Full Download As Maravilhas Elena Medel Online Full Chapter PDF

Você também pode gostar

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 69

As Maravilhas Elena Medel

Visit to download the full and correct content document:


https://ebookstep.com/product/as-maravilhas-elena-medel/
More products digital (pdf, epub, mobi) instant
download maybe you interests ...

Córka 1st Edition Elena Ferrante

https://ebookstep.com/product/corka-1st-edition-elena-ferrante/

The Spanish Love Deception Elena Armas

https://ebookstep.com/product/the-spanish-love-deception-elena-
armas-3/

The Spanish Love Deception Elena Armas

https://ebookstep.com/product/the-spanish-love-deception-elena-
armas-2/

The American Roommate Experiment Elena Armas

https://ebookstep.com/product/the-american-roommate-experiment-
elena-armas/
The Spanish Love Deception Elena Armas

https://ebookstep.com/product/the-spanish-love-deception-elena-
armas/

Arduino Luigi Lo Russo Elena Bianchi

https://ebookstep.com/product/arduino-luigi-lo-russo-elena-
bianchi/

The American Roommate Experiment Elena Armas

https://ebookstep.com/product/the-american-roommate-experiment-
elena-armas-2/

Amor en juego 1st Edition Elena Armas

https://ebookstep.com/product/amor-en-juego-1st-edition-elena-
armas-2/

■spanyol A■k Aldatmacas■ 1st Edition Elena Armas

https://ebookstep.com/product/ispanyol-ask-aldatmacasi-1st-
edition-elena-armas/
Ficha Técnica
Título: As Maravilhas
Título original: Las maravillas
Autor: Elena Medel Navarro
Edição: Maria do Rosário Pedreira
Tradução do castelhano: Vasco Gato
Revisão: Madalena Escourido
Design da capa: © Maria Manuel Lacerda / LeYa
Imagem da capa: freepik.com
ISBN: 9789722072786

Publicações Dom Quixote


uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01

© Publicações Dom Quixote, 2021


© Elena Medel Navarro, 2020
Por acordo com Pontas Literary & Film Agency.
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor.
Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.
www.leya.pt
Elena Medel

AS MARAVILHAS

Tradução de Vasco Gato

Romance
Índice

Capa
Ficha Técnica
O DIA. Madrid, 2018
A CASA. Córdova, 1969
O REINO. Córdova, 1998
A TEMPERANÇA. Madrid, 1975
O PENDURADO. Córdova, 1999
A BATALHA. Madrid, 1982
O SONHO. Madrid, 2008
A ABUNDÂNCIA. Madrid, 1984
A BELEZA. Madrid, 2015
A ALEGRIA. Madrid, 1998
A NOITE. Madrid, 2018
Clearly money has something to do with life.
PHILIP LARKIN
O DIA
Madrid, 2018

Procurou nos bolsos sem encontrar nada. Os das calças, vazios, os do


casaco também: nem sequer um lenço de papel húmido, amarfanhado. Na
carteira guardava apenas um euro e uma outra moeda, de vinte cêntimos.
Alicia não precisará do dinheiro até à mudança de turno, mas incomoda-a
aquela sensação de quase não ter. Trabalho na estação de comboios, numa
das lojas de guloseimas e sandes, a que fica perto das casas de banho: é
assim que costuma apresentar-se. Em Atocha, pagaria comissão em todas
as caixas automáticas, pelo que sai na estação de metro anterior para
levantar, numa sucursal do seu banco, vinte euros que lhe proporcionem
um pouco de tranquilidade. Com uma única nota no bolso, Alicia fita a
rotunda quase vazia, com poucos carros e escassos peões. Faltam uns
quantos minutos para que o céu clareie. Se lhe derem essa hipótese, Alicia
opta sempre por trabalhar à tarde: permite-lhe não ter hora para acordar,
passar a tarde na loja e regressar diretamente a casa. Nando queixa-se
durante essas semanas, que no fundo são quase todas; ela dá como
desculpa que é a sua colega que lho pede: tem dois filhos e dá-lhe mais
jeito o outro turno. Assim, liberta as primeiras horas do dia e evita as
tardes no café com os amigos dele – que são também os seus, graças à
rotina –, os petiscos baratos, os bebés entre guardanapos com nódoas.
Alicia achava que a maternidade alheia poria termo àquele hábito, mas
elas ausentam-se até que os filhos adormeçam, voltam às vezes com a
confirmação do sono profundo, e Nando fica dececionado quando ela
tenta baldar-se. Dá-me pelo menos isso, pede-lhe. «Isso» umas vezes
significa gastar as suas tardes no café debaixo de casa, outras fazer com
ele o passeio cicloturista dessa época. Ele vai a pedalar, ela avança com as
outras mulheres num carro; e Alicia considera que nunca a palavra
«esposa1» associou de forma tão exata o som e o significado: durante
esses fins de semana, a pele dos pulsos arde-lhe, como se da fricção do
metal. À noite, na estalagem – de lençóis grosseiríssimos –, Nando morde
os lábios e tapa-lhe a boca para evitar que o barulho os denuncie, e no fim
pergunta-lhe porque é que evita sempre aquelas viagens, se lhe calham tão
bem.
De modo que é dia após noite após dia após noite após dia – uns
decalcados dos outros, sem uma única manhã em que Alicia se finja
doente e decida passear pela cidade, sem uma noite em que não lhe passe
pela cabeça o sonho de sempre. Os seus chefes – já conheceu vários,
sempre miúdos, antes um pouco mais velhos do que ela, agora uns anos
mais novos, com a camisa por dentro das calças – admiram-se por se
manter há anos no mesmo posto; uns perguntam-lhe se não se aborrece de
vender pacotes de viagem, e ela responde que se sente feliz – valorizam-
na por isso, porque a sua alegria de vendedora de chocolates os reconforta,
chamas-te Patricia ou lá como é, hã, rapariga? – e que isso lhe basta. Um
deles quis saber se Alicia não tinha sonhos: se eu te contasse, e pensou no
homem que coxeia, no seu corpo morto a rodar sobre si; já o chefe dessa
altura supôs na sua cabeça apartamentos de luxo no centro da cidade,
meses em praias de águas transparentes.
Opta pelo turno da manhã ou da tarde sem alterar os seus hábitos: se
trabalha de manhã, vai buscar Nando todas as tardes ou aguarda que ele a
avise com um toque de campainha, e reúnem-se no café enquanto os filhos
dos outros choram; se trabalha à tarde, investe o seu tempo de maneiras
mais satisfatórias. Certas manhãs, maquilha-se um pouco – nunca sabe
muito bem o que destacar, pois com os anos a gordura vai-se acumulando
nas ancas e nas coxas, e continuam lá os olhos de rato que herdou da mãe
e que a mãe herdara do seu pai, ou assim lamentava o tio Chico –, vai a pé
a bairros que Nando jamais pisará, finge um interesse enorme enquanto
toma café ao balcão num snack-bar cuja cozinheira ainda não entrou ao
serviço, diante de um talho que fechará daí a nada. Ao início, retraía-se
quando Nando estava na cidade, com o receio de que ele a descobrisse,
mas aconteceu uma vez: quando foi tratar de papelada à Segurança Social
e, na sala de espera, um tipo teimou em contar-lhe o romance que estava a
ler. O corpo de Alicia causava-lhe cada vez mais vergonha, pelo que não
desperdiçaria a oportunidade.
A rotunda de Atocha quase vazia, uns quantos carros e alguns peões:
faltam minutos para que o céu clareie. Na Cuesta de Moyano, as grades
das bancas de venda de livros estão para baixo e há uns quantos pontos
arroxeados – distingue-as ao longe, são mulheres – a empilharem cartazes
perto do carrossel. Ouviu qualquer coisa na televisão sobre o dia de hoje,
mas logo se distrai, o semáforo fica verde, cruza a estação, pensa em
assuntos que para si têm um pouco mais de importância.
*

