Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Full Download As Maravilhas Elena Medel Online Full Chapter PDF
Full Download As Maravilhas Elena Medel Online Full Chapter PDF
Full Download As Maravilhas Elena Medel Online Full Chapter PDF
https://ebookstep.com/product/corka-1st-edition-elena-ferrante/
https://ebookstep.com/product/the-spanish-love-deception-elena-
armas-3/
https://ebookstep.com/product/the-spanish-love-deception-elena-
armas-2/
https://ebookstep.com/product/the-american-roommate-experiment-
elena-armas/
The Spanish Love Deception Elena Armas
https://ebookstep.com/product/the-spanish-love-deception-elena-
armas/
https://ebookstep.com/product/arduino-luigi-lo-russo-elena-
bianchi/
https://ebookstep.com/product/the-american-roommate-experiment-
elena-armas-2/
https://ebookstep.com/product/amor-en-juego-1st-edition-elena-
armas-2/
https://ebookstep.com/product/ispanyol-ask-aldatmacasi-1st-
edition-elena-armas/
Ficha Técnica
Título: As Maravilhas
Título original: Las maravillas
Autor: Elena Medel Navarro
Edição: Maria do Rosário Pedreira
Tradução do castelhano: Vasco Gato
Revisão: Madalena Escourido
Design da capa: © Maria Manuel Lacerda / LeYa
Imagem da capa: freepik.com
ISBN: 9789722072786
AS MARAVILHAS
Romance
Índice
Capa
Ficha Técnica
O DIA. Madrid, 2018
A CASA. Córdova, 1969
O REINO. Córdova, 1998
A TEMPERANÇA. Madrid, 1975
O PENDURADO. Córdova, 1999
A BATALHA. Madrid, 1982
O SONHO. Madrid, 2008
A ABUNDÂNCIA. Madrid, 1984
A BELEZA. Madrid, 2015
A ALEGRIA. Madrid, 1998
A NOITE. Madrid, 2018
Clearly money has something to do with life.
PHILIP LARKIN
O DIA
Madrid, 2018
À porta da casa, três e quatro mulheres, primeiro, depois mais: até oito
ou nove. As vozes confundem-se umas com as outras, desprovidas de tons
que permitam distingui-las, com as mesmas palavras em bocas diferentes.
As vizinhas reúnem-se todas as noites no passeio; peregrinam com as
cadeiras que cada uma traz de casa, às vezes partilham algo para jantar na
eventualidade de o marido regressar tarde. É um hábito que nasceu nos
primeiros anos do bairro, era María muito pequena, ainda antes de os
irmãos mais velhos se irem embora e de os mais novos nascerem. Nesses
anos, faziam frente à noite com velas, pois continuava por instalar a
iluminação das ruas, e cravavam as cadeiras na terra. Chico já se lembra
mal das idas à fonte com a mãe. Agora, o bairro é outra coisa, embora
persistam as ruas que se enlameiam com a chuva: prometeram resolver o
assunto, confia Chico, foi o que ouviu no café há umas semanas. María
não fica com a sensação de que tenha havido muitas mudanças neste
último ano, por mais que Chico insista nas várias coisas que ela não
reconheceria se a acompanhasse num passeio.
– Não chego ao balcão.
– Não acredito.
María deixa escapar uma risada quando Chico lhe conta: por causa da
sua altura, é muito baixo, os clientes não se apercebiam de que ele lá
estava nos primeiros dias. O seu irmão está a exagerar: a realidade parece
sempre mais grave nas palavras de Chico, mas mais feliz também quando
é a vez de tal coisa, e María diverte-se com o modo como ele descreve o
silêncio de Soledad, as curiosidades relacionadas com Carmen ou as
conversas das vizinhas.
– Só se via a minha cabeça nos primeiros dias, mais nada: uma cabeça
de criança a servir-lhes uma garrafa. Até que amanhei um estrado com
vários caixotes de refrigerantes, e agora já meto meio corpo de fora.
