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JORGE ELIAS

CAVALEIRO DA
CONCÓRDIA
O HOMEM DO OUTRO MUNDO

RACIONAL GRÁFICA EDITORA LTDA

Para João Roberto Kelly, Zé Ketty, Vicente Paulo de Mattos, Orlando


Dias, Paulo Bob, José Ventura, Orestes e Robertinho Golden Soy. Músicos,
compositores e cantores. Ventos Racionais a embalar a vida com suas
canções. Momentos de poesia, ternura e êxtase;
Para Wilton Franco que me levou do jornal para televisão. Padrinho,
conselheiro e amigo;
Para José Louzeiro que me trouxe à "força" da televisão para o livro.
Irmãos de duras jornadas, incentivador incansável e perseguidor rigoroso;
Para Maurício Gaze, José Petros e Luiz Sérgio. Amizades sinceras,
solidificadas nos momentos difíceis de minha vida.
ANTES, UMA ADVERTÊNCIA

Se a situação política do Presidente José Sarney era difícil, à frente do


Executivo, em dezembro do ano passado, o mesmo não poderia se afirmar três
meses depois. Coincidência ou não, o Governo José Sarney se fortaleceu, logo
após a visita do Mestre Manoel Jacintho Coelho ao Presidente, no Palácio da
Alvorada, em Brasília.
A completa e surpreendente modificação do quadro político brasileiro,
possibilitou a José Sarney realizar todas as suas vontades, aprovando, entre os
Constituintes, por margem substancial de votos, tudo aquilo que desejava: a
vitória do presidencialismo como regime de governo e o mandato de cinco anos
para Presidente da República.
Mas quem seria Manoel Jacintho Coelho, esse homem de 85 anos de
idade, autor de uma obra de quase 800 livros, idolatrado por mais de cem
milhões de brasileiros, os quais se vestem de branco e o tratam de PAI e
GRANDE MESTRE?
Teria ele poderes suficientes para modificar o destino político do País,
com a mesma facilidade que consegue aparecer e reaparecer,
simultaneamente em vários lugares, realizando curas de moléstias tidas como
incuráveis?
Verdade ou não, as portas dos palácios sempre estiveram abertas para
Manoel Jacintho Coelho e os ocupantes do poder sempre ronronaram aos seus
pés.
Não só por sua força política incontestável, mas também por seus
poderes há muito alardeados. Não foi à-toa que a principal figura política da
história republicana do Brasil, o Presidente Vargas, tornou-se amigo e
confidente dele e até bateu cabeça no gongá da Tenda Espírita Francisco de
Assis, no Méier.
O livro que o senhor e a senhora têm nas mãos não é um trabalho
específico de Cultura Racional, nem pretende mostrar aos incrédulos, aos
crentes e aos religiosos mais fervorosos, a luz da razão, o caminho da
salvação e da eternidade.
Longe de mim tamanha pretensão.
Quem quiser continuar estudando Cultura Racional, terá de fazê-lo
através dos Livros UNIVERSO EM DESENCANTO, uma obra gigantesca,
valiosíssima, através da qual os Racionais afirmam que estão alicerçando a
construção de um mundo novo, aquele que será habitado, segundo eles
próprios, pela civilização do Terceiro Milênio.
Não se trata tampouco de um retrato biográfico do Mestre Manoel
Jacintho Coelho. As biografias não me fascinam, nem me encorajam. Quase
sempre são cansativas, entediosas. Na maioria das vezes, pretensiosas,
dirigidas. E não raro, encomendadas para o lustro e glória de quem alcançou o
sucesso, o poder e a fama, sem predicados ou méritos. Não me prestaria a
esse tipo de trabalho, até por temperamento. Não toparia participar da feitura
de um retrato retocado, de cores pálidas, esmaecidas, deformado e irreal. Nem
o Mestre Manoel Jacintho, pelo muito que lhe conheço, iria desejá-lo.
Quem arrasta atrás de si milhares de seguidores, transmitindo
ensinamentos, lecionando corajosas lições, não precisa de biografias, nem de
retratos retocados. Vale por aquilo que prega, pelo que ensina, pela imagem
que empresta, pela árvore que planta, por suas revelações e aquilo que realiza
Agora, se a senhora ou o senhor desejam saber um pouco mais desse
HOMEM, de sua história e dos muitos episódios que contam sobre ele, de seus
poderes, de sua força, do início de tudo, devem ler o livro. Fica aqui o meu
convite. Se a curiosidade for muito grande, por certo vão devorá-lo. Os
caminhos percorridos por Manoel Jacintho Coelho foram tão surpreendentes
quanto as suas atuais aparições.
O CAVALEIRO DA CONCÓRDIA nasceu da minha amizade com o
Mestre Manoel Jacintho Coelho, da sugestão dele, bem como da cobrança de
nossos amigos. Reúne, numa linguagem simples, sem pretensões literárias,
passagens da vida do Mestre Racional e fatos ocorridos com ele, antes e após
o surgimento da Cultura Racional. Muitos destes episódios foram contados pelo
próprio Mestre Manoel e por certo teriam sido varridos pelo tempo, não fosse a
sua privilegiada memória. Outras foram colhidas por mim, aqui e ali, nas
minhas andanças, com muito carinho e interesse.
De uma coisa estejam certos: O CAVALEIRO DA CONCÓRDIA vai
aproximá-los ainda mais do homem Manoel Jacintho Coelho. Descortinará,
através da leitura, um universo mágico, repleto de colorido e energias. Vai
ajudá-lo a compreender a obstinação e a inabalável coragem de construir deste
escritor Racional e também a dimensão de seu trabalho: envolvente, puro e
branco como as roupas que vestem aqueles que decidiram segui-lo. A
advertência está feita. Venha, vamos iniciar a viagem.
O autor
I parte

A ÚLTIMA CARTADA
Noite inteira, as mulheres estiveram ali, exibindo a ilusão de seus
decotes. Enquanto havia música, deslizaram pelo salão jogando beijos aos
freqüentadores mais tímidos e lançando olhares furtivos aos mais escolados.
Mas acabaram indo embora com o passar das horas, algumas acompanhadas
outras, não, deixando no ar a sedução de seus perfumes, bem como a
lembrança de seus vestidos rodados. Agora o bar das Carmelitas, um
barulhento café-concerto, instalado na Rua Moraes e Vale, na Lapa, vai ficando
deserto. Apenas alguns músicos retardatários ainda se misturam aos garçons,
empenhados no recolhimento das garrafas e copos espalhados sobre as
mesas.
Terno azul-marinho bem cortado, camisa de seda branca, gravata de
"tussot" e sapato preto de salto carrapeta, Manuel Jacintho Coelho retoma do
banheiro, onde fôra lavar o rosto, tentando afastar o sono e diminuir o cansaço.
Aquela noite havia sido diferente para ele, apesar da rotina. Durante o tempo
em que permanecera abraçado ao violão de sete cordas, divertindo boêmios,
mulheres, artistas, políticos, jornalistas, malandros e, principalmente, otários,
muita coisa aconteceu.
Por alguns instantes tivera a estranha sensação de estar saindo de seu
próprio corpo, evaporando, depois partindo e encontrando um outro mundo.
Tudo aconteceu de forma inesperada, incontida, e porque não dizer,
avassaladora. Seu corpo começou a ficar adormecido, como estivesse
anestesiado.· Ainda reagiu, respirando fundo. Quis falar, pedir ajuda, mas não
conseguiu. Parecia flutuar no ar denso de fumo e de muitas fragrâncias do Bar
dos Carmelitas. E embora soubesse que algo de anormal, de muito sério, de
novo e também diferente estivesse acontecendo, tinha a certeza: não havia
perdido a consciência, tanto que continuava dedilhando o violão, sem perder o
compasso do samba de Ismael Silva, cantado por um crooner mulato, alto e
forte, voz quente de lirismo e conhaque:
-Se você jurar! Que me tem amor! Eu posso me regenerar! Mas se é
para fingir mulher! A orgia assim não vou deixar.
Assim permaneceu algum tempo, solto no espaço. Wanda, amiga da
Olívia, dançarina do Cabaré Royal Pigalle, após observá-lo, comentou com
Ceci, aquela que se tornaria, no futuro, o grande amor de Noel Rosa:
-Olha só o Manoel. Hoje ele deve estar muito romântico. Desde que
começou a tocar está com os olhos fechados.
Diante da observação da companheira, Ceci apenas sorriu. Depois
balançou a cabeça, concordando.
Aquelas pobres mulheres da Lapa, tão jovens, tão bonitas e tão
carentes, ali estavam todas as noites, arrastando suas vidas pela pista de
dança. Mais que um par constante, um cavalheiro bonito e bem arrumado, para
enlaçá-las pela cintura, num rodopio elegante, ao ritmo da canção, sonhavam
com um lar, um marido, filhos e uma família. A cada manhã, porém,
despertavam do sonho, sobre os lençóis manchados de pecados e
amarrotados dos hotéis pouco recomendados da Rua Conde Lage. Nas bolsas,
alguns trocados a mais.
Nos rostos, as marcas da decepção.
Encerrado o transe, concluída a viagem de volta, Manoel Jacintho
Coelho não escondia: estava atordoado. Perplexo, não sabia o que fazer nem
tampouco o que contar. Imaginava apenas o fim daquela situação, daquele
estado aflitivo, inexplicável. Foi quando um forte assovio invadiu-lhe os
ouvidos, um assovio ensurdecedor, bem parecido com aqueles emitidos pelos
rádios antes da sintonização. Surgiram, então, diante de seus olhos, as
terríveis imagens da tragédia.
Sem perder tempo, procurou uma cadeira e tratou de sentar.
Ouviu os estampidos dos tiros. Foram quatro, pôde contar um-a-um.
Seguiram-se os gritos de pavor e o corre-corre no cabaré. Homens e mulheres
buscavam a escada, desesperados, querendo fugir. Uns tropeçavam, caindo.
Outros, não. Corriam e saltavam sobre os que estavam no chão. O tumulto
estava generalizado, o pânico estabelecido. Três dos tiros haviam atingido um
homem de terno branco, ele gemia de dor e ia se curvando, segurando o peito
e a barriga. Logo o sangue manchou-lhe o terno e as mãos, aumentando-lhe
ainda mais a aflição. Manoel esforçou-se tentando reconhecer aquele homem,
cujo rosto lhe era familiar. Foi quando alguém bateu-lhe nas costas, cantando e
interrompendo-lhe a visão:
Meu Deus, eu ando com o sapato furado! Tenho mania de andar
engravatado! Minha cama é um pedaço de esteira! Uma lata velha me
serve de cadeira...
Identificou o samba e a voz. O samba era Cabide de Molambo, de João
da Baiana, um velho amigo, mostrando com humor, um tipo miserável, mas
bastante comum nos bares e na boemia da cidade. A voz, de um outro
companheiro: Aristides Júnior de Oliveira o Moleque-diabo:
-Então, Manoel, vamos embora? A festa acabou.
-Moleque, não sei o que está acontecendo comigo. Difícil de explicar, foi
tudo muito estranho.
-De que você está falando, Manoel? Eu não estou entendendo nada...
-Vamos embora, Moleque. No caminho, eu lhe conto tudo. Certo?
-Podemos dar uma paradinha no Capela. E ali comer qualquer coisa ...
-Está bem, Moleque. Vamos até lá.

2
Unhas polidas e anel de chuveiro, jaquetão de tropical inglês, num tom
cinza-claro, Aristides Júnior de Oliveira, o Moleque-diabo –apelido que ganhou
por suas qualidades de músico inigualável de qualquer instrumento de corda -
logo se apressa. Acomoda com todo cuidado, num estojo de veludo preto, o
bandolim importado, e acena para o companheiro:
-Estou pronto Manoel, vamos?
Essa hora já não é difícil de se conseguir uma cadeira num restaurante.
E o Largo da Lapa, aparentemente intransitável, no início da noite, aos poucos
vai ficando deserto. Ao apagar das luzes, a Lapa, porém, não é menos
barulhenta nem menos alegre. O vozerio de sua gente ainda pode ser ouvido à
distância, vindo dos bares, dos cafés, das pensões de mulheres e também dos
cabarés.
Os dois músicos descem pelas calçadas estreitas e pecaminosas da
Rua Moraes e Vale, na direção do mal-afamado Beco dos Carmelitas, onde
mora o poeta Manoel Bandeira. Protegidos pelas sombras das paredes dos
antigos sobrados, seguem para o Largo da Lapa, onde o bonde faz a curva e
fica o Capela, restaurante que serve, por preço razoável, o melhor bife com
fritas da cidade. A conversa se tornara tão interessante que eles nem
perceberam, bem próximo, um bêbado discutindo com a sombra, debaixo de
um poste de iluminação a gás:
-Você tem de parar de me seguir... o que você quer de mim...
A caminhada, porém, foi interrompida. Diante dos olhos de Manoel surge
novamente o rosto do homem de terno branco, cujas cenas da morte lhe foram
antecipadas, ainda nas dependências do Bar dos Carmelitas. O músico
estremece, pára, empalidece. Começa a suar frio, sua expressão é de pavor.
Ao seu lado, Moleque-diabo quer saber o que está acontecendo, mas Manoel
não consegue falar. O homem baleado não geme mais nem demonstra sentir
dores. Sorri e fala, num tom debochado. Apenas Manoel escuta:
-Não queria saber meu nome, Manoel? Estou aqui para isso, dizer quem
sou. Realmente você me conhece de alguns carnavais. Tenho dançado muito
ao som de seu violão, pergunte ao amigo, o Moleque-diabo, a quem
você escolheu para as confidências. Meu nome é Octávio José Pinto. Mas na
Lapa, na roda da malandragem, ganhei um apelido: Meia-noite.
Segue-se uma forte gargalhada e o rosto de Meia-noite desaparece. No
ar paira a fragrância francesa do perfume predileto do malandro. No chão,
reluzente, um monograma feito em ouro, com as iniciais do nome dele.

3
Bem próximo dali, um dos maiores amigos de Meia-noite, o
Miguelzinho Camisa Preta -assim chamado por só usar camisa dessa cor -
encontrava-se em apuros. Valente, bom de briga, apesar de sua baixa
estatura -1,64m de altura e 54 quilos de peso -ele está sendo retirado do
interior do Cabaré Novo México, por uma mulher, Rosinha, uma ex-bailarina,
muito ciumenta. E ela não faz por menos, castiga o companheiro com
beliscões, xingamentos, puxões de orelha e empurrões. Dominado pelo
coração, Miguelzinho não esboça a menor reação. Pelo contrário, cabisbaixo,
apanha em silêncio. E enquanto o táxi não vem, multiplicam-se os golpes.
Rosinha está furiosa.
Do outro lado da Avenida Mem de Sá, oito marinheiros divertem-se com
a situação. Chegam a se contorcer em gargalhadas e gritam, vez por outra,
para a mulher:
-Bate mais, ele gosta... bate mais, ele gosta...
Miguelzinho continua calado. Aguarda um táxi. Quando o primeiro se
aproxima, ele não perde tempo: lança à sua frente e trata de pará-lo. Embarca
a mulher, sem perda de tempo, e fala ao motorista:
-O senhor pode manter o motor ligado. Vou ali e não demoro. De fato
não perdeu muito tempo. Ágil como um gato, mestre na capoeira, senhor na
malandragem, foi logo colocando as mãos no chão, derrubando os três
primeiros. Os outros três se assanharam, não acreditavam no que estavam
vendo. Resultado: receberam igual tratamento. Solto no espaço, mãos no chão,
pernas girando no ar, como pás de moinho. Miguelzinho bate forte,
massacrando os adversários.
Ao final da briga, cinco deles estavam no chão, necessitando de
socorros médicos. Os três outros, após terem se certificado de que a briga era
ruim, embarcaram no primeiro pé-de-vento, descendo a Avenida Mem de Sá,
rumo ao Passeio Público. O cantor Francisco Alves, o Chico Viola, na porta da
Leiteria Boi, ficou sem entender nada. E indagou do compositor Nilton Bastos,
ao seu lado:
-Tem algum navio pegando fogo por aí?...
Miguelzinho durante a briga havia sujado um pouco da manga do paletó
bege, o que não acontecia quando brigava contra dois, três ou quatro
adversários, por isso de volta ao táxi continuou apanhando.
Sob o pretexto de que "eu não quero você brigando na rua como um
vagabundo, sujando a roupa que eu lavo", Rosinha continuou castigando o
companheiro. Ela pretendia a qualquer custo, tirar seu homem daquele lugar,
afastá-lo da malandragem, da boemia, dos cabarés, das pensões das
decaídas, o que ia conseguir anos depois.

4
-Eu vi o malandro morrendo, Moleque. Foram três tiros.
-Que malandro, Manoel... que loucura é essa? Você está precisando de
um médico, isso deve ser cansaço, procure dormir um pouco mais e se
alimentar melhor ...
-Moleque, eu sei do que estou falando. Não estou doente nem
tampouco delirando. O que vi não foi um sonho nem um pesadelo. Foi uma
visão, antecipando-me um acontecimento, daí a minha preocupação. Gostaria
de evitá-lo, mas não posso fazê-lo. Não gosto de derramamento de sangue.
Sou um músico, um homem de sensibilidade, portanto, avesso a qualquer tipo
de violência, embora saiba que ela exista, principalmente aqui na Lapa.
Moleque-diabo não consegue esconder a curiosidade. Acompanha,
com muita atenção, as palavras de Manoel:
-O Meia-noite vai morrer, não demora muito, Moleque. Quem vai matá-
lo, eu não sei. Mas ele será assassinado. A visão que tive, e que acabou me
deixando neste estado, antecipavam-me as cenas do crime. Diante da
afirmação do Manoel Jacintho Coelho, Moleque pára. Descrente das
revelações, procura convencê-lo de que elas não são verdadeiras, palpáveis.
Teriam sido, no seu entendimento, uma alucinação, como tantas outras
ocorridas com diversas pessoas.
-Manoel, você pode até ficar aborrecido comigo, mas não acredito nessa
história de crime. Não me venha com absurdos, coisas do outro mundo. Não
acredito em espiritismo, macumba, olho grande. Tenho por hábito trabalhar, ao
invés de rezar. Se fico por aí rezando, meu Deus, agradecido pelas orações,
não vai me dar o que comer. Ponho minha fé no trabalho. Aliás, o trabalho tem
sido o meu Deus e também a minha salvação. Com esse bandolim faço da
música a minha oração. Depois, o Meia-noite já abandonou essa vida de
malandragem, de boemia. Está morando com uma mulher, a Arminda, lá na
Rua Assis Carneiro, na Piedade. E levando uma vida tranqüila como chefe de
família. Regenerou-se mesmo, você acredita, Manoel?
-Acredito. Como também acredito naquilo que vi. Moleque-diabo sorri.
Vai ser difícil demover daquela idéia e começava a se preocupar com o amigo:
-Será que Manoel vai continuar tendo essas alucinações? Indagou a si
próprio, em silêncio.
No fundo, aquela história do assassinato de Meia-noite lhe
impressionara bastante, mas havia decidido: ia manter os pés firmes e não
daria o braço a torcer. Sabia que Manoel tinha uma tenda espírita, a Tenda
Espírita Francisco de Assis, lá na Rua Lopes da Cruz, 89, no Méier, e talvez
por culpa do espiritismo, nem estivesse com o juízo perfeito. Por um momento,
pensou mesmo que devia procurar o Meia-noite e lhe contar toda a história,
mas logo mudou de idéia, temendo parecer ridículo:
-O Meia-noite não ia acreditar em nada disso e, por certo, até zombaria
de mim...
Manoel ainda pediu a Moleque-diabo que fosse procurar Meia-noite,
alertá-lo para o perigo. Mas Moleque tratou de colocar um pé atrás:

5
E era verdade. Branco, valente e bonito, Meia-noite havia se tornado,
em pouco tempo, no maior matador que a Lapa conhecera. Convicto da sua
condição de malandro, mantinha a palavra, cumprindo sempre aquilo que havia
prometido. Era autêntico e possuía muita personalidade. Sabia respeitar os
mais fracos, não mexia com mulheres dos outros e só brigava quando era
provocado.
Tornou-se amado pelas decaídas, temido pelos policiais e respeitado
pelos boêmios.
Vestia-se muito bem.
Durante o dia não dispensava uma camisa de seda pura nem tampouco
um lenço no pescoço, a calça boquinha de panamá e o chinelo "charlot". À
noite, metia-se sempre num elegante terno claro, de preferência branco, os
sapatos de bico fino e saltos carrapeta. Na cabeça, o chapéu de panamá.
Vivia do carteado: da ronda, do sete-e-meio e do montinho inglês,
modalidades de jogo preferidas pela malandragem. Nas horas vagas realizava
cobranças para os banqueiros de bicho Pascoal e Alberto, ambos do Mangue.
À noite, protegia os cabarés, os cassinos, as pensões das mulheres da ação
dos desordeiros e também dos maus pagadores, multiplicando a receita.
Embora pertencesse a uma ótima família, Meia-noite ingressara muito
cedo na malandragem, influenciado por filmes policiais.
Ainda não havia completado dezesseis anos e já freqüentava os piores
antros do Catumbi, do Mangue, da Praça Onze e também da Lapa. Nas suas
costas pesavam a autoria de mais de quinze crimes de morte.
O último deles, tivera como vítima um guarda civil e ocorrera no Largo
da Lapa. Levado a julgamento, acabara absolvido. E, a partir daí, decidira
abandonar, de uma vez por todas a malandragem.
Montara um armarinho na Rua Laura de Araújo, no Mangue, e passara a
explorar com bons lucros, a venda de balas nos trens da Central do Brasil.
Para muitos, estava regenerado, como acreditava o próprio Moleque-diabo.

6
Durante o jantar no Capela, Manoel Jacintho Coelho ainda se mostrava
inquieto, tenso e preocupado. E contava detalhes do crime que iria ocorrer.
Dessa forma buscava, decididamente, convencer o amigo a levá-lo à casa de
Meia-noite. Moleque-diabo, porém, mantinha-se irredutível.
Com a aproximação de Margot, uma francesa de meia idade, simpática,
fornida de corpo, tiveram de mudar de assunto. Dona de uma das melhores
pensões de mulheres da Rua Joaquim Silva, a Imperial, Margot parecia uma
verdadeira matrona e estava acompanhada de Bianca, mulher bonita, a quem
os boêmios tratavam de LiIi das Jóias.
Seios pequenos e erguidos, cintura de vespa, dentes brancos e
perfeitos, pele clara e aveludada, lábios grandes e carnudos, Bianca se tornara
famosa por levar muitos figurões à ruína.
Foi ela quem se adiantou, cumprimentando os músicos. A seguir,
virando-se para Moleque-diabo, disse:
-Como foi bom lhe encontrar, preciso muito falar com a Celeste. Há
pouco a Margot perguntou por ela...
Foi o bastante. Moleque fechou o rosto, demonstrou claramente o seu
descontentamento. Não escondia: estava apaixonado por Celeste, uma
portuguesa rechonchuda, de pernas grossas, roliças e cabeludas. Ela era
dançarina do Avenida, mas ele a levara para casa e pensava transformá-la em
sua esposa.
Mas Bianca parecia disposta a provocá-lo, talvez por inveja da amiga
que conseguira um lar, uma família. Sorridente, insistiu:
-Lembra da Bia, aquela que tinha casa lá na Joaquim Silva. Ela também
casou. Só que foi com um aviador americano. Um homem alto, bonito, forte.
Branco e de olhos azuis. Foi morar nos Estados Unidos e tudo.
Indignado, Moleque nada respondeu. Mas levantou-se da mesa.
Colocou o chapéu na cabeça e despediu-se de Manoel:
-Eu te procuro na repartição. Não vou ficar aqui aturando essa mulher.
Estou cansado, com sono. Melhor é ir dormir.
Logo que Moleque partiu, Bianca levantou-se da mesa. Empurrou a
cadeira, deu uma rabanada, desaprovando o comportamento de Moleque. E
murmurou:
-Só porque é músico pensa que tem o rei na barriga. Vai mesmo, o
diabo que o carregue. Depois, foi juntar-se a Margot que ocupava outra mesa.