María dorme bem, como uma pedra. Quando se reformou, guardou o


despertador num saco de plástico e pô-lo na estante de trocas da
associação, para quem precisasse. Não o utilizava havia anos – substituiu-
o, como toda a gente, pelo alarme do telemóvel –, mas pareceu-lhe um
gesto simbólico, próprio de uma história que acontecesse a outra pessoa:
agora que não vou voltar a usá-lo, pensou, que sirva a alguém que tenha
de madrugar, para que o objeto acompanhe outra história em que alguém
sai de casa quando ainda não amanheceu. Acorda quase sempre sozinha:
incomoda-a a luz rarefeita que se infiltra entre as persianas, o barulho da
água no chuveiro do vizinho. Há meses que estão a preparar aquele dia.
Ontem à noite, María recebeu uma mensagem de WhatsApp de uma
amiga: «não acredito q chgou a hora.» Em assembleias, em reuniões
setoriais, María corrige o entusiasmo das jovens: vivi a minha vida inteira,
os setenta anos que estou prestes a fazer, para acordar hoje, ir ter
convosco, caminhar convosco. Na associação, ouve: quem quiser faça
greve ao trabalho, quem assim entender que faça greve ao consumo, e
quem quiser faça greve aos cuidados pessoais. Cada uma que escolha a
forma que mais lhe convenha, pois todas nos servem e não estamos aqui
para distribuir cartões de feminista. O meu marido vai perceber se não vir
o prato na mesa. Ora essa, Amalia, preparas-lhe um tupperware com
guisado e ele que o aqueça. Nem isso consegue? Na semana que vem,
curso de micro-ondas na ótica do utilizador. Eu vou trabalhar porque não
posso abdicar do dia de salário, mas vou ter convosco a Atocha à tarde. E
os cuidados connosco também valem? Antes de vir, estou a pensar enfiar-
me na banheira até ficar como uma passa. Claro que sim, hoje cuidados
para nós e cuidados para todas.
Ontem à tarde, encontraram-se na associação: umas dedicaram-se a
preparar sandes destinadas a quem saísse hoje à rua para informar as
mulheres que vinham do supermercado ou que tinham decidido
comparecer ao trabalho; outras dispensariam os piquetes, mas dirigir-se-
iam às primeiras horas para a sede, a fim de comentar o que estava a
acontecer noutras cidades, na sua própria cidade. Ouvir rádio é fazer
greve? Ver coisas na Internet é fazer greve? Destaparam uma forma
envolta em papel de prata e dividiram um pão-de-ló. Tinham levado
empadas feitas no forno, as miúdas prepararam húmus e guacamole, uma
das veteranas afundou a colher na tigela de barro, tal como faria com uma
sopa ou um puré: não é assim que se come húmus, troçaram as miúdas.
Aquilo pareceu-lhe demasiado moderno, pensou na sua mãe, que viveu a
guerra e não teria desperdiçado assim a comida: mas de onde é que vocês
são, do delta do Nilo ou de Carabanchel?, aqui em Carabanchel pomos o
grão no cozido. Enquanto isso, recheavam o pão de forma com chouriço e
salsichão, cortavam-no em triângulos, envolviam-nos em plástico,
guardavam as sanduíches no frigorífico para as distribuir no dia seguinte,
María enumerava as greves e as manifestações que tinham sido
convocadas, e nas quais não participara: as dos anos setenta com Suárez, a
de antes das eleições e as de depois, e a do Não à NATO, a de 85 por
causa das pensões, a greve de 88 e as duas dos anos noventa, as do Iraque
e do Não à guerra, a de 2010, as duas de 2012 – a que foi feita aqui contra
Rajoy, e a europeia –, o comboio da liberdade a favor do aborto. As marés,
lembra outra das raparigas, já universitária, vieste às manifestações da
Maré Verde, e María comenta que numa delas uma jornalista lhe
perguntou se estava a manifestar-se pela sua neta, apontando para a filha
de uma amiga, e ela não soube reagir e respondeu que sim, pela sua neta e
por todas as amigas da sua neta, e as raparigas jovens do grupo da
associação acenaram para a câmara, sem desmentirem que fossem sangue
do seu sangue. María pronunciava com familiaridade os nomes próprios e
apelidos daqueles que faziam parte da sua biografia – Felipe, Boyer, Aznar
– e que jamais saberiam da existência de uma mulher de setenta anos que
emigrara para Carabanchel vinda de um bairro que ficara metade por
construir numa cidade do Sul; uma ministra de Zapatero atribuiu um
prémio às mulheres da associação, mas quem o recebeu não foi María. A
entrega era de manhã e ela não pôde tirar esse dia.
*

