mato”. É
possível que no momento desse acontecimento o meu interlocutor não tivesse a consciência
plena de que ele se inseriu nas dinâmicas grupais para “conhecer o mato”. Não obstante, essa
condição veio até ele como forma recíproca do compromisso de se inserir na prática social da
aldeia: espaços de socialidade masculina e caminhada na floresta, formam uma
interdependência imanente. Nesse sentido, o aprendizado constitui um processo cujo objetivo
final pode ser tornar-se membro de uma determinada comunidade de prática.

Contudo, me arriscaria a dizer que as comunidades de prática são moldáveis, não cabendo aos
casos da cinegética reduzi-las apenas aos âmbitos masculinos (ainda que a masculinidade seja
imperante), já que as comunidades estariam também representadas através de diferentes tipos
de expedições entre membros de uma aldeia, de acordo a como expôs no capítulo 5. Assim,
crianças, mulheres, velhos, cachorros e possivelmente artefatos como espingardas, bordunas,
paneiros, entre outros, seriam parte de comunidades de prática que orientam o aprendizado da
cinegética. Como explica Wenger: “aprender em uma comunidade de prática não se limita
aos novatos. A prática de uma comunidade é dinâmica e envolve aprendizado por parte de
todos (tradução minha)” (Wenger, 2012, p. 4).

Não obstante, seria apenas através de uma participação constante e legitimada (aprovada) com
-e por- outros, que pessoas a caminho de se tornarem algo (aprendizes) poderiam completar o
processo. Isso quer dizer que a aprendizagem constitui, em essência, uma forma de
coparticipação enquanto facilita que aprendizes se incluam gradualmente na execução de
tarefas até atingirem a condição de participação plena (Lave & Wenger, 1991). Em outras
palavras, aquilo que para Prîncare é visto como se tornar um “guerreiro”, ou melhor, caçador
autônomo, para Jean Lave seria a evidência de que um aprendiz tornou-se membro efetivo de
sua comunidade.

Ademais, é importante esclarecer que a aprendizagem não ocorre de forma aleatória: existe um
componente de agências que influenciam o papel ocupado pelas pessoas em uma relação.
Nesse sentido, a participação periférica legítima surge como premissa de que existe um
366

compromisso na prática social174. A aprendizagem surge enquanto há uma ativação de


propósitos: um indivíduo querendo interagir na vida social ou encontrando-se diante de os
outros, sejam consanguíneos ou afins potenciais, ou então um menoronure “doidinho para
caçar” – como expressou Prîncare, são sujeitos e ações que acabam virando dispositivos de
integração os quais dinamizam e fazem o aprendizado acontecer.

Isso mostra a existência de uma interdependência relacional entre os agentes (sejam noviços
ou pessoas mais experientes), a atividade (nesse caso concreto, a andança na floresta e
eventualmente a caça), a cognição (no significado etimológico da palavra: conhecer junto) e a
aprendizagem situada, em torno de conhecimentos ecológicos. Esses podem ser produzidos e
adquiridos por espécies mesmo outras-que-humanas e a própria floresta em um processo
factível de ser semiótico (como demonstrarei no final deste capítulo). Dita interdependência
consiste em uma proposta de descentralizar a forma como se concebe a aprendizagem e optar
por uma abordagem onde se consulte sobre como as práticas moldam e são moldadas. Em
essência, estamos diante de uma premissa de que aprender na prática implica mudanças e
renovação dos preceitos de um grupo, compreendendo que existem maneiras múltiplas,
inclusivas e comprometidas nas quais os participantes se inserem na vida cotidiana.

Quero voltar ainda na abordagem de Lave e Wenger (1991) sobre a aprendizagem situada, já
que me parece ser uma chave analítica a qual dialoga com a forma na qual progressivamente
são (auto)inseridos os homens Xikrin nas comunidades de prática que circulam na floresta.
Lave (2011) observa que os aprendizes de alfaiate na Libéria, localizam-se estrategicamente
em bancos e lugares onde a observação sobre as atividades de costura de seus “mestres” é
privilegiada. Ademais, a autora argumenta que mais do que acontecer uma instrução
pedagógica, o que se presencia é um acompanhamento contínuo enquanto se oferece assistência
em tarefas básicas as quais complementam a atividade do alfaiate principal.

De acordo com a minha etnografia apresentada até aqui, é possível considerar que noviços,
geralmente menoronures, procuram seguir os seus jenuas durante atividades fora da aldeia.
Ademais, caçadas ao invés de virarem espaços de explicação e instrução (o que seria uma forma
explícita de atrapalhar, pois o silêncio é fundamental nesse tipo de atividade), são cenários de

174
De maneira enfática insiste Lave (2011) que a participação periférica legítima não é uma forma educativa e
menos ainda uma estratégia pedagógica ou técnica de ensino. Sendo na sua proposta, um ponto de vista analítico
sobre o aprendizado ou uma maneira de entendê-lo. A respeito da participação periférica legítima disse (Hanks,
1991): “is not a simple participation structure in which an apprentice occupies a particular role at the edge of a
larger process. It is rather an interactive process in which the apprentice engages by simultaneously performing
in several roles (p. 23)”.
367

engajamento nos quais pessoas mais novas, ou menos experientes, colocam a disposição seus
corpos (força física), cumprindo tarefas secundárias como carregar paneiros, jabutis, bordunas,
partes de grandes animais abatidos e, eventualmente, conectando seus sentidos (ouvidos, visão,
olfato, toque) aos de outros caçadores, tentando estar em sincronia com os ritmos propostos
pelos experientes.

Quanto aos noviços, diria que embora passem por processos diretos de iniciação através de
práticas como amiytá-bater no ninho dos marimbondo - que aliás vem se tornando cada vez
menos frequentes na atualidade - o domínio efetivo de habilidades as quais os vinculam com
ambientes florestais, vem da permanência, do seguimento constante dos passos de outros, no
caso, caçadores experientes. Em outras palavras, se o sistema ritual tem alto grau de
importância cosmológica para os Xikrin, o acompanhamento cotidiano é essencial na vida
material-experiencial, sendo intrínseco ao desenvolvimento do corpo. Portanto, tal
acompanhamento é necessário para devir uma pessoa masculina Mebêngôkre. Vale dizer que,
como Marilyn Strathern (2006 [1988]) demonstra a propósito de sociedades melanésias, se a
construção do masculino e feminino passa pela metamorfose corporal, esta encontra-se no seio
de inversões e dádivas das relações sociais. Isso indica que a pessoa masculina, no caso, não
se define apenas por suas capacidades físicas e seu corpo, senão através do feixe de diversas
relações exteriores.

No caso dos Xikrin, essas relações podem ser dadas de várias formas, por exemplo, as figuras
de chefia benadjwyry , como mencionou Prîncare no seu relato: “quando Kudjoeire nasceu,
ele já foi nosso chefe, ele juntava nós e saímos atrás (...)”. O qual indica que os chefes ocupam
um lugar importante na convocação às expedições. Por outra parte, as relações multiespecíficas
podem ser vistas como outro feixe que influencia a composição da pessoa masculina: um
caçador, no caso, só vem a sê-lo quando possuir uma trajetória de interações -ainda que
predatórias- com outras espécies, ao longo da sua vida. Adicionalmente, a forma como os
caçadores se vinculam com elementos materiais como espingardas e bordunas, e se engajam
com o ambiente através destes, constitui um marco de influência determinante sobre as formas
nas quais as habilidades das pessoas vêm a ser moldadas, como mostrarei no próximo
segmento.
368

Quero ainda acrescentar que uma comunidade de prática é na sua base um campo de interação
entre participantes iniciantes e plenos175 - ou noviços e experientes -, ademais de reunir
múltiplas gerações. É aqui a importância dessa proposta analítica, pois a cinegética, como
venho propondo, é uma ponte de interações intergeracionais que no caso dos Xikrin está
suportada em múltiplas categorias de idade, podendo ser classificada de forma geral através de
menoronure (para especificar os que são noviços) e os mekrares (adultos ativos e experientes).
Porém, pensar em um campo social entre gerações é proporcional a se deparar com um cenário
agitado, já que como explica Engeström (2015) a análise da prática social implica um campo
conflituoso. Isso porque estamos diante de relações sociais em transformação, essencialmente
cambiantes, cenários onde a prática é compartilhada. Ademais, a participação de múltiplas
gerações apresenta um panorama onde há vários pontos de vista entre os que se destacam, os
que surgem como resiliência às mudanças e os que inovam na prática.

Lave (1991) entende esse processo como um desenvolvimento centrípeto, no qual os


integrantes de um grupo devem aportar tensões para se tornarem ativos. A participação
implicaria fluir a partir de oposições para que haja uma produção exitosa de uma comunidade
de prática. Aqui Lave (1991) e Ingold (2000) encontram-se relacionados, já que os dois
entendem que a vinculação entre indivíduos é dada a partir de disposições perceptivas
essencialmente criativas. Não é possível pensar na emergência de ambientes senão através de
uma prática inovadora. A repetição é na verdade uma criação de significados. Adicionalmente,
a autora propõe que o processo de aprendizagem tem como consequência a substituição
progressiva dos veteranos.

Cabe aqui a pergunta sobre se cinegética Xikrin pode ser incorporada nesse complexo analítico.
A resposta pode ser dada em duas instâncias. A primeira, refere-se às falas formais/reais de
chefes e/ou mebenget. Bep Tok-Onça, era reconhecido por expressar em eventos públicos sua
inconformidade em relação a como gerações mais novas agem em relação ao cuidado das suas
casas (tenho trazido alguns fragmentos de suas falas ao longo deste trabalho). Dentre seus
argumentos destaca-se o pouco cuidado de roças, a ineficiência das expedições de caça no que
se refere aos resultados no fornecimento de carne, o aumento de atenção às tecnologias digitais,
entre outros. Porém, gerações mais novas, geralmente menoronure-tum e mekrares, expressam
haver uma incompreensão por parte dos velhos. Isso ocorre porque apesar de eles circularem

175
Essa categoria é usada por Lave (2011) para definir aqueles participantes de uma comunidade que atingem um
grau de engajamento suficiente como para serem considerados por outros participantes, perante a prática,
experientes ou consolidados.
369

com maior frequência na cidade, comparecem em reuniões com instituições governamentais e


empresas subcontratadas pela UHE Belo Monte para implementar projetos do PBA-CI, e
assumirem responsabilidades de índole administrativo; a carne nas suas casas, nunca falta.

A segunda instância, referida às formas práticas, aparece como complemento fundamental da


dicotomia. Os mebenget, e especificamente os portadores de fala formal, habilitados para
presidir festas e espaços rituais, são por vezes “caminhantes inativos”, salvo algumas exceções.
Ou seja, os Xikrin adscritos a essa categoria de idade não participam das expedições
comumente organizadas pelos caçadores. O exercício cinegético acaba se restringindo à
fronteira dos Mẽkratymre (homens maduros com muitos filhos e netos, ainda ativos). Por outra
parte, a participação dos grupos de menoronyre, mekranyre (aprendizes) acaba sendo a porção
considerável dentro do tipo de expedições de grupo-subgrupo (ver capítulo 5). Nesse sentido,
no âmbito prático, a legitimação periférica das práticas de novas gerações só é considerada a
partir da geração imediata que a antecede: menoronyre e mekranyre interagindo com mekrares
e Mẽkratymre. É como se os cenários de participação seguissem uma lógica sequencial e
progressiva entre as práticas inovadoras.

Com isso, penso que as relações diacrônicas são mais evidentes enquanto houver uma maior
distância entre uma categoria de idade e outra, sendo evidenciada através dos cenários orais e
reconciliada através dos práticos. Por outra parte, o argumento de Onça a respeito de os novos
serem ineficientes em suas expedições, é relativo. Como tenho mostrado, os Xikrin da categoria
de idade mebenget da atualidade experimentaram, durante sua época de monoronures, um forte
modus operandi baseado em práticas seminômades, passando historicamente por uma transição
entre práticas afiançadas de trekking sazonal, a morar em aldeias fixas próximas do rio Bacajá
(ver capítulos 2 e 5). Dessa maneira, os mebenget apresentaram ao longo de suas vidas uma
dinâmica intensiva de idas e vindas entre lugares domésticos e florestas densas. Já os atuais
caçadores Xikrin, agem através de expedições relativamente curtas, optando por uma
mobilidade mais fragmentada, que inclui aldeia-floresta-cidade. Contudo, o que tenho
presenciado durante os meus períodos de campo é que entre os grupos familiares nunca houve
ausência de carne vinda de mry. Inclusive, os mebenget que compartilham moradia com
parentes de categorias de idade mais novas (geralmente filhas, genros), no cotidiano não
proferem palavras acusatórias (falas “informais”), visto que no dia-a-dia há sempre alguma
carne em suas refeições.