7
Sem perder a calma, Manoel Jacintho Coelho terminou de jantar.
Depois, como se nada tivesse acontecido, chamou o garçom e pediu a conta.
Após o pagamento, levantou-se. Pegou o chapéu e o violão, cumprimentou o
repórter Carlos Lacerda, do Correio da Manhã -aquele que arrastaria, anos
depois, Vargas ao suicídio e se tornaria, ainda mais para o futuro, um hábil e
eloqüente político, e também governador. Finalmente, ganhou a rua.
Caminhou um pouco, mas antes de embarcar para o Méier, onde
morava, sentiu vontade de tomar um cafezinho. Foi até ó Indígena, ponto de
encontro dos comunistas e integralistas da época. Lá estavam conversando
animadamente, como pôde observar, alguns conhecidos: Agildo Barata, Plínio
Salgado, Santiago Dantas e o pintor Cândido Portinari. Ainda de cabelo
castanho escuro o jornalista e escritor Jorge Amado. Acenou, saudando a
todos, tomou o café e foi embora.
Parecia refeito das sensações estranhas que havia sentido. E as
imagens da tragédia já não lhe incomodavam mais. Estava leve e purificado,
tranqüilo. O sono e o cansaço haviam desaparecido. Sentiu vontade de ir
andando, andando, olhando as pessoas, procurando ajudá-las. Sentiu-se um
homem feliz, completo, realizado.
Mesmo assim decidiu ir para casa descansar. Às 11 horas estaria no
Palácio do Itamaraty, na Rua Larga de São Joaquim, hoje Avenida Marechal
Floriano, próximo a Central do Brasil. Voltaria À sua vidinha de funcionário do
Ministério das Relações Exteriores. Ao pensar em relações exteriores, sorriu. E
disse:
-Tenho sido um homem de relações exteriores mesmo.

8
Ao contrario de Manoel, Moleque-diabo não ia conciliar o sono naquele fim de
madrugada e início de manhã. Pensativo, rolaria na cama de um lado para
outro, tomado de angústia, tristeza e revolta. Apertando o travesseiro contra o
rosto, indagaria a si próprio:
-Por que essa história de crime? Manoel estaria doente?
As alucinações seriam em razão do espiritismo? E o Meia-noite, ia
morrer mesmo?
Outro fato também o atormentava: o da Margot estar procurando
Celeste:
-Tantas mulheres na vida e essa cafetina procurando logo a minha...
Moleque-diabo gostaria de esquecer tudo aquilo e dormir um sono solto,
livre de preocupações, mas não podia. Estava impressionado. Sabia que na
Lapa do dinheiro fácil, dos cassinos tolerados, da prostituição consentida, das
mulheres bonitas, dos malandros convictos, dos boêmios incorrigíveis, tudo
podia acontecer. Acobertada pela escuridão das longas noites alegres, a Lapa
vivia engolindo muita gente, liquidando homens e massacrando mulheres, nas
suas casas suspeitas, nos cabarés freqüentados, nos cassinos famosos.

9
Os dias se passaram. Manoel Jacintho Coelho até já havia esquecido
daquela história da morte de Meia-noite. O trabalho, a família, a Tenda
Francisco de Assis, os necessitados e outros afazeres consumiam as suas
horas. E, embora tivesse vontade, não dispunha de tempo para saborear um
bom vinho do porto, do Adriano Ramos Pinto, ou de deixar descer, garganta
abaixo, uma deliciosa cerveja Cascatinha, bem gelada. O violão encapado,
estava em casa, guardado com todo o cuidado.
Filho de músicos -Manoel, o pai, era maestro, e Rosa, a mãe, era
professora de piano -Manoel herdara o talento dos dois, bem como o amor de
ambos pela música. Sonhava em poder reunir, aquela ocasião,
despreocupado, em sua casa, todos os seus amigos músicos, semanalmente,
numa espécie de recital.
Por certo, lá estariam o maestro Luperce Miranda, o Jacob do
Bandolim, o Ciro Monteiro, o Altamiro Carrilho, a Odete Amaral, o Luiz
Americano, a pianista Carolina Cardoso de Menezes e também o Aristides
Júnior de Oliveira, o Moleque-diabo.
Bastou pensar nele e o homem apareceu.
Manoel deixava o vestíbulo da biblioteca, no andar térreo do Palácio do
Itamaraty, onde trabalhava, quando avistou Moleque-diabo caminhando
apressado, contornando o lago e buscando alcançar a varanda para procurá-lo.
Estava nervoso, apavorado, podia-se notar, à distância, através de sua
fisionomia abatida.
Ao contrário das vezes anteriores, não trazia consigo o bandolim, mas
um jornal. Ao encontrá-lo, não chegou a cumprimentá-lo. Foi logo dizendo:
-Veja a desgraça, Manoel. Veja, veja, veja...
Sem entender ao certo do que falava Moleque, Manoel pegou o jornal. E
ali estava a notícia:
"MORREU MEIA-NOITE"
E mais:
"TRÊS TIROS COLOCARAM FIM NA VIDA E NA CARREIRA
DECRIMES DO MAIS VALENTE MALANDRO QUE A LAPA CONHECEU.

10
-O Meia-noite está presente!... Viva o Meia-noite...
Assim que entrou no Cabaré Brasil Dourado, na parte superior do
sobrado n°10, da Rua da Lapa, naquele final de madrugada, recebera
estrondosa saudação. Após os ''viva Meia-noite" seguiram-se as palmas, fato
que acabou por surpreendê-lo e contrariá-la. Aquilo não havia sido combinado,
não estava em seus planos, muito menos a seu gosto. Quando concordou em
participar daquela festa em sua homenagem, como despedida da vida boêmia,
da malandragem das noites da Lapa, fez algumas restrições. Pediu que tudo
fosse feito de forma discreta, sem alaridos, algazarras ou desordem. Na
verdade, pretendia rever os amigos, abraçá-los, apertar a mão de todos e se
despedir pessoalmente de cada um. Seria bonito, comovente e sincero. Havia
iniciado uma nova vida, mais tranqüila, menos arriscada, dedicada à mulher,
voltada ao lar e à família. Para ele a vida boêmia não fazia mais sentido.
Todos concordaram. Mas Falúa, um sargento naval, de quem era
concorrente no negócio de venda de balas nos trens, ali estava quebrando o
acordo, ignorando suas ponderações. E botava a boca no mundo, anunciando
sua chegada:
-O Meia-noite está presente, viva o Meia-noite...
Não perdeu tempo. Aborrecido, caminhou em direção ao homem e tratou
de repreendê-lo. E decidiu: não ia ficar ali nem participaria de festa nenhuma.
Mas, ao atravessar o salão, rumo às escadas, ouviu os tiros. Fôra alvejado,
estava ferido. Três tiros o atingiram: na barriga, no peito e no braço esquerdo.
Um outro tiro, acabou atingindo o comerciário Ângelo Millozi que ali se divertia
e nada tinha com a confusão.
Meia-noite nem chegara a vislumbrar o homem que empunhava o
revólver, baleando-o. E muito menos identificá-lo. Sabia apenas que ele estava
misturado a um grupo de outros homens, entre a chapelaria e o corredor de
acesso ao quarto usado pelas bailarinas para a troca de roupas.
Quisera se defender, revidar a agressão. Vida inteira fôra assim. Não
provocava ninguém, mas se provocado, revidava com o dobro da violência.
Mas àquela altura era impossível, sangrava muito e sentia fortes dores.
Grande confusão verificou-se no cabaré. Clientes e empregados,
homens e mulheres, alheios ao que acontecia, apavorados com os tiros,
tratavam de correr, rumo à escada, tentando alcançar a rua. Era pânico, a
desgraça. Muitos conseguiram, outros não. Acabaram pisoteados e feridos.
Meia-noite conseguiu encontrar forças para descer também. Na rua,
sentou-se no meio-fio e ali aguardou, em silêncio, a chegada do táxi para o
pronto-socorro. Na calçada, o sangue escorrendo. Lembrou de Arminda
Mattos, a mulher, a quem deixara em casa, na Piedade, e murmurou baixinho:
-Doce Arminda. Tive de brigar com ela para poder vir cavar a minha
própria sepultura.
Arminda não queria que Meia-noite voltasse à Lapa, mas, diante da
imposição dela, ele pensou:
-Um malandro não deve deixar se dominar, mesmo estando regenerado.
Brigou com ela. E agora estava ali, a caminho do hospital, baleado, à
beirada morte. Apostara alto e perdera a última cartada. Aliás, essa seria a sua
última frase, dita ao médico que ia operá-lo -Eu perdi a última cartada, doutor.
O que Meia-noite não viu nem chegou a saber, foi que Arminda, sua
adorada mulher, morreu com ele. Os dois agonizantes, estendidos sobre as
macas, ainda se cruzaram nos silenciosos corredores do hospital, por onde
passa um pedaço de dor e sofrimento de toda a cidade. Inconformada com a
briga que tivera com o companheiro, Arminda chegou à conclusão de que
Meia-noite não ia abandonar a boemia nem tampouco a malandragem. Diante
desta certeza, preferiu o suicídio, tomando veneno. Socorrida foi levada
também para o pronto-socorro, onde ambos encontraram a morte no mesmo
horário.
Ao inteirar-se das circunstâncias das mortes de Meia-noite e Arminda,
Manoel Jacintho Coelho ficou arrepiado. Um forte vento soprou-lhe as costas.
E novamente seus ouvidos foram invadidos pelo zumbido irritante do rádio mal
sintonizado. Quis evitar a sensação de antes, mas fôra impossível. Antes de
perder de todo a consciência, ainda pôde ouvir aquele samba de Ismael, o
mesmo que tocava aquela noite, no Bar dos Carmelitas:
Se você jurar / Que me tem amor / Eu posso me regenerar / Mas se
é pra fingir mulher / A orgia assim não vou deixar.

11
Olhos entumecidos, esbugalhados, de lágrimas e de sono, Aristides
Júnior de Oliveira, o Moleque-diabo, lamenta:
-Manoel, eu devia ter ouvido o conselho. A tragédia bem que podia ter
sido evitada. Agora, resta-me velar o corpo do companheiro na Capela Frei
Fabiano de Cristo, ali na Praça da República. E acompanhá-lo, amanhã, à
última morada, no Cemitério de São Francisco Xavier, no Caju.
Manoel parecia-lhe alheio, desligado, num outro mundo, desatento ao
desabafo de Moleque. Este, sem saber o que estava acontecendo, achando
tudo muito estranho, tratou de sacudi-lo:
-Manoel, Manoel, você está dormindo?
-Não, Moleque. Tentando salvá-la. Abre o olho, você também terá urna
morte violenta.
UM ANO DEPOIS, DIVULGAVAM AOS JORNAIS
“Inconformado por ter sido abandonado pela companheira, a bailarina
Celeste Maria, por quem estava perdidamente apaixonado, o conhecido músico
Aristides Júnior de Oliveira, o Moleque-diabo, acabou se suicidando. Ontem
de manhã, após ingerir pesada dose de formicida, ele pulou do 3º andar do
Prédio dos Correios, na Rua 1º de Março, no Centro, onde trabalhava.”
II parte
UMA PEDRA NO CAMINHO
Iniciada em São Paulo, com o apoio da oligarquia da burguesia do café,
a revolução de 1932 não alcançou seus verdadeiros objetivos: o fim do
Governo Provisório e o afastamento de Getúlio Vargas da chefia daquele
governo. Muito pelo contrário, a vitória militar sobre os rebeldes acabou
garantindo a Vargas enorme prestígio, o desejado poder e também grande
influência sobre a Assembléia Constituinte que iria se instalar em novembro do
ano seguinte.
Vitorioso, cheio de caprichos e marcas pessoais, Vargas tornou-se
inabalável às críticas de seus adversários políticos, embora acusado de
caudilho, maquiavélico e oportunista. Pulsos fortes e passos medidos, decidiu ir
em frente, tresandando a água de colônia inglesa e dando continuidade a sua
festejada e irreversível trajetória.
Sem dúvida, havia conquistado invejável posição: a do mais importante
político brasileiro, uma espécie de símbolo da emancipação nacional. Aquele
que ia criar, num futuro próximo, um Brasil forte, unido, altaneiro, novo e
soberano, edificado sobre os alicerces e pilares de um trabalhismo que
começava a florescer.
Mas, por trás daquela figura risonha, sempre impecavelmente vestida,
do azul fio de fumo de seu charuto semi-aceso, pairava no ar uma inevitável e
permanente ameaça: a de uma ditadura cruel, caprichosa, mas sombria como
todas as outras ditaduras...
Ao pensar nisto, Manoel Jacintho Coelho ficava totalmente arrepiado,
preocupado, pensativo.
O futuro histórico, o rumo político do País e o destino do povo brasileiro
parecia desfilar diante de seus olhos, através de cenas coloridas com todos os
matizes da vida. Os fatos e suas evoluções lhe eram quase sempre
antecipados. Para isto, bastava apenas que fechasse os olhos e pronto: estava
tudo ali, exatamente como ia acontecer, numa tela de cinema, imensa e
natural.
Muitas vezes ficou amedrontado e teve vontade de fugir. Outras, não.
Sua curiosidade se tornara maior do que o medo que inicialmente lhe
assustava tanto. Com o passar do tempo, a coisa havia se modificado. Agora,
tomado de coragem cívica, estava disposto se inteirar definitivamente de tudo
que ia acontecer. Se o inesperado lhe surpreendia, o espetáculo lhe agradava.
O zumbido da comunicação e contato do outro mundo em sintonia
passou a se transformar numa enorme e cintilante cascata de luz. Uma luz que
variava de cor, tonalidade, tamanho e intensidade. Quase sempre começava
prateada, de um brilho profundo, encantador. Depois dava lugar ao azul.
Inicialmente o claro, a seguir o escuro, vivo, forte, misterioso. Do azul-real
passava ao azul-turqueza e outros tons azulados. A seguir aparecia o amarelo,
também variável, até o dourado. Depois o verde-alface, o verde-bandeira, o
verde-oliva, o verde-escuro.
No crepitar do vermelho, o espanto, o grito e o clarão:
-Manoel, a fase do pensamento está para terminar. Encerrada a fase do
pensamento, a natureza vai deixar de alimentar o pensamento dos pensadores.
E por falta do alimento natural, o pensamento de todos vai começar a
enfraquecer. Portanto, prepare-se. Com a mudança de fase, você vai iniciar a
construção de um mundo novo, um Mundo Racional, real e verdadeiro. Anote,
Manoel: até 1935, a natureza será governada pelas energias elétricas e
magnéticas. Depois, não. A natureza vai mudar, passando a ser governada
pela Energia Racional, pelo raciocínio.
Morna, forte, grave, a voz masculina vai rasgando o Universo, advertindo
e orientando:
-Estamos em 1933, Manoel. Faltam apenas dois anos. Tenha paciência.
Em muito breve você vai conhecer o caminho do desenvolvimento do raciocínio
e terá de ensiná-lo, através de um Livro, a toda a humanidade. Lembre-se:
você não pertence a esse mundo. Vestiu a carcaça de bicho para cumprir
dignificante e salvadora missão: a da Racionalização dos povos. Quando
chegar o grande momento tudo vai ficar bem claro e luminoso. Deixe de lado a
preocupação, fique calmo. Procure viver normalmente como um habitante da
Terra. Estou falando de seu mundo, procurando orientá-lo, de modo você
possa percorrer com muita rapidez, o caminho que lhe foi destinado.
Esperança e mistério no olhar.
Manoel Jacintho Coelho contempla o espaço, rosto molhado de suor,
braços abertos, numa demonstração de ternura, bondade e dedicação. No
cálice do saber, as lições de um Universo mágico:
-O Livro que você vai escrever, Manoel, será definitivo. Vai mostrar o princípio
e o fim do mundo, o caminho da luz e da eternidade, a estrada da salvação.
Revelará conhecimentos para que todos possam voltar ao seu mundo de
origem: a Planície Racional. O Livro será a verdadeira luz do animal Racional,
a energia que vai impulsioná-lo para o conhecimento. Portanto, não se
esqueça, Manoel: as revelações contidas neste Livro jamais poderão ser
usadas para o comércio e a exploração. Deverão ser usadas para a salvação
de todos e também para proporcionar aos Racionais a volta ao seu mundo de
origem, para indicá-los o caminho da redenção e da vida eterna.

13
Endereço chique da nobreza e também palco de grandes e
inesquecíveis festas durante o Segundo Império, o Palácio do Itamaraty, sede
dos três primeiros Governos Republicanos, passou a abrigar, por determinação
do Governo Provisório, a comissão encarregada da elaboração do anteprojeto
da Nova Constituição. Como funcionário do Ministério das Relações Exteriores,
instalado naquele palácio, Manoel passou a acompanhar o trabalho dos
comissionários e também a ajudá-los. Logo tornou-se amigo do Ministro Afrânio
de Melo Franco, nomeado Presidente da Comissão da Constituição. E como
amizade implica, muitas vezes, em pedidos e solicitações, Manoel não tinha
mais hora para chegar e sair do trabalho, servindo ao amigo.
Como todo brasileiro, alimentava um sonho: o da reconstitucionalização
do País. Nos longos corredores de pisos trabalhados em mármores e nos
amplos salões de sancas douradas do Palácio do Itamaraty, o movimento
tornou-se intenso com o passar dos dias, após a instalação da Comissão. Além
do Ministro Afrânio das Relações Exteriores, dois outros Ministros passaram a
trabalhar ali: Oswaldo Aranha, da Fazenda (antes fôra da Justiça), e José
Américo de Oliveira, da Viação e Obras Públicas. Além deles, faziam parte da
Comissão outros políticos famosos, intelectuais e juristas. Nomeados por
Vargas, lá estavam João Mangabeira Artur Ribeiro, Assis Brasil, Temístocles
Cavalcanti, Prudente de Moraes Filho, Carlos Maximiliano Pereira dos Santos,
Agenor de Reune, Francisco José de Oliveira e o General Góis Monteiro.
Trabalhavam empurrados por um desejo: o da realização de uma profunda
mudança na vida nacional.
Cauteloso, mas pragmático, Vargas acompanhava de perto os trabalhos
da Comissão da Constituição e a feitura do anteprojeto. Sua permanência no
governo dependeria dos constituintes e ele sabia disto. Daí a importância de
sua permanência, da sua assiduidade, da sua habilidade política.
Discreto, apesar do sorriso, Vargas procurava não se abrir, nem se
expor. Jogava, às vezes, hesitante, noutras, conivente.
Solitário e obstinado na sua desmedida ambição política não recuava um
milímetro sequer. Sem receio ou remorso, não poupava nem a amizade de
seus seguidores mais fiéis, transformando-os em mamulengos de suas
inconfessáveis intenções e peças azeitadas de suas engendradas manobras
políticas.

14
Transpondo todos os obstáculos possíveis e buscando soluções simples
e desejadas para os problemas de sua vida, Manoel Jacintho Coelho traçara o
seu próprio caminho. Dono de um idealismo contagioso, discreto e obstinado,
logo tratou de alargar os seus passos, aproveitando o máximo de sua
vitalidade:
-O trabalho dignifica o homem -repetia, quase sempre, sem despregar
os olhos daquilo que estivesse fazendo.
Sempre preso a objetivos elevados e com enorme capacidade de
realização tornou-se estimado por seus colegas de trabalho, os quais não lhe
poupavam elogios.
-Ah!... Seu Manoel... ele executa as tarefas com o máximo de rigor,
empenho e dedicação. E também se adapta, com a maior facilidade, a
qualquer tipo de trabalho. Parece mesmo ter nascido para servir. Aceita, com
muita naturalidade, aquilo que os sentimentos ditam, principalmente as
intuições, ou melhor, o raciocínio.
Senhor de uma vida muito rica em acontecimentos singulares e também
inesperados, Manoel não tinha mais preocupações nem se importava com os
riscos. Recebia e assimilava os conselhos, as lições e as normas que lhe eram
ditadas através do Universo, procurando adaptá-las a sua própria vida.
Indiferente aos preconceitos de época, convivia, sem receio, com
pessoas das mais diferentes camadas sociais. Da mesma forma que impunha
sua presença entre Ministros, com sugestões inteligentes, fazia sua ausência
se tornar sentida entre os boêmios da cidade:
-Você sabe onde tem andado o Manoel, aquele do violão de sete
cordas? O homem desapareceu, evaporou. Há mais de três semanas que não
aparece por aqui, o pessoal tem reclamado muito a falta dele. Você tem
notícias do Manoel, João da Baiana?
-Não, Donga. Eu não tenho notícias do Manoel. Há bastante tempo que
não cruzo com ele. O homem ultimamente não tem aparecido aqui na Lapa
nem tampouco visitado a Tia Ciata, como fazia sempre.
Na verdade, Manoel Jacintho Coelho andava muito atarefado. Deixava o
trabalho tarde, faminto, cansado, pensando apenas num banho e descanso.
Como um estranho príncipe dos aflitos dedicava o pouco tempo que tinha
atendendo aos necessitados na Tenda Espírita Francisco de Assis, na Rua
Lopes da Cruz, 89, no Méier.
Buscava a paz, o sossego e a luz. Gostaria de poder se deitar numa
rede, esquecido, embalado pela suave brisa da tarde e acompanhar
despreocupado, a queda indecisa da luminosidade do crepúsculo. De ficar
longe da cidade, da boemia inconseqüente, sentimental e nostálgica.
O excesso de trabalho, sabia, oprimira o cavaquinho, deixando seu
velho violão surdo, mudo e amargurado.
Mas naquela tarde morna de abril seria diferente. A Comissão da
Constituinte suspendera o trabalho mais cedo, permitindo-lhe um pouco mais
de tempo para o descanso.
Ao deixar o Palácio do Itamaraty, as cigarras ainda cantavam nos
oitizeiros na Rua Larga de São Joaquim e um vento moleque varria a rua em
toda a sua extensão. Na calçada, parou um pouco. Abriu o paletó e passou o
lenço no rosto. Pensou em dar uma chegadinha ao Café Paraíso, tomar um
copo de água bem gelada e também um café. Depois, bem. Depois seguiria até
a Avenida Central(hoje Rio Branco), rumo à praia.
Estava ansioso de mar, de um mar cheio de lirismo e energias, de
grandes ondas barulhentas, quebrando sobre as pedras e esparramando-se
em espumas. Um mar misterioso, soluçando, crescendo, bramindo de solução.
Deixou-se seduzir pelo cheiro do mar, cada vez mais forte. Ouviu o
barulho de pés rangendo na areia e sentiu o calor de um sol abrindo às suas
costas, naquele céu de final de tarde e início de noite.
Desejou ser o mar. Imprevisível. Incapaz de ficar para
15
Filho de músicos, Manoel fôra recebido, gerado e crescido ao som das
valsas, das polcas, das mazurcas e modinhas.
Nascera no dia 30 de dezembro de 1903, na Rua Barão do Iguatemi, na
Cidade Nova, nas proximidades da Rua do Matoso e da Praça da Bandeira.
Noite de verão, céu aberto e estrelado.
Durante o parto, sua mãe, a professora de piano Rosa Santos, fora
assistida por uma vizinha, dona Maria Amélia, a negra Amélia Baiana, filha de
escrava, beneficiada pela Lei do Ventre Livre, cuja preocupação, agora, era
ajudar aos outros a nascer.
Logo que sentiu as primeiras dores, dona Rosa mandou chamá-la.
Predisposta à caridade, sorriso largo, Amélia Baiana não demorou, tratando
de atendê-la.
Além da arte de forno e fogão, aquela mulher, como poucas pessoas,
dominava os segredos da vida.
Sua presença acalmou dona Rosa.
Mangas de camisa, gravata borboleta, o maestro Manoel, o pai,
procurava ajudá-la, embora inquieto e nervoso.
-Traga um pano limpo. Pegue água e coloque pra fervê, vamo
precisá – pedia Amélia.
O menino Manoel não demorou a nascer, o parto fôra normal. Ao
ampará-lo, Amélia Baiana sorriu de felicidade. Beiços largos, testasuada, mão
negra segurando o menino pelas pernas, ela berrou, nummisto de
contentamento e esperança:
-É homê, é homê, Rosa... vai lutá pelus homês. Ele trás um canto de
amô, de paz, de concórdia e de liberdade...
Dona Rosa não disse nada, apenas fechou os olhos, deixando-se levar
pelos acordes de uma doce e suave melodia que lhe chegara aos ouvidos.
Emocionada, Amélia Baiana começou a chorar, boca aberta, garganta
vermelha de tanto gritar verdades.
Seu choro rasgaria a calma.
Sua voz negra e pungente atravessaria o vento, anunciando que o
menino que acabara de nascer trazia uma mensagem do Universo e era o
símbolo da união das raças, porque preto e branco são iguais.
No ar pairava um vago sentimento de benção.
No céu, um espetáculo de luz.
Um meteorito em forma de estrela descera sobre a Terra, indo cair bem
em frente à casa do menino que nascera. A noite quente de surpresa e
curiosidade logo arrastaria uma multidão ao local.
O prefeito, a mulata e o general.
Lá estavam todos. Alfaiates, marceneiros, macumbeiros, funcionários
públicos, sapateiros, jornalistas, advogados, políticos, chacareiros, pedreiros,
engraxates, doceiras, lavadeiras, malandros, comerciantes e costureiras -iam
apressados, rumo à Praça da Bandeira, cobrindo com seus passos o
calçamento das ruas e o desenho das calçadas.
O maestro Manoel estava feliz. Após esvaziar uma caneca de vinho,
acendeu um charuto e chegou à janela. Queria contemplar a noite e agradecer
ao céu, quando alguém lhe perguntou:
-Então, Maestro. Nasceu mais um Silva em sua casa?
-Silva, não. Nasceu outro Manoel, amigo.
Manoel Jacintho Coelho.
Atento à conversa, um repórter magro, alto, cabelos negros, glostorados,
murmurou baixinho:
-Silva ou Coelho que diferença faz. Na verdade somos todos fulanos de
tal, enganados pelos políticos, explorados pelos patrões e humilhados pelas
esquinas.
Vestido comprido e rodado, com aplicações de viés e rendas, laço de fita
no cabelo, a menina Leonor Nunes dos Santos acompanhara todo o espetáculo
com interesse e deslumbramento.
Na inocência de seus nove aninhos, ela achava tudo muito bonito e
iluminado, "um dia de festa, com aquela gente toda".
Tempo distante, de lembranças e de saudades.
Naquele dia, muita coisa a menina Leonor ficou sem entender. Hoje,
quase centenária, cabelos brancos servindo de moldura ao rosto bonito, ela vai
repetindo para os netos o seu conto de príncipe.
Na voz cansada, o sublime, o belo, o terno e o saudoso:
-Naquela noite, uma estrela desceu do céu. Era uma estrela grande e
azul. Veio descendo, descendo, descendo... e deixando, por onde passava, um
brilhante rastro de luz. Os sinos tocaram e as pessoas saíram de suas casas,
indo para a rua. Estavam emocionadas e felizes. Homens e mulheres, jovens e
velhos, pobres e ricos, adultos e crianças se abraçavam. Era um novo tempo
de amor, de confraternização, de amizade e respeito, um dia de festa. Afinal,
um menino que viera de muito longe e acabara de nascer.
-Quem? ... Indaga com interesse um dos netos e dona Leonor responde
comovida:
-O Cavaleiro da Concórdia.
A negra Amélia Baiana tinha razão. Manoel viera ao mundo na cor de
bronze unindo as raças. E ali estava para lutar pela Redenção do homem, pela
liberdade definitiva, para devolvê-Io ao seu estado natural.
Suor negro a inundar a Terra, aquela mulher com seu enorme poder de
percepção, entre o soluço e a lágrima, sentira o poder da energia que emanara
daquele pequenino corpo, tanto que balbuciara:
-Com a chegada de Manué começa um novo tempo. Depois dele,
não vai havê mais lugá prôs miseráveis donos da vida, porque todo
mundo vai sabê de onde vem, pra onde vai.
O maestro Manoel não conseguira entender exatamente o que Amélia
Baiana pretendia dizer, mas pressentira que o filho viera ao mundo
predestinado a uma missão. E aquela mulher sabia de tudo. Era um
testemunho vivo, palpitante da anunciação de um novo tempo.
Diante desta certeza, olhara para o céu e pedira ao Verdadeiro DEUS:
Pai, que o sacrifício de meu filho tenha uma finalidade.