Chico perdeu o nome em favor da alcunha2. Ele próprio se apresenta
assim, Chico, tal como o pai se habituou a tratá-lo desde que nasceu: o
filho mais novo, um bebé louro com mais ossos do que carne, de olhos
grandes e claros – iguais aos de María –, apostado em não crescer. Aos
seis, aparentava ter pouco mais de quatro anos; aos treze, agora, nem
sequer onze. María sempre confiara em que Chico seria o único irmão que
conseguiria sair do bairro: gostava de ir à escola, agradavam-lhe os
números. Ficou desiludida ao saber que ia largar as aulas para dar uma
ajuda no snack-bar de um dos mais velhos. Era o que achava que ele dizia
ao tentar distinguir as palavras do seu irmão por entre o barulho das
mulheres, cinco ou seis ou sete, o seu paleio da janela. Está cá? Está cá.
No quarto, com a menina e o irmão. Sempre veio? Eu não conseguiria. Eu
não conseguiria ter ido e deixá-la aqui, como um traste esquecido. Eu não
conseguiria era ter feito aquilo. Aquilo o quê? Fala baixo que a mãe ainda
te ouve. Ainda te ouve ela. O que foi?! Sempre veio? Antes a Soledad,
sempre tão calada, mas que tranquila. E o mais novo. Eu disse-o à mãe, a
mãe não me quis dar ouvidos. Cala-te lá, o mais novo, que é uma
criança?!
– Não lhes dês ouvidos – consolou Chico, confirmando as suspeitas de
María: uma passa rápida, outra, mais uma, diante do berço de Carmen,
agora nos braços da mãe.
– Desde quando é que tu fumas?
– Desde que fui para o bar. Passavam a vida a rir-se de mim. Uns
chamavam-me Chica. Não gosto de tabaco, mas assim pareço mais velho.
Que é que achas? Pareço?
– A menina enche muito a paciência?
– Eu passo o dia inteiro fora. Levo o trabalho da Soledad para o centro à
mesma hora de sempre, e ao voltar subo a ladeira e vou para o bar. Na
verdade, fico para lá sozinho com o Toñi, mas antes assim. Depois do
almoço, a coisa acalma, às vezes alguém toma um café, e depois os
homens com as cartas e o dominó, uns quantos jantares e o regresso a
casa. A menina está quase sempre a dormir. Não é muito divertida, mas é
espertíssima. Falo com ela às vezes, e ela ouve-me como se me
compreendesse. Prefere estar comigo do que estar com a Soledad, lá isso é
verdade.
Calam-se os dois, não vá a irmã ouvi-los. Mais do que um elo, Soledad
pressupõe uma elipse entre eles: nasceu depois de María, antes de Chico, e
a ambos parece vinda de outro planeta, sem ter nada em comum com
ninguém. Sentada na cozinha, costura a ouvir rádio a toda a hora, e mal
para para almoçar e descansar. Às vezes interrompe o seu trabalho antes
da hora e brinca a bater palmas à frente de Carmen, esforçando-se por
fingir carinho, mas logo se aborrece e regressa ao trabalho. Chico apaga o
cigarro e estica os braços para que María lhe passe Carmen.
– Foram-se embora do bairro, María.
– Quero lá saber.
– Está bem. Mas enfim: foram-se embora. Tu poderias voltar. – Chico
emudece para o caso de María querer responder, mas a sua irmã fica
calada. – Como é Madrid? Eu gostaria de lá ir um dia. E também de férias.
– A casa dos tios não tem muito espaço. No início, parecia-me tudo
muito estranho, porque mal os conhecia… Nos primeiros meses, dormia
na mesma cama com a prima, mas depois do casamento dela fiquei
sozinha no quarto. Eu também faço como tu: acordo e vou apanhar o
autocarro, pois a casa fica longe. A família é simpática e pagam-me a
horas. Acham bem toda a comida e folgo ao domingo, porque eles vão
para fora. Tenho sorte, é algo que não acontece com quase nenhuma das
raparigas que servem no prédio: muitas dormem lá, outras trabalham todos
os dias. A família tem um menino pouco mais velho do que a Carmen, e é
caprichoso, mas é a mãe que fica com ele. Tenho medo de que, com o
passar dos anos, o menino cresça e deixem de precisar de mim.
– Nessa altura também podes voltar, não é?
– Ou levar a Carmen.