A partir dessa dualidade geracional exposta a respeito dos Xikrin, considero que os aparentes
conflitos, mais que rupturas, são formas expressivas de continuidade, revelando que as tensões
370

são necessárias, sendo garantia de que os princípios da vida social se mantenham ativos. Como
disse Ana Gomes (2021): “esse ciclo seria incessante, pois um organismo só deixa de aprender
quando não está mais vivo” (p. 85). Se em um primeiro momento, um discurso de um
ngokonbari (chefe velho e dono de maracá) parece um grande alerta diante da perda de
tradições, na verdade, este vem a ser a forma que evidencia a renovação da tradição, compondo
apenas um dos momentos do complexo sistema no qual se insere a aprendizagem. Vale reiterar,
ainda, que a forma como se aprende, ou a aprendizagem situada, não é uma questão de
transmissão e assimilação, mas de empreendimento transformador.

Em outras palavras, um mebenget que expõe aspectos de tensão está cumprindo com sua função
direta de fala enquanto mobilizador de aprendizados, e, por outra parte, os aprendizes junto aos
mekrare estão mobilizando a aprendizagem como forma viva enquanto experiencial. No final,
como afirma Gregory Bateson (1986), “a informação consta de diferenças que formam uma
diferença” (p. 108). Perceber uma diferença e colocá-la em tensão é o fator que dinamiza o ato
de conhecer. É através da tensão-recriação concretizada em movimentos cíclicos, que os
aprendizes acabam virando participantes plenos -caçadores habilidosos- em uma comunidade
de prática -grupos de caçadores- e se perpetua a renovação geracional.

Finalmente, uma outra qualidade que se revela ao analisar a cinegética Xikrin à luz da
aprendizagem situada é que aprender na prática envolve aprender a fazer o que se sabe e fazer
o que não se sabe. Isso quer dizer que no interior da prática social -sem recorrer à ideia de
ensinar- todos tem a necessidade de se engajar com o meio Aprendizes, que através da
constância virão a ser caçadores, na verdade, desde o momento em que formam parte de um
grupo, irão fazer e aprender em simultâneo. Isso se aplica também às pessoas experientes, já
que sempre haverá uma fronteira distante. Por exemplo, caçadores experientes sempre vem a
descobrir novos lugares, reescrever trilhas e implementar novas tecnologias. E ainda os velhos,
através do exercício da oralidade, virão a refazer a memória coletiva dos traços por onde eles
e seus antecessores já transitaram. Em palavras de Lave (2011; 2019): “we are all apprentices
to our own changing practice (p. 133)”. Portanto, a aprendizagem será sempre um processo
multifacetado que desde a perspectiva do caçador -humano neste caso- evidencia uma grande
complexidade de co-criação, a qual põe em evidência ser a aprendizagem além de prática,
geradora da prática social.

Como venho apresentando, as categorias de idade imbricadas em cenários de participação


podem ser a chave para compreender como se dá o aprendizado, embora, para reforçar esse
argumento, parece-me necessário explanar ainda a respeito da forma em que as múltiplas
371

categorias de idade (por vezes, as várias gerações) interagem no campo cinegético. Encontro
duas formas principais que me permitem atrelar com a análise até aqui feita e avançar em busca
de mais elementos analíticos: menoronure-menoronure / jenua-tabjuo. Em suma, tanto entre
indivíduos da mesma geração quanto entre aqueles de gerações diferentes, onde uma geração
contribui na prática para revelar o mundo florestal para a outra.

Da brincadeira à redescoberta dirigida

Como apresentei no capítulo 3 a propósito de trilhas curtas, as crianças são extremamente ativas
nos arredores das aldeias, podendo ser, talvez, quem mais explora lugares que conectam casas,
quintais, grotas, árvores frutais e a beira do rio176. Os grupos de infantes podem estar compostos
por mais de uma categoria de idade: meboktires e meprintire, e, eventualmente menoronures e
mekurêrê177. Ademais, é possível observar que nas explorações de crianças não há divisão
rigorosa enquanto aos gêneros masculino e feminino. Em consequência, o que chamo aqui de
exploração dos arredores, para eles é, na verdade, uma brincadeira. Como demonstrou Cohn
(2000), os cenários que reúnem meninos e meninas com idades próximas são de extrema
importância para a análise do aprendizado Xikrin, já que as crianças, ao invés de serem
recipientes vazios à espera de transmissão e socialização de saberes, são seres autopoiéticos
que reescrevem os conhecimentos178.

Tassinari (2015), no seu trabalho sobre aprendizado de crianças Galibi-marworno, no Amapá,


destaca como as famílias afirmam a necessidade de produzir um corpo ativo: os pais costumam
inserir as crianças em atividades agrícolas através de tarefas concisas, como plantar maniva.
Há, segundo a autora, um sistema de atribuição progressiva de responsabilidades visto como

176
Na aldeia Bacajá nova, por exemplo, a estrada que conecta a aldeia com o rio constitui um fluxo enorme de
pessoas que vão e vem entre as roças, localizadas na aldeia velha, e suas moradias na nova, levando entre quinze
e vinte minutos de trajeto a pé. Às tardes, quando o sol ainda se pode ver com veemência sobre a cabeça dos
transeuntes, é comum ver crianças correndo na estrada e, ao chegar na beira do Bacajá, tirar rapidamente suas
roupas e pular na água, chegando a passar horas ali, tomando banho e pescando.
177
Os grupos de menoronure costumam ser mais seletivos, admitindo apenas homens da mesma categoria, já que
lhes facilita se distanciar progressivamente da aldeia e se aproximar de desafios mais intensos na mata próxima.
Vale lembrar que tempo atrás os meninos dessa categoria deixavam suas casas e passavam a morar no o atykbe,
posteriormente virou ngàb (Vidal, 1977). Enquanto às mekurêrê, elas geralmente compartilham espaços femininos
com mulheres adultas, no entanto, é comum vê-las acompanhando as brincadeiras de meprires, sendo o cuidado
de seus irmãos mais novos uma das suas principais tarefas.
178
Em um sentido semelhante, tenho realizado pesquisas entre os Misak, onde as crianças são concebidas como
seres sábios que vieram ao mundo com o conhecimento dos seus ancestrais imbuído, correspondendo apenas aos
adultos -e à escola- guiar e mostrar durante os processos de interação em que as crianças se inserem ao longo do
seu crescimento (Escobar, 2017; 2021).
372

uma forma de estimular a iniciativa dos aprendizes. Para esse povo, deixar a criança “solta” é
sinónimo de crescer forte e saudável, comumente referido por eles como “pegar o ritmo da
aldeia” (Ibid, 145). Nos Xikrin, essa característica poderia ser aplicada, pois a liberdade das
crianças, assim como a introdução em tarefas agrícolas, é bastante comum.

Mas como funciona a iniciativa, ou melhor, a criatividade das crianças? Walter Benjamín
(1989) dá um sinal a respeito: “por encima de todas las reglas y ritmos aislados, rige sobre el
conjunto del mundo de los juegos: la ley de la repetición. Sabemos que para el niño esto es el
alma del juego, que nada lo hace más feliz que el otra vez” (p. 93). O autor, que propõe um
estudo profundo sobre brinquedos e brincadeiras para vir a entender o papel destes na
imaginação, criatividade e interação social, destaca que vivências que outorgam prazer, são
sempre inseridas na lógica do “fazer uma e outra vez”. Assim, a repetição é o eixo dos traços
demarcados pela brincadeira. Uma criança que brinca de forma satisfatória vai querer sempre
voltar a fazer o que lhe deu a satisfação.

Quando digo que durante meu campo em Bacajá observei que as crianças possuíam uma
ligação íntima com o rio, passando horas e horas ali, é devido a sempre estarem à espreita de
repetir o ato o qual lhes estimulava. Pular na água uma e outra vez, pescar uma e várias piabas-
tehuá, remar e se fazer de proeiro para cruzar o rio na seca (como na fotografia que ilustra o
começo deste capítulo), andar entre caminhos próximos, matar passarinhos (como indicou
Prîncare no começo deste capítulo), são algumas das atividades que sendo brincadeiras, são
também, formas precisas de evocação de atos cinegéticos como a caminhada, rastrear, a
espreita e o uso estratégico de força. Então, movimento, brincadeira e repetição são aspectos
interligados que acabam criando habitus a partir do fazer e aprender na prática.

Em um sentido semelhante, Codogno (2007) elabora uma análise sobre como as crianças
Galibi-Marworno aprendem. A autora tem o interesse particular de observar os espaços onde
meninos de categorias de idade semelhantes interagem. Para ela, o campo de aprendizado se
dá especialmente no que chama transmissão horizontal de saberes, referindo-se aos processos
de aprendizado entre crianças e suas atividades na aldeia e seus arredores. As formas como as
crianças se relacionam no espaço-tempo variam de acordo com suas idades, posições sociais e
gênero. A autora identifica que nem todas as crianças de uma aldeia se relacionam, pois há uma
divisão entre grupos conformados por hã179. Com isso, os parentescos desempenham um fator

179
Grupos conformados por hã são a grupos formados por um casal de fundadores em convívio com suas filhas e
genros, podendo se considerar uma ordem de caráter uxorilocal (Vidal, 2000), semelhante à que a mesma autora
(Vidal, 1977) identifica para os grupos Mebêngôkre.
373

importante, já que os grupos estariam conformados entre crianças consanguíneas, mantendo


afastamento de crianças potenciais afins, com as quais irão se relacionar no futuro através de
alianças estabilizadas por casamentos. Para os Xikrin, é possível que essa dinâmica de interação
entre crianças possa ser aplicada de acordo às casas, no entanto, não dediquei grande tempo a
observar esse assunto e, portanto, não me atrevo a dar um veredito180.

180
Para ampliar informação a respeito de interações entre crianças Xikrin durante final do século XX, ver Cohn,
(2000). Não obstante, é possível que a interação entre crianças pertencentes a casas diferentes venha mudando ao
longo das últimas décadas.
374

27. Prancha 11:


Representações
na escola
375

Prancha 16: Representações na escola

Foto 1: A escola de Pytakô presta apenas ensino fundamental, os meprires costumam estudar
médio período, de manhã. A professor, durante o período de meu campo foi uma kubenire
falante apenas de português. Embora, há algumas aldeias onde os professores são Xikrin.
Durante meu campo realizei duas oficinas de desenho entre as crianças com o propósito de
obter uma impressão de como eles representam os âmbitos por onde circulam, sendo
principalmente evocada a aldeia, os corpos, mry e alguns bonecos influenciados por séries
animadas com as que eles têm contato esporádico através de televisão, ou quando visitam a
cidade.

Foto 2: Espaços domésticos são frequentemente retratados em desenhos, caracterizando a


formação circular das aldeias. Inclusive, o ngàb é frequentemente representado pelos meninos.

Foto 3 e 4: As representações de corpos Xikrin feitas por meninas costumam dar ênfase na
elaboração de traços das pinturas ok, sendo possível perceber um grande esforço por imitar e
treinar desde a escola. Os dois desenhos pertencem a Nhakpôkti, filha mais velha de Txuak,
em processo de se converter em mekurêrê, apta para casamento.

2 3

4
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376
377
378
378
379

Prancha 17: Meprire, entre brincadeiras e o corpo

Foto 1: Prîngrire, neta de Bep-tok-Onça, dá massagem em seu filho, um mebok de apenas


algumas semanas de nascido. O corpo dos bebês, ainda “mole” é modelado pelas mães e avós
enquanto dorme ou após ser alimentado com leite materno.

Foto 2 e 3: Durante as festas de nominação mereremex, as crianças são centro de atenção.


Começa pelas homenageadas, as quais evocam uma ave. Primeiramente são pintadas com
jenipapo e urucum; em seguida, enfeitadas com penas no rosto e, finalmente, portadoras do
krokrotí (cocar grande de penas de arara) elaborado especificamente para a dita comemoração.

Foto 4: O corpo das crianças mobiliza grande parte do tempo das mulheres Xikrin. Pintar ok
em um filho expressa os vínculos de sangue e os afetos mais expressivos entre os valores das
sociedades Mebêngôkre.

Foto 5 e 6: Os quintais das casas; o ipôkri no centro da aldeia; as cozinhas inclusive; os espaços
reservados entre as casas, na vizinhança, são constantemente invadidos pelos olhos de meprires
que buscam de forma exaustiva saciar sua curiosidade perceptiva. Pensar a aprendizagem à luz
das crianças é um convite a reparar em como opera o sentido Mari-ouvir, pois são as crianças
os seres mais dispostos a escutar -e ver- o cotidiano de seu entorno.

2
5

1 3
6
4
380

A leitura que Codogno (2007) faz sobre a interação horizontal parece-me relevante para a
minha análise, já que o período experiencial entre crianças é um dos alicerces de domínio
primário de técnicas em favor de uma atitude agonística. Inclusive, a autora chega a destacar
que através de processos horizontais as crianças adquirem saberes sobre fauna e flora e obtêm
conhecimento refinado sobre a sazonalidade da região, o que se expressa de forma contínua
através de desenhos na escola (recomendo ver a prancha 11 deste trabalho). Adicionalmente,
vejo os grupos de interação “horizontal” como espaços dinâmicos enquanto a sua composição,
dado que, se em um primeiro momento podem se encontrar misturadas categorias de idade e
gêneros, progressivamente vão se compondo grupos masculinos horizontais onde apenas há
lugar para os menoronure que irão explorar por sua conta os arredores da aldeia.