16
Durante a noite anterior não conciliara o sono. As visões acabaram por
deixá-lo preocupado. Agora, de volta ao trabalho, Manoel não conseguia
esconder a inquietação.
Na tentativa de fugir à curiosidade dos colegas de repartição, atravessou
apressadamente a galeria onde ficam expostos os bustos dos diplomatas,
alcançando o jardim.
No espelho d'água do imenso lago, ladeado por palmeiras, Manoel
examinou o rosto cansado, os olhos vermelhos. Sentiu vontade de ir embora
para casa, de descansar um pouco. Mas acabou desistindo da idéia. Sabia que
tinha muito a fazer, naquele dia, no Palácio do Itamaraty.
Ao pensar nisto, sentou-se na grama. E procurou relembrar a infância,
buscando apagar aquelas imagens que tanto lhe atormentavam.
Como tinha saudades do tempo de menino, da vida colorida a lápis de
cor.
Nos quintais da infância, no esquecido chão de circo, não havia lugar
para as preocupações, embora fatos estranhos já pontilhassem seus caminhos,
provocando medo e inesperadas reações.
Sorriu ao imaginá-la correndo, descalço, sem camisa, pelas ruas da
Cidade Nova, disputando espaço com outras crianças. E os olhos de Amélia
Baiana a acompanhá-lo e protegê-lo, cercando-o de todos os cuidados.
Naquele tempo, como agora, amava os pássaros, os bichos.
Depois mudou-se. Foi para a Rua Alice, no Rocha. Matriculado na
Escola Modelo, na Rua Ana Neri, no Riachuelo, logo a professora constatou: o
aluno Manoel já sabe ler, escrever e contar. E mais: sabe tudo que lhe
for perguntado. História, ciência, português, matemática, geografia, astronomia
e mais: até política, uma loucura. Tudo isso sem ter freqüentado o colégio
anteriormente.
Ao lembrar de dona Joana, a professora, sorriu. Após conhecê-lo, ela
piorou...
Intrigada, confusa, desnorteada, ela vivia a perguntá-lo: -Manoel, você
consegue ler minha cabeça?
-Olha, eu ia lhe fazer essa pergunta, mas você me respondeu antes
mesmo de ter sido perguntado, como foi isso? O menino Manoel desconhecia
os seus poderes e acabava complicando ainda mais a cabeça da professora,
a coitada já andava falando sozinha. Um dia porém, dona Joana resolveu
colocar tudo em pratos limpos. Não se conteve e mandou chamar dona Rosa
na escola. Queria, porque queria, uma explicação para o fenômeno. Para
proteger o filho, a mãe de Manoel escondeu a verdade. Mentiu sem o menor
receio:
-Tudo o que ele sabe, aprendeu comigo lá em casa. O Manoel é um
menino muito inteligente. Não tive a menor dificuldade para alfabetizá-lo.
-Mas, ele está atualizado até em política. A senhora não acha que é
demais para um menino de dez anos?
-Dona Joana, o Manoel é um menino que guarda tudo aquilo que ouve e
assimila os fatos com enorme facilidade. O que ele sabe de política, aprendeu,
estou certa, ouvindo as conversas lá em casa.
Se a mentira livrou Manoel da indiscrição das pessoas não foi suficiente
para tranqüilizar dona Rosa. Ela voltou para casa muito preocupada, aflita,
impressionada.
Era inacreditável tudo aquilo que ela ouvira sobre Manoel. À noite, logo
após o jantar, ela contou ao marido o que estava acontecendo.
O maestro tratou de acalmá-la:
-Rosa, o Manoel é um menino prodígio. Eu diria mais: um menino
predestinado. Veio ao mundo para cumprir uma missão. Você não deve se
surpreender nem tampouco ficar preocupada. Encare tudo, meu amor, com
naturalidade e paciência. Seja compreensiva e dedicada, afinal, fomos os
escolhidos. Não sei por que razão, mas fomos os escolhidos.
O maestro Manoel abraçou a mulher. Depois relembrou o nascimento do
filho, aquele meteorito em forma de estrela e também as palavras de Amélia
Baiana, aparentemente sem sentido, mas verdadeiras e profundas.
17
As lágrimas da saudade umedeciam os olhos de Manoel quando a voz,
vinda do Universo, tratou de chamá-lo à razão e passou a orientá-lo:
-Vamos, Manoel, está chegando a hora. O Presidente Getúlio Vargas já
está a caminho. E você precisa orientá-lo. Não fique tenso nem preocupado.
Vou estar ao seu lado e irei conduzi-Ia.
Repita exatamente aquilo que vou lhe falar. Através de minhas palavras,
você vai entender exatamente as visões da noite passada. Na tentativa de
evitá-las, a comunicação acabou sendo dificultada. Vamos, Manoel. Temos
uma mensagem muito importante para o Presidente que vem chegando.
Uma força estranha tratou de empurrá-lo. No caminho ajeitou o paletó, a
gravata, passou o pente no cabelo. Tirou o lenço do bolso e enxugou o rosto.
Muito não demorou, Getúlio Vargas chegou ao Palácio do Itamaraty,
acompanhado de uma imensa comitiva. Sorridente, comunicativo,
cumprimentou a todos, indo apertar a mão de um por um. Depois, adiantou-se,
seguindo em direção ao gabinete do Ministro Afrânio de Meio Franco, onde iria
receber e examinar o anteprojeto da Nova Constituição.
Foi nesse momento que Manoel interceptou-lhe os passos:
-Presidente, Presidente ... preciso falar com Vossa Excelência. Trago-lhe
importantes revelações.
Getúlio parou. Examinou cuidadosamente as palavras de Manoel.
Sabia ser ele funcionário público e que trabalhava ali no Itamaraty. Após olhá-lo
nos olhos, respondeu:
-Terei enorme prazer de conversar com o senhor. Mas, devido ao
compromisso que tenho agora com o Ministro Afrânio não vou poder atendê-lo
imediatamente. O senhor vai ter de aguardar um pouco. Assim que a reunião
terminar, pedirei para chamá-lo.
-Vou aguardá-lo, Presidente.
Vargas foi em frente, levando o cortejo de puxa-sacos.
Olhos na comitiva, Manoel observou.
Nenhum governante, por mais habilidoso que seja, vai conseguir se
livrar da sina de aturar os puxa-sacos. Retóricos, eles ronronam como gatos de
madame os pés daqueles que ocupam o poder. São verdadeiros angorás da
política do apadrinhamento, do privilégio.
E o mais curioso é que eles preservam até a índole felina: ode amar a
casa onde são moradores, no caso um palácio, o Palácio do Governo.
Sorriu. Depois esfregou as mãos. Estava mais tranqüilo. Havia dado o
primeiro passo.
Livre da preocupação e esbanjando energias, voltou à mesa de trabalho
na repartição. Aguardaria ali, com ansiedade, o reencontro com Vargas. Mas
logo que se acomodou na cadeira, aconteceu o inesperado. Diante de seus
olhos apareceu novamente a Luz da Anunciação. E a voz morna e grave se fez
ouvir:
-Manoel, vamos entrar na Fase Racional, a última fase da vida na
matéria. Nesta fase, vai surgir urna nova cultura, a Cultura Racional. Através
desta nova cultura, todos vão poder adquirir orientações para se manter em
equilíbrio. Você será o divulgador desta cultura. E quem quiser adquiri-Ia não
vai precisar sair de casa, ir a igrejas, templos ou terreiros. A Cultura Racional é
um, conhecimento natural, Manoel. Não é ciência da imaginação, você vai ver.
Manoel fechou os olhos e começou a prestar atenção nas palavras que
chegavam aos seus ouvidos. A intensidade dá luz foi aumentando, os focos se
multiplicando, profundos e cintilantes:
-O homem vai saber, através da Cultura Racional, todos os segredos da
vida. Quem ele é, de onde ele vem, como ele vem e o que ele está fazendo
nesta vida. E ainda para onde vai, como vai e por que vai. De forma lógica,
simples e clara, com provas e comprovações, os mistérios da natureza serão
desvendados. Os conceitos filosóficos, de vida e de religião, então, rolarão por
terra completamente ultrapassados.
Manoel Jacintho Coelho apóia os cotovelos na mesa, cobre os olhos
com as mãos, ouvindo, compenetrado:
-Você vai conhecer o RACIONAL SUPERIOR e representá-lo na Terra.
Terá de ensinar aos homens, mulheres e crianças que a vida é um rosário de
contas e que todos os habitantes da Terra são encantados. Vai mostrar-lhes o
caminho da Imunização Racional, da verdade e da razão.
Manoel, então, indaga:
-Por que a Cultura Racional não veio há mais tempo?
-Ora, Manoel. O espanto nem sempre surge com a descoberta de um
fato novo. Nem tampouco através de um acontecimento inesperado. O espanto
às vezes dorme, anos e anos, na cama do cotidiano e da rotina. E desperta à-
toa, quando alguém faz estremecer o dorminhoco.
Manoel voltou a sorrir, diante da brincadeira. Mas a voz, ganhando tom
de seriedade, sentenciou:
-Tudo tem seu tempo, Manoel, aprenda. E o tempo vai chegar. Árvore
nenhuma dá fruto antes do tempo. Portanto, seja paciente.
A mensagem transcendental, a comunicação de Manoel com o outro
mundo acaba sendo interrompida com a chegada de um homem moreno,
pouco mais de 40 anos, bigode aparado:
-Rápido, rápido, rápido Seu Manoel. O Presidente mandou chamá-lo. Ele
está esperando pelo senhor no Salão Nobre.
18
A economia brasileira começava finalmente a se recuperar. O algodão
havia surgido no mercado como o segundo grande produto de exportação,
amenizando, em parte, a crise do café.
A elevação da produtividade industrial também fôra surpreendente e o
País reiniciava, de forma irreversível, sua marcha para o crescimento.
Vargas tratou de intensificar um programa de ajuda ao setor cafeeiro e
assumiu plenamente, através de seu governo, a direção dos negócios naquele
setor.
Com argúcia, colocou em prática um plano de reformulação do sistema
de pagamento da dívida externa, calculada, na época, em 250 milhões de
libras.
Todo o saldo da balança comercial brasileira passou a ser usado para o
pagamento da dívida, medida que provocou a redução dos juros e deu ao
governo absoluta credibilidade no exterior.
Estava satisfeito com a política econômica desenvolvida por seu
governo. A política social, porém, era motivo de imensa preocupação. Sabia da
necessidade de um estreitamento de relações entre patrões e empregados,
através do campo sindical. Caso contrário não ia encontrar meios para anular a
forte influência anarquista e conter a influência comunista que começava a se
agigantar.
Quando Manoel entrou no Salão Nobre, Vargas dizia ao Ministro Afrânio:
-Inimigos, Afrânio... não sei se os tenho. Se os tiver, não serão jamais
tão inimigos hoje que não possam vir a ser amigos amanhã.
Capricho e ambição marcavam aquele homem, além daquele charuto,
daquela barriga, daquele sorriso.
-Entre, por favor, esteja à vontade. O Brasil também lhe pertence -disse
Vargas ao avistar Manoel.
Já de saída, o Ministro Afrânio despediu-se e foi embora.
Carregando no sotaque gaúcho, Vargas falou:
-A partir deste momento, estou à sua disposição, pronto para ouvi-Io.
Manoel, então, passou a explicar:
-Tenho uma tenda espírita lá no Méier, uma pequena casa de
caridade...
-Entendo, entendo. O senhor deseja ajuda. Ora, o Presidente vai ajudá-
lo!...
-O Presidente está enganado. Não estou aqui para pedir ajuda, mas
para ajudá-lo. Tomei conhecimento, através da minha vidência, deum acidente.
Vossa Excelência vai sofrer um grave acidente e estou aqui para alertá-lo para
o perigo. Gostaria imensamente de poder ajudá-lo, mas isto independe de mim.
-Acidente? O senhor tem certeza do que está falando?...
-Tenho.
Da curiosidade natural, Vargas passou à preocupação. Sua fisionomia
risonha e rosada, logo ficou anuviada, transformando-se numa máscara de
gelo:
-Mas como o senhor, como o senhor -indagou Vargas, agora claudicante
-conseguiu saber deste acidente?
-Foi ontem à noite, Presidente, durante a minha concentração. A
vidência não se alongou muito, mas posso adiantá-lo que o acidente vai
envolver um automóvel. Pude vê-lo ferido com outras pessoas, peço que
acredite nas minhas palavras e tome cuidado.
-E quanto a meu governo, o senhor está gostando?
Na indagação de Vargas, duas intenções: a necessidade de mudar de
assunto e também a de investigar Manoel. Vargas imaginou a possibilidade de
estar diante de um homem doente.
-Estou gostando muito de seu governo. Mas vejo a necessidade de uma
preocupação maior com a política social, voltada para o atendimento das
classes trabalhadoras. Os poderosos, evidentemente, ficarão descontentes,
mas, com o tempo, vão reconhecê-lo, aceitá-lo, aplaudi-lo. Mas o trabalhador
brasileiro necessita de mais, de muito mais...
-Como assim
-Necessita de um Ministério do Trabalho, da promulgação da Lei da
Sindicalização, de uma Lei de Amparo ao Trabalhador Nato, da redução das
correntes migratórias. Na Educação, Presidente, precisamos modernizar com
urgência, o ensino médio e superior, criar as sonhadas universidades
brasileiras, promover uma ampla reforma do ensino secundário.
Vargas ficou perplexo, embasbacado. Manoel fizera desfilar ali, sem o
menor esforço, suas intenções e planos de governo. Parecia ter aberto o seu
cérebro, especulando, devassando, coisa inacreditável.
-Então, Presidente? Estou certo?
-Claro que está, Seu Manoel. O senhor está certo.
-Vamos precisar também -insistiu Manoel -de uma revisão na Legislação
Eleitoral, Vossa Excelência vai precisar dela. Estamos próximos das eleições.
Fique tranqüilo, não precisa perguntar, o senhor vai sair vitorioso. A
Constituinte vai elegê-lo Presidente do Brasil. Durante muito tempo o poder vai
permanecer nas suas mãos. Agora, tome cuidado.
-Terei muito cuidado, Seu Manoel.
Manoel levantou-se. Despediu-se e retirou-se. Quando cruzou o batente
da porta principal do Salão Nobre, três copos de cristal que estavam sobre a
mesa foram partidos sem que ninguém tivesse tocado neles. Vargas ficou
arrepiado. A sensação fôra de que alguém havia entrado para quebrá-los,
usando um estilete. Durante algum tempo, Vargas permaneceu sentado,
confuso, intrigado.
19
O vento varria furioso a escarpada, vergando as árvores e ameaçando
levar pelos ares os telhados das pequenas casas.
A chuva grossa e intensa fazia rolar pela serra imensas cachoeiras,
tamanho o volume de água. Iluminada pelos relâmpagos, a estrada deserta
havia se tomado escorregadia e perigosa.
Indiferente à tempestade e aos riscos, a Lincoln presidencial avançava,
vencendo a distância, rumo ao Palácio Rio Negro, em Petrópolis.
Sentado à esquerda, no banco traseiro do automóvel, tendo ao seu lado
a mulher Darcy e o filho Getúlio, Vargas permanecia em silêncio e
acompanhava, com atenção, todos os movimentos do chauffeur Euclides José
Fernandes.
O Capitão-tenente Celso Pestana, ajudante de ordem Presidência da
República, ocupava a cadeirinha fronteira ao Chefe do Governo, e procurava
tranqüilizar a todos.
A certa altura, dona Darcy trocou de lugar com o filho, assustado com o
ribombar dos trovões e com a claridade brusca e intensa dos raios que cortava
o céu. Preocupada, queixava-se do frio e do vendaval que ameaçava, agora,
arrancar a capota do automóvel.
O chauffeur procurou diminuir a marcha à medida que a chuva
aumentava, por preocupação. Mas, ao alcançar o quilômetro 53 da antiga Rio-
Petrópolis, altura do terceiro viaduto, a visibilidade tornou-se ainda mais difícil.
Pensou em parar, aguardar a estiagem, mas poderia ser pior, como imaginou.
Assim decidiu ir em frente.
De repente, o inesperado.
Um estrondo formidável. O pânico, o pavor, o medo e a morte.
Uma pedra pesando 80 quilos desprendeu-se da encosta, rolou do alto
da serra, indo cair bem no centro do automóvel, sobre o ajudante de ordens do
Presidente, Capitão-tenente Celso rosto esmagado, morreu imediatamente.
Getúlio, com as duas pernas fraturadas, procurava, arrastando-se e gemendo,
socorrer a dona Não suportando a dor, pois sofrera fratura exposta da perna
esquerda, ela desfalecera.
Por sorte (ou proteção), o menino Getúlio não sofrera ferimento, mas
ficara abalado, chorando muito.
Na casa de Manoel Jacintho Coelho, na Rua Lopes da Cruz, 89,no
Méier, o relógio despertador começou a tilintar ruidosamente, parando, logo
depois, definitivamente, às 19h30min.
Um redemoinho de vento invadiu a casa, varrendo todos os cômodos,
arrancando as cortinas e desfolhando o calendário, na parede, até o dia 25 de
abril.
Dia e hora da tragédia.
Derrubado pelo vento, olhos presos no teto, Manoel assistira ao desastre
bastante nervoso.
Desta vez não surgira a cintilante cascata de luz.
Logo após ter sido derrubado, entrou num estado de imobilidade
contemplativa.
O barulho fôra ensurdecedor, indescritível.
A luz vermelha crepitando. O clarão, o espanto. A pedra rolando serra
abaixo. Depois resvalando e precipitando-se no espaço para cair sobre o
automóvel.
Gritou.
Mas o grito não lhe passou da garganta.
Situação terrível, angustiante. De prostração e de pavor.
Doloridos, sofridos, desesperados, diante de seus olhos, os rostos de
Vargas, de sua mulher Darcy, do menino Getúlio e do chauffeur Euclides.
Socorridos, eles foram levados, minutos depois, para o Sanatório São
José, em Petrópolis. Ali tiveram de ser operados pelos médicos Haroldo Leitão
da Cunha e Florêncio de Castro Araújo.
Estropiado, tenso, amargurado, ainda deitado no chão, sem força para
mover, Manoel perguntava a si próprio a razão daquilo tudo.
Ouviu, então, a Voz da Anunciação:
-A felicidade que brilha no mundo, meu bom Manoel, é uma felicidade
sem base. E a felicidade sem base sólida, deixa de ser felicidade, expondo os
viventes a transes, sempre à procura dela. Quanto mais se procura a
felicidade, mais distante ela se encontra. Há gente vivendo momentos
insignificantes na vaga esperança de serem felizes, morrendo e ficando por
alcançar a felicidade. Meu bom Manoel, não existe na Terra quem possa dizer:
"eu sou realmente feliz". Porque, quando está tudo bem de um lado, do outro
lado tudo vai mal. E a felicidade continua sendo procurada.
-Mas por que a felicidade não é encontrada? Indagou Manoel.
-Porque o mundo é de lutas. E onde há lutas, existe o sofrimento, não
pode existir felicidade. Uns lutam pelos amores, outros pelos negócios, muitos
por melhorias de vida, vários por razão de doenças, alguns por ideais. Todos
na esperança de alcançarem aquilo que desejam. Enfim, uma vida de lutas, de
sacrifícios e sofrimentos.
-E tem mais -prosseguiu a Voz da Anunciação -luta o rico, luta o pobre,
filhos de uma natureza que não regula. Uma hora frio demais, outra frio
irresistível. Ventos castigando, maltratando, ferindo e matando. De repente, um
calor de rachar. Doenças de todas as formas e espécies. Portanto, se a
natureza não regula, como os viventes desejam ser felizes, desregulados, sem
equilíbrio?
A indagação fica no ar.
Manoel acompanha o raciocínio.
A voz, num tom paternal, vai explicando:
-A felicidade é uma palavra que só existe no nome, arranjada para
amansar os iludidos, para aliviar aqueles que não conhecem os segredos da
vida. Como pode a mãe ser feliz permanentemente preocupada com os filhos?
Que felicidade pode ter os pais atormentados pela mesma preocupação? Na
procura da felicidade todos se maldizem, sofrem, lutam e enfrentam
dificuldades: o sol, a chuva e o sereno.
-Você quer ser feliz, Manoel?
-Quero, quem não quer?
-Para ser feliz, Manoel, torna-se necessário trazer para si o que é certo,
viver de maneira certa e não na incerteza que todos vivem. Vou lhe mostrar,
em muito breve, o caminho da felicidade, a solução para todos os problemas
da vida e você terá de ensiná-lo à humanidade.
20
Ao despertar na manhã seguinte, ainda sob efeito de analgésicos e
convalescente da cirurgia, Vargas tinha diante de seus olhos a imagem de
Manoel Jacintho Coelho. Chapéu na cabeça e cigarro de palha na boca,
iluminado por uma luz prateada intensa:
-O pior já passou. O senhor agora vai se recuperar rapidamente. Tenha
paciência, acredite...
A imagem de Manoel desapareceu a seguir. Vargas não podia falar,
embora fosse seu desejo conversar com aquele homem. Figura singular, Seu
Manoel sabia dos segredos da vida e dos mistérios da morte.
Decidiu. Assim que tivesse recuperado ia procurá-lo. Aquele homem que
o alertara do perigo do acidente e agora estivera ali materializado podia ajudá-
lo. Lembrou-se do primeiro encontro. Da sinceridade das palavras de Manoel,
do seu desejo de colaborar. Ajuda desinteressada, despretensiosa. Por
diversas vezes, ao ouvi-lo, ficou arrepiado, mas procurou controlar as
emoções. Afinal, não ficava bem para um Presidente sair por aí batendo
cabeça nem tampouco se deixando levar por premonições, espiritismo.
Iria procurar Manoel, precisava agradecê-lo.
Pensava assim quando o Ministro Afrânio de Meio Franco chegou para
visitá-lo, acompanhado do médico Pedro Ernesto, prefeito do Distrito Federal.
Logo após cumprimentá-lo e antes mesmo de falar sobre o seu estado
de saúde ou ainda contar como ocorrera o acidente, Vargas quis saber:
-Afrânio, como vai o Manoel?
-Que Manoel, Presidente?
-Aquele seu funcionário lá do Itamaraty.
-Vai bem, eu acho que vai bem. Mas por que o Presidente quer saber
dele?
Vargas sorriu, respondendo apenas:
-Sei lá, ele me pareceu um bom sujeito.
Dois meses após, Vargas estava completamente recuperado.
Após removê-la para a Casa de Saúde de sua propriedade no Rio de
Janeiro, o médico Pedro Ernesto dedicou-lhe inteira assistência até curá-lo.
Ele não conseguia, porém, esquecer de Manoel.
Quando soube dos resultados eleitorais da Constituinte, dia 3 de maio,
voltou a vê-Io, sempre iluminado pela luz prateada:
-Esse Seu Manoel parece mesmo um homem do outro mundo. A ampla
vitória dos representantes das situações estaduais haviam lhe garantido a
realização de mais um sonho: o de se tornar Presidente da República, eleito
através do voto indireto, fato que iria ocorrer no dia 17 de julho do ano
seguinte, um dia após a promulgação da Constituição.
Chapéu na cabeça e cigarro de palha na boca, Manoel parecia
acompanhá-lo. Sentia vontade de revê-Io, agradecê-lo e abraçá-lo. E também
ouvi-Io. Afinal, ele sabia das coisas.
Não perdeu mais tempo. Olhou o relógio, acendeu o charuto, pegou o
telefone e ligou para o Ministro Afrânio de Meio Franco, no Palácio do
Itamaraty:
-Dr. Afrânio?
-Sim.
-Quem está falando é o Dr. Getúlio. Estou desejando saber do senhor
Manoel Jacintho Coelho, aquele funcionário. Ele me pediu que resolvesse um