Nando pede-lhe Dá-me ao menos isso, Alicia. «Isso» já não inclui o


casamento, ao qual Alicia cedeu porque lhe assegurava aquele
apartamento triste num bairro triste, nem os filhos; Nando aceitou – quase
– que nunca nascerão. «Isso» o seu marido disfarça de ocasiões como o
clube de ciclismo ao fim de semana, belas paisagens com uma companhia
que podia ser melhor, ou alguns dias na praia com a sua mãe, com quem
Alicia pratica o saudável exercício do silêncio; «isso» disfarça-se de
sábado à noite em casa de algum casal de amigos, e de jantar nalgum
restaurante do bairro. Alicia meteu-se nisto – «isto» e não «isso»: Nando,
viver com Nando, casar-se com ele e adaptar a sua vida à dele –, pelo que
ter-se recusado a ter filhos a obriga a uma cedência diária: se queres uma
coisa, tens de oferecer algo em troca, e se te recusas a alguma coisa tens
de o compensar. Alicia ainda vai a tempo: e se lhe dissesse que sim, que
estava bem, e tivessem sorte e conseguissem depressa, e dali a um ano
ancorassem à cama um berço de co-sleeping para ouvirem os berros de
perto? Quanto custaria a Alicia perder os quilos que ganhasse? Os seus
chefes recompensá-la-iam pelo facto de ter esclarecido anos a fio que o
hambúrguer não estava incluído na oferta, ou substituí-la-iam por uma
miúda dez anos mais nova, para quem ganhar uma miséria tivesse tão
pouca importância como para ela? Gotas de leite a ensopar o sutiã, a
barriga flácida. Alicia teria de engendrar outra estratégia para quebrar o
gelo, pois até já aceita homens muito mais velhos ou demasiado tarados se
não se cruzar com nada melhor, embora tema que nem sequer esses
tolerassem o seu corpo de mãe: um corpo de mãe não é um golpe de sorte
para nenhum homem. Será Alicia capaz de imaginar o seu corpo maternal?
Como achará ela que Nando lidará com o seu peito ainda mais descaído,
com as estrias marcadas nas coxas? Nando deixará de pronunciar o seu
nome e, ao falar com ela – inclusivamente em público –, tratá-la-á por
«mãe», como se Alicia tivesse passado por um duplo parto. Nando terá
antes disso rejeitado o sexo, com o medo de frustrar a mente brilhante da
sua descendência com uma investida – mais uma vantagem para Alicia:
que a sua transformação de esposa em mãe a proteja do desejo do seu
marido –, e ter-lhe-á oferecido infusões para os enjoos dos primeiros
meses, e colares de dentição, e roupa de amamentação. Ela pensa numa
bebé – chamemos-lhe Alicita – que não existe, pelo que se deleita com a
ideia de Alicita, com o que Alicita implica – terá os seus olhos de rato ou
os olhos de Nando? –, e procura no Google: vestido evolutivo, camisola
de amamentação, as suas mamas num daqueles sutiãs horrorosos. Com
sorte, talvez durante a sua gravidez Nando repare numa das raparigas que
trabalham no armazém, na administração – costuma falar-lhe de várias,
simpáticas, competentíssimas, mas ela esqueceu-se dos seus nomes –, e a
deixe em paz durante uns tempos, alguns meses, o resto da vida. Que fará
então com Alicita, se Alicita existir e se Nando se entretiver? Num
primeiro impulso, lembra-se de a utilizar nas suas incursões pela cidade:
para que um homem se aproxime com a desculpa de a ajudar a dobrar o
carrinho ou que algum mimo propicie a conversa no cais do metro. Que
idade tem a menina – Alicita vestida de cor-de-rosa, com as suas rendas,
duas perolazinhas nos lóbulos, acabada de nascer –, e ela responderá com
entusiasmo, e inventará uma história qualquer aproveitando que Alicita
não está para aí virada, não ouve, pouco mais lhe interessa além de chorar
e mamar e cagar e que a limpem; Alicita estacionada junto do bengaleiro,
num apartamento de Palomeras ou de Las Tablas, enquanto a mãe fode
com um desconhecido que lhe pede o número de telefone para voltarem a
ver-se, e que durante semanas enviará fotografias da sua piça a um
professor de Matemática em Cartagena, cujo número coincide em três ou
quatro algarismos com o de Alicia. Não trava a sua gargalhada, mesmo
que os clientes a ouçam: e se Alicita retiver desses encontros alguma
imagem, algum som? Nos sonhos do resto da vida da sua filha, um corpo
de mulher em cima de um corpo de homem, um corpo de homem em cima
de um corpo de mulher, a tinta de areia de um apartamento que conserva
móveis com trinta anos, alguém a pedir que alguém desça, alguém a pedir
que alguém suba, de repente, mesmo antes de acordar, Alicita a descobrir
o seu rosto no rosto da mulher deitada junto de um corpo do qual nada
sabe e que a mulher despreza, suada, verdadeiramente feliz por um
instante.
*

E encontravas muitas mulheres nas reuniões de antigamente, María? Eis


o que perguntou uma das quase adolescentes com inocência, o rasto da
gordura vermelha do pulso até à ponta dos dedos; eram mãos que
chamavam a atenção de María, estragadas já desde pequena, pois via-as
como o presságio de alguém a quem caberia usá-las mais do que à cabeça.
Espantava-a o discurso daquela rapariga – a filha da filha de uma amiga,
reconheceu María com um orgulho estranho –, apesar da sua juventude, a
forma terminante como expunha o que pensava, a sua compreensão em
relação a quem fosse de outra opinião, e reconfortava-a ao mesmo tempo
esse parêntese em que voltava à sua idade: não posso crer que os homens
não te deixassem falar. Eu andava sempre com os homens da associação
de moradores, explicou-lhes María. Comecei a namorar com um deles
cinco ou seis anos depois de chegar a Madrid. Acompanhava-o às reuniões
para melhorar o bairro: havia então muitas zonas complicadas, mais do
que agora, e drogavam-se às claras, à porta de minha casa, e não se
contentavam com um esticão na carteira, precisavam de mais; e ainda
havia as barracas, e a prisão mais ao fundo. Tínhamos a sensação de que a
sul do rio não existia ninguém: esse ninguém, claro, éramos nós. Pus-me a
pensar no que era dito nas reuniões, e comecei a apontar alguns nomes de
escritores que eram mencionados, por eles e outros homens com os quais
tinha menos relação, na associação e nos bares onde tomávamos um copo.
Saltava de um escritor para outro, e outro ainda, e contava sempre as
conclusões ao tal homem, ao meu companheiro, chamava-se Pedro, e
debatia-as com ele. Ele partilhava-as na reunião seguinte: mas que esperto,
está feito um catedrático, todos o admiravam. Eu ficava calada, porque
tudo o que eu teria dito na minha voz soava melhor na sua. Comecei a
tomar café com algumas mulheres, com a tua avó, com outras amigas, nas
salas destas e daquelas, em minha casa, e era aí que falávamos de temas
mais nossos, que para eles tinham pouco interesse: o divórcio, o aborto, a
violência, não só de pancada como também de palavras. A tua mãe
começou a recomendar-me livros que lhe mostravam no curso, na
universidade, e continuei a ler, e dei-me conta de que, conforme ia
pensando mais por mim, mais desconfortável o Pedro se sentia. Nós, eu e
a tua mãe, falámos; falámos como falamos a toda a hora, desde sempre, e
decidimos pedir autorização à associação para organizar um grupo de
mulheres. Calcularam que iríamos trocar dicas de cozinha, roupa que já
não nos servisse: a tua mãe e várias colegas delas da universidade
instalaram-se aqui, e começámos a incomodá-los. A Câmara Municipal
cedeu-nos um local, e assim que protestámos pela falta de luz no parque
retirou-o; com dinheiro daqui e dacolá, alugámos um sítio nosso. Eu
esfalfava-me naquele tempo: trabalhava como empregada de limpeza de
escritórios, em Nuevos Ministerios, e regressava comendo o que pudesse,
uma sandes no metro ou um prato rápido sem sequer me sentar, e uma ou
outra noite fugia para estar um bocadinho com o Pedro, mas julgo que
nunca me senti tão contente. Nem sequer agora, que não madrugo, que
passo o dia na associação e que vejo que são mais as que ajudam. Essa foi
a primeira vez na minha vida em que senti que alguém me ouvia quando
eu falava, e que respeitava o que eu dizia. Não porque quisesse ir para a
cama comigo, não porque desligasse e não ouvisse a minha voz, antes
uma coisa distante que não identificava: era porque alguém me
compreendia, estava de acordo, achava que valia a pena ouvir o que eu
dizia por aquilo que eu dizia. Houve um momento em que tudo isso,
pensar e dizer, fazer o que dizia, a associação, me pareceu muito mais
importante do que qualquer coisa que o Pedro me propusesse. Ele queria
que fôssemos viver juntos, e apercebi-me de que aquilo não tinha nada a
ver com o amor. Eu não era a María, uma pessoa, mas uma coisa, e uma
coisa da qual ele se sentia proprietário: o seu apartamento, o seu carro, a
sua mulher. Arranjei esta cicatriz – e aponta para o queixo, um arranhão a
reluzir na pele branca – ao sair a correr do autocarro; tropecei, caí, e ele
nem se alterou. Aguentámos mais um ano depois disso. Portanto, não:
nunca me deparei com mulheres como nós, queria eu dizer. Estás a referir-
te a quê, María? A mulheres pobres. Até para protestar há que ter dinheiro.