A propósito da experiência coletiva entre pares, Chamoux (1981; 2010) destaca que o
aprendizado deve ser entendido através de duas formas processuais: transmissão mestre-
aprendiz - onde existe uma relação diretamente guiada através de quem ensina para quem
aprende - e, transmissão por impregnação, referida a processos cotidianos em que uma pessoa
noviça sem ter uma interação com um mestre, insere-se em processos do coletivo levando-o a
obter conhecimentos. Transmissão por impregnação se mostra como categoria interessante
para observar os processos criativos das crianças. Não obstante, para Chamoux, esse fenômeno
não se limita apenas a categorias de idade próximas, abrangendo grupos familiares inteiros e
mesmo as vizinhanças, destacando como âmbitos da vida coletiva incorporam aos noviços a
uma lógica massiva de aprendizagem.

Talvez as atividades nas roças Xikrin, onde pais apenas acompanham as atividades de suas
crianças dando um mínimo de atenção enquanto são executadas as tarefas, possa ser um espaço
onde a proposta de Chamoux (2010) ganha forma. Contudo, a autora opta por argumentar que
a transmissão por impregnação é passiva enquanto não há uma direção explicativa de um
mestre. No caso dos Xikrin, diria em concordância com Clarice Cohn (2000; 2000a), que a
participação das crianças como agentes de aprendizagem é extremamente ativa, outorgando-
lhes papéis ou funções equiparadas às dos adultos.

Um outro aspecto considerável aqui é o dos brinquedos, já que na maioria dos casos, assim
como na caça no sentido estrito, o ato depende da associação com artefatos ou implementos
incorporados181, compondo um ritmo em simultâneo. Os exemplos que dei anteriormente não
fariam sentido se não houvesse um artefato na mão dos meninos: uma borduna para bater nas

181
O papel social dos homens e os dilemas da masculinidade em associação ao uso de artefatos de caça é explorado
por Pierre Clastres (2017[1974]) no seu trabalho “o arco e o cesto” sobre os Guaiaqui.
381

coisas enquanto caminham; um estilingue ou então um arco e flecha para matar os passarinhos
e peixes; um anzol e uma linha para pegar piabas; um pequeno paneiro para transportar as
batatas e mandiocas (Kwyry dja); entre outros, são elementos inerentes às brincadeiras,
indicando também que as crianças são incentivadas por adultos, em muitos casos mebenget que
fabricam réplicas de artefatos de caça adaptadas ao tamanho dos corpos dos infantes.

Tassinari (2015), que também observa esse aspecto entre os Galibi-Marworno, destaca ser a
dinâmica de fabricação de artefatos para as crianças concernente a uma estratégia pedagógica
que busca conferir um sentimento de autoconfiança, motivando os infantes a imitar os adultos
em atividades cada vez mais elaboradas. Portanto, apesar de estarmos diante de um cenário
horizontal onde a exploração das crianças parece ter um caráter altamente autônomo, na
realidade, há também um grande pano de fundo, composto por adultos que acompanham em
forma de cumplicidade seus pequenos, fazendo com que estes se sintam engajados com o
ambiente acessado.

São as brincadeiras a forma em que meninos se introduzem em relações concretas as quais com
o passar do tempo dão forma ao domínio de técnicas específicas. E são os adultos os que
garantem -outorgando autonomia às crianças- para que as brincadeiras sigam um fluxo
crescente de desafios e experiências. Aqui, parece-me que os mebenget ocupam um lugar
importante naquilo que talvez possa ser visto genericamente como a passagem de ser noviço a
intermediário182. Como acabo de dizer, os mebenget são os que confeccionam alguns artefatos
para as crianças. Isso está associado ao fato destes serem os que possuem o conhecimento
técnico e dispõem de tempo para elaborar artefatos, sendo pessoas experientes em fase de
inatividade. Apesar disso, deve-se considerar também que há funcionalidades específicas de
acordo com categorias de idade: pessoas mais novas, ainda que saibam confeccionar alguns
artefatos, preferem conferir esse conhecimento em ação aos mais velhos183.

Adicionalmente, e como já mencionei em outras partes deste trabalho, os mebenget convidam


os menoronure para irem caçar ou pescar e trazer carne ou peixe que seguidamente será
preparado e compartilhado pelo velho através de uma refeição coletiva184. Isso indica uma
relação de reciprocidade entre duas categorias de idade distantes: por um lado os meninos

182
Incorporo essa categoria para definir alguém que apesar de acompanhar caçadas, não é propriamente um
caçador.
183
Em depoimento, Prîncare expressou saber elaborar bordunas e estar aprendendo a fazer cocares, embora não
os faça, pois disse que corresponde aos mebenget esse trabalho.
184
Essa prática tinha maior constância na época em que os menoronure saíam das suas casas para irem morar no
atykbe, depois no ngàb. Embora hoje ainda seja observável em ocasiões muito concretas como os preparativos
para a festa bó, como me indicaram Bep Kaire e Kirire em depoimento pessoal.
382

ganham bordunas ou flechas e por outro os velhos recebem alimentos como resultado das
incursões dos meninos na mata e grotas próximas.

Dessa forma, estamos diante de um processo no qual há uma passagem da brincadeira (vista
aqui no sentido estrito de uma atividade entre crianças) para uma atividade de reciprocidade
onde os propósitos grupais giram em torno de uma prática cinegética mais elaborada: ainda
que os moços não possuam habilidades aguçadas, o fazer na prática faz com que eles mudem
suas próprias percepções e corporalidades no entorno do propósito de virem a ser
eventualmente caçadores. Ou seja, os menoronure “são aprendizes da sua própria prática em
constante mudança”, para usar palavras de Lave (2011). Ademais, é nesse processo de
participação constante que a repetição, vista como processo de inovação e recriação, dá forma
ao âmbito das skills (Ingold, 1987; 2000). No entanto, antes de me debruçar sobre essa categoria
que Tim Ingold tem abordado amplamente nos seus trabalhos, gostaria de elucidar um último
âmbito no qual, me parece, os aprendizes se engajam fortemente na aprendizagem situada.

Até aqui tenho me dedicado a abordar as formas horizontais de experiências entre crianças e,
em seguida, a maneira pela qual os mebenget incentivam meninos homens a se engajarem com
a mata e os corpos de água circundantes aos espaços domésticos. Entretanto, existe entre os
Xikrin uma outra prática pela qual passam, senão todos, a maioria de homens em alguns
momentos de sua vida, adscrita ao acompanhamento que meninos geralmente da categoria
menoronure fazem aos Mẽkratymre (geralmente ligados através de parentesco pais/tios/tio-
avô: ngêt-tabjuo). No capítulo 3, na secção sobre trilhas curtas, apresentei a forma em que Brí
e outros meninos de sua idade, sendo adolescentes, acompanhavam a Tekakprekti (Coronel)
ao longo de percursos nos arredores das roças e capoeiras. Esse tipo de caminhadas tinham um
alto sentido demonstrativo onde o caçador experiente fazia marcas em árvores e voltava em
pontos iniciais ou muito próximos, fazendo coincidir o ponto de entrada com o de saída.

Dita experiência, sem chegar a ser um tipo de aprendizagem por transmissão mestre-aprendiz
(Chamoux, 2010), pois não constitui um cenário de ensino estruturado por instruções, é uma
prática situada que tem como fim relacionar aos caçadores em potência com lugares cada vez
mais desafiadores. Hanks (1991, p. 23) aponta, em um sentido compatível com meu estudo,
que espaços onde aprendizes se inserem em práticas compartilhadas com veteranos ou
experientes não devem ser observados como estruturas de participação nas quais os aprendizes
se inserem como observadores de um processo que os transcende. Pelo contrário, os aprendizes
são participantes ativos, vindo a ocuparem papéis concretos através de tarefas. Brí, como
apresentei no capítulo 3, era um auxiliar de seu pai, contribuindo inicialmente na manutenção
383

das roças familiares e seguidamente na identificação de animais silvestres de pequeno e médio


porte entre capoeiras e trilhas subjacentes.

Em um contexto parecido, Correia e Gomes (2015) apontam que entre os Xacriabá as


experiências cinegéticas entre adolescentes e velhos apresentam, em alguns casos, uma
dependência mútua: “Apesar da inexperiência, esses meninos têm papel fundamental na
empreitada, pois fornecem um dos sentidos que ele (caçador experiente) não pode mais usar:
a audição. Assim, os filhos passam a fazer parte de uma situação de dependência mútua” (p.
190). Embora eu não tenha evidenciado um caso concreto deste tipo entre os Xikrin, parece-
me que a premissa de compartilhamento dos dispositivos sensoriais acrescenta elementos à
análise do aprendizado. Essa premissa mostra que os sentidos de um (os do aprendiz) podem
virar uma extensão dos sentidos do outro (o mestre caçador), configurando um campo de
execução prática privilegiado, no qual o fazer dá forma ao saber e o saber extrapola
radicalmente a premissa cognitiva na qual apenas quem tem mais experiência é detentor de
conhecimentos.

Vale dizer que a partir das experiências de andança guiada pai-filho/ngêt-tabjuo é mais
evidente a crescente formação de atributos do gênero masculino, cabendo apenas a meninos
essa experiência (reservando às meninas outras)185. Como Clastres (2017[1974]) apresenta
sobre os caçadores Guayaki, as experiências cinegéticas demonstram a vinculação entre
caçadores e arcos enquanto forma expressiva de status dos homens na sociedade. Nas
experiências guiadas Xikrin, os meninos começam a se relacionar mais decididamente com a
espingarda não no uso direto, pois comumente quem segura a arma é o caçador experiente, mas
sim na sincronização sensitiva em formato de simulação dos usos.

Esse aspecto é dado através da imitação de quem vai na frente: se o caçador para e abaixa, o
aprendiz faz igual; se o caçador apoia a espingarda em posição agonística sobre seus braços, o
aprendiz reclina os ombros e permanece tenso aguardando o estouro da pólvora irromper; se o
caçador marca uma árvore, o aprendiz olha a marcação e com um facão ou uma vara redesenha
o traço feito pelo antecessor, e assim por diante. Com isso, o que ressalto aqui é que além da
disposição corporal -e, portanto, sensorial- ampla (como acontece no processo de
aprendizagem horizontal entre menoronure), durante as experiências de acompanhamento

185
O trabalho de Francesca Bray (1997) é relevante para entender como o domínio técnico, associado ao uso de
certos artefatos, se relaciona diretamente aos gêneros. A autora aprofunda no âmbito feminino, analisando a
importância de aprender a tecer e fiar não apenas como uma prática útil na produção de bens, mas principalmente,
como expressão de valores e virtudes das mulheres chinesas ao longo de vários períodos imperiais.
384

guiado, os aprendizes desenvolvem de forma mais eficiente a sua disposição técnica enquanto
ao uso de artefatos, em especial, a espingarda. Portanto, estamos diante de um quadro de
posição estratégica, no qual espaço e tempo se conjugam ao redor da imitação, sendo esta a
forma mais factível de comprovar que não há um momento exclusivamente preparado ou
dedicado ao aprendizado. De fato, como Gomes (2015) indica em relação aos caçadores
Xakriabá: “aprender a caçar e caçar efetivamente eram tratados como práticas coincidentes”
(p. 190).

No entanto, deve-se tomar a imitação com cautela para não cair na armadilha da abstração
homogeneizante, própria dos processos de ensino como a socialização (Tassinari A., 2015).
Ingold (2000b) fornece uma saída ao definir a imitação em paralelo à observação,
argumentando que a segunda seria prestar atenção ativamente aos movimentos dos outros e,
consequentemente a primeira, consistiria em alinhar a atenção ao movimento de sua própria
orientação prática em relação ao ambiente. Com isso, a imitação é sinônimo de copiar, mas
também de improvisar, possibilitando que quem imita tenha a possibilidade de refazer um
padrão ou traço.

Copiar é imitativo sob a base de uma orientação mínima, improvisar é criativo na medida em
que os conhecimentos surgem das experiências dos próprios aprendizes. É aqui onde os
processos de acompanhamento entre uma geração de aprendizes e outra de veteranos tomam
forma como uma redescoberta dirigida, dando lugar a um sistema enlaçado que facilita
experiências mútuas no ambiente. Ademais, os campos de interação entre aprendiz e veterano
fazem com que a posição de cada um não seja fixada nem diluída por completo: um aprendiz
não deixa de sê-lo, e um caçador experiente não é rebaixado por estar entre aprendizes. Ambos,
em um fluxo constante de experiências, dialogam entre eles na composição de cenários abertos
de conhecimentos.