Distingue um esgar de desgosto em Chico: como se a sua intenção desse
cabo da rotina do irmão. É demasiado tarde para Carmen não estar a
dormir, e todavia María permite-o porque as piadas de Chico arrancaram a
primeira gargalhada que ouve a menina dar em todo o dia. A conversa da
rua não para, e María percebe que algumas das vizinhas continuam a falar
sobre ela, a vida que leva fora, por algum motivo correram com ela assim
que puderam, ainda bem que a menina ficou por cá.
– Tens saudades da escola, Chico?
– Agora já não, no início, sim. Não gostava do bar. Já imaginaste? Ter
sido professor. Quando for adulto, vou retomar, se sair do bar e tiver
tempo. Sim, tenho saudades dos livros que me emprestavam, porque há
noites em que fico aborrecido. Alguma coisa terei de inventar.
A voz de Chico cresceu de repente. María pensa nele, pouco mais de
treze anos, alerta para que o vizinho não se vá embora sem pagar o que
consumiu, a ditar os pedidos à sua cunhada, a almoçar de pé as sobras do
menu do dia, de cigarro na boca. Chico conserva o sorriso perante o resto,
mas María pensa também no que ele pensará todas as noites, na sua cama
pequena, enquanto a bebé dorme e Soledad costura calada.
– Não vais acreditar como ela chora à noite! Lembras-te dos primeiros
meses? Bom, é o contrário disso. De repente vamos no sétimo sono e ela
acorda-nos com um grito. A Sole tapa a cabeça com a almofada, por isso
calha-me sempre a mim. Os bebés têm pesadelos?
Pouco viveu com Carmen quando ela nasceu; o que sabe é-lhe contado
pelo telefone e por uma ou outra carta, ou nos bocadinhos em que a dona
da casa sai para passear sem o menino, e é daí que María conhece o aroma
doce, tão diferente do da sua filha. A bebé cheira a tabaco, como Chico,
com as suas unhas a amarelecer devido à nicotina. A algaraviada da rua
não para, e mesmo à beira do sono – tal como pouco depois de dar à luz:
Carmen no berço, ela e o seu irmão na cama pequena, Soledad como uma
pedra na outra cama – ouve as vizinhas a falarem sobre si. Às vezes
distingue a voz da sua mãe, evitando a conversa ou esforçando-se por
abri-la a um tema novo. Foram-se embora do bairro, María ouve uma das
mulheres dizer, a mulher soube. Como é que continuas aqui, a cruzar-te
com ela todos os dias, na mesma rua, com os mesmos olhos? Era o
mínimo. María sente o corpo magro de Chico a descolar do seu, e o seu
irmão levanta-se para fechar a janela.
– Está frio – justifica. – Não vá a menina constipar-se.
Ouve Chico a remexer na sua gaveta e a sair do quarto. Soledad abre a
porta com cuidado, troca de roupa às escuras, deseja boa-noite, faz ranger
o estrado com o peso do seu corpo. Silêncio: as vizinhas retiram-se para as
suas casas, algumas cadeiras a rasgarem no passeio o seu caminho de
regresso. Chico mete-se na cama e põem-se costas com costas, ele virado
para a parede. O seu irmão cheira a tabaco, pensa María, antes de Carmen
acordar a chorar.