problema dele, e vou atendê-lo. Trata-se de um emprego para um parente, um
sujeito estudioso, competente, merecedor da oportunidade. Por favor, peça a
ele que venha imediatamente ao Palácio do Catete, porque não disponho de
muito tempo.
-Vou mandá-lo sim. E de resto, Presidente?
-Vou bem, Dr. Afrânio. Estou recuperado e pronto para servir ao nosso
País.
-Isto é ótimo, Dr. Getúlio, isto é ótimo...
-Vou desligar, Dr. Afrânio. Não deixe de mandar o Manoel aqui.
-Sim, Presidente...
21
Muito não demorou, Manoel chegava ao Palácio do Catete com seus
quase dois metros de altura e mistério. Imediatamente foi arrastado para o
gabinete do Presidente. Ali, Vargas o esperava ansioso, inquieto, caminhando
de um lado para outro e fumando muito.
-Como vai o homem do outro mundo -exclamou sorridente ao vê-Io.
Depois veio abraçá-lo, feliz e agradecido.
-Não sei como escapei daquele terrível acidente, Seu Manoel. Daquele
acidente para o qual o senhor havia me alertado e pedido para que tivesse
cuidado. Mas reconheço, poderia ter sido bem pior, bem mais trágico
E recordou Getúlio:
-Quando ouvi o estrondo fechei os olhos. De olhos fechados vi o seu
rosto. Tive a consciência, àquela altura, de que não me livraria do acidente,
mas que iria sobreviver, porque o senhor estava do meu lado. Mandei chamá-lo
para agradecê-lo e também presenteá-lo.
Caminhou até à mesa e abrindo a gaveta, dela retirou uma pequena
caixa, embrulhada em papel colorido.
Disse:
-É um relógio, Seu Manoel. Um relógio de excelente marca, uma
pequena lembrança. Ao usá-lo, o senhor vai se lembrar do seu amigo
Presidente e também quanto lhe sou agradecido. Saiba, onde quer que eu
esteja, não vou esquecê-lo. E espero que o senhor esteja sempre comigo.
Manoel sorriu, baixou a cabeça, estava emocionado. Depois começou a
falar:
-Nesta vida nada é verdadeiro, a começar pela própria vida. Se a vida
fosse verdadeira, ninguém iria perdê-la, Presidente. O que parece certo hoje,
amanhã será errado, porque vivemos uma fase de desacertos, de
desencontros. O homem é um vago bicho sem destino, nasceu sobre a Terra
sem saber por que nem para quê.
-E como vamos saber o porquê, Seu Manoel?
-Daqui a dois anos, Presidente, com início da Fase Racional, a fase do
raciocínio, quando a humanidade vai conhecer o mundo de sua raça e saber
também como voltar para ele. A vida não terá mais segredos.
-O Presidente sabe o segredo da vida?
Um raio de sol fraco e louro iluminou o rosto redondo de Vargas.
Surpreso e curioso, ele absorvia, em silêncio, as palavras sábias de Manoel:
-A vida tem suas organizações muito claras para quem sabe viver. Para
quem não sabe, a vida torna-se desorganizada e difícil. Os seres orgânicos se
digladiam, lutam, destruindo a própria vida. Para ser bem formada, bem
construída, equilibrada ao bem-viver, a vida necessita que os seres orgânicos e
as organizações estejam paralelas e adequadas ao modo de que se constitui a
vida. O poder da vida está naquilo que as organizações podem corresponder
para equivaler à vida.
-O que vale o vivente ter vida, viver e não saber viver, Presidente?
Indaga Manoel, respondendo depois:
-Ora, não vale nada, porque quanto mais se procura organizar a vida,
mais se desorganiza. E se desorganizando, mais sofrimento vai colhendo. É
como a maré, sempre contra a maré, dentro do mar revolto. Assim como as
tempestades que reinam na vida do vivente, acabam por naufragar-lhe a vida,
deixando-o a imaginar e dizer:
-Quanto mais procuro o bem, mais ele se afasta de mim, mais longe fica,
porque não enxergo o que vou fazer da vida.
E concluiu:
-Neste crepúsculo amargo, neste pesadelo infernal, neste vale de
lágrimas, fica o vivente a pensar numa infinidade de coisas, sem saber resolver
o ideal.
-Mas, Seu Manoel, o que seria o ideal no seu ponto de vista?
-Seria viver num mundo natural, verdadeiro, limpo, imenso, puro, longe
dos problemas, das humilhações, das angústias e dos sofrimentos. Um mundo
de união, de concórdia e de fraternidade. Um mundo sem mentiras, sem
desconfiança, de equilíbrio e de virtudes.
E arrematou:
-No mundo de agora, a esperança que consola, aborrece e amola.
Vargas sorriu. Balançou a cabeça, concordando.
Manoel despediu-se dele, prometendo voltar um dia. Além dos
ensinamentos de uma nova cultura, ele acabara de mostrar a Vargas, a luz da
razão, o caminho da eternidade. Agora sim, o Cavaleiro da Concórdia poderia
partir para dar continuidade ao seu trabalho: o de fazer renascer das trevas o
esplendor do Terceiro Milênio.
III Parte
A LUZ DA SALVAÇÃO
De nada adiantaram as promessas à Nossa Senhora do Parto. Nem o
copo de água, nem as velas acesas sobre a cômoda, num canto do quarto.
Ana Maria não sobreviveu ao dar a luz ao filho, apesar dos esforços.
Quem conheceu o drama, jamais vai esquecê-lo.
O menino nascendo, chorando. E Aninha se debatendo, sofrendo,
lutando e morrendo, num ataque de eclampsia.
Ninguém sabia que seu sangue se intoxicara nos últimos dias da
gestação. E quando Aninha começou a tremer, olhos arregalados, sacudindo-
se toda, alguém ainda perguntou num tom nervoso:
-Ela é epilética, ela é epilética?
A pergunta ficou no ar, sem resposta.
Na verdade, o que todos sabiam sobre Aninha era muito pouco -ou
quase tudo de uma vida simples: era uma moça trabalhadeira, caprichosa,
amável e simpática. E não abandonara a máquina de costura até a véspera do
filho nascer, porque trabalho era coisa que ela não recusava.
-Aninha pespontadeira, Aninha pespontadeira ... era assim que todos
lhe chamavam na Cidade Nova.
Embrulho de roupas na cabeça, lá ia Aninha entregar as encomendas.
Mulata sestrosa, colo desabrochado. Cintura fina e fala mansa. No seu
jeito, feitiço, dengue e malícia:
-Bom dia, seu Antenor. Bom dia, dona Carolina... O ferreiro Antônio
Faustino da Conceição encantou-se por ela. Apaixonou-se. E com ela acabou
se casando, meses depois, num grande dia de festa. E agora ele chora,
coração dilacerado, rasgado, sangrando. Peito preste a explodir de tanta dor.
Lágrimas rolam pelo seu rosto, umedecendo-lhe o bigode farto,
insolente, arrogante -bigode que Aninha tanto gostava.
O desespero aumenta, impossível viver sem Aninha.
Ela fôra tudo para ele: mulher, amante, amiga. Mãe e irmã.
-Por que Aninha, por quê? Você não podia ir embora, Aninha. Me
deixar assim, sozinho, largado no mundo, filho para criar...
Antônio ferreiro chora a ausência da companheira, reclama, grita,
padece. Garganta ardendo, saliva escorrendo da boca aberta de tanta dor.
Parece querer morrer. Sua voz estala e se arrasta no ar, chorando, queimando
de sofrimento, alta e desesperada.
Conhecera Aninha, há seis anos, durante o Carnaval. Ficara enfeitiçado
ao vê-Ia requebrar no Rancho Recreio das Flores, onde Marinho, neto de
Ciata, era mestre-sala e tinha grande prestígio.
Não conseguiu mais despregar os olhos dela. Nem tampouco fugir de
seu jeito dengoso, dos seus lábios de desejo, do seu canto poderoso e livre:
-Ah! Aquelas ancas de requebros, aquela pele dourada, aqueles braços
bem-feitos, aquelas pernas compridas...
Tempo passou e Antônio acabou por conquistá-la.
Foi Dino Jumbeba, irmão de Marinho, tesoureiro da Irmandade de São
Jorge, na Praça da República, quem tratou de casá-los:
-Vocês se amam de verdade. E esse amor tem que dar frutos,
compreendem, compreendem?... Repetia sempre.
Quem não se lembra da festa de casamento. Das valsas, dos lundus,
dos chorinhos. Do samba comendo solto, durante o sábado, entrando pela
noite, varando a madrugada e estendendo-se por todo o domingo.
Aquele casamento reuniu, sem dúvida, a fina flor do Rio musical.
Lá estavam Lamartine Babo e Miguel Guimarães Júnior, Dunga e Chico
Viola, Ismael Silva e Joubert de Carvalho, Nilton Bastos e Heitor dos Prazeres,
Jacob do Bandolim e o poeta Catulo da Paixão Cearense. Pixinguinha, num
terno de linho engomado, e Noel Rosa, batucando, tempo todo, numa caixa de
fósforos. Paulo Benjamim de Oliveira, o Paulo da Portela, foi um dos últimos a
chegar, acompanhado de Cartola e Nelson do Cavaquinho.
Foram abraçar Aninha, cumprimentar o marido felizardo e comemorar o
enlace.
Naquele dia, Antônio se tornara o homem mais felizardo do mundo.
Agora, com a morte da mulher amada, era o mais infeliz de todos os homens.
Sentado no chão da desolação e da desgraça, rosto entre as pernas,
coberto pelas mãos calejadas, queimadas de fogo e ácido, Antônio chorava o
infortúnio da tragédia:
-Por que isso foi acontecer? Por que, por quê? Eu não sei que fazer.
Aninha, você não podia ir embora, não podia morrer. É o meu amor, Aninha, o
que vou fazer?
Lembrou-se do Padre Mário, barroco e ecumênico. Do casamento.
Aninha vestida de noiva, caminhando para o altar.
De véu e grinalda, como sempre desejou:
-Estava bonita ...Ao vê-Io nervoso, ela sorriu, mostrando as fileiras de
dentes brancos e iguais.
-O senhor Antônio Faustino da Conceição, quer receber, por livre e
espontânea vontade, a senhora Ana Maria de Oliveira, aqui presente, por sua
legítima esposa, conforme o rito da Santa Igreja Católica?
-Sim, sim. Claro, claro -respondeu apressadamente ao ouvir a voz do
padre em sua alucinação.
Depois aguardou ansioso a resposta de Aninha.
-A senhora Ana Maria de Oliveira quer receber, por livre e espontânea
vontade, o senhor Antônio Faustino da Conceição, aqui presente, por seu
legítimo esposo, conforme o rito da Santa Igreja Católica?
-Sim, padre.
Doce Aninha.
Padre Mário fez, por três vezes, o sinal da cruz sobre os noivos,
ajoelhados diante do altar. Depois começou a orar:
-Senhor eterno, que consagrastes as coisas dispersas, que constituístes
para os corações um vínculo de união indissolúvel, que abençoastes Isaac e
Rebeca, que os fizestes herdeiros de vossa promessa, abençoai também estes
vossos servos e guiai-os para toda a boa ação. Porque sois um Deus
misericordioso e amigo dos homens, nós vos rendemos honra, Pai, Filho e
Espírito Santo, agora e sempre por todos os séculos dos séculos, amém.
O sacerdote procedeu à benção das alianças:
-Senhor nosso Deus que tomastes por vossa noiva, como virgem pura, a
igreja nascida dos gentios, abençoai este noivado e uni estes servos,
guardando-os na paz e na concórdia, porque toda a glória, honra e adoração a
Vós pertencem, Pai, Filho, Espírito Santo, agora e sempre por todos os séculos
dos séculos; amém.
Padre Mário tomou as alianças e após colocá-las nos dedos dos noivos,
tratou de abençoá-los, fazendo sobre eles o sinal da cruz.
Entregue às alucinações e preso às lembranças do casamento, Antônio
não chora mais.
Como seria bom se a vida voltasse no tempo, devolvendo às pessoas as
coisas perdidas. As tristezas, por certo, seriam evitadas. Não haveria tantas
desgraças no mundo nem sofrimento. Aninha não estaria deitada naquele
quarto, imóvel.
-Morreu abençoada pelo Padre Mário. Mas o que isso adiantava? O que
ela desejava mesmo era ter um filho, criá-lo. Sonhava sempre como bebê, ele
acabou por arrastá-la à morte. Ah! meu Deus, quando vamos deixar de sofrer?
-Indagou incrédulo.
Antônio olhou o céu, contemplativo. Buscou um lenitivo na imensidão do
Universo. Uma luz que fosse intensa e pura. Verdadeira como a crença que
possuía, mas que acabara de perder. Uma luz que pudesse lhe revelar, através
daquela claridade e da força, o segredo da vida, a razão para afastá-lo da
descrença.
Mas alguém inadvertidamente acabou por despertá-lo:
-Vamos lá, Antônio. Seja forte. Olhe, seu filho. Está aqui, veja... o
rostinho dele, uma gracinha. Como se parece com a mãe.
Ao abraçar o menino, Antônio tratou de aproximá-lo bem de seu peito.
No seu gesto de amor e de afeto, uma necessidade: a de senti-lo respirando,
vivendo ... o filho de Aninha.
Depois pediu forças para criá-lo:
-Você, menino. Vai ter de ser um homem honesto, trabalhador e
honrado. Um homem de bem como desejou sua mãe.
Na pia batismal, o filho de Aninha se chamou Moacir, aquele que
nasceu do sofrimento.
Em meio ao burburinho provocado pela tragédia que arrastou vizinhos,
amigos e parentes ao leito de morte da mulher, alguém se lembrou de Maria
Amélia, a negra Amália Baiana:
Uma parteira de mão-cheia, caridosa, sensitiva. Foi a melhor que passou
por aqui, igual a ela, nenhuma. Sabia das coisas, da natureza, da essência.
Sabia se a mãe ia passar mal, se o filho ia nascer bem, com saúde. Era uma
mulher especial.
-Mas por onde anda essa Amália Baiana? Por que não foram buscá-la?
Indagou o relojoeiro Assunção. Moreno, cabelos lisos, terno cinza, colarinho
engomado, correntinha caindo do bolso do colete.
Gorda, vestido estampado, a costureira Cândida, vizinha de Aninha,
adiantou-se, bondade nos olhos e nas atitudes:
-Ninguém sabe por onde anda a Amália Baiana, não, moço.
Se ela está viva, ou se já morreu. Talvez esteja perdida, ou abandonada.
Ande lá para os lados do Cais do Porto, sendo alimentada pelas mãos
generosas de algum estivador, conhecedor de suas histórias e seus poderes.
Ou mesmo tenha encontrado o caminho do mar, da sedução, do
encantamento. Ido para o subúrbio, subido o morro, salpicado de verde,
embalada pela brisa suave, fresca e carinhosa. Ou mesmo, quem sabe, voltou
para a Bahia, para seu povo de velas, saveiros e lendas.
23
-Onde existe atraso, existe sofrimento, existe trevas: Por isso, todos
vivem no escuro, sofrendo, sem saber como se livrar do sofrimento.
Jamais inteiramente satisfeito, Manoel Jacintho Coelho continua a sua
procura, buscando novos caminhos, novos horizontes.
Controlando os impulsos, de forma lúcida, clara, decidida, vai
entregando seu corpo com denodo, abnegação e coragem.
Na atmosfera envolvente e suavemente perfumada da Tenda Espírita
Francisco de Assis, ele recebe mais uma comunicação: sobre sua cabeça, um
foco de luz prateada, intensa, transparente a iluminá-lo:
-Onde existe adiantamento, Manoel, existe a luz. Portanto, não há
sofrimento. Quem sabe não sofre. Quem não sabe, pena. Existem os que
pensam que sabem. Mas o sofrimento prova que eles não sabem, pois se
soubessem não sofreriam nem tampouco fariam os outros sofrer.
Manoel mostrou-se inquisitivo, desejoso de maiores esclarecimentos.
Então, a luz tornou-se mais forte, mais intensa, mais clara sobre ele.
A voz elevou-se:
-Os que sabem, Manoel, não sofrem. Resolvem tudo por si e por todos.
Porém, muitos vivem com saber insignificante, triste, sem nenhum valor.
Envaidecidos de uma sabedoria fraca. E embora convictos da nulidade da
sabedoria que apregoam, consideram-se sábios, mantendo-se no pedestal, na
tribuna, no púlpito. Na verdade não passam de grandes impostores. São
impostores por serem sofredores, mantendo lições de uma sabedoria que só
traz sofrimento para todos. O que adianta, Manoel, um saber que só aumenta o
sofrimento? Não adianta nada, não vale nada.
Olhos semicerrados, Manoel ouve em silêncio, expressão de atenção
concentrada no rosto:
-O mundo está convertido por uma sabedoria invertida, aonde o atraso é
adotado como saber. Isto é tão visível, como tornou-se visível o sofrimento do
mundo. Tanto assim que admitem a salvação do mundo pelo desenvolvimento
da destruição. Ah! Manoel, dentro de pouco tempo todos vão ver a água ferver
e esfriar de repente, como uma brasa jogada dentro da lagoa. Não fique
preocupado, logo depois tudo será normalizado. E a paz vai voltar a reinar,
finalmente, em todo o Universo.
Manoel quis falar, mas não teve tempo. A Voz da Anunciação tratou de
interrompê-lo, indo adiante:
-Os homens nasceram no mundo, mas o mundo não é dos homens, não
é dos habitantes. E por não ser dos habitantes, nem tudo eles podem resolver.
Dentro de muito breve, as coisas vão começar a se encarreirar, ganhando
novos rumos, com caráter de melhoria universal. Será colocado um ponto final
no absurdo. Através de você, vou apresentar ao mundo um Livro contendo a
verdade das verdades. Com a leitura deste Livro, todos vão saber de onde
vieram e para onde vão. Será um Livro de revelações surpreendentes,
revolucionário, pois vai provocar modificações de conceitos, de princípios
filosóficos, de pregações religiosas. Através dele, o mundo vai tomar
conhecimento de uma nova cultura, de novos ensinamentos, de novas lições.
Vai conhecer o caminho da luz, além de seu Verdadeiro DEUS. Será uma Obra
universal, grandiosa.
-O livro? Como vou fazê-lo?
Manoel quer saber.
-Terá de escrevê-lo, através do conhecimento que vou lhe transmitir.
-Não estou entendendo...
-Quando chegar a hora, Manoel, você entenderá. As verdades serão
derramadas diante de seus olhos, claras, elucidativas.
-Mas, mas...
Manoel ficou preocupado com o peso de tamanha responsabilidade.
-Acalme-se, Manoel. Você tem capacidade. Foi por ter capacidade e
coragem que você foi escolhido. Já estamos bem próximos do Terceiro Milênio.
E a fase do Terceiro Milênio é a fase da Racionalização dos povos, onde toda a
humanidade vai conhecer o mundo de sua raça e ainda saber como voltar para
ele. Com o livro que você vai escrever, o homem vai aprender a desenvolver o
raciocínio e também se desligar, definitivamente, da energia elétrica e
magnética, ganhando, então, vida eterna, transformando-se em massa
cósmica, pura, limpa e verdadeira.
Manoel ficou tranqüilo, ouvindo:
-Não será filosofia, nem religião, mas uma cultura transcendental. A
cultura do verdadeiro estado natural, do conhecimento do retorno da
humanidade ao seu verdadeiro Mundo de Origem, através da Energia
Racional, elo de ligação do ser humano ao MUNDO RACIONAL.
-Mas o que é Energia Racional?
Perguntou Manoel, agora curioso. Mas a voz respondeu-lhe apenas:
-Você vai saber de tudo sobre Energia Racional. Vai conhecê-la para
poder ensinar. Tenha paciência e aguarde. Tudo tem seu tempo. Fruteira
nenhuma dá fruto antes do tempo. Eu já lhe ensinei. Será que você não
aprendeu?
Manoel sorriu.
A anunciada transformação que iria ocorrer em sua vida e o surgimento
de uma nova cultura de Racionalização dos povos não ficariam guardadas
atrás das brancas paredes da Tenda Espírita Francisco de Assis no Méier.
Atravessaria o Atlântico e seria ouvida na Europa.
Na cidade de Gubbio, na Itália, o advogado, professor e escritor espírita
Pietro Ubaldi captaria a mensagem:
"...e desse modo, os fenômenos não serão mais vistos nem ouvidos,
nem tocados por um EU qualquer, mas sentidos por um ser que se transformou
em delicadíssimo instrumento de percepção, sensitivamente evoluído,
nervosamente refinado e sobretudo aperfeiçoado. Ciência nova, conduzida
pelos caminhos do amor e da elevação espiritual, é ciência que o Super-
homem que está para nascer fundará a Nova Civilização do III Milênio."
Ao receber a mensagem, Pietro Ubaldi tratou de anotá-la e incluí-Ia no
livro que escrevia: A GRANDE SÍNTESE.
Este livro iria se tornar, com o passar dos anos, o mais famoso de toda a
obra do escritor italiano. Durante sua feitura, Ubaldi passava por um imenso
período de solidão e trabalho.
24
-Então, Manoel, contemplando a cidade?
-Oi, Dino. Como vai? Quanto tempo...
-Puxa, Manoel, você sumiu. Há mais de seis meses que não lhe vejo.
Onde você tem andado?
-Tenho andado pela vida, Dino. Trabalhando, lutando, vivendo.
-E o violão, a música, as festas? ... As festas, Manoel, as noites alegres,
movimentadas?...
-Devido aos meus afazeres, ao meu trabalho, ultimamente não tenho me
dedicado à música. Olha que não pego no violão um bom tempo. Festas,
então, nem se fala. Não tenho ido a nenhuma.
-Há cinco anos, mais ou menos, fui procurá-lo e não consegui localizá-lo.
Queria avisá-lo da morte de Aninha ...
-Aninha?
-Sim, Aninha. Aquela pespontadeira, moça prendada, porta-estandarte
do Recreio das Flores, você se lembra?
-Sim, sim ..
-Pois é, Manoel. A coitada, cheia de vida, morreu de parto, uma pena!
Foi um fato doloroso, chocante, triste... E o desespero do marido, o Antônio
ferreiro ... lembrei-me de você. Achei que poderia ajudá-lo. Sei lá... mas não
consegui encontrá-lo...
-Lamento, Dino. Lamento muito... bem que gostaria de ajudá-lo numa
hora dessa, difícil...
-Mas deixa isso para lá, Manoel. Já passou. Não vamos ficar aqui
lembrando coisas tristes. Vamos ao que interessa. O que você me conta de
bom?
-Não tenho novidades, amigo. Estou levando, como lhe falei, uma vida
simples, comportada, rotineira. Sem alterações ou coisas novas. Estou
morando no Méier, subúrbio tranqüilo, afastado, calmo. E você? ...O que você
me conta de novo?
-Continuo na Central. Agora sou maquinista, compreendeu? Comecei
cedo, logo depois de deixar o Exército. Entrei como graxeiro, levado por meu
irmão. Depois passei a foguista. Fiz curso e sou maquinista.
Bom sujeito o Dino Jumbeba. Homem de agradável convívio, tremendo
papo. Religioso, educado, caridoso: Irmão-tesoureiro da Igreja de São Jorge e
neto de Ciata, baiana festeira e dona de Casa de Santo.
-Como vai Tia Ciata, Dino? E seus irmãos?
-Tia Ciata, você sabe, continua com suas festas, com o candomblé.
Respeitada, quando ela fala, ninguém responde. Todo mundo gosta dela e
quando ela dá uma ordem, o pessoal aceita e trata de cumpri-Ia. Tia Ciata é
uma personagem da cidade e vai ficar para a história.
-Verdade.
-Quanto aos meus irmãos, estão aí. Lili está trabalhando lá no Moinho
Inglês. O Marinho continua metido na macumba. É ogã do terreiro do João
Alabá. E o Santana está morando com minha irmã. Quem fala muito em você,
Manoel, é meu primo, o Bucy Moreira.
-Ah, o Bucy. O Bucy compositor... onde ele anda? Tenho saudades
dele.
-O Bucy continua na dele. Quer achá-lo, basta ir à Praça Tiradentes.
Parece não ter jeito, só vendo, continua o mesmo trapalhão de sempre.
Compõe sambas, depois trata de vendê-los. Não raro, ele vende o mesmo
samba, duas, três vezes. No final, você já sabe, é aquela confusão dos diabos.
Manoel sorri. Deseja saúde a todos e despede-se de Dino.