1 A palavra «esposa» tem em espanhol o significado matrimonial, como em português, mas


também o significado de «algema». [N. do T.]
A CASA
Córdova, 1969

A bebé cheira a tabaco. A primeira coisa que chama a atenção de María,


ao segurar Carmen entre os braços, é que tem um cheiro muito diferente
do dos outros bebés. A filha da vizinha dos seus tios às vezes cheira a
cebola, embora a mãe tente disfarçar com água-de-colónia; já o menino da
casa – da casa em que trabalha, corrige-se María; não da sua casa, que não
existe –, que nasceu uns meses antes da sua filha, tem, pelo contrário, um
cheiro doce. María tem dificuldade em explicar isso – o que significa «um
cheiro doce»? – pois nunca antes conhecera nada parecido, embora agora
o identifique nas lojas, nos cafés. A filha da vizinha brinca à tarde com as
panelas e o menino vive entre o berço e a alcofa na sala; também Carmen
percorre a casa em que vive, à sua maneira, entre o quarto e os braços da
avó, sentada à mesa grande. María apercebe-se de que talvez o cheiro a
tabaco tenha que ver com a sua família. A sua mãe fuma na cozinha, o seu
pai fuma a cada passo que dá, e desconfia de que o seu irmão Chico terá
começado a fumar no quarto, confiante de que ninguém o apanhará.
Carmen cheira a tabaco; talvez María ache que a sua filha cheira a uma
casa com dois quartos, ou talvez pense apenas na estranheza que é dormir
lá, com ela.
Carmen fez um ano há umas semanas, e María está pela primeira vez de
regresso a casa desde que se foi embora: ia ensaiando no autocarro as
palavras com que descreveria as ruas largas de Madrid, e os parênteses
que abriria para não se referir às zonas das quais os tios lhe pediam que
nunca se aproximasse. Tentou conversar com a mulher que viajava no
assento ao lado, falou do tempo e das diferenças entre as duas cidades – as
avenidas, os espaços que ninguém lhe recomenda –, mas o que María
recebeu foram balbucios, monossílabos, um ou outro lugar-comum.
Receava o tempo vazio, precisava de o ocupar de alguma forma.
Adormecia nalgumas partes e noutras reparava na cor da paisagem a
transformar-se: o amarelo áspero da terra queimava mais quanto mais para
o Sul. Enquanto a sua filha dorme a sesta, María tentou descansar, mas
acabou por somente deitar-se de lado com os olhos abertos, o olhar fixo na
respiração da bebé. Entretém-se a reconhecer os seus traços nos de
Carmen. Recordava as mãos macias, mas não o queixo rude que a deixa
tão perturbada; o cabelo de Carmen ainda mal cresceu – moreno, igual ao
do seu pai –, e o pouco que tem é tão fino que María evita acariciar-lhe a
cabeça, não vá partir-se. É mais pequena do que María achava – muito
mais do que o menino da casa –, e ainda não lhe desinchou a barriga.
Herdou a pele branquíssima da família da sua mãe, presume ela, e não tem
dificuldade em imaginá-la com menos alguns anos do que a idade que
María tem agora, as veias a marcarem-se-lhe nos braços e no peito. Deseja
à filha mais sorte.
Na sua memória, o tamanho de Carmen encaixa nos seus braços prontos
a recebê-la; mas hoje carrega a filha apoiando-a na anca, pois aquele gesto
já não chega. Daqui a muitos anos, María pensará, achando alguma graça,
que a memória gere a sua própria ficção: como é que o que não se gravou
em nós porque o consideramos insignificante, ou porque não satisfaz as
nossas expectativas, se vê então substituído por aquilo que desejaríamos
que tivesse sucedido. Durante o dia, cozinha e limpa e passa a ferro e
obedece, mas à noite dedica-se à memória. Antes do sono, ensaia a planta
da casa dos seus pais: ao entrar, um pequeno vestíbulo onde pendurar os
casacos, à esquerda o quarto dos pais – a cabeceira da cama de madeira, a
persiana quase sempre descida; quando lhes entregaram a casa, esse
espaço era ocupado por uma sala, e María não tem dificuldades em rever a
obra rápida com que se ergueram dois tabiques –, à direita o quarto que
dividia com os seus irmãos Soledad e Chico – e antes com os mais velhos
–, ao fundo a cozinha com a mesa grande, mais ao fundo o pátio com a
casa de banho; no início, um buraco no chão, o peso do balde a
transbordar de água ao canto, não te esqueças de o esvaziar primeiro e
depois enchê-lo para quem vier a seguir. Desmontaram a sua cama, e esse
lugar está agora ocupado pelo berço da menina: o mesmo que fora dos
seus sobrinhos agora quase adolescentes, o mesmo do seu irmão mais
novo. Já de olhos fechados, permite-se corrigir algumas situações: não
entra naquele autocarro, não devolve o cumprimento àquele homem, não
entra naquela casa.
María tem também saudades de algumas fotografias que decidiu não
levar consigo para Madrid; apagam-se-lhe os rostos, parece-lhe agora que