Dito fluxo de interações é o que o Ingold (2010) propõe como uma educação da atenção: “O
processo de aprendizado por redescobrimento dirigido é transmitido mais corretamente pela
noção de mostrar. Mostrar alguma coisa a alguém é fazer esta coisa se tornar presente para
esta pessoa, de modo que ela possa apreendê-la diretamente, seja olhando, ouvindo ou
sentindo” (p. 21). O autor destaca os sentidos físicos como responsáveis pelo processo do
conhecimento, dando lugar a uma visão semelhante à proposta por Lave & Wenger (1991), na
qual a mente e a criação que ela faz do mundo são equiparadas às experiências na prática.
385

Ingold (2001) dá um exemplo dos gestos de um ferreiro forjando, onde parece que há um
padrão repetitivo, embora os movimentos nunca sejam os mesmos. O autor argumenta que a
repetição-improvisação são responsáveis pela transformação do modelo: se entre gerações há
um repasse de conhecimentos e domínios, esse repasse tem na sua essência um formato
transformativo. A imitação está inserida em uma lógica onde a repetição é parte da atenção, e
a atenção é inovação. Entender esse aspecto é igualmente importante para analisar formatos da
cinegética Xikrin como o caça de estrada. Há algumas gerações atrás não existiam estradas
que ligassem as aldeias ao exterior da TITB, implicando que não houvesse uma forma de caça
como a que descrevi no capítulo 4. Assim, é fundamental perceber que o envolvimento dos
caçadores com o ambiente, seja na estrada ou nas trilhas, é equiparável entre ambos os
contextos. A estrada, na verdade, é uma extensão dos princípios das trilhas, embora esteja
repleta de elementos práticos que causam diferentes sincronias espaço-temporais nos corpos
que por ali transitam. Isso resulta em ritmos de caça inovadores.

Um outro aspecto que não pode deixar de ser apontado em relação à imitação, em concordância
com a abordagem da aprendizagem situada (Lave, 2011), refere-se a que a imitação não é um
campo restrito aos aprendizes. Pelo contrário, todos os participantes de uma comunidade de
prática estão envolvidos no processo contínuo de imitação - repetição-improvisação. Isso
porque o âmbito das experiências mostra que a imitação se refere a atos que obtiveram algum
grau de sucesso entre participantes: um aprendiz imita atos exitosos de pessoas nas quais confia
ou representam uma figura de respeito e um caçador experiente adapta seus procedimentos aos
movimentos de outros -ou dele mesmo- que recorrentemente vem demonstrando técnicas
(procedimentos) e/ou desfechos afirmativos. Parece-me aqui significativa a atitude de Prîncare
durante a sua moradia em Pytakô, período em que ele, sendo um mẽkratymre, decidiu seguir
os passos de Kwynhdjy, um mẽkranyre, para aprimorar suas caminhadas. Tal atitude demonstra
que apesar de sua vasta experiência, ainda podia seguir, imitar e aprender por meio de
Kwynhdjy, um homem jovem que vinha mostrando bastante disposição expedicionária no
cotidiano da aldeia.

Por último, quero tentar localizar o lugar da oralidade dentro da aprendizagem na prática, pois
no esforço por validar os conhecimentos produzidos a partir de engajamentos perceptivos,
parecesse que o exercício narrativo ficasse relegado a outros campos. Em efeito, a tradição
cognitivista pressupõe uma separação de sentidos onde a observação é vista como um
procedimento não verbal, sendo o conhecimento adquirido através de vivências práticas,
separado do conhecimento adquirido em espaços dedicados à instrução. Não obstante, uma
386

separação tão radical não cabe em uma abordagem que busca valorizar experiências através da
redescoberta dirigida. As formas verbais, como indicam Paradise & Rogoff (2009) possuem
múltiplas manifestações ao longo dos processos de aprendizagem, sendo geralmente reduzidas
aos espaços escolares onde busca-se reproduzir aspectos de uma atividade que realmente ocorre
em outro contexto físico e social. Por outra parte, as autoras indicam que a fala, em cenários
práticos, não opera como dispositivo de transmissão direta de instruções, podendo se relacionar
com um controle predeterminado do que as pessoas deveriam aprender. A oralidade, na sua
essência, constituiria um dispositivo de assistência da aprendizagem prática, havendo âmbitos
de confluência constante entre formas verbais e outras sensitivas, como a observação.

A oralidade deve ser vista como extensão e não como substituta do envolvimento prático no
ambiente. É importante destacar que a oralidade é um processo que pode não acontecer de
forma espontânea, pois no caso dos Xikrin há momentos específicos onde ela ocorre:
geralmente no ngàb, durante comemorações ou no quintal das casas durante as noites. Não
obstante, esses momentos são o complemento necessário para que a aprendizagem situada
continue o percurso do prático. Isso fica evidente no componente das falas quando se faz ênfase
em questões relacionadas com as experiências das caminhadas, verbalizando a memória dos
caminhos percorridos por antepassados, ou mesmo por caçadores na atualidade.

A esse respeito, sobre os Awá-Guajá, Uirá Garcia (2018) disse: “à noite que as caçadas
cotidianas são lembradas, e por vezes toda a assembleia de uma aldeia está atenta a uma única
pessoa, que conta os efeitos do dia como se narrasse belos mitos” (p. 510). Uma experiência
etnográfica relevante é a descrita no capítulo 2, onde após um encontro inusitado com uma
onça pintada, a verbalização foi talvez a forma mais eloquente de trazer a minha experiência
direta e fazer desta uma experiência estendida aos que não estavam presentes durante o
encontro com o felino. Eles, os que não estiveram ali, encontraram-se intimamente
relacionados a partir de outros encontros onde os sentidos como a observação e a escuta,
retrataram na memória cada detalhe.

O canto, no mesmo sentido da fala, poderia ser visto como um dispositivo de extensão das
experiências sensoriais, conectando aos envolvidos através da escuta e da eventual repetição
de versos, e os tornando pessoas engajadas por meio da memória. Portanto, a prática cantora
não deve ser vista apenas como um compêndio de palavras colocadas em forma de ritmo para
serem ensaiadas por aprendizes. Strauss (1984) indica que a composição rítmica dessa forma
verbal é privilegiada no que diz respeito à memorização, facilitando a replicação prática dos
atos contidos na entoação. O canto, tanto no cotidiano quanto no ritual, corresponde a um
387

exercício no qual as vivências do passado na floresta são evocadas no presente e orientam ao


futuro. A sua importância se enraíza na sua capacidade em fazer confluir todas as passagens
temporais em torno de uma entoação que testemunha o engajamento das múltiplas gerações -e
dos não-humanos -especificamente os mry, ao redor da floresta.

É importante insistir que, neste trabalho, ainda que me debruce nas experiências dos caçadores
na floresta e em como a aprendizagem acontece em simultâneo com a cinegética, isso não
significa que não haja outras formas de experiências dos Mebêngôkre na floresta as quais
possam contribuir para a aprendizagem (ver capítulo 6 sobre xamanismo, observação e
experiências suprassensíveis). Adicionalmente, destacaria a importância da narrativa:
conforme demonstrou Laura Graham (2018) em relação aos Xavante, cantos intimamente
relacionados aos sonhos são formas verbalizadas que dinamizam e afirmam a continuidade da
memória coletiva.

Consequentemente, propõe Tassinari (2009) que as fontes de conhecimento e validação entre


povos indígenas podem ser muito distintas das consideradas pelas sociedades ocidentais. Os
sonhos e os treinamentos para sonhar, assim como os estados alterados de consciência
resultantes do uso de alucinógenos, podem servir como ponto de referência para evidenciar
outros meios de aprendizado. Os processos de produção do corpo são igualmente importantes,
indicando a proposição de que a aprendizagem é simultânea aos investimentos na fabricação
de corpos, como destacarei a seguir.

Skill

Até aqui tenho me debruçado sobre arcabouços teóricos para pensar a aprendizagem à luz da
prática, buscando entender como esta poderia vir a ser fundamental na formação da pessoa
masculina. A imitação-repetição e a improvisação-inovação aparecem como chaves para
analisar o movimento entre os caçadores Xikrin, partindo da aldeia e se adentrando nas trilhas
longas da floresta. Não obstante, essas chaves estão relacionadas com um conceito indivisível
ao ato da aprendizagem situada, que dada a sua importância, poderia ser equiparada à argola
que junta as chaves, portanto, prefiro abordá-lo aqui de forma separada. Me refiro à noção de
skill186.

186
A concepção de skill em Ingold (2000) -como destaca Sautchuk (2015) - é ampla e complexa. Portanto, sugere-
se a não tradução literal da palavra em habilidade, mantendo-se a versão original em inglês.
388

Venho mostrando que as categorias de idade masculinas Xikrin vinculam-se ao redor da


cinegética, (re)formulando as instâncias em que emergem as relações entre homens, artefatos,
outros-que-humanos e o ambiente. Portanto, o processo no qual as vinculações acontecem,
pode ser considerado o ponto de partida da análise. Contudo, entendo que para haver um
conjunto de indivíduos em movimento em torno de uma comunidade de prática (Lave, 1991),
deve haver formas intencionais concretizadas através de ações, sendo factível de serem achadas
nos corpos, técnicas, artefatos, mas principalmente nos sistemas de relações. Essas formas
estariam adscritas como habilidades, mas não apenas isso, já que em um campo processual não
é possível evidenciar as propriedades preexistentes de quem usa e do que é usado, assim como
não é possível consagrar a posição de sujeito dotado de habilidades apenas ao humano que
executa a ação (Ingold, 2000b). Para explicar essa compreensão, Ingold (Ibid, pp. 352-354)
propõe cinco dimensões para definir a skill, as quais também explica (Sautchuk, 2015, pp. 123-
124):

1) Qualquer tipo de habilidade é inexistente em relação a uma propriedade preestabelecida de


conhecimentos. Portanto, as habilidades emergem através de processos experienciais em que
as partes de uma atividade vinculam e sincronizam seu sistema perceptivo ao serviço de um
ambiente compartilhado. Nesse sentido, a intencionalidade e a funcionalidade ganham força
como motores no meio a um cenário em que ações são imanentes ao conhecimento.

2) Subjacente à ideia da primeira dimensão: skill não é uma qualidade apenas do indivíduo
enquanto entidade biofísica. Pelo contrário, é o resultado do campo total de relações, que como
Sautchuk (2015, 123) explica, é conferido à categoria inicial de organismo-pessoa187, sendo
possível pensar que humanos e outros-que-humanos, ademais de coisas em um único ato,
formam parte na constituição de skills.

3) Automatismo, ou então repetição sem inovação, não tem lugar no campo de skills. Um
conjunto de habilidades só é possível enquanto haja uma sincronização de percepções e ações
em torno de atividades compartilhadas. Assim, skill demanda julgamento e destreza para
conseguir se adaptar e reincorporar de forma propositiva às tarefas que emergem.

4) A aprendizagem, no âmbito de skills, é essencialmente criativa. A manutenção de práticas


só é possível enquanto houver uma realocação das ações que dialoguem com as mudanças.
Aqui, parece-me que Ingold e Lave coincidem fortemente ao perceber que a aprendizagem

187
Ingold (2000) propõe usar essa expressão como tentativa de superar a visão dualista que separa os seres
humanos do ambiente e enfatizar a sua profunda conexão com o mundo em que vivem. Essa perspectiva oferece
uma abordagem ecológica para entender a experiência em contextos que desbordam o humano.
389

consiste em uma formulação cambiante das próprias práticas em constante mudança: as ações,
em mudança, são reformuladas através de práticas submetidas a uma “meta-mudança”. Ingold
propõe que a fórmula para abordar o campo da aprendizagem é a educação da atenção (Ingold,
2010), referida a uma dinâmica na qual quem é sujeito do aprendizado é submetido por sua
vivência própria à experimentação progressiva no ambiente ao qual se engaja.

5) Skill carrega sua própria intencionalidade e, na prática, se sustenta na redescoberta dirigida,


já que quem possui habilidades mais aguçadas é incentivado a operar no ambiente como guia
para que quem apenas está se vinculando possa desempenhar atitudes habilidosas mais
eficientes.

Em resumo, a noção de skill opera como componente integral da aprendizagem, uma vez que
reúne a repetição-improvisação em torno de atitudes criativas as quais têm como propósito
reformular adaptações das relações no ambiente. Ademais, não há um dono das habilidades,
pelo contrário, todos ostentam um vínculo -ainda que em graus diferentes- na formulação de
ações contidas em técnicas, ritmos e gestos. Esse dispositivo analítico abre o panorama para
uma abordagem que valoriza no exercício da prática habilidosa, a participação de outros-que-
humanos no processo constante de produção de relações.

A esse respeito, o trabalho de Sautchuk (2020) sobre pescadores e laguistas na vila Sucuriju,
ao norte da desembocadura do rio Amazonas, constitui um bom referencial para compreender
a forma em que skill é o resultado de um campo relacional. O autor analisa como os pescadores
que se dedicam a pescar em lagoas e os costeiros que se adentram no mar através de
embarcações, apesar de morarem na mesma vila e ter condições socioeconômicas semelhantes,
possuem sistemas de engajamento com as atividades de pesca muito diferentes. Por um lado,
os laguistas, que buscam pescar pirarucus através do uso de arpão, integram um sistema de
vinculação onde a figura humano-animal (laguistas-pirarucu) são os eixos da relação.
Geralmente, os laguistas transitam através de canoas usando remos, incluindo como integrantes
o proeiro (experiente) e o piloto (aprendiz) que fica na popa, estando estes vinculados através
de laços de parentesco e havendo uma interação entre gerações em torno da atividade laguista.