Segue seu caminho, subindo a Rua Visconde de Itaúna -hoje Presidente
Vargas, pista do lado do Campo de Sant'Ana.
Caminhada para a Praça Onze, antigo Róssio Pequeno.
O Rio estava mudando de fisionomia, estava crescendo
-observou.
Ainda na juventude, quando a cidade era bem menor, bem mais
humana, havia sido testemunha da covardia do governo contra os negros,
mulatos e pobres. Tudo a pretexto de um novo conceito de civilização.
Chegou mesmo a ficar revoltado com tanta incompreensão e
desumanidade. A pretexto de um rigoroso saneamento, confundindo
insalubridade com miséria, servindo a interesses políticos, empresariais e
econômicos, o governo deu início à campanha do bota-abaixo. E demoliu
cortiços, estalagens e casas de cômodos.
Quem era pobre, preto e miserável, dançou. Não podia morar no Centro,
onde não havia mais lugar para edificações simples. Levados pela necessidade
de moradias baratas, os despejados entre eles, muitos estrangeiros-jogados na
rua da amargura e da incompreensão, foram para a Cidade Nova e para os
subúrbios.
A zona portuária prosperava, crescia, expandindo-se. Com o
crescimento da importância do Porto, o Rio de Janeiro tornou-se o principal
centro exportador do País, a célula nervosa da economia e também o maior e
principal mercado de consumo dos produtos importados.
O progresso, a riqueza e o desenvolvimento passou a impor reformas. A
cidade crescia desordenadamente.
Lembrou-se da pressão dos milionários sobre o prefeito Rodrigues
Alves, sorriu.
Depois falou baixinho:
-Mas que maldade, ignóbil pretensão. Queriam que o Rio tivesse
aparência de cidade européia. Fosse igual a Paris. Estavam impressionados
com as reformas ocorridas na capital francesa, após a construção dos
boulevards, longas e arborizadas avenidas. Impunham ao governo a nova
estética, construindo enormes edifícios e residências luxuosas.
O governo acabou cedendo. Novas avenidas foram rasgadas. Surgiu a
Avenida Central, imponente. Hoje Avenida Rio Branco.
Sua construção provocou, de imediato, a demolição de 600 sobrados,
ocupados pela população proletária.
Recordou-se:
-Aquela nova avenida abriria, na verdade, o caminho de uma milionária
intenção: a venda de terrenos na Zona Sul e a transformação daquela região
em local de residência de ricos e bem-nascidos.
Surgiria também a Avenida Mem de Sá.
As Ruas Frei Caneca e Estácio de Sá seriam alargadas facilitando o
acesso à Tijuca e aos subúrbios da Central.
A abertura da Avenida Rodrigues Alves, margeando o Porto do Rio de
Janeiro, impulsionaria o crescimento dos subúrbios da Leopoldina.
Bonsucesso, Ramos, Penha começariam a se desenvolver. E a Cidade
Nova?
Ah! ... A Cidade Nova cresceria muito após o flagelo do bota-abaixo. O
pessoal da colônia baiana, instalada na Saúde, também atingida pelas medidas
do governo, acabaria se mudando para lá com sua alegria, apesar das
dificuldades. Eram trabalhadores da estiva do Porto, marceneiros, pedreiros,
ferreiros, alfaiates, sapateiros. Homens alegres, festeiros, muitos deles
músicos.
A suposta medida saneadora iria provocar, também, o surgimento das
primeiras favelas cariocas: Providência, São Carlos, Mangueira. Assim mesmo,
nesta ordem.
Após o encontro com Dino, aumentou a saudade de Hilária Batista de
Almeida, a Tia Ciata, em cuja casa os baianos se reuniam para louvar seus
orixás e também para sambar, comer, beber. Memoráveis noites de festa!
-Ah!... A casa de Ciata, seu candomblé. Eram verdadeiras brigadas de
resistência à ação policial. Tempo em que o samba e a macumba eram coisas
proibidas. Negra de valor, de decisão, de caráter. Vestido de renda bordado,
armado por anáguas engomadas, Ciata tinha tanta força que acabou
empregando o marido no governo. Verdade... o João Batista era linotipista do
Jornal do Comércio. Mas foi para a Alfândega e de lá para o Gabinete do Chefe
de Polícia, mesmo sendo marido de macumbeira, metida com festas de samba,
num tempo de perseguição e indisfarçável repressão. Ciata curou uma ferida
que o Wenceslau Brás tinha na perna e depois disto seu prestígio cresceu
tanto que ninguém podia mexer com ela nem com sua Casa de Santo. Tinha
influência.
Saudades das festas de Ciata rompendo a madrugada.
Ganhando o dia, com seus batuques. As macumbas de muita gente. De
gente pobre, de gente rica. De gente de direita, de gente de esquerda. De
crentes, de incrédulos. De gente que ia fazer pedidos, de gente que só ia para
comer. De pedreiros, de jornalistas. De advogados, de engraxates. De
políticos, de motoristas. De comida baiana, de garrafão de pinga obrigatório.
O vento das lembranças soprava naquela tarde morna, ao longo das
Ruas Visconde de Itaúna e Senador Euzébio, separadas pelo canal do mangue
ambas deram lugar à Presidente Vargas. Manoel Jacintho Coelho continuava
caminhando, relembrando, sentindo.
O tempo alonga as distâncias sentimentais. Um dia pensou que voltando
àquele lugar ia poder abraçar os amigos, erguer à tulipa de chope e brindar
com eles o reencontro. Seria um brinde de saudade, de recordações. Mas,
observou agora, que tudo se modificou ao seu redor. E mesmo que pudesse
reuni-los, eles jamais estariam juntos, porque já seriam outros, modificados
pelo tempo, pela distância.
Olhou para o céu azul de sonho, sombreado de nuvens de leve púrpura.
Ao longo do canal, as folhas das palmeiras imperiais, lhe pareciam imensos
leques abertos ao vento.
Sentimental e nostálgico, lembrou-se de Manoel Bandeira, o poeta, o
amigo, o xará. Frágil, tossindo. Da poesia fácil, inspirada, sentida, espontânea
e natural. Bandeira do Desencanto, Bandeira da Cantinela, Bandeira da
Dama Branca, Bandeira da Confidência, Bandeira do Mangue:
“Houve tempo em que a Cidade Nova era mais subúrbio que todas as
Meritis da Baixada
Pátria amada idolatrada de empregadinhos de repartições públicas.
Gente que vive porque é teimosa
Cartomantes da Rua Carmo Neto
Cirurgiões-dentistas com raízes gregas avulsivas
O Senador Euzébio e o Visconde de Itaúna
Já não se olhavam com rancor(Por isso Entre os dois Dom João VI
plantou quatro renques de palmeiras imperiais)
Casinhas tão térreas onde tantas vezes meu Deus fui funcionário público
casado com mulher feia e morri de tuberculose pulmonar
Muitas palmeiras se suicidaram porque não viviam num píncaro azulado.
Eram aqui que choramingavam os primeiros choros dos carnavais
cariocas
Sambas de Tia Ciata
Cadê mais Tia Ciata
Talvez em Dona Clara meu branco
Ensaiando cheganças para o Nata!...”
25
Na ferraria da Rua General Caldwell, atrás da Casa da Moeda, do lado
de uma enorme estalagem, Antônio Faustino da Conceição continua sua luta
contra o ferro bruto.
Martelo e alicate nas mãos, compenetrado no trabalho, nem percebe o
escárnio de um rapazola que passa, gritando:
-Trinca-ferro, trinca-ferro...
Bate forte no ferro em brasa, sobre a bigorna. Quer dobrá-Io, vencê-Io.
Embora reconheça: esteja dobrado pelo sofrimento. Vencido, não. Homem
como ele não se deixa vencer nem se entrega assim.
No peso das marteladas que se multiplicam, o grito de amargura, de
angústia, de sofrimento, mas também de luta, de esforço, de resistência.
Após a morte de Ana Maria, Antônio mudou muito.
Deixou de ser alegre, inquieto, irônico. Mas continuou valente, exigente,
infatigável. Trabalhador?... Ah! Isto ele sempre foi, como Aninha, com ou sem
ela.
Mãos grossas, pesadas, queimadas pelo fogo e comidas pelo ácido,
Antônio só tem feito trabalhar, trabalhar...
Calças arregaçadas, camisa aberta, não cuidava mais da aparência.
O janota alegre de ontem, sempre perfumado, o alegre tocador de
pandeiro do Recreio das Flores, sorriso aberto, parece ter morrido com Ana
Maria.
De fato.
O homem generoso, aventureiro, feliz. O sentimental, irrequieto,
transbordante, desapareceu, sumiu.
Antônio deixou de sambar, deixou de sorrir. Só não deixou de viver, o
que faz com esforço, com sacrifício.
-Trinca-ferro, trinca-ferro...
A rapazola impertinentemente volta a insistir, a provocá-lo. Agora ele
ouviu, mas não se importou, nem ligou. Apenas pensou:
-Moço sem picardia, sem malandragem, um bobo. Vai, brinca, brinca.
Você vai mudar quando souber os segredos da vida, quando for emboscado
pelo destino.
Coragem, fibra, sentimento.
Ah!... Tudo isso Antônio ainda tem. Mas por necessidade. Aninha
deixou-lhe um filho, o menino Moacir. E ele deseja criá-lo, transformá-lo num
grande homem:
-Vou ser um pai de verdade. E também uma mãe. Aninha, você vai ver...
O crepúsculo já se anuncia.
O dia vai morrendo atrás do Morro do Pinto, de casas humildes,
coloridas e risonhas. De gente pobre, mas alegre, subindo e descendo suas
ladeiras calçadas de paralelepípedos negros, íngremes, densas de mistério. De
seus becos assombrados de espanto e miséria.
A noite não demora a chegar.
O tempo não lhe serviu de remédio para esquecer os encantos, a beleza
e a música de Aninha. Nem a viuvez lhe devolvera a liberdade que
normalmente se adquire quando se deixa de amar. Aquela leve sensação que
se tem de não dever mais satisfações, de completa isenção de sentimentos, de
romper com as algemas.
Queria poder sorrir dos desenganos, do tormento obscuro, daquela
desventura, impossível. Sua fantasia fôra feita de sonho e desgraça. A bem da
verdade não deixara de amar Aninha. Sua alma ainda chorava, abismada no
luto. Aquela mulher se tornara definitiva em sua vida, principalmente após a
morte.
Ainda não se sentia forte, tranqüilo e confortado.
Muito menos livre, sólido, liberto.
Dentro de si, no palpitar de seu coração, a certeza: tinha contas a
prestar àquela mulher que, mesmo ausente, ainda morava em seu peito, viva,
infinita:
-Doce Aninha!...
Encerrou o trabalho, foi para o banho. De volta, cabelos molhados,
toalha no pescoço, trepou na bicicleta para iniciar o caminho de volta para
casa. Na porta da ferraria, um cego ainda lhe estendeu a mão, pedindo esmola.
Caridoso, tratou de atendê-lo.
Sentiu piedade daquele homem bem mais infeliz, triste sombra na
procissão dos desventurados.
-Coitado, nem o mundo pode ver. Sem trabalho, sem amigos, sem
ninguém. Completamente perdido na escuridão das trevas. Eu ainda tenho
Moacir, herança de Aninha. Meu conforto, meu alento, meu lenitivo.
Nos sobrados coloridos da Cidade Nova, nas simples casinhas térreas,
fronteiriças, moças se debruçam nas janelas. Respiram um ar repleto de
novidades e aguardam curiosas a chegada da noite. Interessadas,
acompanham com os olhos e também com comentários aqueles que passam -
uns apressados, outros não -de volta do trabalho.
São as perfumadas empregadinhas do comércio, enamoradas e
esperançosas. Os pequenos funcionários públicos, colarinhos engomados,
paletós fechados, jornais debaixo do braço, esbanjando conhecimento e senso
de responsabilidade. A baiana com seu tabuleiro de doce, num equilíbrio
mágico, despertando a gula. O moleque irrequieto, peito nu, assoviando.
O camelô com seus brinquedos, indo deporta em porta, na esperança de
vendê-las, e ensinando, a cada contato, lições esquecidas da infância.
Quando todos retomam, a prostituta vai.
Boca pintada, sonhadora, rumo a alcova, na Conde Lage. Num elegante
vestido rodado, ela deixa transparecer, através do caminhar esguio, o corpo
fornido, bem-feito.
O movimento alvoroça os corações.
Não demora muito, as famílias tomarão as calçadas com suas cadeiras,
suas conversas, seus risos, suas queixas e lamentações.
Na esquina das Ruas Visconde de Itaúna e Sant' Ana um sapo salta na
penumbra da noite que se aproxima, assustando a mulher negra, gorda,
avental amarrado sobre o vestido.
Ela grita e corre para a rua, sem perceber, bem junto dela, a bicicleta.
Antônio ferreiro que vem pedalando, apressado, perde o equilíbrio, caindo.
Na queda, ele bate forte com a cabeça no meio-fio, ficando sem sentidos.
Imóvel sobre a calçada, seu rosto logo se transforma numa pálida
máscara de cera. De sua cabeça a escorrer um filete de sangue.
O que estaria sentindo ali no chão, aquele homem que perdera o
estímulo da crença, o entusiasmo pela vida e se tornara inconsolável na dor,
após a morte da mulher?
A prostituta foi a primeira a acudi-lo, a socorrê-lo.
Vindo do fundo de sua desgraça, da sua maldição, rompendo como
absurdo dos preconceitos e com a indiferença da discriminação, ela tirou da
bolsa um lenço colorido, perfumado, colocando sobre a cabeça ensangüentada
do ferreiro.
No rosto banhado pelas lágrimas da solidariedade, de maquilagem
desfeita, um sentimento: a dor e a visão da morte.
Antônio agoniza, amparado pelas mãos geladas de desventuras,
pálidas, hesitantes, mas amigas.
Humildade, desespero e súplica na boca que era, há pouco, carmim de
desejo.
A multidão que se formou curiosa, acompanhava o soluçar intraduzível
da mulher, que suplicava ajuda e chorava o destino do homem que não
conhecia.
Alto, prestativo e determinado, o espanhol Juan Gonzalez abandona o
balcão do Café e Bar San Sebástian, ali na Rua Sant'Ana. Deseja saber o que
está acontecendo, a razão daquela confusão:
-Que passa, que passa?
Saiu da sombra em meio aos cheiros e rumores. Quem o conhece, sabe:
está disposto a ajudar.
Natural de Vigo, cidade florida banhada pelo Atlântico, ao norte da
Espanha, Gonzalez abriu espaço na multidão, varrendo o lixo. Inteirado do que
estava acontecendo, da gravidade do estado do homem agonizando na
calçada, não perde mais tempo. Sai à procura de socorro, voltando, pouco
depois, num táxi:
-"Tonterías", "tonterías" ... balbucia.
Antônio é levado imediatamente para o Pronto-socorro, na Praça da
República, hoje Hospital Souza Aguiar. A prostituta, identificada mais tarde,
como Adelaide de Assis, fez questão de acompanhá-lo, esquecida de sua
desgraça:
-Alguém precisa avisar os parentes dele -suplicou compadecida.
No hospital, após os primeiros exames, a dureza do diagnóstico: fratura
de crânio.
Antônio estava grave. A pancada que dera com a cabeça contra o chão,
acabara por afundá-lo frontal. Vai ser operado:
-Preparem a sala de cirurgia, preparem a sala de cirurgia. Alertava um
enfermeiro, nervoso, levando, correndo, várias radiografias para o médico.
Antônio continuava estendido numa maca de ferro, pintada de branco, na sala
destinada aos pacientes homens. Ainda inerte, completamente fora de si.
Do lado de fora, outras pessoas se juntaram à Adelaide, agora mais
calma, embora bastante apreensiva. Chegaram os capoeiras Zé Moleque,
Gabiroba e Brancura. Este metido num paletó jaquetão rigorosamente
fechado.
Visivelmente apreensível, andando de um lado para outro, aguardando
notícias, o sambista e compositor, Agenor de Oliveira, o Cartola:
-Tia Carmem está desesperada. Quer saber como Antônio está
passando. Assim que souber, vou avisá-la.
Referia-se a Carmem Teixeira da Conceição, a Carmem do Xibuca,
irmã de santo de Ciata. Ela adorava Antônio como .se ele fosse seu próprio
filho.
26
Manoel Jacintho não suportou a saudade de Tia Ciata e decidiu visitá-la
na imensa casa que ela alugara na Rua Visconde de Itaúna. A velha e
poderosa baiana, guardiã de nossas tradições festeiras e religiosas, ao vê-lo
ficou surpresa, satisfeita e comovida. Como Ciata estava bonita no seu traje de
baiana, naquele vestido rodado, de rendas:
-Clata de Oxum -disse.
Deusa do dengue, da formosura, da elegância. Ciata era a própria
Oxum: meiga, vaidosa.
-Vai entrando, vai entrando, Manoel, a casa é sua... Conversaram a
tarde inteira. Recordaram grandes festas e momentos inesquecíveis. Falaram
dos amigos, de suas saudades. Mas deram, também, ótimas e largas
gargalhadas.
Ciata ainda quis prendê-lo para o jantar. Mas Manoel preferiu adiá-lo
para uma outra ocasião, quando dispusesse de mais tempo e estivesse mais
tranqüilo. Algo lhe dizia que devia ir embora, partir.
Atendeu à voz da razão. Despediu-se, ganhou a rua.
Logo seus olhos avistaram uma mulher que chorava muito, levando um
menino pela mão. Quis saber o que estava acontecendo, sentiu necessidade
de ajudá-la.
Era dona Perpétua Alvarenga, doceira de primeira, mestre na arte
culinária, religiosa, caridosa e amiga, ela se prontificara, desde a morte de
Aninha, ajudar Antônio, cuidar de Moacir, o que vinha fazendo com imenso
carinho, amor e inegável dedicação.
A notícia do acidente acabou por surpreendê-la, arrastá-la ao pânico. No
seu inconformado desespero, caminhava apressadamente para o Pronto-
socorro:
-Meu Deus, meu Deus, ajude! O Moacir não pode ficar sem o pai.
Olhos grandes, rostinho redondo, bem parecido com Aninha, Moacir, na
inocência de seus cinco aninhos, não tinha consciência do que estava
acontecendo. Queria ver o pai e pronto. Por isso andava com pressa,
atendendo os apelos da tia Perpétua.
No Pronto-socorro, a indecisão do médico:
-Valeria a pena operar aquele homem? Ele sobreviveria a tão delicada
cirurgia?
Examinou a situação. Após alguns segundos de hesitação, análise e
avaliação, concluiu: Antônio não seria operado, não resistiria.
O desespero e o nervosismo tomaram conta de todos os amigos de
Antônio ferreiro, agrupados, agora em número maior, na porta do hospital.
Diante da decisão do médico, restava-lhes apenas aguardar a morte do
companheiro. Ou quem sabe, uma providência de Deus.
Falou em Deus, ele apareceu:
-Olha o Manoel. Quem é vivo sempre aparece...
-Oi, Cartola. Como está o homem?
-Muito mal, muito mal. O médico não quer operá-lo devido à gravidade
de seu estado. Falou mesmo, se operar, ele morre.
-Verdade?
-Verdade, Manoel...
-Quero vê-lo.
Falou e foi entrando corredor adentro, sem que ninguém o importunasse.
Antônio continuava deitado sobre a mesma maca, agulha de soro a
espetar-lhe a veia. Manoel aproximou-se dele, pousando-lhe a mão direita
sobre a cabeça. Não demorou muito uma luz prateada, brilhante, clareou toda
a enfermaria.
A fonte de luz nascida, através da janela, iluminava o corpo de Manoel,
ressaltando-lhe a silhueta e tornando ainda mais branco o terno que ele vestia.
A mão que estendera sobre a cabeça de Antônio, tornara-se um poderoso
condutor de energia, iluminada, fosforescente, cintilante. De tão intensa, a luz
parecia penetrar na cabeça do ferreiro em agonia. Pacientes, enfermeiros e
médicos e acompanhantes, perplexos, surpresos, embasbacados,
acompanhavam, trêmulos aquele espetáculo de beleza indescritível.
Num determinado momento, a luz tornou-se bem mais forte, intensa. A
impressão que todos tiveram, nesta ocasião, foi a de que Manoel Jacintho
Coelho, no ponto máximo de sua concentração, deixava o chão, flutuando no
espaço.
Depois, o vento forte soprou por toda sala, abaixando a temperatura que
fôra elevada pelo calor da luz. Alguns vidros de mercúrio, tubos de
esparadrapo e rolos de gaze caíram no chão, assustando ainda mais aqueles
que ocupavam a enfermaria, nervos à flor da pele.
Anacleto Martins de Almeida que ali estava com uma crise de bronquite,
contaria, anos depois:
-Fiquei com o cabelo todo arrepiado, não sei se foi pelo vento que
soprou na enfermaria, ou de espanto por tudo aquilo que assisti. Minha emoção
foi tão grande, tão forte, que acabei ficando curado da bronquite, que padecia
desde os primeiros anos de infância. Lembro-me que outras pessoas que lá
estavam, também doentes, foram beneficiadas com a cura através da Luz.
Depois do vento, o silêncio absoluto.
A luz fôra se esmaecendo, até desaparecer. Antônio abriu os olhos
ainda sonolentos. Manoel, então, sorriu, dizendo:
-Já posso ir, Antônio. Você já está curado.
A seguir, retirou-se.
Do lado de fora, em frente ao Pronto-socorro, uma situação inexplicável.
Dona Perpétua vinha chegando. E, com ela, o menino Moacir, e também
um homem: Manoel Jacintho Coelho.
O compositor Agenor de Oliveira, o Cartola, ficou intrigado, sem
entender nada. Manoel, terno branco, tinha conversado com ele, entrado logo
após, no hospital. Estava ali esperando ele sair. Queria saber se tinha novas
informações sobre Antônio, notícias alentadoras. E de repente o homem surgiu
na rua, de terno azul.
Tratou de indagá-lo:
-Manoel, você não estava de terno branco?
-Não.
-Você não entrou no hospital?
-Não...
Cartola tratou de pedir a comprovação das pessoas que ali estavam. De
Brancura, Zé Moleque, Gablroba e Adelaide
-Ô Manoel... você está brincando...
-Não Cartola, não estou brincando. Cheguei agora com dona Perpétua.
Todos foram unânimes: Manoel estivera ali, momentos antes, num
elegante terno branco.
-Mas, mas...
Manoel não tinha mais como negar. Imaginava o que poderia ter
ocorrido:
-Se vocês querem assim, assim seja...
Muito não demorou, o episódio que deslumbrou a todos no hospital,
ganhou a rua, arrastando uma verdadeira romaria de curiosos até lá. Durante
muitas semanas não se falou em outra coisa na Cidade Nova.
Sem entender o que realmente acontecera, o ferreiro Antônio, sentou-se
na maca querendo ir embora, no que foi impedido pelo cirurgião Antenor:
-Seu Antônio, preciso submetê-lo a novos exames. Se o senhor estiver
curado, vou liberá-lo, vou lhe dar alta.
-Como, doutor? Eu nunca estive doente, nem sei por que estou aqui.
No Café e Bar San Sebástian do espanhol Juan Gonzalez, os
comentários ganham um fato novo, num comovente depoimento do músico
Carlos Espínola, pai de Aracy Cortes:
-O tal homem de branco saiu do hospital, após ressuscitar o Antônio. Na
Frei Caneca, foi abordado por um cego que lhe estendeu a mão, pedindo-lhe
uma esmola. Sabe qual foi a esmola que ele deu ao cego? A visão. Não sei o
que ele fez nem tampouco o que falou. Só sei que o cego, após coçar os olhos,
começou a enxergar. E saiu correndo, pulando e gritando: estou vendo, estou
vendo.
No dia seguinte, o cego seria localizado por um repórter do Diário
Carioca. Chamava-se Alfredo Alencar Moreira, o mesmo que deixara
penalizado o ferreiro Antônio quando ele saía do trabalho.