assim os teria mantido consigo. Guardou na mala uma fotografia antiga
onde aparecia com a irmã e o pai no pátio da casa e entretém-se às vezes a
identificar algumas marcas que o preto e branco realça na parede. Poucos
meses depois de chegar a Madrid, a sua mãe enviou-lhe uma carta ditada a
Chico: achou piada à sua letra esmerada nas primeiras linhas, acelerando
no segundo parágrafo, a caligrafia já disforme na despedida. A sua mãe
incluiu mais uma fotografia: nela, um dos seus sobrinhos posava diante de
um bolo de aniversário, e Chico estava a encher de merengue o nariz de
Carmen, que protegia no seu colo e cuja cabeça segurava com ternura.
María pô-la na sua mesinha de cabeceira. Supôs que lha teriam enviado
com esse intuito. No entanto, era também como advertência à tia: que não
se deixasse confundir pela docilidade com que madrugava, com que
preparava o jantar ou limpava as casas de banho ao regressar do trabalho.
Aquela fotografia contava a verdade.
Quando a menina acorda, María fixa-se nos olhos de Carmen: duas
cabeças de alfinete pretas. A bebé espreguiça-se e María reage: senta-se na
beira da cama, estica o pescoço e daí olha para o berço. Habituou-se a dar
mimos ao menino da casa, a algumas brincadeiras com a filha da vizinha;
mas Carmen, que é sua, parece-lhe de outra. Carmen mexe-se como se
quisesse endireitar-se: agita as pernas, um movimento levíssimo primeiro,
seco quando não obtém resposta; mexe os braços, procura o olhar de
María. Ela levanta-se por fim, aproxima-se do berço, toma a filha nos
braços – o cheiro a tabaco – e abraça-a. A menina não reage ao seu
carinho: deixa de mexer as pernas, mas estica o bracinho direito. María
percebe que Carmen está talvez a apontar para um peluche a desfazer-se
no canto do quarto. O orgulho que María sente nesse momento: emociona-
se ao identificar Carmen com inteligência suficiente para ativar as suas
lembranças e encontrá-la nelas, tão madura que pretende mostrar-lhe os
seus brinquedos. Será que é isso que acontece? Será que é isso que sucede,
ou María está a projetar na bebé aquilo que imagina? Sem largar a filha,
María pega no peluche e entrega-lho, mas Carmen recusa-o com uma
palmada: não há lágrimas, não há gritos, embora os gestos da menina
adquiram brusquidão. María pega-lhe na mãozinha esquerda e aproxima-a
do seu peito; designa-se como «mamã», repete «mamã», consciente
inclusivamente de que a filha não a distingue de uma desconhecida. Mas
Carmen continua a esticar o braço direito, apontando para algo em que
María não repara:
– Que é que tu queres, Carmen?
É tão evidente que Carmen não entende as palavras de María como que
María não entende os gestos de Carmen. Deverá avisar alguém, pedir
ajuda? Chico só regressa do trabalho à noite; María imagina o seu pai
deitado na cama, a sua mãe sentada na cozinha, Soledad a costurar do
outro lado da mesa. De que precisará a filha? A bebé estende o braço,
aponta para uma cómoda baixa e larga. Explicaram-lhe que a primeira
gaveta é de Carmen, as duas seguintes de Chico, as outras duas de
Soledad, e ainda estão guardadas na última algumas coisas de María.
Houve uma altura em que o seu espaço era ocupado por alguma roupa, um
caderno, uma pulseira larga de plástico que encontrou na rua e que usou
uma ou outra vez; deitou fora a pulseira, o resto guardou na mala. Mas a
bebé, agora a bebé: a bebé aponta para a cómoda em cima da qual a sua
mãe – a mãe de María, a avó de Carmen – lhe trocou a fralda de manhã.
María percebe o seu erro: o que Carmen está a exigir não é carinho nem
atenção, mas rotina. Carmen está a exigir que alguém a tome nos seus
braços após acordar da sesta, a tire do berço e a deite no fraldário
improvisado. Não interessa quem: se a mãe da sua mãe, se o irmão da sua
mãe, se a irmã da sua mãe, se a sua própria mãe. Hoje é María quem trata
do assunto, mas quando regressar a Madrid será outra pessoa qualquer a
encarregar-se disso, e Carmen aceitá-lo-á com o mesmo silêncio. Carmen
não se assusta com os desconhecidos. Habituou-se a receber as noites nos
braços das vizinhas que se reúnem à porta de casa, por isso também não a
assusta a mulher desconhecida que repete «mamã» e teima em abraçá-la e
lhe oferece um peluche. Em cima da toalha, Carmen para de se mexer,
levanta um pouco as pernas – como em todos os dias, como a todas as
horas –, resmunga porque María omitiu algum passo na limpeza. Quando
considera que a menina já está pronta e consegue pôr-lhe a fralda, María
devolve Carmen ao berço e reclina-se na cama do seu irmão. Antes de
fechar os olhos, María tem a sensação de que Carmen – corpo de bebé
paralelo ao seu corpo adulto, as duas à procura do sono – a observa.
*