Já por outra parte, Sautchuk (2020) descreve a pesca costeira como um cenário de engajamento
repentino e de alto esforço na atenção. Os homens, quando atingem uma idade por volta dos
quinze anos, não antes, embarcam-se em um bote que os leva mar adentro sem seus pais. O
serviço que esses meninos fazem não é para seus consanguíneos. Durante a viagem, o aprendiz
deverá adaptar-se rapidamente a um ambiente alheio, carregado de obstáculos como as
390

ondulações no mar, as intempéries e a coordenação de várias tarefas em simultâneo. Durante a


integração à tripulação, os aprendizes não recebem direção -pelo menos não como no lago- por
parte de pescadores experientes, sendo necessário que os noviços aprendam unicamente através
da participação direta nas ações a bordo.

A atitude primordial na pesca costeira é “manter-se ativo” (Sautchuk, 2015, p. 112), ou então,
“não forgar” (Sautchuk, 2014, p. 386). Neste caso, o compêndio de tarefas na embarcação,
onde os pescadores podem se inserir, seja pilotando, jogando os anzóis no mar ou organizando
objetos, são apenas complementos da atividade que, parecesse, insiste em tirar do eixo central
a presença humana, ressaltando na ação o papel da embarcação como indivíduo. Ou seja, é
possível observar engajamentos que abrangem o humano, mas o extrapolam, dando lugar a que
coisas - sejam realocadas no contexto das interações sociais. É isso que Ingold (2013) propõe
tratar a partir da noção de individuação, se baseando no trabalho de Gilbert Simondon (1989;
2005).

Para Simondon (2005), os indivíduos como unidades fixas não existem, sendo que estes só
emergem a partir de um processo no qual é a autonomia funcional a que determina a
individualidade como produto de um campo relacional. Dessa maneira, as unidades físicas,
biológicas, psicológicas e coletivas, e, portanto, os indivíduos como figuras dinâmicas, seriam
instâncias produzidas a partir de movimentos de individuação. Em outras palavras, os
indivíduos (sejam coisas, não-humanos ou humanos) não seriam propriamente seres definidos
por prescrições contidas em formas materiais, biológicas ou culturais, mas atos em si (Ibid,
2005). Os percursos ou as trajetórias ultrapassam os indivíduos, sendo necessário segui-las para
dar conta de descrever o processo.

Ademais, Simondon (2005) propõe que as tecnologias moldam e são moldadas através de uma
“teia” de relações seres–objetos técnicos na constituição da realidade, tomando como
referência processos anteriores, incorporando informações e retomando experiências para
relações subsequentes. Essa dinâmica, de progressão simultânea no ambiente, é definida como
ontogênese (2005, pp. 204-208). Nela, apresentando um padrão axiomático cada vez mais rico,
os seres e as coisas tornam agentes, meio e elemento de individuação.

Para Sautchuk (2015; 2020), a fórmula da individuação permite analisar como a partir de atos
técnicos na pesca costeira, o barco se torna a entidade principal da prática, correspondendo ao
pescador ser uma parte periférica do ato. Mas então, como é que o pescador costeiro aprende
e, consequentemente, como é que ele se torna pescador? O autor explica que a condição para
391

ser um pescador costeiro não reside em pegar o peixe, pois quem o pega é o ato em si, através
da confluência de várias circunstâncias que vão desde os horários até a maré e, principalmente,
sendo o barco quem traz o peixe (Sautchuk, 2020, p. 158). Resta ao humano, para se tornar um
pescador, ser ativo, como mencionei alguns parágrafos acima. Ou seja, a intencionalidade em
sintonia com a disposição corporal e cinética dão como resultado atividades a bordo em
formato de sinergia. Uma vez que um aprendiz se engaja no interior do barco e dá conta de
modelar suas ações em torno de uma individuação maior, ele se torna, eventualmente, um
pescador.

Mas, como opera a individuação no contexto de bà kam tem entre os homens Xikrin? Para
responder é necessário chamar a atenção sobre um aspecto relevante enquanto as sociedades
ameríndias. Como há algumas décadas Seeger, Da Matta e Viveiros de Castro (1979)
destacaram, a noção de pessoa entre sociedades ameríndias de terras baixas deve ser observada
a partir de um sistema que privilegia o corpo e a substância. Entre os Xikrin, os estudos
antropológicos têm contemplado essa abordagem como chave analítica para entender a
organização social e cosmológica. Destacaria aqui: Terence Turner (1995; 2012), Lux Vidal
(1977; 1992); William Fisher (1991), Vanessa Lea (1991), César Gordon, (1996) e Clarice
Cohn (2000) como trabalhos importantes para pensar a produção de corpos Mebêngôkre.

Ademais, como tenho apresentado em vários momentos deste trabalho, a produção da


corporalidade entre homens é um princípio imanente à figura de pessoa masculina e
eventualmente caçadora. A concepção mari, podendo ser traduzida em uma dualidade
ouvir/aprender, é um aspecto importante nesse sentido, pois evidencia que o processo de
aprender é integrado ao processo de crescer: um homem, na sua condição biológica, deve
crescer sadio e desenvolver um corpo bonito ainda quando é meboktire (primeiros meses e anos
de vida), por isso que mães e avós consideram sempre dar massagens e repassar calor corporal
ao bebê, considerando o corpo em processo de modelagem (Cohn, 2000). Ademais, a
perfuração de orelhas e sua progressiva expansão, assim como do lábio inferior, configuram
qualidades físicas inerentes aos Mebêngôkre, significando em paralelo ao crescimento físico e
engajamento no ambiente, o desenvolvimento de aptidões para escutar, falar e, em simultâneo,
aprender. Tudo isso revela um investimento na fabricação de corpos intrínseco ao aprendizado.

Por sua vez, na narrativa de Prîncare com a que iniciei esse capítulo, há um outro aspecto
relevante para entender a distribuição de substâncias e/ou força e chefia herdada, ele disse:
“Quando Kudjoeire nasceu, ele já foi nosso chefe, ele juntava nós e saímos atrás de
passarinho, ali, pertinho da aldeia...”. Nessa declaração, é tácita a influência de uma estrutura
392

de herança de chefia, predeterminada por condições classificatórias onde filhos primeiros ou


subjacentes de um benadjwyry ocupam espaços de socialidade privilegiada entre suas próprias
categorias de idade menoronure,188. Dessa maneira, a constituição dos corpos, somada à
estrutura da chefia, são aspectos que talvez possam ser relacionados com a aprendizagem
Xikrin influenciando a constituição da pessoa por meio de precondições amparadas na
substância objetificada.

Essas características nas sociedades ameríndias parecem-me um aspecto necessário de ser


considerado em qualquer estudo que busque abordar a aprendizagem. Portanto, devo advertir
que apesar de estar me apoiando na premissa da individuação como princípio analítico para
entender as skills e, dita abordagem me permitir aprofundar meu interesse de estudo, não o
esgota. Já que Simondon (2005), e em consequência Ingold (2013; 2015), optam por
compreender a individuação de humanos, outros-que-humanos e coisas, a partir de uma
concepção antisubstancialista, a qual expresso a seguir.

A proposta central da individuação em Simondon sugere que a geração das coisas é dada
através de um processo de morfogênese no qual a forma é sempre emergente. Não há, ou pelo
menos não deve ser considerada, uma formação antecipada, como disse Ingold (2013, 26) em
referência a Massumi (2009, pp. 36-45): “A primacy of processes of becoming over the states
of being through which they pass”. Se substância corresponde a formas fixas que operam de
maneira hilemórfica que, a priori, caracteriza um elemento - no caso um corpo -, a
individuação é uma inversa dessa direção, amparada por uma realidade na qual as derivações
instáveis das relações agem simultaneamente, enquanto as coisas tomam forma: os corpos.

Nesse mesmo sentido, Sautchuk (2015) cita Simondon (2005, 19): “para pensar a
individuação, é necessário considerar o ser não como substância, ou matéria, ou forma, mas
como sistema tenso, supersaturado, acima do nível da unidade (...)” (p. 130). Ou seja, o ser
não é morfológico, apesar de possuir uma forma biológica, ele é feito pela sua autonomia
funcional, a qual determina sua condição de individualidade, podendo ser vista como critério
de participação em uma comunidade. Visto dessa maneira, a um ato cinegético no qual
acontece a individuação, outorgar-se-ia uma posição ao caçador apenas pela forma a qual seu

188
Não pretendo me explanar a respeito da ordem classificatória da chefia Xikrin, pois entendo que dada a sua
complexidade, me levaria longe da precisão analítica que quero determinar aqui. Embora, a asseveração de
Prîncare serve como recurso etnográfico para evidenciar que as experiências grupais contém premissas de caráter
social e classificatório, dando lugar a uma hierarquia, ainda que difusa, entre filhos de benadjwyry , e os outros.
393

engajamento emerge enquanto o ato acontece, não pelas suas condições dadas através da
corporalidade e da chefia.

Contudo, considero que o caráter antisubstancialista da abordagem de Simondon (2005) pode


chegar a ser relativizado, já que a substância talvez nem sempre deva considerar-se uma forma
radicalmente hilemórfica. Deleuze e Guattari (1987, p. 453) atribuem variabilidades, linhas de
fluxos e resistências à materialidade e à forma. Isso sugere que o problema da fixação
substancial estaria no modelo de estudo e não na substância em si.

Considero que a abordagem da individuação na sua base analítica, pode chegar a ter limitantes
enquanto à análise das formas hiléticas, podendo afetar a abordagem sobre as relações
multiespecíficas e sua operacionalidade material no ambiente. Assim, talvez seja mais propício
pensar essas relações a partir de bases epistemológicas que evidenciem os componentes
substanciais e semióticos. Por isso, me dedicarei a esse aspecto no encerramento deste capítulo.
No entanto, a individuação constitui um dispositivo analítico fundamental para pensar o campo
da operacionalidade, das técnicas e da aprendizagem. Considerar o ato da cinegética à luz da
individuação facilita a abordagem da noção de skill como princípio de emergência, inscrito em
uma relação de movimento. Como tenho defendido, essa relação é inerente ao processo das
relações situadas e à exacerbação perceptiva no ambiente florestal.

A individuação parece facilitar a abordagem da cinegética Xikrin, pois coloca em evidência as


interações e formas simultâneas entre caçadores humanos, caçadores/presas mry, coisas - como
espingardas, bordunas, arcos - e o ato de caminhar-caçar. Nesse sentido, uma abordagem onde
as experiências na floresta demonstram que artefatos podem atingir um grau de individuação
enquanto progressão, ganham força. Bechelany (2017, p. 266) demonstrou, a respeito da
cinegética entre os Panará, que a relação caçador-espingarda não deve ser reduzida à assimetria
sujeito-objeto, já que a arma é uma parte integrada à percepção e ação do caçador: a espingarda
não seria apenas uma extensão das ações corporais, mas um sujeito de mudanças e adaptações
nos gestos do caçador. Durante minha etnografia tenho focado a atenção ao movimento dos
humanos/outros-que-humanos e como que dali emerge o aprendizado, não dando tanta ênfase
à composição tecnológica caçador/armas, embora considero válida a possibilidade de analisar
para os Xikrin os processos ontogenéticos que dão lugar a uma individuação compartilhada
entre caçador e artefatos de caça.

Havendo esboçado o que considero limitantes e potencialidades da abordagem da individuação


em relação ao meu trabalho, desejo voltar à questão levantada algumas páginas atrás para
394

finalmente resolvê-la. No caso do ato de caminhar e caçar (bà kam tem) em Bacajá, quem se
individua? Como Sautchuk (2020) destaca, entre os pescadores da vila Sucuriju há dois tipos
de pescadores: laguistas (usam arpão, pescam pirarucu, navegam entre parentes, inserem-se
desde sua infância) e costeiros (usam anzóis, servem o barco, inserem-se no serviço de forma
espontânea, sem parentes). Em uma tentativa por elaborar uma comparativa com a atividade
bà kam tem, diria que há uma proximidade mais evidente com os laguista, já que para os
caçadores Xikrin a caça depende de relações de engajamento entre eles e os mry, às quais
podem ser vistas em termos de uma economia simbólica da predação (Viveiros de Castro, 2002;
2015).

Durante um ato de caça, colocam-se em relação sujeitos caçadores, e suas essências vitais;
animais mry, e suas essências vitais; armas e o ambiente florestal. Havendo uma configuração
de sinergias que potencializam o encontro. Caso ocorra, o resultado é a intensificação de uma
relação multiespecífica em decorrência, cabendo a predação de uma das partes. O ato de bà
kam tem, e especificamente a ação de abater, sintetiza nela mesma uma série de outras ações e
percursos entre humanos e não-humanos, como a caminhada, a navegação, rastrear, a
alimentação, a fuga, sendo um tipo de mobilidade que se molda e é moldada no ato. Aqui a
noção de skill toma força, chamando a atenção para a forma em que as habilidades resultam de
uma conjunção de movimentos, instituídas por organismos-pessoa.