IV PARTE
A HORA DA VERDADE
Os surpreendentes poderes de Manoel Jacintho Coelho começaram a
ganhar as primeiras páginas dos jornais e também correr de boca em boca por
toda a cidade. Homens e mulheres, jovens e velhos, poderosos e humildes
estavam perplexos e deslumbrados com que assistiam:
-Você conhece o Manoel? Aquele do terno branco?...
-Não, Aniceto. Eu não conheço, mas tenho ouvido falar dele.
-Você devia conhecê-lo, Belisário. O homem faz coisas do outro mundo.
Aparece simultaneamente em vários lugares, realiza curas de moléstias tidas
como incuráveis e costuma andar com os pés fora do chão, flutuando...
-Pára de brincadeira, Aniceto. Um homem da minha idade não acredita
em Papai Noel...
-Brincadeira? ... Eu estou falando sério, Belisário. Seria incrédulo demais
ou talvez um tolo se não acreditasse naquilo que está acontecendo diante dos
meus olhos, dos olhos de toda a cidade. Ainda na semana passada, o João
Cândido, aquele do armarinho da Rua Catumbi, foi procurar Manoel, na tenda
espírita, lá no Méier. A filha dele estava com problemas no ouvido e ameaçada
de ficar surda. Sabe o que aconteceu Belisário?
-Não, Aniceto. Não sei.
-O homem curou a menina com um sopro. Se você achar que estou
mentindo, procure o João Cândido, vá procurá-la. Ontem estive conversando
com ele e o homem continuava embasbacado, perplexo, bestificado. Embora
satisfeito, radiante de felicidade.
Olhar de descaso, de pouco crédito, Belisário ouviu em silêncio. Depois
indagou:
-Quem pode comprovar, na verdade, se a menina ficou curada ou não?
Ou ainda se ela estava realmente doente, com problemas de tamanha
gravidade no ouvido?
-Belisário, o João Cândido já havia procurado vários médicos e a menina
estava sentindo dores terríveis no ouvido, dores que desapareceram logo após
o sopro. Quis saber da própria menina o que ela sentiu quando Manoel soprou-
lhe o ouvido e ela contou que sentiu um calor muito grande entrando pelo
conduto auditivo e rompendo com alguma coisa que não sabia explicar. Falou-
me ainda do detalhe que me deixou também intrigado: no momento do sopro, o
Manoel não tinha os pés no chão. Seu corpo estava livre no espaço...
-O que é isto, Aniceto?... Tenho cara de bobo...
-Ninguém tem cara de bobo, Belisário. Mas nesta hora fica. O João
Cândido ficou com cara de bobo, eu ficaria e você também, diante de uma
cena desta.
-Mas ...
-Mas o que, Belisário?... Dentre tantas coisas, fiquei sabendo também,
ter sido Manoel quem curou as pernas do Getúlio, embora o Dr. Pedro Ernesto
tenha ficado com o mérito. Não só curou, como também o alertara, dias antes,
para o perigo do, acidente.
Como agradecimento do Presidente, o Manoel ganhou um relógio, a
amizade do homem e uma homenagem no Palácio do Catete.
-Verdade, Aniceto?
-Verdade, Belisário. O Getúlio agora não sai mais lá do centro do
Manoel. Vira-e-mexe, está lá com comitiva e tudo. Só que o Manoel não faz
distinção nem o Getúlio quer. Quem quiser falar com ele, tem que aguardar a
vez. Rico ou pobre, influente ou sem prestígio, para o Manoel todos são iguais
perante a Deus e merecem o mesmo tratamento. Trata todos com muito amor,
generosidade e paciência.
-Estou curioso, Aniceto... coisas desse tipo, eu pago pra ver.
-Não Belisário. Lá ninguém paga nada. A Tenda Espírita Francisco de
Assis é uma casa de caridade. Portanto acho bom não confundi-Ia com uma
casa de espetáculos...
-Modo de dizer, Aniceto. Aquele negócio de São Thomé. A gente quer
ver para crer...
-Belisário, o João Cândido me contou também que logo que sentou-se
no banco destinado às pessoas que iam participar da sessão, foi surpreendido.
Mesmo sem tê-lo visto, pois permanecera no interior do centro, cuidando dos
últimos afazeres, Manoel pediu lá de dentro:
-Quero falar com esse senhor que a filha está ficando surda. A menina
será a primeira a ser atendida. Tem forte infecção no ouvido e está sentindo
dores. Está sofrendo, necessitando de ajuda. Portanto, peço a compreensão de
todos.
-Ao ouvir Manoel falar, João Cândido ficou arrepiado. Não conhecia o
Manoel, e ainda não havia falado com ele nem tampouco contado a ninguém
ali do centro o problema da filha. Havia apenas solicitado uma consulta para a
menina, sem contudo revelar a doença que ela padecia.
-Mas foi assim mesmo, Aniceto?
-Inacreditável, mas foi... o João ainda me contou que no momento em
que Manoel revelou a doença da filha, sentiu um vento forte soprar-lhe as
costas. Forte e gelado. Medo e uma sensação estranha, diferente. Mas
adquiriu logo a certeza: a de que a filha ia ficar curada.
-Como é o nome da filha de João Cândido, Aniceto?
-Regina, Belisário. Tem 12 anos, uma mocinha.
No Salão Magia das Luvas; uma espelhada barbearia da Rua Mariz e
Barros, ponto de encontro de boêmios, músicos, sambistas, passarinheiros,
funcionários públicos, Pixinguinha se levanta, num terno riscado. Deixa a
cadeira onde aguardava a vez de cortar o cabelo e entra na conversa:
-Conheço o Manoel. Além de excelente músico, tem realmente santo
forte. Possui poderes e vem realizando muitas curas, algumas surpreendentes.
Costuma deixar as pessoas embaraçadas, respondendo perguntas que não
chegaram ser feitas.
-Será que ele consegue ler a cabeça dos outros, Pixinguinha?
-Às vezes penso que sim, Aniceto, às vezes penso que sim...
Pixinguinha ajeita o paletó.
Terno bem cortado, caimento perfeito, chama atenção para a roupa que
veste:
-Bonito terno, Pixinguinha.
-Obrigado, Belisário. Foi feito por um jovem alfaiate de Nilópolis. Um
artista invejável e de grande futuro. Não demora muito, vai tomar conta da
cidade com sua arte.
-O nome dele, Pixinguinha?
-Aloysio Carneiro Moraes. Ou Moraes apenas. Mestre da tesoura
dourada, como preferem seus amigos.
-O Moraes tem realmente um excelente talho. Preciso, milimetrado.
Consegue dar à roupa um ótimo caimento. Vou procurá-lo, vou procurá-lo.
Alegre, falante, o barbeiro Donato já não presta atenção no cabelo que
corta, doido para entrar na conversa. Homem que faz da amabilidade sua arte,
admira uma prosa calma, de longas pausas elucidativas:
-Sabe, Pixinguinha. Também estou querendo conhecer o Seu Manoel.
Na barbearia se fala dele todo o dia e há coisas que contam que estão me
deixando curioso. Semana passada, o Almirante, aquele do rádio, esteve por
aqui, cortando o cabelo e fazendo a barba comigo. Disse que conhecia o Seu
Manoel da boemia, do violão de sete cordas. Mas que estava ouvindo muitas
histórias sobre ele, histórias que gostaria de catalogar para contar,
futuramente, num programa de rádio, sobre coisas do além.
-Antônio ferreiro, Donato. Você sabe dele?...
-Claro, Aniceto. O homem está trabalhando com mais disposição do que
nunca. Parece que não aconteceu nada com ele. Está inteirinho,
completamente curado. Curado do acidente e da paixão...
-Do acidente e da paixão?
-Ou você não sabe, Aniceto?
-Não, não sei, Donato...
-O Antônio está namorando a Adelaide, mulher que o socorreu. Quem
me contou foi o Juan, aquele espanhol do San Sebástian. Hoje de manhã, ele
esteve aqui fazendo a barba e contando as novidades. Falam que o Antônio
está muito bem intencionado. Tirou a coitada da vida e tudo. Sinceramente,
acho que ele fez muito bem.
-Também acho, Donato. Todo mundo merece uma oportunidade, um
ombro.
-Contam que foi mais um milagre do Seu Manoel. Ao sair do hospital, de
terno branco, no dia do acidente, ele teria se aproximado de Adelaide,
procurando consolá-la:
-Não chore, mulher. A tempestade já passou, a luz iluminou as trevas.
Antônio está salvo, curado. Pronto para trabalhar e também lhe dar um lar, uma
família...
-Você está brincando, Donato.
-Brincando?... Na casa de Tia Ciata não se fala de outra coisa.
Sem conseguir esconder a insatisfação, o passarinheiro Amorim,
caminha de um lado para o outro, resmungando e ocupando todos os espaços
da barbearia.
Camiseta e calça listrada, sovaco forrado por cabeleira espessa, unhas
e bigode por fazer, ele reclama indignado, interrompendo o papo do barbeiro:
-Quando você começa a conversar, Donato, é um Deus nos acuda.
Acaba esquecendo o trabalho, o freguês na cadeira, uma loucura. Olha só o
que você está fazendo com o cabelo do Carlinhos, meu amigo lá de Figueira
de Meio.
O cabelo do rapaz está todo picotado, cheio de caminhos de rato. Está
certo que o Carlinhos goste de passarinhos, seja criador de curiós. Agora,
transformá-lo num galinha da campina, não.
Você vai ter de dar um jeito, Donato. Vai ter que dar um jeito. O rapaz
não pode ficar assim, com uma crista no lugar do topete.
Longe da inquietação das madrugadas alegres, da trepidação da cidade,
da agitação da repartição pública, perdido na simplicidade e na quietude da
Tenda Espírita Francisco de Assis, Manoel Jacintho Coelho contempla o
espaço, distante e confortado. Esquecido na calma e no silêncio, ele aguarda
imóvel e quieto a descida do crepúsculo olhando as paredes revestidas de
solidariedade e ternura daquela casa de caridade.
Mas seu corpo logo seria estremecido, por um turbilhão que iria varrer as
dependências da tenda espírita. Uma voz forte, grave, densa de mistério e rica
de conhecimentos, também se faria ouvir:
-Manoel, vamos. Chegou a hora.
Arrepiado, cauteloso, Manoel Jacintho virou-se na intenção de identificar
a voz, saber quem estava falando consigo. Foi quando deparou com uma
enorme e cintilante Estrela de Sete Pontas cobrindo todo o altar:
-Gostou da estrela, Manoel? Ela representa os Sete Reinados da Vida. E
vai acompanhá-lo a partir de agora, porque o sete é o número da plenitude dos
Reinados.
Na frente da imensa estrela, haviam doze cadeiras, seis de cada lado,
enfileiradas, uma de frente para outra, como podem ser encontradas, hoje, na
Varanda do Retiro Racional. No centro, na frente da estrela, uma décima
terceira cadeira prateada, iluminada, cintilante:
-Senta, Manoel. Ela é sua...
-Minha?
-Sim, Manoel. Ela é sua...
28
Nervoso, tenso, hesitante, Manoel preferiu ficar onde estava, ouvindo:
-Serei teu companheiro na tribulação, na realeza e na perseverança.
Vou ajudá-lo a mostrar aos viventes o que vai acontecer na Terra, ensiná-lo o
mistério da estrela e também todos os segredos da vida. Vamos dar de comer
à árvore da salvação.
Um forte cheiro de incenso invadiu a tenda espírita. As doze cadeiras
passaram a ser ocupadas por doze homens. Eram todos velhos, embora fortes
e dispostos. Usavam longas cabeleiras e barbas brancas. Vestiam compridas
túnicas brancas e caminhavam com generosidade e paciência:
-São os Cardeais do Universo, Manoel. Eles formam o Grande Conselho
Superior. E vieram assistir ao seu coroamento.
-Meu coroamento?...
-Sim, Manoel. Ao seu coroamento. Aqui estou para ensiná-lo a governar
a vida dos viventes, usando o cetro luminoso do Raciocínio. Para ajudá-lo
também a quebrar, com este cetro, os vasos de barro do pensamento.
Nenhuma vitória humana poderá preservar o vivente de ser finalmente um
sofredor. Mas aquele que estiver em sofrimento, você vai ensiná-lo a não se
abalar. O sofrimento não é o meu sinal de cólera, mas o meu sinal de amor.
Através dele, vou lapidar, corrigir e salvar.
Manoel pôde finalmente avistar o homem, cuja voz de trovão estava
acostumado a ouvir. Ficou arrepiado, trêmulo. Seu rosto brilhava como o sol.
Seus cabelos eram brancos, longos como os dos outros. Seus olhos eram
chamas de fogo e seus pés de metal incandescentes. Sua voz tinha o rumor
dos mares. Mostrava na mão direita uma pedra branca e na esquerda uma
espada azul iluminada:
-Sua vida, a partir de agora, Manoel, será muito difícil. Apesar de seu
empenho, da luta e da dedicação para salvar a humanidade, não lhe pouparei
do sofrimento. Você vai conhecer as difamações, as intrigas, as injustiças.
Muitos vão se virar contra você sem eira nem beira, motivo ou justificação.
Outros vão acompanhá-lo como cordeiros e encontrarão, ao final da estrada, o
mundo sonhado. Quem permanecer fiel aos meus ensinamentos será
presenteado, na hora da morte, com a minha coroa de vida eterna. Prepare-se
Manoel, pois jogarão no teu caminho as pedras do tropeço. Não se desespere
nem esmoreça. Trago-lhe do teu MUNDO, uma pedra branca. Nela, você
deverá gravar o meu nome, um nome novo, que ninguém conhece. E que só
conhecerão aqueles a quem você abençoar.
Agora mais tranqüilo, Manoel torna-se todo atenção:
-Minha mensagem tem caráter definitivo, Manoel. Aqueles que tomarem
conhecimento de meus ensinamentos, deverão colocá-los em prática
imediatamente, de modo possam colher bem mais rápido, os frutos de minhas
lições. Serão lições de amor, de concórdia, de verdades. Vou apresentá-las,
através de um Livro, o qual você vai começar a escrever a partir de hoje. Com
o Livro que irei ditá-lo, você vai conhecer o poder, a riqueza, a sabedoria, a
força, a glória, a honra e o louvor. Mas, tudo isso, você deverá usar em
benefício da humanidade, da divulgação da minha Obra, para salvar o vivente
do flagelo. Seja generoso, paciente, perseverante. Sempre que se sentir
cansado, debruças em mim, pois trabalharei por você. Pegue o seu cavalo
branco, coloque a minha coroa sobre tua cabeça e parta com a minha espada.
Mate a mistificação, o charlatanismo, a exploração. Você conseguirá, Manoel.
Os homens, esteja certo, vão se associar de peito ao teu sacrifício, ouvindo e
assimilando as minhas mensagens. Quem possuir ouvidos, vai ouvi-lo. Quem
tiver olhos, vai vê-lo. Suas palavras e os seus escritos, percorrerão o mundo,
transformados num inédito poema de esperança, de revelações.
Manoel não diz nada, permanece silencioso, atento:
-Estás pronto para saber o que vai acontecer na Terra, Manoel?
Respondeu que sim, embora sem saber ao certo. Desejou apenas dar
uma demonstração de coragem. De dedicação, de confiança e de obediência.
As velas dos imensos candelabros de ouro, colocados atrás das cadeiras
alinhadas, logo se apagaram. O Arco-íris que invadira com sua luz colorida o
salão do centro espírita, durante a mensagem, desapareceu imediatamente. Os
relâmpagos e os trovões logo se fizeram ouvir. O sol se apagou naquele final
de tarde e o céu ficou iluminado por uma luz vermelha como o sangue.
Uma chuva de granizo e fogo começou a desabar, os astros
despencaram sobre a Terra, caindo como mangas maduras das mangueiras. O
céu desapareceu por completo. As ilhas foram tragadas pelo mar em fúria e
ebulição. Homens e mulheres, velhos e crianças, ricos e pobres, patrões e
empregados, igualados no desespero e na desgraça, buscando, na aflição, as
cavernas nas montanhas.
-Fique calmo, Manoel -interrompeu o homem de barbas longas e olhos
de fogo, dizendo:
-Nem o céu, nem a Terra, nem as árvores, serão danificados enquanto
não estiverem marcados aqueles que voltarão para nosso mundo. Meus filhos,
Manoel, estarão livres do flagelo. Não terão mais fome nem sede. Nem
tristezas nem dores. Já terão sido lavados na fonte da vida eterna. O Livro que
vou ditá-lo, será a chave do poço e do abismo, lembre-se disto.
Seguiu-se a advertência:
-Durante a tua caminhada não faltarão as profetizas, as aproveitadoras.
Cuidado com as profetizas, Manoel. Tente convertê-las. Mas não as deixe de
ensinar, em conduzir o meu rebanho, mesmo que à distância. Meus cordeiros
acabarão prostituídos e enganados. Desejo convertê-las também, Manoel, mas
não com as suas imundícies.
-Como posso chamá-lo?
-De RACIONAL SUPERIOR. Os ensinamentos que você vai receber
para transmiti-los à humanidade, pertencem a Cultura Racional, a cultura do
raciocínio, a Imunização Racional.
-Mas, o que é Cultura Racional?
-São os ensinamentos do princípio e do fim do mundo.
Através da Cultura Racional, o homem vai ficar sabendo de onde ele
vem. Para onde vai e como vai. Trata-se de uma cultura do Terceiro Milênio,
transcendental. Vamos ensinar a humanidade, como conhecer o mundo de sua
raça e também, como saber voltar para ele.
A Cultura Racional, Manoel, é a cultura do verdadeiro estado natural, do
conhecimento de retorno da humanidade a seu verdadeiro mundo, através da
Energia Racional, elo de ligação do ser humano com o MUNDO RACIONAL.
Com o início da Fase Racional, a partir de agora, o espiritismo deixa de ter
sentido, você sabia?
-Não.
-O que é espiritismo, Manoel? Você saberia me dizer?
Manoel quer responder, mas não consegue. Falta-lhe a voz e o
RACIONAL SUPERIOR retoma a palavra, explicando:
-Espiritismo quer dizer: experimentando, em experiência, espertos,
espetando, exploração, sempre com duas intenções, boa e má. Explicação que
não dá conta do profundo ser da matéria, ficando em experiência sempre, sem
solução, por preservar todos os mistérios, todos os enigmas, todos os
encantos. Reside aí, Manoel, a razão dos sofrimentos e das lágrimas. Quem
vive de experiência não chega à razão nem à conclusão definitiva das coisas.
Ninguém deve confiar no espiritismo. Quem navega em experiência, não sabe
se está certo ou errado. O espiritismo é, na verdade, um barco sem rumo. Os
espíritas ignoram e fazem mistério de suas origens, mantêm segredo em tudo,
mais por desconhecimento do que por precaução. O espiritismo serviu até aqui,
apenas como elemento de toque, para alertar os viventes da existência de
habitantes neste imenso vácuo. E também de outras paragens, além e muito
além do vácuo. O espiritismo está no singular e nunca passou disso.
Manoel continua ouvindo, agora surpreso:
-Os habitantes do Astral Superior, encontram-se na Terra para
esclarecer todos os mistérios, desencantar a todos, provar o porquê de todas
essas confusões, comprovar o porquê de tudo por tudo.
E prosseguiu:
-Você deve lembrar, Manoel. Os Conhecimentos Racionais, são
conhecimentos reais do porquê dessa vida, do porquê desse mundo, do antes
de ser tudo que compõe esse mundo e do porquê todos desconhecem a sua
origem. Do porquê da vida, de tudo e de todos. Isso só é possível, através dos
Conhecimentos Racionais. No que é Racional, na pureza e na verdade das
verdades. E não assim como vivem, à mercê do espiritismo, uma coisa em
experiência, reunindo todas as falsas verdades. Com apenas uma partícula da
verdade. Essa partícula é quem anima as experiências do espiritismo, botando
todos em dúvida com a falsa fé, porque a fé é do falso condutor.
O RACIONAL SUPERIOR deu uma pausa. Bebeu um cálice da
sabedoria e retomou a palavra:
-Se a fé não fosse do falso condutor, ninguém seria traído por ela. Se a
fé valesse e resolvesse, todos venceriam com o poder da fé, ninguém sofreria.
Não haveria sofrimentos, porque todos, através da fé, atrairiam para si, aquilo
de melhor. Por ser a fé um enigma deste encanto, é que todos vivem mantendo
o sofrimento e também o pranto. Todos usam a fé e o poder dela para todas as
formalidades, para todos os fitos e para todas as soluções. Se a fé valesse,
não haveria miséria de todos os tamanhos, de todos os quilates. Nem
sofrimento. Mas, por ela não valer é que todos sofrem. Sofre o rico, sofre o
pobre, o remediado. Sofre quem tem e quem não tem. Se ela resolvesse, nada
disso existiria. E por não resolver, é que tudo isso existe.
E foi mais além:
-Os conhecimentos que serão transmitidos por Mim, o RACIONAL
SUPERIOR, são Conhecimentos Racionais, diferentes dessa balofestia, onde
tudo é balofo, só existindo a palavra, mas na realidade, nada. E tem mais,
Manoel: muitos conhecimentos férteis virão com o andamento da Elaboração
Racional.
E concluiu:
-E assim, todos nós, cada qual na sua categoria: os habitantes da Terra,
os habitantes do espaço, os habitantes de outras paragens e os habitantes do
Astral Superior, chegarão lá. Mas, vamos devagar, aprendendo, estudando,
colorindo as lições da Elaboração Racional. As dúvidas são daqueles que não
conhecem. Com o decorrer da Escrituração, as dúvidas desaparecerão, porque
o que é Racional é completo. O que é ciência é do encanto e cheia de dúvidas.
O que é Racional não tem mistérios, nem enigmas, nem encantos. É verdade
desvendada nua, crua, limpa.
29
A noite descera silenciosa e calma, mas Manoel estava nervoso e
impaciente. Queria começar a escrever o Livro e terminá-lo logo, livrando-se da
responsabilidade e da obrigação. Tinha consciência da grandeza da
incumbência, de sua delicadeza e do tamanho de sua importância. Por isso
insistia, permanecendo ali sentado, empenhado, pronto, à espera do grande
momento:
-Se é para fazer, vamos fazer logo. Não gosto de deixar as coisas para
depois, pode complicar -pensava, papel e lápis sobre a mesa da ansiedade.
As palavras lhe fugiam e as mensagens se perdiam na hora da
Escrituração, sem que ele pudesse explicar o que estava acontecendo. Por
várias vezes, olhou o céu, através da janela, na esperança de avistar o Grande
Livro aberto, seguro pela mão de um anjo, diadema de ouro na cabeça. Mas
quando a impaciência começava a ceder lugar ao desespero, ouviu a voz do
trovão:
-Seja paciente, Manoel. Não é assim. O Livro não será aquilo que você
imagina, mas o que tenho para ditar. Após as 22 horas.
Você deve se concentrar, a Luz Racional vai iluminá-la no silêncio, e
você; então, ouvirá minha voz. Através dela a grande lição a ser dada a toda a
humanidade. Aquele que se embriagar com o vinho do meu ensinamento
alcançará a luz da vida eterna. Quem ignorá-lo, vai chorar arrependido e
desesperado. E arrancará os cabelos ao avistar a fumaça do grande incêndio.
Vai olhar, amedrontado, o tormento. Mas não haverá mais cálice nem vinho. O
orgulho e o luxo vão dar lugar à tristeza e ao luto. Tudo será devorado: o
delicado e o suntuoso, o ouro e a prata, as pedras preciosas e as pérolas. O
linho e a seda, a madeira e o marfim. Do céu aberto surgirá cavalgando,
finalmente, o Cavalo Branco da Redenção, o qual você deverá montar. Já lhe
dei a coroa, a espada. E lhe darei o Livro. Com a espada, afaste os
preguiçosos, os traidores, os incrédulos e os abomináveis, pois sobre eles
despejarei o fogo de minha ira. Coloque a coroa na cabeça, Manoel, e trate de
guiar aqueles que ouvirem a sua voz. Pois a sua voz será a voz do céu, a voz
das águas, a voz dos ventos. A voz da natureza, da racionalidade, da verdade
escondida. Seus ouvintes e seguidores serão cobertos e protegidos pelas asas
da grande águia que descerá da estrela. Com o Livro, espalhe o saber, o
conhecimento e a cultura. Através da Racionalização, vou poder enxugar as
lágrimas de todos os olhos, renovar todas as coisas, pois sou o começo e
também o fim. Aguarde, Manoel. Aguarde a minha música. Ela descerá do céu
ao som da harpa dourada, dando início à salvação dos homens. Neste dia,
estarei sentado num trono branco, sobre a Terra, assistindo renascer do
esplendor do Terceiro Milênio.
V parte
O AMIGO QUE VEIO DE LONGE