María começa a falar consigo mesma, os lábios em silêncio, enquanto a
sua filha e os seus irmãos dormem no quarto: nota o calor das costas de
Chico, o motor no peito da sua filha, a respiração árdua de Soledad. Eu
quero dizer muitas coisas, mas não sei organizá-las. Faz o mesmo que
noutras noites: ensaia hoje as palavras que diria à sua mãe, e a Carmen
quando esta entender. Retoma as situações que viveu, mesmo aquelas que
não parecem importantes, do princípio até ao fim; corrige alguns gestos e
quase todas as decisões, prepara-lhes finais felizes que não correspondem
à realidade. Por exemplo, Carmen: nas histórias em que María pensa antes
de adormecer, Carmen não existe. Nem María ouve a voz do pai nem
conhece ainda cidades cinzentas, ou conhecê-las-á dentro de anos, de
visita. Só que Carmen existe de facto, fende a noite com o seu choro e
acorda-os, a si e a Chico, e Soledad – tal como a avisaram – esconde a
cabeça sob a almofada, para fingir que está a dormir. Carmen existe, olhos
como bichos que espezinharia umas vezes, noutras pontinhos de uma
figura que se entreteria a ligar, e María lembra-se de que talvez pudesse
regressar à cidade com ela, e pedir à tia que ficasse de olho nela enquanto
trabalha. María pensa para si: eu quero dizer muitas coisas, mas não sei
organizá-las. Estão na minha cabeça, levo o tempo todo a pensar nelas,
mas perco-as assim que me chegam à boca. Eu percebo que me enganei e
que me envergonhei desde logo a mim e depois a vocês por causa da
minha cabeça de vento. Se não enviasse para cá dinheiro e ficasse com
tudo para mim, talvez pudesse dar algo mais aos tios, poupar o resto e
vivermos juntas, eu e a Carmen, um dia. Falem com os tios, eles que
digam: não saio mais do que alguns domingos com a prima e o marido,
volto sempre do trabalho para casa. A Carmen não sabe quem sou e eu não
conseguiria descrevê-la. Quando me perguntam pela sua cara, pelas suas
expressões, eu conto como é o retrato que tenho na mesinha de cabeceira.
A minha filha não se mexe, não fala comigo, não sabe quem sou. Está
presa na fotografia.
Não fala com a mãe. Ninguém fala com a mãe, na verdade, nem com o
pai: cada um exerce o seu papel, sem alterar o que os outros esperam
deles. Os pais fazem de pais, dispõem e mandam, e os filhos fazem de
filhos, obedecem; a culpa de se esquivar a essa lógica é de María. Desde
que regressou, a sua mãe limitou-se a contar alguns pormenores sobre
Carmen – não te assustes com esse barulho, porque descobrimos que não é
nem sono, nem fome, nem dores: gosta de se ouvir, mais nada –, a
lamentar que Chico passe as horas no bar e se esqueça de trazer gelo para
o frigorífico, a recriminar todas as horas de sono do seu pai. María
também não fala com o pai: assim que entrou em casa, dirigiu-se ao quarto
para o cumprimentar, beijando-lhe a testa. Quis perguntar-lhe qualquer
coisa, como estava, falar-lhe do seu irmão – vive com ele em Madrid,
mandou-lhe cumprimentos –, mas Soledad chamou da cozinha, e quando
María saiu o pai pediu-lhe que fechasse a porta.
*
Que aconteceu no dia anterior ao sonho que Alicia tem todas as noites?
Nesse dia, acordou entre as queixas da sua mãe, vestiu-se sem vontade de
ir para a escola – as calças de ganga, as sandálias, uma T-shirt de uma
marca desportiva –, regressou a casa. Não faltava muito para as férias,
para uma alteração, para a mudança para o colégio. É um relato cruzado
por muitos corpos: a sua mãe minúscula, a sua irmã minúscula, o seu pai
de costas largas, os quase adolescentes que passeavam pelo pátio durante
o recreio. Não conhece as suas caras, nem praticamente nenhum dos seus
nomes. No sonho que Alicia tem todas as noites, os seus corpos não
aparecem: aparece, sim, o corpo do pai. Será ele quem se estampa contra a
árvore e quem coxeia antes de se enforcar, ou será uma imagem do pai
recriada por si? Para compreender o dia que o seu pai viveu antes de
decidir tudo – antes de escolher uma estrada pouco movimentada, acelerar
numa curva, calcular mal e ficar numa dobra da colina, sem ainda assim
cair no vazio, coxear antes de se enforcar –, Alicia percorre muitas vezes e
um por um os seus gestos, as suas palavras.
*
Um dos assuntos que mais preocupavam Celia, explicava Inma nas suas
conversas, era detetar alunas que despertassem nela a imagem daquela
tarde. Identificara um modelo que designava por «Alicia» e que
correspondia às características da sua antiga colega. Qualquer rapariga que
se sentisse superior por algum aspeto, porque tivesse sido criada numa
família com mais dinheiro ou porque fosse mais bonita ou mais
inteligente, e que procurasse colegas mais pobres, mais feias, mais parvas.