Adicionalmente, no ato bà kam tem, assim como no caso dos laguistas, a interação entre
parentes configura os cenários para que a atividade ganhe sentido: a vinculação das
comunidades de prática exploratórias, em termos de uma dinâmica de redescoberta dirigida
através de vínculos entre caçadores experientes e aprendizes. Esse âmbito é determinante para
que haja uma renovação geracional e uma continuidade da atividade em si. Dessa maneira, a
configuração de skill depende de um processo de individuação do organismo-pessoa do
caçador, o qual progressivamente – e em coerência com a formação de sua pessoa masculina-
irá a mostrar cada vez mais atitude corporal, técnica e sentido teleológico na sua participação.

Igualmente, é importante destacar que estamos diante de dispositivos de habilidades onde as


ações se tornam cada vez mais especializadas. Isso como consequência da constante
acumulação de experiências satisfatórias. Em decorrência disso, as disposições corporais e
técnicas serão cada vez mais abreviadas. Por exemplo, um caçador que durante anos usa uma
espingarda (atóm) como meio principal para abater animais silvestres é diferente de um caçador
que recentemente adquiriu sua primeira espingarda ou a emprestou de seu sogro ou irmão.
Seguramente, a eficiência em relação ao abate de mry é, no primeiro caso, mais evidente do
395

que no segundo. O primeiro deverá exigir um menor consumo de cartuchos e possivelmente de


energia corporal para alcançar resultados iguais ou até superiores ao segundo.

Em um sentido equiparável, Gomes & Correia (2015) apontam a respeito da atividade de ceifar
entre meninos Xakriabá: “podemos concluir que aprender a manusear uma foice envolve
'eliminar' ou reduzir o número de gestos” (p. 184). Ou seja, o usuário, no meio de sua atividade,
seja o ato de ceifar ou então de caçar, tentará aguçar seus procedimentos e abreviar seus ritmos,
o que implica a diminuição no gasto de recursos, podendo ser desde a sua ferramenta até a
energia corporal. Assim, a operacionalidade de skills é sempre proporcional à progressão
simultânea no ambiente.

Em decorrência, pode-se concluir que um organismo-pessoa caçador se torna e é “tornador”


através de um processo no qual a aquisição de skills acontece como resultado de seu
engajamento: aprendizagem, skill e movimento formam uma triagem que engloba e define a
forma concreta na qual a iniciação, passagem e a participação plena são formalizadas em torno
da produção de masculinidade Xikrin (figura 25).

26. modelo de engajamento e aprendizagem na floresta.


396

Relações de aprendizagem são interações semióticas?

Até aqui vim apresentando como a mobilidade e formação de skill são preceitos intimamente
ligados à noção de aprendizagem. A abordagem a partir da individuação tem me permitido
enfatizar sobre a importância da multiplicidade de agentes -incluindo as coisas- que se
vinculam ao processo de caminhar na floresta. Ademais, como tenho observado, a individuação
no âmbito cinegético é conferida à relação entre pessoas humanas e não humanas, sendo estas
o eixo na ação. Ademais, como tenho advertido, a análise referida às relações que uma
sociedade ameríndia possui nos lugares florestais, sugere se defrontar com contextos
particulares onde as relações são exacerbadamente perspectivistas. Seja através de um campo
xamânico ou então técnico-experiencial, a cinegética ganha sentido enquanto cenário de
interação entre espécies.

Portanto, considero importante encerrar este trabalho trazendo uma análise que me permita
debruçar de forma conclusiva no contexto relacional humano/outros-que-humanos. Em um
esforço final, pretendo estabelecer os parâmetros que seguem as relações concretas onde
caçadores humanos; mry predadores e presas; plantas, espíritos e essências vitais (incluindo a
força akré, ver capítulo 6) entram em interação. Uma abordagem semiótica parece ser uma das
vias possíveis.

Se por uma parte tenho me valido de pressupostos principalmente “ingoldianos” para analisar
o engajamento dos caçadores na floresta, dando como um dos resultados o chamado a entender
dito engajamento como uma forma de atenção (Ingold, 2010). Sentir (Kohn, 2021b, p. 40)
parece ser um equivalente interessante para o mesmo engajamento, porém, dando ênfase à
formulação de signos como determinantes da interação entre várias espécies, como mostrarei
a seguir. Ademais, o exame das temporalidades nas interações e ambientes é uma questão que
aproxima os dois autores189.

Eduardo Kohn, retomando preceitos da obra de Peirce (2003; 2012[1992]), busca estabelecer
uma abordagem semiótica que vai além do simbólico, ao considerá-lo como limitado pelas

189
Ingold (2000; 2013; 2015) propõe em sua análise sobre movimento e percepção, priorizar a emergência das
relações a partir das temporalidades em detrimento da espacialidade. Para o autor, as relações emergem no
ambiente de forma espontânea, trazendo consigo ligações com o passado e marcando o futuro; a espacialidade,
viria a ser apenas um complemento material da forma em que a vida se dá no presente. Recomendo ler a análise
que o autor faz sobre o “tempo do sonho” entre indígenas Pintupi (2000, 40-60). Kohn (2021) não se afasta da
abordagem de Ingold, estabelecendo a temporalidade como eixo principal para compreender as interações
multiespecíficas, no entanto, prioriza em sua análise o futuro: aquilo que ainda não é, mas serve como
intencionalidade no presente.
397

fronteiras epistemológicas que indicam produções exclusivamente humanas190. O autor propõe


um esforço semiótico para abordar as formas nas quais interações de todo tipo são dadas na
floresta. Se para Ingold as interações físicas e os processos mentais acontecem em simultâneo
como uma figura de mão dupla onde sentidos e mente encontram-se equiparados; para Kohn,
essa dinâmica é igualmente válida, no entanto, ele enfatiza que o processo mental, sendo ligado
à proliferação de formas sígnicas, é um indicativo de que não só os humanos, mas todos os que
não o são, empreendem processos mentais, sendo pensantes enquanto produtores de signos.
Em outras palavras, se a vida na floresta é definida por signos, com cada entidade ali capaz de
ser tanto produtora quanto produto de signos, isso implica que todo pensamento,
essencialmente, está vivo (Kohn, 2021c).

Não é necessário ir muito longe para compreender essa premissa de índole perspectivista. Kohn
(2016; 2021c) que desenvolve o seu trabalho entre os Ávila Runa, falantes de Kichwa, no
Equador, se vale de dois episódios. O primeiro, aconteceu durante o seu campo. O autor
descreve um ataque a três cachorros, perpetrado por uma onça, para elucidar a presença de
múltiplos pontos de vista em um único contexto material. O autor descreve a surpresa
manifestada por algumas mulheres de uma aldeia quanto ao fato de os cachorros não terem
conseguido prever a sua morte por meio de sonhos no dia anterior. Além disso, aparentemente,
os cachorros não demonstraram nenhuma noção de perigo ao encarar uma onça por meio de
latidos ameaçadores. Apesar de uma indefinição quanto às razões do acontecimento, após
reflexões das mulheres, foi evidente que a interpretação de sonhos, assim como a noção de
perigo poderiam ser relacionais, dependendo do sujeito e contexto específico. Extrapolando a
compreensão e significado que as mulheres em si, poderiam outorgar.

O segundo episódio é um relato mítico. O autor dá outro exemplo através de um mito no qual
um Runa, prestes a arrumar o telhado de sua casa, observa uma onça nos arredores e a chama
sob a categoria de genro: “genro, me ajude a encontrar goteiras (...)” (tradução minha) (2021d,
p. 135), o uso de uma categoria de afinidade indica um lugar de corresponsabilidade parental
onde a onça não teria como recusar o pedido. Estando no interior da casa, a porta se fecha e a
onça é apressada. Esse breve relato é um forte indicador de redefinições ontológicas onde seres
da floresta tem a capacidade de interagir de múltiplas formas com humanos, incluindo versões
de afins potenciais. Não obstante, evoca também, como a partir de uma visão simultânea entre
dois pontos de vista distintos (o da pessoa que encontra-se acima do telhado e o da pessoa

190
O autor faz uma crítica à antropologia, e especificamente à abordagem humanista dos signos proposta por
Saussure (1945) onde a linguagem humana seria o alicerce para compreender todos os sistemas de signos.
398

abaixo do telhado) é possível definir pontos de correspondência que dão sentido à atividade de
um e outro191.

Estamos, portanto, diante de dispositivos de comunicação operados por interações além do


simbólico. São emaranhamentos sígnicos que testemunham e determinam o fluxo das relações
multi espécies, formando conexões ecológicas, embora seja sempre necessário reconhecer a
existência de domínios próprios: a ontologia de um ser não pode vir a ser apenas adotada por
outro de forma indeterminada, pois constituiria uma forma de predação ontológica. É sempre
indispensável, em um campo multiespecífico, que haja nós de interação no ambiente. Para
Descola (1989, p. 433), uma versão ecológica completamente oposta, seria o solipsismo de
idiomas naturais, o qual indica uma postura de não consciência em relação aos domínios de
outros seres que habitam o cosmos multiespecífico. Na interpretação feita por Kohn (2016), os
cachorros que encontraram a onça, e por conseguinte a morte, caíram em solipsismo, ou como
ele define “autismo cosmológico” (p. 14).

Adicionalmente, Kohn (2021d) reutiliza a categoria pidgins192 com um sentido multiespecífico


nas relações humano-cachorro. O autor vê a relação semiótica entre essas duas espécies através
de modalidades de comunicação falada: sintaxe e léxico kichwa, elementarmente humano,
adota também expressões em referência à linguagem dos cães. Por exemplo, para excitar os
cães -e nunca outros humanos- com um sentido agonístico, é usada a expressão tiu. Ou então
hua (huau), que indica o latido ameaçador dos cães, é uma expressão que através da duplicidade
sonora compõe uma linguagem única entre homem-cão. Kohn foca a sua análise ao cenário das
relações multiespécie caçador-cão. Um tipo de relação mais expressiva graças à convivência
contínua dos dois, tanto na aldeia quanto na floresta. Não obstante, penso que vale a pena
pensar os pidgins além, buscando referências entre espécies silvestres e humanos. Diria que
entre os Xikrin, o esturro imitativo de onças através de poh-tik é um exemplo etnográfico
predileto. Nas minhas experiências com Bep Tok, notei que a representação sonora da forma
comunicativa das onças era feita através de uma expressão grave/ronca e monossilábica,
podendo ser textualizada na onomatopeia “uuhhrr...” com sua respectiva repetição ou
multiplicidade rítmica. Caçadores velhos ou novos, independente da categoria de idade, usam
uma forma fonética quase idêntica para se referir ao esturro do felino. Ademais, como descrevi

191
A versão completa de um ser que poderia ter uma noção ampla dos dois pontos de vista, abaixo e acima do
telhado, é a do ser que enxerga além da forma naturalmente dada, ou seja, a visão do xamã. Para conhecer o lugar
do xamã e o xamanismo entre os Xikrin veja capítulo 6.
192
Refere-se a formas verbalizadas compostas de palavras de várias línguas. Geralmente são expressões
simplificadas que servem como conduto de interação entre pessoas que falam línguas diferentes, mas
compartilham lugares ou situações em comum.
399

no capítulo 4, a interação entre uma onça e um imitador com poh-tik, é uma forma real de
interdependência comunicativa.

Por outra parte, parece-me relevante observar que durante um episódio em uma expedição com
um dos meus interlocutores (ver capítulo 2), onde encontramos uma onça no caminho, a noção
de perigo foi oposta à descrita por Kohn: Txuak – o humano- teve uma atitude combativa,
encarando a onça. Inclusive, após errar o primeiro tiro com sua espingarda, decidiu ir atrás. Por
outra parte, o cachorro que nos acompanhava naquele dia, logo de ter sido o foco da atitude
agonística da onça, previu um cenário de perigo, decidindo se esconder atrás de mim durante
os minutos seguintes de perseguição nos quais fomos atrás do felino. É o meu episódio, em
contraste ao descrito por Kohn (2016), um cenário onde o cachorro prevê sua possível morte,
enquanto o humano assume uma figura ameaçante, equiparada aos latidos raivosos dos
cachorros dos Ávila Runa? Pode ser. Embora o meu relato reforce a premissa do autor, de que
cada indivíduo opera em um campo semiótico, sendo e emitindo signos através de relações
interdependentes.

Nesse sentido, em um mundo em que cada espécie humana, ou não, pode ter uma leitura
interpretativa e complexa dos contextos nos quais se insere, ademais de uma participação
expressiva no devir a ser, é que Kohn (2021a) propõe a definição de self -selves no plural- se
referindo a uma noção de “eu”, ou de “si mesmo” que extrapola a condição racional humana e
dá sentido aos projetos cosmopolíticos em virtude de realidades multiespécie. Os self, disse o
autor, “humanos ou não-humanos, simples ou complexos, são tanto resultado da semiose como
pontos de partida para uma nova interpretação de signos, tendo como resultado um futuro self
(...). Estes seriam as paradas de uma rota semiótica.” (2021b, pp. Ibid, 48, tradução minha).
Nessa direção, a semiose poderia permitir abrir as maneiras em que se habita o mundo,
independentemente das diferenças físicas e a partir da constituição ontológica de cada ser, já
que como Bateson (2000) tinha se referido “a vida na sua totalidade é produto de processos
sígnicos”, o que Kohn vem a propor como o todo aberto (2021b).