À porta da casa, três e quatro mulheres, primeiro, depois mais: até oito
ou nove. As vozes confundem-se umas com as outras, desprovidas de tons
que permitam distingui-las, com as mesmas palavras em bocas diferentes.
As vizinhas reúnem-se todas as noites no passeio; peregrinam com as
cadeiras que cada uma traz de casa, às vezes partilham algo para jantar na
eventualidade de o marido regressar tarde. É um hábito que nasceu nos
primeiros anos do bairro, era María muito pequena, ainda antes de os
irmãos mais velhos se irem embora e de os mais novos nascerem. Nesses
anos, faziam frente à noite com velas, pois continuava por instalar a
iluminação das ruas, e cravavam as cadeiras na terra. Chico já se lembra
mal das idas à fonte com a mãe. Agora, o bairro é outra coisa, embora
persistam as ruas que se enlameiam com a chuva: prometeram resolver o
assunto, confia Chico, foi o que ouviu no café há umas semanas. María
não fica com a sensação de que tenha havido muitas mudanças neste
último ano, por mais que Chico insista nas várias coisas que ela não
reconheceria se a acompanhasse num passeio.
– Não chego ao balcão.
– Não acredito.
María deixa escapar uma risada quando Chico lhe conta: por causa da
sua altura, é muito baixo, os clientes não se apercebiam de que ele lá
estava nos primeiros dias. O seu irmão está a exagerar: a realidade parece
sempre mais grave nas palavras de Chico, mas mais feliz também quando
é a vez de tal coisa, e María diverte-se com o modo como ele descreve o
silêncio de Soledad, as curiosidades relacionadas com Carmen ou as
conversas das vizinhas.
– Só se via a minha cabeça nos primeiros dias, mais nada: uma cabeça
de criança a servir-lhes uma garrafa. Até que amanhei um estrado com
vários caixotes de refrigerantes, e agora já meto meio corpo de fora.
Chico perdeu o nome em favor da alcunha2. Ele próprio se apresenta
assim, Chico, tal como o pai se habituou a tratá-lo desde que nasceu: o
filho mais novo, um bebé louro com mais ossos do que carne, de olhos
grandes e claros – iguais aos de María –, apostado em não crescer. Aos
seis, aparentava ter pouco mais de quatro anos; aos treze, agora, nem
sequer onze. María sempre confiara em que Chico seria o único irmão que
conseguiria sair do bairro: gostava de ir à escola, agradavam-lhe os
números. Ficou desiludida ao saber que ia largar as aulas para dar uma
ajuda no snack-bar de um dos mais velhos. Era o que achava que ele dizia
ao tentar distinguir as palavras do seu irmão por entre o barulho das
mulheres, cinco ou seis ou sete, o seu paleio da janela. Está cá? Está cá.
No quarto, com a menina e o irmão. Sempre veio? Eu não conseguiria. Eu
não conseguiria ter ido e deixá-la aqui, como um traste esquecido. Eu não
conseguiria era ter feito aquilo. Aquilo o quê? Fala baixo que a mãe ainda
te ouve. Ainda te ouve ela. O que foi?! Sempre veio? Antes a Soledad,
sempre tão calada, mas que tranquila. E o mais novo. Eu disse-o à mãe, a
mãe não me quis dar ouvidos. Cala-te lá, o mais novo, que é uma
criança?!
– Não lhes dês ouvidos – consolou Chico, confirmando as suspeitas de
María: uma passa rápida, outra, mais uma, diante do berço de Carmen,
agora nos braços da mãe.
– Desde quando é que tu fumas?
– Desde que fui para o bar. Passavam a vida a rir-se de mim. Uns
chamavam-me Chica. Não gosto de tabaco, mas assim pareço mais velho.
Que é que achas? Pareço?
– A menina enche muito a paciência?
– Eu passo o dia inteiro fora. Levo o trabalho da Soledad para o centro à
mesma hora de sempre, e ao voltar subo a ladeira e vou para o bar. Na
verdade, fico para lá sozinho com o Toñi, mas antes assim. Depois do
almoço, a coisa acalma, às vezes alguém toma um café, e depois os
homens com as cartas e o dominó, uns quantos jantares e o regresso a
casa. A menina está quase sempre a dormir. Não é muito divertida, mas é
espertíssima. Falo com ela às vezes, e ela ouve-me como se me
compreendesse. Prefere estar comigo do que estar com a Soledad, lá isso é
verdade.
Calam-se os dois, não vá a irmã ouvi-los. Mais do que um elo, Soledad
pressupõe uma elipse entre eles: nasceu depois de María, antes de Chico, e
a ambos parece vinda de outro planeta, sem ter nada em comum com
ninguém. Sentada na cozinha, costura a ouvir rádio a toda a hora, e mal
para para almoçar e descansar. Às vezes interrompe o seu trabalho antes
da hora e brinca a bater palmas à frente de Carmen, esforçando-se por
fingir carinho, mas logo se aborrece e regressa ao trabalho. Chico apaga o
cigarro e estica os braços para que María lhe passe Carmen.
– Foram-se embora do bairro, María.
– Quero lá saber.
– Está bem. Mas enfim: foram-se embora. Tu poderias voltar. – Chico
emudece para o caso de María querer responder, mas a sua irmã fica
calada. – Como é Madrid? Eu gostaria de lá ir um dia. E também de férias.
– A casa dos tios não tem muito espaço. No início, parecia-me tudo
muito estranho, porque mal os conhecia… Nos primeiros meses, dormia
na mesma cama com a prima, mas depois do casamento dela fiquei
sozinha no quarto. Eu também faço como tu: acordo e vou apanhar o
autocarro, pois a casa fica longe. A família é simpática e pagam-me a
horas. Acham bem toda a comida e folgo ao domingo, porque eles vão
para fora. Tenho sorte, é algo que não acontece com quase nenhuma das
raparigas que servem no prédio: muitas dormem lá, outras trabalham todos
os dias. A família tem um menino pouco mais velho do que a Carmen, e é
caprichoso, mas é a mãe que fica com ele. Tenho medo de que, com o
passar dos anos, o menino cresça e deixem de precisar de mim.
– Nessa altura também podes voltar, não é?
– Ou levar a Carmen.
Distingue um esgar de desgosto em Chico: como se a sua intenção desse
cabo da rotina do irmão. É demasiado tarde para Carmen não estar a
dormir, e todavia María permite-o porque as piadas de Chico arrancaram a