Como aquele gesto na piscina: quando nos apoiamos nos ombros de
alguém para dar impulso, para saltar e afundar essa pessoa ao mesmo
tempo. Poucas semanas após o início de cada ano letivo, Inma e Celia
falavam ao telefone e analisavam os seus estudantes: primeiro com o
entusiasmo de quem não sabe, depois com o fastio de quem já conhece a
lição de cor. Celia defendia que Inma não reparava tanto nisso porque era
muito mais difícil humanizar os alunos em ciências, mas em História da
Arte a matéria facilitava-o: Uma Alicia, explicava Celia, uma Alicia não
se emociona. Uma Alicia finge que se emociona; abre muito os olhos
porque sabe que é o que faz sentido, o que se espera dela. Aquela rapariga
transformara-se em arquétipo: despojada das suas fraquezas e das suas
qualidades, Inma e Celia – Celia e Inma – evocavam-na ao longo dos anos
como se se tratasse de uma anedota conhecida. Os anos tinham-nas
transformado em espectadoras: ocuparam duas cadeiras à volta da mesa da
sala, ouviram o telefone tocar, as palavras de Carmen e o choro de Eva,
que será feito da Carmen, que será feito da Eva; o silêncio de Alicia. Mas
o tempo afasta-as, expulsa-as da cena; primeiro Celia e Inma sentaram-se
no terraço, a ver o que acontecia dentro da sala, e mais tarde passaram
para a rua, de novo naquela passadeira da qual contemplavam o janelão.
– Foi então que o telefone tocou – rematava sempre Celia. – De que
maneira tão absurda lhes mudou a vida, não foi? Com um telefonema.
*
Foi então que o telefone tocou. A mãe de Alicia atendeu, como sempre:
o telefone tocava na sala e no seu quarto. Alicia não percebeu porque
estava ela a irromper daquela maneira diante das raparigas; desconcertou-
a que a mãe, que fazia sempre questão de se maquilhar mesmo para as
suas filhas, permitisse que aquelas duas desconhecidas reparassem nas
varizes que iam surgindo pelas suas pernas, teias roxas perto do joelho. O
telefone tocou e Alicia distinguiu algumas palavras da mãe, explicando
que não, que guardava o caderno no escritório. O barulho, todavia, não a
levou a essa divisão, mas à que as raparigas ocupavam: a mãe irrompeu,
localizou um caderno de capa preta no móvel junto do televisor, levantou
o outro telefone sem se importar com a presença de Celia e Inma.
– Já cá estou, tinha-o noutro sítio. Acabei de me lembrar de que ontem à
noite ele apontou qualquer coisa enquanto via televisão, e deixou-o à mão.
Vou ditar-te o número.
A voz da mãe travou o rangido dos marcadores contra a cartolina. Eva
parou de colorir, Alicia também; Inma largou a tesoura na mesa, e Celia
tapou outra vez a esferográfica. As amigas olhavam umas para as outras,
atentas à conversa, tentando adivinhar a voz do outro lado, de quem, sobre
o quê.
*
Foi então que o telefone tocou e aquela mulher entrou na sala como um
fantasma: uma combinação preta sobre a pele branquíssima, alças pretas e
renda preta sobre pele branquíssima, as olheiras desenhadas pelo rímel
esborratado. O telefone tocou e nem Alicia nem Eva se esforçaram por
atender: Celia e Inma intuíram a voz da mãe ao longe, a uma distância
muito superior à do corredor. Sem disfarçar, as raparigas interromperam o
seu trabalho para ouvir: nem pontas de marcador contra a cartolina grossa,
nem gume de tesoura a percorrer uma silhueta de montanha. Carmen
gaguejou enquanto localizava um endereço – assegura Inma – ou um
telefone – assegura Celia –, ditou qualquer coisa, agradeceu o esforço.
– Não sei porque ele costuma sair de casa antes de eu acordar. Ontem à
noite disse-me que hoje iria dar uma volta pelos restaurantes… Calculei
que comesse no do centro, porque estivemos anteontem com o meu tio.