Mas de que maneira são dados os processos sígnicos? Ou como se constituem os self- ou si-
mesmos? Donna Haraway (2022) dá uma resposta concisa e visceral definindo os campos de
interação multiespécies como processos de becoming-worldly: “devir-com é uma prática de
devir-mundano, sendo figuras atraídas pelos nós multiespécies aos quais estão atadas e
reatam em sua ação recíproca (...). Estamos em um nó de espécies comoldando-se umas às
outras em camadas de complexidade recíproca até o fim” (2022, pp. 58, 65). Na visão da
autora – na qual se inspira Kohn - a vida é dada através de fluxos heterogêneos em todos os
400

campos possíveis, cabendo encontrar interações entre espécies em pontos de partida genéticos
até os campos simbólicos. Em suma, a vida possui uma base natural-cultural (Latour, 2013). O
exemplo do cão de Jim193 é uma referência importante para a análise, já que Haraway
problematiza como a forma de um tronco de sequoia morta, portanto em decomposição,
constitui um ambiente microbiológico enorme onde confluem múltiplas espécies (desde
bacterianas, passando por variedades fúngicas e vegetais). Por vezes, o ângulo e a perspectiva
de captura que James Clifford encontrou para registrar a árvore, evoca um grande cão sentado
com a cabeça levantada, indicando uma posição de atenção ou contemplação em relação a outra
coisa.

29. Jim’s Dog. (Courtesy of Clifford to Haraway).

A premissa sobre a imagem do cão enuncia que ali há múltiplas vidas em conexão. Mas como
um cão derivado de um tronco morto poderia estar em conexão ou associado a indicadores de
vida? Haraway (2022, pp. 13-15) explica que ali, na imagem, quando se observa a forma de
cão, há um contato, ou melhor, um toque, o qual é háptico-óptico. Ao interagir com a imagem,
estamos dentro de processos históricos, podendo ir desde o contexto da morte ou corte da árvore
um século atrás, até sistemas da tecnologia da informação, da mineração, do uso e descarte de
produtos eletrônicos e o uso e distribuição da fotografia através da informática. Esses processos

193
Nome outorgado a uma fotografia feita pelo James Clifford no campus universitário da Universidade de
Califórnia, Santa Cruz, cedida para Haraway. Ver o segmento “O cão de Jim e o cão de Leonardo” em Quando
as espécies se encontram (Haraway, 2022).
401

aparecem como formulações visuais e tácteis, propiciando a formação de nodos que se


vislumbram como sistemas interseccionais que misturam o “tradicional” e o moderno, por
vezes caracterizados por raça, sexo, idade, classe e região que, em conjunto, fazem o cão viver.
Esse campo interseccional é dado a partir de práticas de conexão carnal com o mundo, sempre
constituídas por figuras em um devir-com (Haraway, 2021), as quais podem ser equiparadas
aos self de Kohn (2021).

Portanto, as espécies, sejam humanos ou outros-que-humanos, são figuras. E figuras são nodos:
nodos de material semiótico (Haraway, 2022, p. 11). Ou seja, uma figura, no caso a do cão do
Jim, não é apenas uma representação ou ilustração didática de algo que em outro contexto
poderia ser considerado real e vivo. Pelo contrário, o cão de Jim é um signo que serve como
nó no qual diversos corpos, seres e sentidos se conformam uns aos outros, incluindo os que
observamos na imagem e reproduzimos em uma conexão com a mesma. Dessa maneira,
quando pensamos em criaturas semióticas estamos diante de figuras ou seres de natureza dupla,
pois assim como a imagem do cão do Jim nos faz cair em inúmeras possibilidades imaginadas,
por outra parte, nos faz também experimentar uma realidade corriqueira, contida no dia a dia.

A ideia de mundanidade, ou carnalidade -como a autora diz em alguns momentos- é a essência


de devir como. Se em um mesmo cenário estamos imersos em múltiplas formações semióticas,
essas formações significam que somos um, somos nós, sempre que somos muitos: devir com
muitos. Em palavras da autora: “nos inventamos uma à outra através de carne e lodo”
(Haraway, 2022, p. 26).

Pensar em figuras que vem a ser, de forma simultânea e conexa, mediadas por interações
sensoriais como a visão ou o tato, por exemplo o cachorro do Jim, incluem faixas temporais
distantes, as quais nos levam a entender que na produção semiótica há um componente
histórico, mantido por trajetórias que se encontram e refazem a cada certo momento. Anna
Tsing (2012; 2015) dá luzes sobre isso através do seu trabalho que busca rastrear as trajetórias
de cogumelos em processos de mundialização. A autora mostra como o excepcionalismo
humano nos cega diante de processos de interdependência entre espécies que sempre estiveram
latentes. Ela adverte que a história da “natureza humana” poderia estar sustentada em
argumentos que ocultam os processos históricos de outras espécies, admitidos por meios de
domesticação, que se configuram como fluxos ideológicos de imposição através de dicotomias
doméstico-selvagem, natureza-cultura.
402

Em outras palavras, a condição humana adquiriu historicamente um caráter de supremacia e


autonomia através de bases enganosas, afastando relações companheiras entre e com outras
espécies as quais sempre estiveram presentes como teias de interdependência. São essas as
margens indomáveis às que Tsing (2012, p. 184) faz referência, operando como nodos entre
espécies, dando lugar à vida e por conseguinte, à comumente chamada “natureza humana”.

Nesse sentido, se pensarmos em relações multiespecíficas como nodos semióticos de


interdependências históricas, as experiências sensíveis e suprassensíveis tomam forma
relacionando harmoniosamente categorias as quais venho trabalhando, como movimento e skill,
dando lugar à aprendizagem como resultado de interações e conexões interespécies. Ademais,
pensar a aprendizagem à luz de preceitos que contemplam trajetórias históricas, me parece que
leva a uma outra questão interessante de colocar: a da memória.

Quero encaminhar essa reflexão teórica ao contexto etnográfico deste estudo: a cinegética
como prática e a aprendizagem como processo situado. À luz dos pressupostos de Kohn (2021)
e Haraway (2022), os caçadores Xikrin podem ser colocados como figuras e signos em um
campo semiótico onde a interação que estes têm com as outras figuras do ambiente florestal
fazem com que o ato aconteça. A caça em si seria um emaranhado de signos que se (re)fazem
a cada experiência através das duas chaves que os autores oferecem: relações semióticas e
trajetórias históricas, ambas em ciclos de interdependência entre espécies.

O relato de Prîncare, com o qual comecei este capítulo, por exemplo, apresenta momentos em
que os menoronure abatem passarinhos, cutias ou pescam na beira do Bacajá, destacando a
importância que teve para o meu interlocutor ir atrás dos passos de seu pai e de outros caçadores
em expedições coletivas. Assim, as experiências de contato com a floresta, ao longo de vida de
um Xikrin, são modos que extrapolam uma visão estritamente humanista, pois a pessoa, no
caso masculina, é definida enquanto incorpora e diferencia seu self em decorrência do self de
outros-que-humanos. Vale ressaltar aqui, em concordância com Tsing (2012), que as
experiências e trajetórias descritas ao longo de todo o meu estudo sobre a cinegética Xikrin,
ainda que possam parecer em alguns casos modalidades humanísticas, na verdade estão sempre
ligadas a processos e experiências que coincidem em relações com outras espécies, coisas e
suas trajetórias. Se no capítulo 2 proponho que a técnica e experiência cinegética poderiam ser
vistas à luz de uma etnografia (ex)implícita, significa então que uma abordagem etnográfica
deste tipo é, em essência, uma etnografia mundana.
403

Outros estudos sobre cinegética em regiões longe da Amazônia coincidem em mostrar cenários
concatenados onde as formulações ecológicas passam pela interdependência entre espécies
para dar sentido a lugares onde acontece a caça, ligando geralmente processos de conhecimento
que olham para o passado, sendo indicadores de que a memória é uma peça importante no
conhecer multiespecífico. Vishvajit Pandya (1990) em seu estudo sobre os Ongees, na Baía de
Bengala, mostra como os lugares onde transitam os grupos de caçadores operam através de
campos comunicativos, ganhando significado quando vinculam animais, espíritos e plantas na
memória experiencial. A demarcação de áreas de exploração na floresta, assim como suas
intersecções, tomam forma na relação humano (mobilidade reta) – espíritos (mobilidade
ondulada). Por outra parte, Adrian Tanner (2014) em seu trabalho entre os Cree, ao leste do
Canadá, descreve como que animais, mas também ventos, são considerados pessoas no
itinerário da cotidianidade, tendo pensamentos e motivações comunicativas, por exemplo, a
preferência por viver em agrupamento. Assim, os animais de caça são vistos como
comunidades de prática com capacidade de estabelecer diálogos interpessoais.

Voltando a Kohn (2021b), a partir de seu trabalho entre os Runa, o autor oferece mais uma
análise para ratificar como os atos cinegéticos são cenários de interação semiótica que
dinamizam os engajamentos e conhecimentos. Dessa vez, Kohn descreve um cenário no qual
voltando de uma caminhada pela floresta, dois caçadores, pai e filho, enxergam um grupo de
macacos-barrigudos. Após o grupo perceber a presença de inimigos, se dão à fuga, ficando uma
macaca para trás. Ela tenta se esconder no meio das folhas de uma grande árvore. Logo, o pai
derruba um coqueiro nas proximidades da árvore com o propósito de assustar a macaca e fazer
com que esta saia do esconderijo. Só nesse momento, o caçador mais novo atira nela com a sua
espingarda. Nesse relato, o autor adiciona uma forma expressivamente semiótica, referida à
sonoridade de signos através de palavras abreviadas. Assim, relata como o pai expressa para o
filho: “cuidado! vou fazer ta ta (...) farei com que faça pu oh”194 (Kohn, 2021b, p. 42 tradução
minha). As duas expressões em negrita se referem a expressões verbalizadas de imagens, ou
seja, os caçadores decidiram derrubar um coqueiro (ta ta) inerente à paisagem contextual,
prevendo que através dessa ação se produziria uma ressonância sonora a grande escala (pu oh),
o suficiente para provocar ações em outras figuras vivas.

194
Expressões semelhantes são frequentemente usadas pelos Xikrin, por exemplo “pouhg” para indicar um tiro
de espingarda, “arghh” para indicar o último suspiro de um ser vivo antes de expirar, ou então “toc toc…” - como
mostra o relato de Prîncare no começo deste capítulo - para indicar mobilidade através de trekking. São alguns
dos sons abreviados que se encontram na linguagem de caçadores.
404

A ilustração desse episódio mostra que os signos - seu componente sonoro neste contexto -
operam como mediadores ou intermediários entre as figuras que compõem um cenário. Nesse
sentido, qualquer evento que está por algo para alguém de alguma forma ou capacidade, é
intrinsecamente um signo. Ademais, no exemplo etnográfico, o evento não é dado para os
caçadores, pois como menciona o autor, o coqueiro em queda, que vira um significante, está
para a fêmea barriguda. Isso também porque o coqueiro caindo significa para a macaca algo de
outro modo: ela no ato faz uma interpretação do acontecimento, o qual causa um desenlace,
nem sempre adequado à previsão dos humanos.

Adicionalmente, o coqueiro contido pelo ato da sua queda, o som que emite e o efeito visual
que possa exportar, são um índice. De acordo com Peirce (2012[1992]), signos implicam
índices, sendo uma categoria semiótica relevante para o trabalho de Kohn, pois involucra os
fatos em si, ou melhor, expressam uma ação real a qual por vezes, no invólucro das espécies,
vira uma experiência sensitiva e interpretante, viabilizada através da percepção das partes.
Índice poderia ser uma categoria semiótica que abrange uma análise a qual busca compreender
a aprendizagem prática ou, então, o engajamento com o ambiente. Aí reside a sua riqueza.

Em diálogo com a abordagem da aprendizagem situada (Lave, 1991) e a educação da atenção


(Ingold, 2010), propostas que se distanciam da tradição cognitivista, como mostrei no início
deste capítulo, diria que a abordagem semiótica proposta por Kohn (2021b) privilegia o campo
prático e experiencial, demonstrando que os signos não provém apenas da mente, separados
das entidades que representam. Pelo contrário, a mente, os sentidos, o corpo e os self, são
produto da semiose, mas também a semiose os extrapola, não podendo se localizar com
precisão, dada a sua natureza relacional. Cada parte viva tem ali uma elaboração que promove
a consolidação de pontos de vista, podendo ser diferentes, mas sempre em conexão, e conexão
é a chave no campo semiótico. Os caçadores, o antropólogo, a fêmea de macaco-barrigudo, o
coqueiro, inclusive o facão (assumo que foi essa a ferramenta usada para cortar o coqueiro) e
a espingarda (apesar de não serem organicamente vivos), podendo ser portadoras (produtos) e
comunicadoras (produtores) durante o evento descrito por Kohn, são também dinâmicas, pois
em um outro evento, o efeito significante poderia ser diferente.