primeira gargalhada que ouve a menina dar em todo o dia. A conversa da
rua não para, e María percebe que algumas das vizinhas continuam a falar
sobre ela, a vida que leva fora, por algum motivo correram com ela assim
que puderam, ainda bem que a menina ficou por cá.
– Tens saudades da escola, Chico?
– Agora já não, no início, sim. Não gostava do bar. Já imaginaste? Ter
sido professor. Quando for adulto, vou retomar, se sair do bar e tiver
tempo. Sim, tenho saudades dos livros que me emprestavam, porque há
noites em que fico aborrecido. Alguma coisa terei de inventar.
A voz de Chico cresceu de repente. María pensa nele, pouco mais de
treze anos, alerta para que o vizinho não se vá embora sem pagar o que
consumiu, a ditar os pedidos à sua cunhada, a almoçar de pé as sobras do
menu do dia, de cigarro na boca. Chico conserva o sorriso perante o resto,
mas María pensa também no que ele pensará todas as noites, na sua cama
pequena, enquanto a bebé dorme e Soledad costura calada.
– Não vais acreditar como ela chora à noite! Lembras-te dos primeiros
meses? Bom, é o contrário disso. De repente vamos no sétimo sono e ela
acorda-nos com um grito. A Sole tapa a cabeça com a almofada, por isso
calha-me sempre a mim. Os bebés têm pesadelos?
Pouco viveu com Carmen quando ela nasceu; o que sabe é-lhe contado
pelo telefone e por uma ou outra carta, ou nos bocadinhos em que a dona
da casa sai para passear sem o menino, e é daí que María conhece o aroma
doce, tão diferente do da sua filha. A bebé cheira a tabaco, como Chico,
com as suas unhas a amarelecer devido à nicotina. A algaraviada da rua
não para, e mesmo à beira do sono – tal como pouco depois de dar à luz:
Carmen no berço, ela e o seu irmão na cama pequena, Soledad como uma
pedra na outra cama – ouve as vizinhas a falarem sobre si. Às vezes
distingue a voz da sua mãe, evitando a conversa ou esforçando-se por
abri-la a um tema novo. Foram-se embora do bairro, María ouve uma das
mulheres dizer, a mulher soube. Como é que continuas aqui, a cruzar-te
com ela todos os dias, na mesma rua, com os mesmos olhos? Era o
mínimo. María sente o corpo magro de Chico a descolar do seu, e o seu
irmão levanta-se para fechar a janela.
– Está frio – justifica. – Não vá a menina constipar-se.
Ouve Chico a remexer na sua gaveta e a sair do quarto. Soledad abre a
porta com cuidado, troca de roupa às escuras, deseja boa-noite, faz ranger
o estrado com o peso do seu corpo. Silêncio: as vizinhas retiram-se para as
suas casas, algumas cadeiras a rasgarem no passeio o seu caminho de
regresso. Chico mete-se na cama e põem-se costas com costas, ele virado
para a parede. O seu irmão cheira a tabaco, pensa María, antes de Carmen
acordar a chorar.
María começa a falar consigo mesma, os lábios em silêncio, enquanto a
sua filha e os seus irmãos dormem no quarto: nota o calor das costas de
Chico, o motor no peito da sua filha, a respiração árdua de Soledad. Eu
quero dizer muitas coisas, mas não sei organizá-las. Faz o mesmo que
noutras noites: ensaia hoje as palavras que diria à sua mãe, e a Carmen
quando esta entender. Retoma as situações que viveu, mesmo aquelas que
não parecem importantes, do princípio até ao fim; corrige alguns gestos e
quase todas as decisões, prepara-lhes finais felizes que não correspondem
à realidade. Por exemplo, Carmen: nas histórias em que María pensa antes
de adormecer, Carmen não existe. Nem María ouve a voz do pai nem
conhece ainda cidades cinzentas, ou conhecê-las-á dentro de anos, de
visita. Só que Carmen existe de facto, fende a noite com o seu choro e
acorda-os, a si e a Chico, e Soledad – tal como a avisaram – esconde a
cabeça sob a almofada, para fingir que está a dormir. Carmen existe, olhos
como bichos que espezinharia umas vezes, noutras pontinhos de uma
figura que se entreteria a ligar, e María lembra-se de que talvez pudesse
regressar à cidade com ela, e pedir à tia que ficasse de olho nela enquanto
trabalha. María pensa para si: eu quero dizer muitas coisas, mas não sei
organizá-las. Estão na minha cabeça, levo o tempo todo a pensar nelas,
mas perco-as assim que me chegam à boca. Eu percebo que me enganei e
que me envergonhei desde logo a mim e depois a vocês por causa da
minha cabeça de vento. Se não enviasse para cá dinheiro e ficasse com
tudo para mim, talvez pudesse dar algo mais aos tios, poupar o resto e
vivermos juntas, eu e a Carmen, um dia. Falem com os tios, eles que
digam: não saio mais do que alguns domingos com a prima e o marido,
volto sempre do trabalho para casa. A Carmen não sabe quem sou e eu não
conseguiria descrevê-la. Quando me perguntam pela sua cara, pelas suas
expressões, eu conto como é o retrato que tenho na mesinha de cabeceira.
A minha filha não se mexe, não fala comigo, não sabe quem sou. Está
presa na fotografia.
Não fala com a mãe. Ninguém fala com a mãe, na verdade, nem com o
pai: cada um exerce o seu papel, sem alterar o que os outros esperam
deles. Os pais fazem de pais, dispõem e mandam, e os filhos fazem de
filhos, obedecem; a culpa de se esquivar a essa lógica é de María. Desde
que regressou, a sua mãe limitou-se a contar alguns pormenores sobre
Carmen – não te assustes com esse barulho, porque descobrimos que não é
nem sono, nem fome, nem dores: gosta de se ouvir, mais nada –, a
lamentar que Chico passe as horas no bar e se esqueça de trazer gelo para
o frigorífico, a recriminar todas as horas de sono do seu pai. María
também não fala com o pai: assim que entrou em casa, dirigiu-se ao quarto
para o cumprimentar, beijando-lhe a testa. Quis perguntar-lhe qualquer
coisa, como estava, falar-lhe do seu irmão – vive com ele em Madrid,
mandou-lhe cumprimentos –, mas Soledad chamou da cozinha, e quando
María saiu o pai pediu-lhe que fechasse a porta.
*