Manoel Jacintho Coelho modificara completamente a sua vida. Agora


dedicava-se inteiramente à feitura do Livro, mergulhado na mais profunda
solidão. Esquecera de tudo: dos filhos, da família e dos amigos. Das alegres
noites de festa, do violão, do chope inconseqüente e gelado. Até o foguete,
manga larga marchador que o levava por demorados passeios pelas ruas
arborizadas e tranquilas do Méier, havia sido esquecido, colocado de lado e
engordava no pasto.
Ninguém conseguiu demovê-lo do trabalho obstinado, determinado e
ininterrupto. Nem mesmo os médiuns da Tenda Espírita Francisco de Assis,
solicitando conselhos e explicações:
-O Manoel está fascinado, envolvido com o trabalho, vai em frente, sem
olhar para trás. Não adianta chamá-lo, convidá-lo, pois ele não irá ao encontro
musical, o que ele está tocando agora é o Livro e enquanto não terminá-lo, não
adianta.
Jacob do Bandolim tinha certeza daquilo que estava falando, conhecia
muito bem Manoel Jacintho Coelho. Sabia perfeitamente o que significava para
ele a feitura daquele livro, por isso entendia, aceitava e impedia que os outros
músicos fossem incomodá-lo.
-Então, Jacob. Como vamos fazer? Onde vamos encontrar um outro
sete cordas bom como o Manoel?
-Calma, Ciro. Ainda não sei e não estou querendo esquentar a cabeça
por enquanto. A festa só vai ser realizada mês que vem e até lá talvez o
Manoel já tenha terminado o Livro. Quem sabe?
Ciro Monteiro e Jacob do Bandolim seguem em frente, descendo a
Avenida Central, rumo à Cinelândia. Contemplam a cidade, seus recantos e
explanadas. Na tenda espírita, Manoel continua ouvindo, concentrado, a voz do
RACIONAL SUPERIOR:
-Vamos, vamos, Manoel. Sempre que o prepotente fizer prevalecer sua
ignorância, sua brutalidade, não recue nem sinta desgosto. Mas o gosto da
provocação, iluminando-o com a luz e a força de seu raciocínio. Jamais
conceda ao prepotente a trégua da sua indiferença. Nem tenha medo. Ao levar
a minha mensagem, seja forte. Não se preocupe com as reações. A única
coisa que devemos ter medo no mundo é do próprio medo. O RACIONAL
SUPERIOR tinha pressa. Findava o ano de 1935 e Manoel precisava concluir
os 21 volumes básicos da obra que iria ser intitulada de UNIVERSO EM
DESENCANTO.
31
Pedreiro de profissão, Nelson Nunes de Almeida mal podia caminhar.
Uma enorme ferida surgira em sua perna esquerda, provocando-lhe dores
terríveis. Enquanto tinha dinheiro, consultou vários médicos e nada, a perna
cada dia inchava mais, para o seu desespero. Até a pequenina casa, na Rua
Mello e Souza, em São Cristóvão, acabou abandonando por falta de
pagamento.
Desempregado, sofrendo muito, Nelson não sabia mais o que fazer. Sua
mulher e seus filhos foram levados para a casa de sua sogra e estavam sendo
sustentados por seus irmãos, as dores aumentavam, a perna inchando,
inchando. Sem dinheiro, mal podia comprar remédios, cuidar do ferimento.
Agora, até o socorro médico nos hospitais públicos tornava-se penoso, devido
às dificuldades de locomoção.
Naquela manhã, a coisa piorou. A ferida abriu de vez, aumentando-lhe
ainda mais as dores. Nelson chorava inconsolável:
-Por que meu Deus, por quê? Eu tinha saúde, o meu trabalho, a minha
família. Era um homem feliz, de repente a desgraça. Não posso entender, meu
Deus, nunca fiz mal a ninguém, sempre fui um homem bom. Por quê? Por quê,
meu Deus?
-Por que tá chorando tanto assim, homê de Deus. Não se desespere
não, nem tudo tá perdido nesta vida.
-Como? O que a senhora está falando? Estou sentindo muita dor. Não
tenho o que comer, perdi minha família, meus filhos, meu trabalho, minha casa.
Agora vou perder minha perna, vou morrer. Talvez seja melhor morrer.
-Vou ti ajudá, homê, vou ti ajudá.
-Me ajudar? Ninguém pode me ajudar, ninguém...
-Homê, você tá enganado, Tem uma pessoa na Terra que pode ti
ajudá -
Quem?-
-O Manué.
-Manoel? ... Quem é Manoel?
-Mora no Méier, mas já morô na Praça da Bandeira. Tem um centro,
mas não é daqui. Veio de longe. Eu mi lembro du dia que ele veio, eu mi
lembro.
A mulher continuava falando, falando e olhando para o céu, buscando
alguma coisa. Seus olhos refletiam à luz e o brilho tornava o mistério ainda
maior. Nelson não entendia nada, mas continuou curioso e também
esperançoso:
-Se existe esse homem que pode me curar, diminuir o meu sofrimento,
por que não vou procurá-lo?
Desejava ir até ele, sim, mas como, se não tinha sequer o dinheiro para
a condução:
-Minha senhora, onde mora esse homem? Em que rua? Eu preciso falar
com ele, eu preciso...
-Você vai falá com o Manué, você vai falá. Tenha paciência, você vai
falá com o Manué ainda hoje. Vou lhe explicá direitinho. Chegando lá,
você vai tê que esperá. Tenha paciência, meu fio, espere o tempo que for.
O Manuéanda muito ocupado, conversando com Deus, recebendo a
mensage du céu. Por isso, espere. É preciso saber esperar, você num vai
arrependê, não.
-Quando ele me perguntar quem me mandou lá, o que devo dizer, minha
senhora?
-Diga que foi uma amiga dele, a véia Amélia Baiana.
Nelson ficou arrepiado ao ouvir aquele nome. Uma sensação estranha,
forte, diferente, vibrante, sacudiu o seu corpo. Emoção incontida tomou conta
de seu peito e seus olhos se encheram de lágrimas. Aquela mulher que ali
estava não era uma mulher qualquer nem tampouco aparecera em sua vida por
acaso. Naquele reencontro havia o dedo de alguém e também uma luz a
indicar-lhe o caminho.
-Você tem dinheiro, meu fio?
-Não senhora, eu não tenho.
-Então tome aqui o trocadinho, você vai precisá. Agora vá, procure
o Manué.
Nelson foi esperançoso, arrastando o corpo, perna inchada, ficando
roxa. Seu entusiasmo e a certeza de que ia ficar curado era tão grande, tão
grande, que foi embora sem perguntar à Amélia Baiana onde ela morava. Se
ficasse curado, como ia agradecê-la:
-Sou um distraído, um mal-agradecido -falou baixinho.
32
De roupa branca, sentado numa cadeira da mesma cor, Manoel Jacintho
Coelho vai escrevendo, iluminado por uma luz prateada, muito intensa, numa
pequena sala da Tenda Espírita Francisco de Assis. Vai anotando, com muita
atenção, as palavras que lhe são ditadas pelo Universo:
-E vivem todos como feras, brigando com tudo, por isto e por aquilo.
Demandando por isto e por aquilo. Por negócios ou seja lá por que for. Vivem
num inferno em vida. Desesperados, sem sossego. Em certas horas e em
certos dias nem vivem, vegetam. Abafados e sem ar, suspirando e lamentando-
se. Tudo isso por viverem contra a sua própria natureza. Trabalhando contra si
mesmos. Sempre desfavorecidos em tudo e sempre incompreendidos. São
amigos hoje e serão inimigos amanhã. Aparentemente estão bem hoje e
amanhã estarão mal. Portanto, todos vão de mal a pior. E por isso veja, como
gozavam há séculos passados e como tudo tem piorado de um século para cá.
E no futuro irá piorar, pois enquanto não chegarem aos seus lugares, o
sofrimento não acabará. E só depois de todos nos seus lugares, é que em vez
de irem para pior, como iam, irão todos para melhor. Todos estão pela metade
do saber. E para concluírem esse saber terão de chegar à conclusão de que
precisam encontrar o natural de si mesmos, para então abraçar o Criador, pois
enquanto não abraçarem o Criador, o sofrimento aumentará sempre, estarão
incompletos de sua natureza. E só abraçando o Criador estarão completos de
tudo com sua natureza, trazendo para si tudo de melhor.
-Como podemos abraçar o Criador?
-Ora, conhecendo o que não conheciam. O que estão agora
conhecendo: a Imunização Racional. Não confunda Imunização com
espiritualização. A espiritualização é apenas urna forma que encaminha para a
Imunização Racional. O vivente já conhecendo a Imunização, Escrituração que
está em vossas mãos, precisa apenas conhecer e ficar ciente de todo o seu
conteúdo, para ficar completo de tudo de sua natureza. E alcançar as graças
do Astral Superior.
E prosseguiu:
-Vale dizer, Manoel. Na espiritualização, o vivente está ainda incompleto
de sua natureza. E por isso, em mais da metade do caminho, continua
incompleto. Completo o vivente somente vai estar com a Imunização Racional.
Falou e deu provas, dizendo:
-Uma das provas de que o infante que vive em contato com a natureza
vive bem é dada ao próprio vivente pela botânica, que é um ser admirável por
ser comunicativa com os humanos.
E por isso, aí estão na Flora, vegetais com recursos para a cura disto ou
daquilo, dando ao vivente, meio de remediar os seus males até não poderem.
Também nos sais, nos minerais, nos fluidos elétricos e magnéticos, ou até
mesmo na auto-sugestão, o vivente encontra a cura, quando há razão para ser
curado. E tudo isso é possível, porque tudo é originado das próprias partículas
dos viventes e, por isso, tem grande ação benéfica para o corpo, tanto na cura
corno na alimentação, que são os legumes, os cereais e etc...
33
Na Tenda Espírita Francisco de Assis, no Méier, Nelson Nunes de
Almeida comportou-se exatamente como Amélia Baiana havia lhe orientado.
Pediu para falar com Manoel e diante da resposta de que ia demorar um
pouco, sorriu, dizendo:
-Eu sei, eu sei. Mesmo assim vou esperá-lo. Não tenho pressa. Fechou
os olhos e lembrou-se de Amélia Baiana, aquela mulher negra, caridosa,
preocupada com o sofrimento dos outros. E também da observação que ela
fizera:
-Seja paciente meu fio, espere o tempo que fô. O Manué anda muito
ocupado, conversando com Deus, recebendo mensage do céu.
Amélia Baiana sabia das coisas e não havia aparecido em sua vida por
acaso. Surgiu para indicá-lo com o dedo da sabedoria, o caminho da salvação,
da luz e da verdade.
Perna inchada, Nelson não conseguia calçar sapatos e caminhava com
enorme dificuldade. A cada passo, gemia, sentindo dores terríveis. Julgava-se
sozinho, abandonado no mundo, jogado fora. Após a doença, esquecido,
passara a viver na fronteira com o lixo, pois nem banho tomava mais.
-Você vai melhorar, moço. Vai ficar curado. As Entidades do Astral
Superior acabaram de me garantir. O tormento, as dores, as dificuldades, vão
desaparecer. As razões de seu fracasso, da doença e dos problemas surgidos
em sua vida, não vou poder revelar, mas vou restituí-lo, a partir de hoje, de
tudo aquilo que você perdeu.
Manoel Jacintho apareceu na porta muito antes do tempo que se previa.
Era a própria luz da esperança, da misericórdia. Sobre sua cabeça havia uma
coroa de material fosforescente. Nelson sabia que se quisesse tocá-la não iria
conseguir, porque a coroa era transpassável.
Parecia iluminada de néon, tamanha a beleza da luz. Então não se
conteve, caiu de joelhos aos pés de Manoel, suplicando:
-Por favor, por favor. Me ajuda, me ajuda. Não deixe os médicos cortar
minha perna, não deixe cortar minha perna.
-Tenha calma, moço. Sua perna não vai ser cortada.
Ao fazer tal afirmação, Manoel colocou as mãos sobre a cabeça de
Nelson. O homem continuava ajoelhado e chorava desesperado. Lembrou-se
então do que lhe dissera o RACIONAL SUPERIOR no Dia da Anunciação: "o
sofrimento não é o meu sinal de cólera, mas o meu sinal de amor". No que
pensou assim, sentiu um forte calor percorrer todo o seu corpo e passar para o
corpo do homem que ali estava, através da mão que apoiara na cabeça dele,
num gesto de solidariedade, de sentimento e de amor por seu semelhante.
Nelson percebeu o seu corpo esquentando, esquentando. Mas manteve-
se em silêncio, cabeça arriada. O calor foi tão forte e tão intenso, que suas
lágrimas secaram e as dores desapareceram como um encanto. Observou que
o corpo de Manoel, naquele instante, estava solto no espaço, flutuando,
circundado por uma auréola luminosa.
Era inacreditável tudo aquilo que estava vendo e sentindo. Se contasse,
ninguém ia acreditar. Porém tinha que reconhecer: era deslumbrante, incrível,
extraordinário.
O calor foi diminuindo simultaneamente com a luz e a situação, poucos
minutos depois havia se normalizado. Manoel estava no chão outra
vez, transformado novamente em homem:
-Nelson, vai tomar banho. Você está muito sujo. O processo de cura foi
iniciado, mas você só vai estar totalmente curado dentro de sete dias. Portanto,
neste espaço de tempo, tome todos os cuidados básicos de higiene. Procure
se lavar muito bem, principalmente a perna ferida. Vou procurar algumas
roupas para você.
Manoel não sabia de onde Nelson havia surgido nem tampouco quem
lhe indicara o caminho da Tenda Espírita Francisco de Assis. Mas ali estava,
dedicando-se àquele homem. Após o banho, trouxera-lhe as roupas e muito
mais: comida e também uma considerável quantia em dinheiro por
determinação superior:
-Pegue todo aquele dinheiro que está guardado para a feitura do meu
Livro e entregue a esse homem, Manoel. Não se preocupe. O dinheiro para o
Livro vai surgir. O importante por enquanto será concluir a Obra. Vamos,
Manoel. Pegue o dinheiro e trate de presenteá-lo a esse homem.
Manoel tratou de obedecer. Nelson ficou surpreso, espantado.
O que estava acontecendo era simplesmente inacreditável. Chegara ali
um trapo, um molambo, dobrado pela dor, castigado pela vida, mergulhado na
miséria. Duas horas depois, a situação havia se modificado de forma radical.
Não sentia mais dores, estava de banho tomado, limpo, de roupas novas e
alimentado. Podia calçar sapatos e tudo, pois sua perna começara a desinchar
após o recebimento da energia que emanara do corpo de Manoel. E como se
não bastasse tudo aquilo o homem ali estava lhe dando considerável quantia
em dinheiro, para que pudesse reiniciar a sua vida.
Sentiu-se envergonhado. Em princípio não quis aceitar, achando que
podia estar explorando aquele homem que, sem lhe conhecer nem tampouco
perguntar de onde viera, abrira a porta de sua casa, estendendo-lhe a mão,
disposto a ajudá-lo:
-Não, Manoel. Eu não posso aceitar esse dinheiro todo. Não tenho como
pagar. Estou desempregado, doente, e não sei como vai ser minha vida daqui
para frente.
-Moço, eu tenho ordens para lhe dar esse dinheiro. Trate de aceitá-lo e
procure usá-lo da melhor maneira possível. Vá em frente e cuide de sua vida e
não olhe para trás. Um dia vamos nos encontrar.
Antes de partir, Nelson, satisfeito, comentou:
-Quando aquela senhora cruzou meu caminho e começou a me fazer
perguntas, eu sabia, eu sabia! Ela estava ali para me ajudar. Eu sabia, eu
sabia.
-De que senhora você está falando?
-De dona Amélia Baiana.
Ao ouvir o nome de Amélia Baiana, Manoel estremeceu. Olhou através
da janela e viu o céu aberto. No interior dele, um cavalo branco, veloz,
cavalgando em sua direção.
A voz de mar retomou a palavra mais uma vez:
-Enxugue as lágrimas de todos os olhos e coloque o sorriso no rosto do
homem triste. Dê de beber àquele que tiver sede, de comer àquele que tiver
fome, dê coragem àquele que tiver medo, esperança àquele que tiver em
desespero. Dê consolo aos aflitos e coloque a verdade das minhas palavras na
boca do descrente, do mentiroso, do falso profeta. Seduza o vivente com o
meu canto e faça dele a sua oração. Ultrapasse os muros, Manoel. E percorra
o mundo, espalhando aminha mensagem e apresentando o meu Livro.
34
Os anos se passariam. Manoel Jacintho Coelho fecharia as portas da
tenda espírita, no Méier, e se mudaria inicialmente, para Jacarepaguá. Depois
para Belford Roxo, na Baixada Fluminense. O Livro escrito seria colocado em
circulação e receberia surpreendente aceitação.
Concluídos os trabalhos de preparação da natureza, logo após a
mudança de fase, em 1935, foram abertos os caminhos, para a divulgação em
massa dos ensinamentos contidos nos Livros UNIVERSO EM DESENCANTO.
Surgia, a partir daí, uma nova cultura: a CULTURA RACIONAL. Aqueles
que sorviam as lições contidas no Livro, conscientes da importância daquele
trabalho para o destino da humanidade e da necessidade de uma divulgação
sempre crescente da Obra, invadiram as ruas, avenidas e praças, falando em
raciocínio, concórdia, equilíbrio e desenvolvimento.
Diziam:
"Quem deseja ver a Luz dos seres do nosso mundo de origem e
desvendar todos os seus mistérios? A Cultura Racional possibilita isso, tirando-
nos de um mundo de sofrimentos, de um mundo de deformação."
E ainda:
"O corpo fluídico (energia) dá origem a outros corpos (micróbios). Estes
originam outros, que são seres humanos e todos os outros que têm vida. Esse
corpo fluídico -que não se vê -é apanhado pela Imunização Racional, e é
levado a seu mundo de origem. No Fluido Racional -puro, limpo e perfeito -
reside o verdadeiro bem da humanidade. Ele tem sido a razão das muitas
curas."
Falavam em linguagem nova, uma linguagem de evolução, uma
linguagem de desencanto:
"Torna-se necessário o desencanto, para que tenhamos a chance de
voltar a apenas uma coisa: nossa origem na Planície Racional. Desencantados,
não seremos mais mortais, pois estaremos salvos e absolvidos da morte.
Saibam todos que a Cultura Racional é o único caminho capaz de esclarecer,
orientar e imunizar a humanidade, para que ela retome às suas origens e
alcance a eternidade. E lembrem-se: a Imunização Racional já foi anunciada há
séculos por São João e Nostradamus: "Depois que o mundo superar as
hecatombes pelas quais terá que passar, virá, então, a redenção
universal"..."
Na Alemanha, Abdruschin, na célebre Mensagem do Graal(lm Lichte Der
Wanreit), recebida de 1924 até 1937, iria fazer importantes revelações:
"Enquanto o Filho de Deus nasceu diretamente para a sua missão
terrestre, o percurso do Filho do Homem antes de sua missão, teve que
passar por um círculo muito maior, antes que pudesse entrar no início de sua
missão, propriamente. Como condição para poder cumprir a sua missão, ainda
mais terrenal comparada com a do Filho de Deus, vindo das alturas máximas,
teve que percorrer as profundezas mais baixas. Não apenas do além, mas
também terrenalmente, a fim de poder "vivenciar" de perto todas as dores e
todos os sofrimentos dos seres humanos. Somente por essa maneira ficou em
condições de, quando chegar a sua hora, interferir nas falhas de modo eficiente
e criar alterações auxiliando."
E acrescentou:
"Por esse motivo não podia ficar à margem do vivenciar da humanidade,
antes teve que se encontrar em meio disso tudo por próprio experimentar
vivencial, inclusive das coisas amargas e sofrendo com isso. Novamente, só
por causa das criaturas humanas teve que realizar-se, portanto esta sua
aprendizagem. Mas, precisamente isto por ficar incompreensível ao espírito
humano em sua estreiteza, tal condição superior, e sendo capaz de formar
um juízo segundo as aparências exteriores, procurar-se-á fazer-lhe censuras a
fim de lhe dificultar a missão, assim como Cristo naquele tempo."
Àquela época, indagou-se de Abdruschin se o Filho do Homem já se
encontrava na Terra, ou se ainda iria nascer. Isto como indicação do caminho
certo para todos aqueles que tinham assimilado a sua palavra com convicção.
Ele, então, respondeu:
"O futuro próximo dará a resposta por si, mesmo. Só haverá um único
Mestre Universal. O Filho do Homem também não precisa nascer, pois já se
encontra entre os homens, o que aliás muitos profetas religiosos intuitivamente
já o sentiram."
Referia-se também a Pietro Ubaldi, o escritor italiano.
Abdruschin iria mais além no seu esclarecimento:
"Entre todos os falsos profetas e guias, restará o Filho do Homem,
nesses tempos penosos, tempos esses que estão muito mais próximos do que
esses mesmos homens, fantasiosos e pessimistas, imaginam e nos quais ele,
o Filho do Homem, será o único e verdadeiro auxiliar para as dificuldades
espirituais e terrenas. Por isso, ele não poderia ser criança nem ainda