Estás a dizer-me que não o viram em nenhum deles, em nenhum
momento? E que ligaram para todo o lado? Não, não duvido, estou só a
perguntar. Podes passar-me ao meu tio, por favor? Está bem, então diz-lhe
para me ligar assim que chegar a um deles, informa toda a gente para que
ele me ligue, esteja onde estiver. Não estou nervosa, mas tens de perceber
que é muito estranho. Não estou a ficar nervosa. Não me fales como se eu
fosse uma tontinha, peço-te. Olha, o que vou fazer é chamar um táxi e ir
para aí. Digam ao meu tio para ir aí ter assim que acabar. Não voltem a
ligar para minha casa enquanto eu não chegar aí.
Carmen desapareceu da sala com a mesma brusquidão com que se
apresentara diante de Celia e Inma: uma presença brotada sabia-se lá de
onde. Para Celia e para Inma, Carmen transformara-se em alguém de fora
deste mundo.
*
Aquilo que Alicia recorda é que, nessa tarde, a sua mãe a chamou ao
quarto, enquanto trocava de roupa para sair à rua, e lhe disse:
– Alicia, o teu pai desapareceu. Não passou em nenhum dos restaurantes
durante toda a manhã, nem no escritório, nem no apartamento novo. Não
atendia o telefone, e já nem sequer dá sinal. A secretária ligou para os
hospitais e para a polícia, mas ninguém sabe de nada. O tio Chico foi de
carro à procura dele, e vai parando em cada restaurante para avisarem de
lá que não está a encontrá-lo. Diz às tuas amigas que se vão embora, por
favor.
Pelo contrário, o que aconteceu nessa tarde foi que a sua mãe a chamou
ao quarto, enquanto trocava de roupa para sair à rua, e lhe disse:
– Não sabem do teu pai, Ali. Vou ao restaurante do centro para ver o que
se passa. Toma conta da Eva, por favor, e não lhe digas nada. Vou avisar a
tia Sole para vir ter convosco, a ver se tenho tempo antes de chamar o
táxi… Só lhe abres a porta a ela, que não tem as chaves cá de casa, ou ao
teu pai, se ele chegar entretanto, claro. As tuas amigas podem ficar se
quiseres que estejam contigo, para estarem entretidas. Não digas nada à
Eva. Põe-lhe um filme de desenhos animados, para ela se distrair e não se
assustar.
*
63. There is some doubt as to the exact meaning of line 2. After this
line two lines may have been lost; Grundtvig adds: “Few braver shall
ever | be found on the earth, / Or loftier men | in the world ever
live.”
66. The manuscript does not name the speaker. The negative in the
first half of line 1 is uncertain, and most editions make the clause
read “Of this guilt I can free myself.” The fairest, etc.: i.e., I have
often failed to do the wise thing.
67. The manuscript does not indicate the speaker. Requital, etc.: it is
not clear just to what Guthrun refers; perhaps she is thinking of
Sigurth’s death, or possibly the poet had in mind his reference to the
slaying of her mother in stanza 53. [524]
69. Guthrun suddenly changes her tone in order to make Atli believe
that she is submissive to his will, and thus to gain time for her
vengeance. Line 2 in the original is thoroughly obscure; it runs
literally: “On the knee goes the fist | if the twigs are taken off.”
Perhaps the word meaning “fist” may also have meant “tree-top,” as
Gering suggests, or perhaps the line is an illogical blending of the
ideas contained in lines 1 and 3.
73. The manuscript does not name the speakers. It indicates line 3
as beginning a new stanza, in which it is followed by many editions.
The Volsungasaga paraphrases line 4 thus: “But it is shameful for
thee to do this.” Either the text of the line has been changed or the
Volsungasaga compilers misunderstood it. The angry one: Atli.
77. The manuscript indicates no gap (lines 1–2), and most editions
make a single line, despite the defective meter: “Thy sons hast thou
lost | as thou never shouldst lose them.” The second part of line 2
is in the original identical with the second half of line 3 of stanza 80,
and may perhaps have been inserted here by mistake. Skulls: it is
possible that line 3 was borrowed from a poem belonging to the
Völund tradition (cf. Völundarkvitha, 25 and 37), and the idea
doubtless came from some such source, but probably the poet
inserted it in a line of his own composition to give an added touch of
horror. The Volsungasaga follows the Atlamol in including this
incident. [528]
78. Some editions add lines 3–4 to stanza 79; Finnur Jonsson marks
them as probably spurious.