Por último, gostaria de destacar a importância que adquire a temporalidade no campo


semiótico, já que os índices, os fatos em si, na sua estrutura comunicativa multiespécies,
provêm informação sobre o futuro por vir. Ou seja, um acontecimento, como a queda de um
coqueiro, a resposta de uma onça enquanto é chamada através de poh-tik, o barulho feito por
uma espingarda (atóm) em um certo perímetro da floresta quando é dado o primeiro tiro, ou a
405

corrida em fuga de um bando de queixadas quando se persuadem de um perigo potencial, são


algumas das eventualidades que podem ser usadas como exemplo de conexão temporal entre o
que acontece e o que poderá acontecer. E não me refiro apenas a causa e efeito, pois como
Kohn (2021b, pp. 50-52) demonstra, os signos são materialidades, mas também as ultrapassam
através de ausências. Aquilo que não é visível, apenas previsível: as incertezas são parte dos
signos, agindo como intencionalidade na mobilidade dos selves.

Então, os signos operam como rotas que apontam para o futuro, chamando a agir no presente
através de motivações em um panorama ausente, as quais a partir de leques de possibilidades
acabarão afetando o presente. Vejamos isso à luz de uma caçada de porcos em Bacajá. Durante
o período de inverno, um grupo de queixadas do mato costuma se deslocar de um lado para
outro, consumindo frutas silvestres que abundam no chão. O rastro da sua passagem é
marcante: na distância vai ficando o lodo batido, as folhas removidas e restos de frutas
mordidas; quando estão próximos, o cheiro é pungente e os roncos emitidos dão testemunho
da sua atividade imediata. Por outra parte, os caçadores caminham desde cedo pela estrada, a
caminhonete os deixou apenas a uns quilômetros da aldeia e preferem voltar caminhando em
procura de algum mry de porte mediano. As espingardas estão prontas. Não demora muito para
que um subgrupo perceba alguns vestígios do bando de queixadas que atravessou a estrada há
pouco tempo.

Os caçadores, sem dar instruções explícitas, entram na mata. Em questão de minutos estão
perto do bando. Os ngrú, desinibidos, estão em processo de se alimentarem. Após localizarem
o bando, os caçadores se dispersam, cada um toma um rumo. Um primeiro tiro irrompe o
momento. A maioria dos queixadas, assustados, se dão à fuga. Esses consideram que a rápida
ação poderá garantir a sua permanência física no mundo sensível. Mas isso é apenas uma
possibilidade idealizada, já que nada garante que a sua corrida será truncada por um caçador
estrategicamente instalado na sua frente, esperando o momento de o bando passar. Mas isso é
apenas um cenário ausente, portanto, os queixadas que fogem, não deixarão de fazê-lo.

Já em outra perspectiva, os caçadores, cada um em uma posição diferente, atira nos queixadas
que estão ao seu alcance. Parece simples: um tiro, um porco, vinte quilos de carne consumível,
em média. Porém, nem sempre um tiro dá certo. Os angrô são muito rápidos e se dispersam
com muita agilidade. Inclusive, um porco ferido pode morrer muito longe, onde não será
possível mais achá-lo. Cartuchos são escassos e geralmente caros na cidade. É melhor não os
desperdiçar.
406

Cada disparo é dado com a esperança de ser o fim para um porco. De dar certo, esse dia será
memorável na aldeia. O sogro, as esposas, os meprire, os cunhados e até os kubén, que por ali
estiverem, serão presenteados com uma presa boa para sua refeição. Mas isso tudo é apenas
uma possibilidade. Os homens podem falhar seus tiros e não conseguirem a carne de angrô.
De qualquer forma, os caçadores nunca deixam de atirar. Nesse caso, a ausência é presente: o
que ainda não é, é a causa do que será. É um sistema de sequência no qual um signo propicia
outro, e esse segundo mais outro, assim por diante, em um campo de potencialidades. Dita
dinâmica tem um sentido temporal: presente-futuro, presença-ausência. É aquilo, segundo
Kohn, que dá vida aos signos, fazendo-os imagens e insinuações de algo que será. Essa questão
revela e confirma a premissa da semiose como campo mental enquanto mundo experiencial.
Em outras palavras, a semiose como campo de interações multiespecíficas orienta-se,
essencialmente, na premissa devir com, baseada em experimentos mundanos.

Para finalizar, indicaria, no mesmo sentido de Haraway (2021), que os processos de interação
multiespécies, independente de serem dados entre humanos e cachorros (campo de análise da
autora) ou de serem práticas cinegéticas no meio da floresta amazônica, constituem encontros,
confrontos e correspondências, em um sentido de idas e retornos que a autora chama de
alteridade significativa. Essa alteridade significa um convite a pensar em epistemologias
relacionais, onde os atores não são nem todo, nem partes. Um mundo onde um ser vivo que se
encontra com outro constitui cenários de relações íntimas, ainda que na aparência sejam
radicalmente diferentes. É também esse o convite ao que Haraway (2022) se refere com a
afirmação “quando as espécies se encontram”. Pois o encontro, o devir-com, ou então devolver
o olhar (Ibid, pp. 60) são a base prática para tornar outros mundos mais possíveis. Portanto,
considerar uma semiótica multiespecífica constitui o primeiro passo para cultivar uma prática
ética.

Nesse sentido, a relação que os caçadores Xikrin empreendem e aprendem no ambiente


florestal, e que vem a constituir o alicerce da noção masculina de pessoa, é, na sua essência,
uma construção multiespecífica através de experiências sensoriais e mundanas, em um
processo mútuo de aprendizagem onde os humanos se constituem, mas também os mry o fazem
simultaneamente. Aprendizagem na prática é, assim, uma aprendizagem mundana de
interdependência multiespécies. Afinal, não é à toa que Prîncare e os menoronure da sua
geração consideravam a kukejre (cutia) um “bicho esperto...”, ou melhor, um bicho que
aprende.
407
407

30. Rop acompanhando o


Kwynhdjy.

31. Rop acompanhando o


Kwynhdjy.
408

Considerações Finais
A pesquisa apresentada ao longo deste trabalho teve como propósito analisar o aprendizado
entre os homens Xikrin por meio da relação estabelecida com a floresta amazônica, o qual
implica formas de mobilidade inseridas na prática da cinegética. Através de trabalho
etnográfico realizado nas aldeias Pytakô e Bacajá, localizadas na TITB, no Médio Xingu,
durante os anos de 2017 e 2018, ademais de constantes conversas e depoimentos à distância
até 2023, mergulhei nas complexas interações multiespecíficas entre os Xikrin e outros-que-
humanos que compõem o ambiente florestal.

A análise sobre a etnografia realizada tem destacado a importância da cinegética na


constituição da pessoa masculina Xikrin Mebêngôkre, demonstrando que a caça não é apenas
uma atividade de subsistência, mas também uma prática ontológica que conecta os caçadores
com a floresta por meio de uma semiótica multiespecífica (além do simbólico). Em outras
palavras, a relação entre os Xikrin e a floresta é muito mais do que uma busca por recursos
naturais; é uma conexão profunda e significativa que molda a própria floresta enquanto as
espécies (humanos e outros-que-humanos) moldam e se moldam em um fluxo de significantes
e significados interdependentes.

A introdução do trabalho e o capítulo 1 construíram uma jornada através das motivações e


abordagens teóricasque guiaram o estudo, assim como as trajetórias históricas, que marcam o
lugar dos Xikrin do Bacajá na região atualmente habitada no Médio Xingu. O capítulo 1,
explorou as cisões e alianças dentro do grupo, destacando a importância das tensões como
premissa da diferença, na reprodução da organização social. Além disso, se identificou uma
correlação entre o acelerado processo de aldeamento nos últimos dez anos e a implementação
de políticas compensatórias relacionadas à construção da UHE Belo Monte.

A partir do Capítulo 2, o trabalho mergulhou na cinegética Xikrin, Partindo da preocupação


por compreender como os caçadores interagem com os mry (animais de caça), os peixes, as
plantas, os artefatos e as coisas. A definição do conceito bà kam tem emergiu como o ethos da
mobilidade, mostrandocomo o processo de deslocamento da aldeia para a floresta é imanente
tanto no cotidiano comonos momentos rituais. A alteridade é evidenciada a partir de práticas
concretas como amiy tá (bater nos ninhos dos marimbondos), a familiarização de xerimbabos
e a ambivalente relação que se constrói com cães.

Já na parte II da tese, os capítulos 3, 4 e 5, tem buscado destrinçar as formas técnicas em que a


cinegética é dada nos múltiplos cenários que compõem a prática. O Capítulo 3 nos levou às
409

trilhas (pry) da floresta, revelando como elas constituem cenários cruciais para a mobilidade e
as experiências dos caçadores. Diferentes tipos de trilhas foram explorados, e as categorias de
idade masculinas desempenharam um papel importante na configuração da cartografia, dando
indícios para relacionar a circulação de certas categorias como menoronu e mebenget a trilhas
próximas e, menoronure-tum, mekranure e mekrantí a trilhas e lugares mais afastados. De
qualquer forma, a etnografia tem demonstrado que a circulação está vinculada a formas
transitivas que permitem que haja um intercambio geracional.

O Capítulo 4 nos levou além das trilhas (pry) na tentativa por explorar as formas técnicas que
emergem como alternativas de caça e mobilidade. A estrada que conecta a aldeia Pytakô ao
exterior da TITB se destacou como uma forma cada vez mais comum na confluência das
múltiplas espécies (mry) e os caçadores, o qual resulta em uma via que complementa as trilhas
enquanto outorga possibilidades mais eficientes no transporte dos animais abatidos. Corpos
d'água, foram analisados também como formas que complementam a caça, dando-se ênfase à
prática de “bater timbó” e “imitação com poh tik” (imitar o esturra das onças).

No Capítulo 5 se analisou a organização das expedições na floresta, foram examinadas as


dinâmicas de grupo levando-se em consideração os laços de parentesco, alianças, subgrupos e
categorias de idade. O papel das mulheres nas expedições também foi analisado, destacando a
distribuição de funções e trabalhos na floresta.

Por outra parte, na parte III, o capítulo 6 explorou as formas em que o xamanismo se apresenta
nas práticas cinegéticas no cotidiano. Tem se demonstrado que em Bacajá, apesar de não haver
xamãs verdadeiros, opera um complexo operacional de práticas dedicadas a preservar a
integridade física, moral e vital dos caçadores e suas famílias. Tabus, doenças e a influência
dos mortos (karón) foram discutidos, juntamente com o papel dos wayangá (xamãs) nas
alianças, na cinegética e no aprendizado.

Finalmente, no Capítulo 7, foi ampliada a discussão teórica sobre a cinegética e a aprendizagem


na prática. Se argumentou que a aprendizagem e a cinegética são dadas de forma
simultânea,seja nas primeiras etapas e anos de vida em formato de brincadeiras, ou em estágios
mais avançados onde os noviços se vinculam a atividades grupais que os inserem em redes de
trilhas, estrada, rio, grotas e outros lugaresda floresta. O desenvolvimento de habilidades, a
participação em grupos e turmas em torno decategorias de idade e o engajamento com o
ambiente por onde se dá a locomoção, são aspectosque não devem ser abordados de forma
isolada, promovendo um vínculo interdependente entre humanos e outros-que-humanos.
410

A análise tem observado também que a aprendizagem na prática nunca é completamente


conclusiva, outorgando constantemente funções a todos os indivíduos que se vinculam em
comunidades de prática: apesar de um individuo atingir uma certa idade, um domínio de
habilidades, ou conhecimentos apurados, que o faz obter resultados afirmativos e a legitimação
pelo próprio grupo; a vida social outorga sempre elementos inovadores a serem aprendidos.
Por exemplo, um mebenget (velho), apesar de não ser um caçador ativo, é uma peça
fundamental na recriação dos procedimentos técnicos, a memória das trilhas e lugares e o
exercício da narrativa cinegética.

Além disso, foi possível constatar que os outros-que-humanos (sejam mry, peixes, aves,
plantas, artefatos, donos, mortos ou as próprias trilhas, estradas e corpos d'água, entre outras
possibilidades), desempenham um papel fundamental na produção de conhecimentos nos
contextos em que as experiências sensoriais operam como a matriz do saber. Em resumo, esta
pesquisa forneceu uma visão profunda e abrangente da relação entre os homens Xikrin, outros-
que-humanos e a floresta, afiançando que o ambiente florestal constitui um cenário
essencialmente societal. Demonstrou como a circulação na mata é fundamentalna construção
do ideal de pessoa masculina Xikrin. Abrindo as possibilidades para que pesquisas futuras
possam explorar a noção de pessoa, as práticas ecológicas e as redes de parentesco e afinidade
à luz da imanente e indissociável relação entre os Xikrin mebêngôkre e a floresta amazônica.
411

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32. Castanheira morta da aldeia


Pytakô.

33. Castanheira morta da aldeia


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