nascer. Seria assim demasiado tarde para advir um auxílio ainda em tempo."
"O Filho do Homem -revelou Abdruschin –espera tranqüilamente a
época do cumprimento de sua missão visto que hoje em dia muitas classes
zombariam dele e o odiariam não menos do que outrora ao Filho de Deus."
E indagou, respondendo a seguir:
"Por que deveria anunciar-se prematuramente, uma vez que a vontade
de Deus aplainara os caminhos para ele? Não necessita tomar parte na corrida
cujo objetivo é unicamente dele. Ninguém alcançará esse objetivo, exceto ele.
Quem, de todos os homens que procuram seriamente, pode imaginar que esse
Filho do Homem se coloque em linha com todos, ou mesmo com apenas
um daqueles que hoje se denominam de guias? Essa suposição não lhe
parece ridícula? O Filho do Homem não procura angariar benevolência dos
homens, tampouco discutir com as igrejas. Isso tudo não é necessário para ele.
A vontade de Deus impele desta vez a humanidade, como que chicoteada ao
encontro dele."
Depois, incluiu:
“Seu tranqüilo aguardar é o que de mais terrível poderia acontecer à
humanidade. Ela entretanto, não merece outra coisa. A humanidade receberá o
que ela mesma preparou para si. Por isso, espere você também, com calma,
até que se cumpra a hora.”
35
Em Belford Roxo, Manoel Jacintho Coelho mandou construir, seguindo
orientação superior, um palácio de arquitetura neoclássica, com amplo átrio,
sustentado por colunas e pórticos, relembrando a nobreza da Grécia antiga.
Aquele casarão singular, destacado na paisagem, passaria a ser o templo do
RACIONAL SUPERIOR na Terra e iria atrair a atenção de milhares de
pessoas.
Mas logo que Manoel começou a construí-lo, recebeu uma visita
inesperada, a de um pedreiro que desejava trabalhar:
-Tem um homem aí Seu Manoel, querendo trabalhar. Disse que era
pedreiro, profissional de muita experiência.
Ao receber a informação, Manoel mandou dispensá-lo, alegando não
haver vagas:
-Mande esse homem voltar outro dia. Por enquanto não há vaga. Bem
que gostaria, mas não posso dar trabalho a todo mundo. Preciso terminar a
obra e quem trabalha quer ganhar, porque precisa comer, morar e se vestir.
Avise a ele para voltar outro dia, avise...
Mas o homem insistiu. Queria trabalhar e pronto. Mesmo tendo sido
informado pelo encarregado da obra da falta de vaga, ele permaneceu ali,
irredutível. Disse que desejava falar com Seu Manoel e que iria aguardá-lo:
-Eu não tenho pressa, não tenho pressa. Vou falar com Seu Manoel.
Preciso falar com ele, preciso trabalhar, moço.
-Mas o senhor não parece que está precisando tanto assim de trabalho.
Pedreiro de terno tem que estar muito bem de vida -disse o encarregado da
construção.
O homem sorriu diante da observação, explicando:
-Eu só ando bem vestido, porque sou trabalhador. Ou será que um
pedreiro, pelo fato de ser apenas um pedreiro, não pode vestir um terno?
-Claro que pode. Mas do jeito que a vida está, pedreiro só veste terno no
dia do casamento da filha -falou e foi embora, atendendo o chamado de um
colega de trabalho.
O homem permaneceu ali, acompanhando o trabalho, aguardando com
paciência, o momento para falar com Seu Manoel. Havia decidido: ia esperá-lo
o tempo que fosse necessário, mas iria falar com ele. Queria trabalhar,
precisava trabalhar. Não arredaria pé dali sem que tivesse realizado o seu
objetivo, o seu desejo. À tarde, inteirado da permanência do homem ainda na
obra, Manoel mandou chamá-lo:
-Se um homem permanece tanto tempo pedindo trabalho, é porque ele
deseja realmente trabalhar. Quero falar com ele, talvez possa dar um jeito.
-Vamos lá, moço. O Seu Manoel vai falar com o senhor. Vai lhe receber,
acabei de falar com ele -disse o encarregado.
O homem apressou-se. Diante dele, Manoel Jacintho Coelho ficou
surpreso e abriu os braços para abraçá-lo comovido e satisfeito.
O homem que ali estava, desejando de forma irredutível, trabalho na
obra, era seu velho conhecido. Tratava-se do pedreiro Nelson Nunes de
Almeida, aquele cuja perna havia curado e a quem havia entregue todo o
dinheiro da feitura da edição inicial do Livro.
-Por onde você tem andado, Nelson? Como você está bem...
-Estou sim, graças a você, ao Verdadeiro DEUS e também Amélia Baiana.
Aliás, foi ela quem me deu seu endereço.
-Como?... Eu não vejo a Amélia Baiana desde meu tempo de menino,
quando morava lá na Cidade Nova, na Rua Barão do Iguatemi...
-Engraçado, Manoel, ela me disse que estava sempre com você...
Manoel sentiu um vento frio soprar-lhe as costas como se tivesse
anunciando a presença de alguém ali. Talvez fosse ela, a negra Amélia
Baiana de todos os favores, de todas as virtudes. A mãe dos desvalidos, dos
aflitos, dos desesperados, do amor e do perdão.
-Mas, Manoel, andei a cidade toda à sua procura. Logo após ter saído
de sua casa naquele dia, minha vida começou a se modificar. Além de ficar
curado da ferida na perna, ganhei ânimo, coragem e disposição para enfrentar
as dificuldades da vida. Durante sete dias, permaneci em repouso num
hotelzinho no Catete. Depois, tratei de recuperar todas as minhas ferramentas
de trabalho e fui à lufa, trabalhando, trabalhando. Assim que equilibrei minha
vida, fui procurá-lo. Queria pagar o dinheiro que o senhor havia me emprestado
e também agradecer tudo aquilo que o senhor fez por mim. Mas quando
cheguei ao Méier, não encontrei mais o senhor. Através dos vizinhos, fiquei
sabendo de sua mudança para Jacarepaguá. Ontem, porém, passava pela
Praça da Bandeira quando avistei Amélia Baiana. Ah! Que felicidade Seu
Manoel. Corri ao seu encontro e fui abraçá-la, beijá-la. A coisa que mais
desejei na vida foi revê-Ia. E à medida que eu ia vencendo na vida, a saudade
que eu tinha dela foi aumentando. O senhor não pode imaginar a minha alegria
ao vê-Ia ali caminhando. Quis levá-la comigo, cuidar dela. Mas ela disse que
não, alegando que tinha muitos filhos para cuidar. Quis saber se ela estava
precisando de dinheiro e Amélia respondeu que tinha o suficiente para viver.
Quis saber então, onde ela estava morando, pensando em visitá-la
periodicamente e ela me falou que estava morando com o senhor, aqui em
Belford Roxo. Quando ela falou seu nome, minha alegria foi maior ainda, Seu
Manoel. Como estou feliz de poder estar a seu lado, poder abraçá-lo.
-Mas você Nelson, você está trabalhando?
-Não, Seu Manoel, hoje sou um homem rico, não preciso mais trabalhar.
Ou melhor, preciso trabalhar na construção da casa da Cultura Racional. Não
por necessidade, mas por agradecimento. Quero também devolver o dinheiro
que o senhor me emprestou e oferecer uma substancial quantia em dinheiro
para ajudá-lo na feitura dos seus Livros, essa Obra gigantesca e importante.
-Mas como você conseguiu tanto dinheiro, Nelson?
-Ah! Através do trabalho que nunca mais me faltou e da dedicação.
Acabei construindo a minha própria firma, uma pequenina empreiteira, de
sociedade com um advogado. A coisa cresceu, Seu Manoel, deu lucros. E
continua dando. Agora, não estou aqui como patrão, como dono de empresa.
Eu serei para o senhor, para a Cultura Racional, para Amélia Baiana, o mesmo
pedreiro que um dia você deu ajuda. Eu quero trabalhar no palácio da Cultura
Racional, quero ajudar a construí-lo, não só com o dinheiro que tenho, mas
empunhando a colher de pedreiro, virando a massa, dobrando o vergalhão...
Sonorizando a voz do bom pedreiro, o som da harpa dourada.
36
Idolatrado ator que havia emprestado todo o seu talento à arte de
representar, levando emoção, alegria e sorrisos às platéias de todo o mundo,
também acompanharia o passo evolucionário da natureza e assumiria, de
público, a sua identidade de Racional.
Seu nome: Procópio Ferreira.
Assim que começou a leitura do Livro ditado pelo
RACIONALSUPERIOR, Procópio Ferreira não hesitou: tratou de doar sua
imensa biblioteca, afirmando:
-Já não preciso de tantos livros. Agora tenho apenas um: UNIVERSO
EM DESENCANTO. Nele está contida a verdade que procurei a vida inteira.
Após ter residido em luxuosas mansões no Rio e São Paulo, com
mordomos de libré, possuir automóveis do último tipo, criados e motoristas,
Procópio decidiu modificar sua vida por completo. Tornou-se completamente
indiferente aos bens materiais, indo morar numa casa simples, numa rua sem
calçamento, em Nova Iguaçu.
Quando iniciou a leitura do Livro UNIVERSO EM DESENCANTO,
Procópio estava muito doente. Não andava, estava quase paralítico. Amigos
colegas de trabalho já lhe consideravam um moribundo. Encontrava-se
totalmente perdido, sobretudo no terreno espiritual. Não acreditava em nada,
absolutamente em nada.
Foi o farmacêutico que lhe aplicava injeções que lhe mencionou o Livro
UNIVERSO EM DESENCANTO, afirmando que "esse Livro Seu Procópio, vai
resolver seu caso".
E resolveu.
Dias após o início da leitura, Procópio estava completamente curado.
Através do Fluido Racional, os males de seu corpo, produzidos pelo elétrico e
magnético, foram eliminados.
Procópio iria desaparecer muitos anos depois, após ter cumprido seu
ciclo terreno. Mas, ainda hoje, muitos estudantes da Cultura Racional, estão
acostumados a vê-lo em suas casas, orientando:
-Existem três mundos diferentes, todos eles habitados. O terceiro é o
dos seres materializados e dos invisíveis que vivem entre o sol e a Terra. O
segundo é dos seres invisíveis do Astral Superior, acima do sol. E o primeiro
pertence aos seres Racionais puros, limpos e perfeitos.
Os que vivem entre a Terra e o sol, são os habitantes do curso primário
e por isso, vivem de experiência, na incerteza de tudo, duvidando de tudo,
desconfiando de tudo, sempre com medo. Os humanos são seres deformados.
Os espíritos, não se deformaram totalmente, estão entre o sol e a Terra, acima
de vocês, habitantes do Astral Inferior. O curso secundário é formado pelos
habitantes do Astral Superior, localizado acima do sol. Também são
deformados, mas estão numa categoria acima. O curso superior, finalmente, é
do MUNDO RACIONAL, o que deu origem ao nosso mundo, e ao qual se pode
voltar pelo conhecimento. Esse conhecimento é atingido pela leitura dos 21
volumes do UNIVERSO EM DESENCANTO. Encontrando o MUNDO
RACIONAL vocês terão feito a maior descoberta de todos os tempos. Hoje,
pelo menos, vocês já sabem como entrar em contato com seus Habitantes,
nossos irmãos. Depois da Imunização, sempre pelo conhecimento, poderão vê-
los e dialogar com eles, assim estão entrando na Fase Racional, à qual
alcancei.
Do simples entendimento, a Cultura Racional, passou a alcançar, após o
seu surgimento, resultados extraordinários, O Brasil fora historicamente
preparado de acordo com o próprio Manoel Jacintho Coelho, para ser o seu
berço:
-Essa nova cultura é a cultura que une, não divide. É a cultura que
soma, não subtrai. A cultura que harmoniza, não cria discórdia.
Os Livros da Obra UNIVERSO EM DESENCANTO ganharam o mundo.
Começaram a ser lidos nas Antilhas, Austrália, Kenya, Botsvana, Beira,
Canadá, China, Dinamarca, Filipinas, França, Grécia, Ghana, Nigéria, Japão,
Israel, Estados Unidos, Argentina, Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Cuba,
República Dominicana, Espanha, EI Salvador, Guatemala, Holanda, México,
Panamá, Paraguai, Porto Rico, Peru e Uruguai.
Seriam traduzidos para catorze idiomas.
Manoel iria receber, por seu trabalho em prol da humanidade, uma
infinidade de títulos e condecorações. As comendas e homenagens se
multiplicariam. Em vários Estados brasileiros seriam instituídos os "Dias da
Cultura Racional". E diante da violência que começou a crescer em todo o
mundo, ele sentenciaria:
-A solução da violência está no desenvolvimento do raciocínio; a solução
do desrespeito está no desenvolvimento do raciocínio.
Aos 85 anos, lúcido, Manoel Jacintho Coelho não quer que lhe façamos
culto, apesar de tudo. Mas apenas que tenhamos a sua cultura, nem tampouco
executa ações sobre o livre-arbítrio daqueles que decidiram por segui-lo.
Libertário por natureza, deseja que todos continuem o exercício de suas
liberdades.
37
Apesar da suntuosidade e beleza de seu estilo arquitetônico, o Palácio
da Cultura Racional, na Rua Áurea, 20, em Belford Roxo, acabou por se tornar
pequeno e modesto para tanta gente que vinha de longe beber o vinho do
ensinamento, no cálice da Cultura Racional.
Tornara-se portanto, imprestável para aquilo que se propunha. Manoel,
então, não hesitou em abandoná-lo, apesar de sua magnificência e pompa.
Sem perda de tempo, tratou de dar início à construção do Retiro
Racional, num vale verde de Nova Iguaçu, no final da Estrada de Adrianópolis,
na localidade conhecida como Vila de Cava.
No dia em que decidiu inaugurá-la ouviu a voz do céu, como também a
voz de muitas águas e ainda a voz de um forte trovão. Logo depois, o som da
harpa dourada.
Neste instante, uma imensa águia cruzou o céu, levando um enorme
Livro no bico. O sol tornou-se mais quente e o dia mais claro. O céu novamente
se abriu, dando passagem ao imenso cavalo branco, e permitindo sua
cavalgada pelo Universo. Sobre uma imensa nuvem também branca, estava o
trono cintilante, ocupado por um "Homem" que Manoel já conhecia. De longos
cabelos brancos e túnica da mesma cor, o RACIONAL SUPERIOR começou a
falar:
-Bem-vindo à minha casa, Manoel. Nela você vai encontrar o rio da água
da vida. No dia da Redenção, a água deste rio vai brilhar como o cristal.
Continue trabalhando, pois acompanharei teus passos. O dia chegará em que
os injustos não mais cometerão injustiças, os perversos não mais praticarão
covardias nem os impuros estarão mergulhados nas impurezas. Ah! Manoel,
eles não gozarão das sombras das minhas árvores nem tampouco
ultrapassarão os umbrais do pórtico da salvação. Portanto não entrarão na
minha casa nem gozarão das delícias de meu Reino.
O cavalo branco que cavalgava no céu, aproximou-se de Manoel e ele
tratou de montá-lo. Pensava que estava sozinho, porém, ao olhar para trás,
avistou muitas pessoas.
Lá estavam acenando para ele, com lenços brancos: Meia-noite,
Antônio ferreiro, Adelaide, Nelson pedreiro, Marinho, Dino, Tia Ciata,
Cartola, Nelson Cavaquinho, Ciro Monteiro, Jacob do Bandolim,
Pixinguinha, Zé Moleque, Gabiroba, Brancura, Aninha, Getúlio Vargas e
ela: a negra Amélia Baiana, num lindo vestido branco.
Vindo de Alfenas, entusiasmado com tudo que ouvira, o pintor mineiro
Newton Pierine assistiu emocionado ao espetáculo. Mais tarde, usando seus
pincéis mágicos, pôde transportá-lo para uma imensa tela de veludo azul.

O BENFEITOR E SEUS TÍTULOS


Manoel Jacintho Coelho, nascido em 30 de dezembro de 1903, no antigo
Distrito Federal, à Rua Barão de Iguatemi, no Matoso, Rio de Janeiro.
Expoente máximo da CULTURA RACIONAL, a Cultura do 3°Milênio, da Fase
Racional. Iniciou a Obra inédita UNIVERSO EM DESENCANTO em 04 de
outubro de 1935.
A CULTURA RACIONAL dos Livros UNIVERSO EM DESENCANTO
conta com mais de 1000 volumes, traduzidos em vários idiomas.
Considerado um benfeitor da humanidade em todo o mundo, por sua
Obra, cujos benefícios alcançam os campos naturais, artificiais e espirituais,
Manoel Jacintho Coelho recebeu muitos títulos e homenagens. Alguns deles
encontram-se aqui:
Título de Cidadão Iguaçuano, conferido pela Câmara Municipal de Nova
Iguaçu (RJ).
Comenda Hipólito José da Costa, Patriarca da Imprensa Brasileira,
conferida pela Associação Interamericana de Imprensa.
Título de Benemérito do Estado do Rio de Janeiro, concedido pela
Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, conforme Resolução
n°494, de 07 de dezembro de 1982.
Medalha de Honra da Inconfidência, recebida em 21 de abril de1986
em São João Dei-Rei (MG), na presença do Sr. Presidente da República, Dr.
José Sarney.
Placa de prata do Dr. Newton Cardoso, Governador do Estado de
Minas Gerais, em agradecimento e reconhecimento dos benefícios prestados
pela Cultura Racional ao Estado mineiro.
Praça "Bosque da Paz", em sua homenagem, em Belo Horizonte, na
entrada do Bairro Lagoinha, com inauguração da Praça com seu busfo,
homenagem prestada pelo Prefeito Municipal de Belo Horizonte, juntamente
com o Governador do Estado de Minas Gerais, em 20 de setembro de 1987.
Título de Cidadão da Cidade de Salvador (BA), concedido através da
Resolução n°739/88, de 09 de março de 1988, publicada no Diário Oficial do
Município de 24 e 25 de abril de 1988.
Título de Cidadão Friburguense, da Câmara Municipal de Nova
Friburgo (RJ), conforme Resolução Legislativa n°857, de 10 de agosto de 1990.

O AUTOR E A OBRA

O Jornalista Mauritônio Meira, diretor da Revista Nacional, costuma


afirmar: "Jorge Elias foi um dos maiores repórteres de polícia." O poeta
maranhense Lago Surnett garante: "Ele pertenceu à melhor escola de
profissionais, para os quais uma vírgula pode ser informação." O jornalista
Raul Azêdo, ao convocá-lo para trabalhar em Última Hora, em 1971, não
esconderia o entusiasmo, confidenciando: “Jorge Elias é um craque com
escalação em qualquer seleção, chuta com as duas, apura e escreve
muito bem”. O escritor José Louzeiro preferiu transformá-lo em personagem
de seus livros.
Na verdade, Jorge Elias acabou se tomando, através de grandes
reportagens, um dos ases da crônica policial carioca. E também; sem favor
nenhum, um dos melhores profissionais da reportagem especializada. Dono de
um texto leve, solto, envolvente, de palavras fáceis e bem colocadas, impôs o
seu estilo e pontilhou sua carreira com retumbantes sucessos.
Quem não se lembra da série de reportagens intituladas "Ipanema,
Território Livre do Tóxico" e "Copacabana, a Servidão do Sexo"? Cobriram
dezenas de páginas de jornais e acabaram transcritas para os anais do
Legislativo. Ou ainda do "MÃO BRANCA", saltando do noticiário policial para a
glória e as primeiras páginas dos jornais de todo o mundo. "Ao transformá-la
no mito policial do século, não dei apenas asas ao meu poder de criação.
Fui muito mais além, provando, de forma derradeira, que todo repórter
tem nas mãos o sublime e terrível poder de informar" –diria Jorge Elias,
meses depois num programa de televisão.
Descoberto por Tenório Cavalcanti, quando trabalhava como contínuo
numa fábrica de brinquedos, Jorge Elias foi levado para a redação da Luta
Democrática, onde percorreu os primeiros caminhos da reportagem. Dali
convidado por Francisco Martins Pinto, ingressou no Correio da Manhã, na
época o maior jornal do País. Aliás, foi neste jornal que Jorge Elias começou a
dar o braço ao sucesso e à fama. Destemido e vibrante, ostentaria a glória de
ter sido o único jornalista a colocar um general na cadeia, no primeiro governo
da Revolução. Do Correio da Manhã, iria para o Diário de Notícias e de lá
para a Última Hora, onde acabaria permanecendo por mais de 9 anos.
Wilton Franco, que acompanhava suas reportagens, acabou por levá-lo
para a televisão. Inicialmente para o programa Aqui e Agora, na extinta TV
Tupi. E posteriormente para o Povo na TV, na TV5. Diante das câmeras,
Jorge Elias mostraria, mais uma vez, seu talento, criando e impondo seu
próprio estilo e imagem, abraçando, como sempre, o sucesso.
Com esse livro, Jorge Elias assinalou seu ingresso na literatura.
De forma modesta, despretensiosa e simples, como ele próprio. Mas não
tenha dúvida: por tudo que o livro conta, pelo que se propõe, pela beleza do
texto e também pela emoção que passa, o CAVALEIRO DA CONCÓRDIA
nasceu predestinado.
Portanto, acredite. Você tem em mãos um livro que vai provocar
reações.
Lenin Novaes – Jornalista

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