79. Perhaps these two lines should form part of stanza 78, or
perhaps they, rather than lines 3–4 of stanza 78, are a later addition.
A gap of two lines after line 1 has also been conjectured.
81. The manuscript does not indicate the speaker. Lines 1–2 may be
the remains of a separate stanza; Grundtvig adds: “Thou wast
foolish, Atli, | when wise thou didst feel, / Ever the whole | of thy
race did I hate.” The Volsungasaga paraphrase, however, indicates
no gap. Many editions make a separate stanza of lines 3–6, which,
in the Volsungasaga, are paraphrased as a speech of Atli’s. Lines 5–
6 may be spurious. [529]
82. The manuscript does not indicate the speakers. Many editions
make two separate stanzas of the four lines. Another light: a fairly
clear indication of the influence of Christianity; cf. Introductory Note.
86. The manuscript does not name the speakers. It marks line 4 as
the beginning of a new stanza, and many editions follow this
arrangement, in most cases making a stanza of lines 4–5 and line 1
of stanza 87. However, line 1 may well have been interpolated here
from stanza 75. Grundtvig adds after line 3: “His father he avenged,
| and his kinsmen fully.” Some editors assume the loss of one or
two lines after line 5. [531]
91. The manuscript does not indicate the speaker. It marks both lines
4 and 5 as beginning new stanzas, but line 5 is presumably an
interpolation. The text of the second half of line 2 is obscure, and
many emendations have been suggested. Ye brothers: cf. note on
stanza 90. Half: i.e., two of Atli’s brothers were killed, the other two
dying in the battle with Gunnar and Hogni; cf. stanza 51.
92. From the land: this maritime expedition of Guthrun and her two
brothers, Gunnar and Hogni (the poet seems to know nothing of her
half-brother, Gotthorm), with Sigurth seems to have been a pure
invention of the poet’s, inserted for the benefit of his Greenland
hearers. Nothing further is reported concerning it.
93. The forest: i.e., men who were outlawed in the conquered land
were restored to their rights—another purely Norse touch. [534]
97. The manuscript does not indicate the speaker. Many editors
assume a gap either before or after line 1. A ship: the burial of Norse
chiefs in ships was of frequent occurrence, but the Greenland poet’s
application of the custom to Atli is somewhat grotesque.
[Contents]
GUTHRUNARHVOT
Guthrun’s Inciting
[Contents]
Introductory Note
The two concluding poems in the Codex Regius, the Guthrunarhvot
(Guthrun’s Inciting) and the Hamthesmol (The Ballad of Hamther),
belong to a narrative cycle connected with those of Sigurth, the
Burgundians, and Atli (cf. Gripisspo, introductory note) by only the
slenderest of threads. Of the three early historical kings who
gradually assumed a dominant place in Germanic legend,
Ermanarich, king of the East Goths in the middle of the fourth
century, was actually the least important, even though Jordanes, the
sixth century author of De Rebus Getecis, compared him to
Alexander the Great. Memories of his cruelty and of his tragic death,
however, persisted along with the real glories of Theoderich, a
century and a half later, and of the conquests of Attila, whose lifetime
approximately bridged the gap between Ermanarich’s death and
Theoderich’s birth.
[Contents]
Guthrun went forth to the sea after she had slain Atli.
She went out into the sea and fain would drown
herself, but she could not sink. The waves bore her
across the [538]fjord to the land of King Jonak; he took
her as wife; their sons were Sorli and Erp and
Hamther. There was brought up Svanhild, Sigurth’s
daughter; she was married to the mighty Jormunrek.
With him was Bikki, who counselled that Randver,
the king’s son, should have her. This Bikki told to the
king. The king had Randver hanged, and Svanhild
trodden to death under horses’ feet. And when
Guthrun learned this, she spake with her sons. [539]
[542]
[544]
[536]
[Contents]
NOTES
[538]
Prose. In the manuscript the prose is headed “Of Guthrun,” the title
“Guthrunarhvot” preceding stanza 1. The prose introduction is used
both by Snorri (Skaldskaparmal, chapter 42) and in the
Volsungasaga. It would be interesting to know on what the annotator
based this note, for neither Bikki nor Randver is mentioned by name
in either the Guthrunarhvot or the Hamthesmol. On the prose notes
in general, cf. Reginsmol, introductory note. Guthrun: on the slaying
of Atli by his wife, Guthrun, Sigurth’s widow, cf. Atlamol, 83–86 and
notes. Jonak: a Northern addition to the legend, introduced to
account for Svanhild’s half-brothers; the name is apparently of Slavic
origin. Sorli, Erp, and Hamther: Sorli and Hamther are the Sarus and
Ammius of the Jordanes story (cf. introductory note). The
Volsungasaga follows this note in making Erp likewise a son of
Guthrun, but in the Hamthesmol he is a son of Jonak by another
wife. Svanhild: cf. Sigurtharkvitha en skamma, 54 and note.
Jormunrek (Ermanarich): cf. introductory note. Bikki: the Sifka or
Sibicho of the Gothic legends of Ermanarich, whose evil counsel
always brings trouble. Randver: in the Volsungasaga Jormunrek
sends his son Randver with Bikki to seek Svanhild’s hand. On the
voyage home Bikki says to Randver: “It were right for you to have so
fair a wife, and not such an old man.” Randver was much pleased
with this advice, “and he spake to her with gladness, and she to
him.” Thus the story becomes near of kin to those of Tristan and
Iseult and Paolo and Francesca. According to the Volsungasaga,
Bikki told Ermanarich that a guilty love existed between his son and
his young wife, and presumably the annotator here meant as much
by his vague “this.” [539]
4. Hamther: some editions spell the name “Hamthir.” Sigurth, etc.: cf.
Sigurtharkvitha en skamma, 21–24, and Brot, concluding prose. This
stanza has been subjected to many conjectural rearrangements,
[540]some editors adding two or three lines from the Hamthesmol.
12. Some editors assume the loss of one line, or more, before line 1.
Hniflungs: Erp and Eitil, the sons of Guthrun and Atli. On the
application of the name Niflung (or, as later spelt, [542]Hniflung) to
the descendants of Gjuki, Guthrun’s father, cf. Brot, 17, note.
16. Some editors assume a gap of two lines after line 2, and make a
separate stanza of lines 3–5; Gering adds a sixth line of his own
coining, while Grundtvig inserts one between lines 3 and 4. The
manuscript indicates line 5 as beginning a new stanza.
21. Perhaps something has been lost between stanzas 20 and 21, or
possibly stanza 21, while belonging originally to the same poem as
stanzas 19 and 20, did not directly follow them. Sore-pressed: a
guess; a word seems to have been omitted in the original.
[Contents]
HAMTHESMOL
The Ballad of Hamther
[Contents]
Introductory Note
The Hamthesmol, the concluding poem in the Codex Regius, is on
the whole the worst preserved of all the poems in the collection. The
origin of the story, the relation of the Hamthesmol to the
Guthrunarhvot, and of both poems to the hypothetical “old”
Hamthesmol, are outlined in the introductory note to the
Guthrunarhvot. The Hamthesmol as we have it is certainly not the
“old” poem of that name; indeed it is so pronounced a patchwork that
it can hardly be regarded as a coherent poem at all. Some of the
stanzas are in Fornyrthislag, some are in Malahattr, one (stanza 29)
appears to be in Ljothahattr, and in many cases the words can be
adapted to any known metrical form only by liberal emendation. That
any one should have deliberately composed such a poem seems
quite incredible, and it is far more likely that some eleventh century
narrator constructed a poem about the death of Hamther and Sorli
by piecing together various fragments, and possibly adding a
number of Malahattr stanzas of his own.
It has been argued, and with apparently sound logic, that our extant
Hamthesmol originated in Greenland, along with the Atlamol. In any
case, it can hardly have been put together before the latter part of
the eleventh century, although the “old” Hamthesmol undoubtedly
long antedates this period. Many editors have attempted to pick out
the parts of the extant poem which were borrowed from this older
lay, but the condition of the text is such that it is by no means clear
even what stanzas are in Fornyrthislag and what in Malahattr. Many