Vislumbram-se folhas secas nalguns vasos do pátio: María supõe que a


sua mãe não consiga regá-las a todas, e o sol bate de chapa. Às vezes, no
bom tempo, ela e Soledad iam buscar as cadeiras e costuravam: a roupa no
colo, para evitarem sujá-la, e cuidado para que as agulhas e as linhas não
caíssem ao chão. Durante uma visita à oficina, reparara nas máquinas de
costura – e nas mulheres que as manobravam, rápidas, rápidas –, no seu
barulho de batalha, mas no lavor que era o da sua irmã e o seu não ouvia
mais do que um queixume de Soledad ao picar-se, ou a briga que lhes
chegava de um pátio vizinho. Quando algo lhes fugia – um vestido a
tombar nas pedras minúsculas, finíssimas, que resvalava e não
conseguiam suster, ou algo pior: a agulha a perder-se entre elas –,
endireitavam-se as duas como se o tecido, o cobre ou o metal lhes
acertassem na queda. Perante os remorsos de María, Soledad recriminava-
a, e perante os remorsos de Soledad, ela mesma emudecia. Quantas linhas
pretas e brancas, verdes ou azuis, se teriam enfiado já entre a gravilha? E
alfinetes? Carmen brincaria uma ou outra vez no pátio, e María adivinhou
a birra futura da sua filha depois de se picar com um deles no rabo ou na
palma da mão. Quando a família se instalou na casa, o pai de María
simulou com pedras brancas, grandes, um caminho até à casa de banho –
cruzava todo o pátio para evitar a terra e a lama quando houvesse, mas
nunca conseguiu ir além do desenho –, e os seus irmãos mais velhos
cobriram o terreiro quando se foram embora: noutras casas com cimento,
contaram-lhe, e na da frente com ladrilhos diferentes; os filhos
trabalhavam como pedreiros, e um dia traziam uma peça da obra e noutro
dia outra, da mesma obra ou da obra ao lado, diferentes umas das outras,
um puzzle desajeitado. A solução da casa dos seus pais, mais do que
sublinhar a sua humildade, falava da sua despreocupação: outras vizinhas
tinham perguntado à sua mãe porque não plantava algumas árvores de
fruto, como elas, em vez dos vasos espalhados ao longo da parede de um
branco sujo, alguns da altura dos filhos que já lá não viviam. María nunca
ouviu a resposta da mãe – o silêncio, uma ou outra evasiva, antes aquilo
do que nada –, mas ouviu os comentários dentro de portas, a satisfação
quando as raízes levantavam o cimento das vizinhas mais ambiciosas, e
elas tinham de as arrancar e reparar os estragos; o deleite da mãe quando
as vespas rondavam as parreiras nos outros pátios e davam cabo dos
cachos, o cheiro das cataplasmas de alho para aliviar as picadelas vinha
até sua casa. Nem dormir sossegadas, murmurava, nem sequer dormem
sossegadas. Mas se as vespas à noite não distinguem nada, explicou
Chico, tanto faz o que essas mulheres plantam no pátio; o problema põe-se
de dia. María cravou os olhos na sua mãe, o riso a esmorecer.
Chico insiste em que o bairro mudou completamente, e, na parte que
María fez a pé desde a paragem do autocarro urbano até à porta de casa –
ninguém foi esperá-la para a ajudar com a mala –, pensou que o seu irmão
estava a exagerar. No entanto, indo passear com Carmen até à praça,
reconhece que ele tem razão, embora por outros motivos: ao recriar
aquelas ruas, adapta-as às ruas em que vive agora. Substitui um traçado
em quadrícula – paralelas exatas, exatas perpendiculares – por outro:
pedras ali, terra aqui, dirigindo-se na realidade para um centro, na
diagonal. É algo que María percebe ao repetir o caminho que Soledad e
Chico e ela tanto apreciavam certos sábados de manhã, certos domingos,
assim: elas de braço dado, ele a adiantar-se. Carrega agora Carmen junto
ao peito, a menina nos seus braços, de costas, e, quando fica esgotada com
o peso, apoia-a na anca; à porta de uma das casas, uma rapariga da sua
idade vai brincando com duas crianças, uma delas um pouco mais velha
do que Carmen, a outra um pouco mais nova. Na praça, a igreja da
paróquia, a sede da associação de moradores; a filha da vizinha do lado
frequenta um curso de datilografia, cruzaram-se à saída de casa, chamou-
lhe madrilena. Madrilena!, poucos anos mais do que Chico, perguntou-lhe
se se cruzara com algum artista famoso. María respondeu que não, que só
trabalha, e a vizinha ficou desiludida que tivesse mudado de cidade para
isso. Ao afastarem-se, Carmen ficou a fitá-la e ia batendo no queixo de
María, como que a dar-lhe razão.
No bairro dos tios, em Madrid, os carros – de quem os tem – não ficam
atolados no lamaçal, circulam e batem e aceleram sobre o empedrado. As
raparigas da sua idade são parecidas consigo e com Soledad, os pais com
os seus pais; ouve sotaques parecidos com o seu. No entanto, embora
sendo como a rapariga do curso de dactilografia e como a rapariga que
entretém os filhos à porta de casa, sente-se diferente: mais felizarda do
que Chico ou do que Carmen, até. Pensa em Soledad: durante quanto
tempo terá de costurar na cozinha, ou de ir sozinha à praça ao fim de
semana para apanhar ar? A escola em que ela e os seus irmãos estudaram
já não chega para quem nasce no bairro. Acontecerá o mesmo com
Carmen? Ensiná-la-á Chico a ler e a fazer contas à noite, sentados na cama
para não acordarem os avós? Por essas ruas que mal reconhece, uma casa
e uma loja e um café, uma casa e outra casa e outra casa, umas iguais às
outras, María vai passeando Carmen, não com o sossego de desfrutar um
pouco dela antes de voltar para casa, mas com a intenção de que alguém
conhecido se cruze com elas, a trate pelo nome, lhe pergunte como está. Já
não sabe quem é ninguém: esqueceu-se das caras, dos nomes. As casas
esgotam-se e a única coisa que a espera é o campo, mais terra, que mais
para lá disso? Pergunta a uma mulher como voltar para casa. E a tua casa?
Onde fica a tua casa?
*

María cobre o móvel com uma toalha e deita a menina em cima da


cómoda: cheira a cocó, sem dúvida, e também percebe pelo tecido
empapado que terá urinado durante o passeio. O menino da casa onde
trabalha queixa-se, fica incomodado com a sensação de humidade, mas
Carmen aceita-a e espera que alguém se aperceba de que está lá, de que já
é hora de ser mudada. Pernas para cima: ordena-lhe María, levantando o
vestidinho e desmanchando a fralda com um pouco de diarreia; perguntará
à mãe se costuma acontecer e, caso contrário, se terá ideia do que Carmen
comeu. Afunda na água quente a mão, esfrega a barra de sabão e limpa as
nádegas sujas. Seca-a com toques leves da toalha, retira a luva e depois
uma camada fina de pó de talco a cobrir-lhe a pele. Essas pernas para
cima, e diz o seu nome. Essas pernas para cima, Carmen. Por favor,
facilita-me a vida. Boa. A menina levanta as pernas e María agarra-lhe nos
tornozelos; sem medir a sua própria força, tenta elevar o corpo da bebé o
suficiente para encaixar o tecido entre o móvel e o corpo, mas a menina
queixa-se. Reage de início com um lamento suave, e depois o choro, a
fanfarra. Soledad pergunta, o pai reclama do que se passa, a mãe deve
estar à porta sabe-se lá de que casa e não ouve. Soledad vai-se embora
sem que a irmã lhe responda, recrimina María por não a ajudar a costurar,
por mais que agora os visite. O que se passa é que a menina é uma criança,
e chora. María solta os tornozelos de Carmen num ato reflexo e não se
apercebe se as pernas bateram contra a madeira; entre os barulhos, não
distinguiu a pancada seca da carne macia. A menina permanece em cima
da cómoda a choramingar; talvez esteja incomodada com a madeira
debaixo do corpo, pelo que María a toma nos braços e transfere a toalha
grande para a cama de Chico. Estica-a a custo, e deita Carmen em cima
dela. Pernas para cima, Carmen, por favor. Pernas para cima e não as
deixes cair. A menina parou de gemer, embora as lágrimas se confundam
com o ranho e lhe tremam os lábios. Carmen, por favor, não compliques.
Carmen não se mexe, então María tenta enfiar-lhe o tecido debaixo do
corpo, e consegue. Está a anoitecer muito depressa – demora-se minutos e
minutos em cada gesto – e já mal distingue onde dar um e outro nó. Uma
mão afasta a sua: Estás cá, mas que rápido, Chico.
– Sim, o Toñi disse-me para sair mais cedo. Contei-lhe que te ias
embora amanhã logo pela manhã.
María desaba em cima do colchão e senta-se no lado da cama que
Carmen deixa livre. Observa a forma como o irmão trata da bebé, analisa
que gestos dele se diferenciam dos seus. Chico trata Carmen como se
fosse um brinquedo: pega-lhe nos pulsos e junta-lhe as palmas das mãos
num aplauso, tenta assoar-lhe o nariz com um lenço enquanto cantarola
para ela. María chama a atenção de Chico para isso, e ele explica-lhe: tu
trata-la com medo, e ela sente. Carmen sorve o ranho, abre os braços e
fecha-os à volta de Chico. María ouve uma palavra na voz da bebé:
ninguém lhe disse que Carmen falava. A menina agarra-se a Chico, e
María aproxima-se para ouvir bem o que ela está a dizer. Uma palavra na
voz de Carmen, estará a identificar María? A cabeça da bebé no ombro de
Chico, Carmen a chamar-lhe mamã.

2 Chico, em espanhol, significa simultaneamente rapaz (substantivo) e pequeno (adjetivo). [N. do


E.]
O REINO
Córdova, 1998

Que aconteceu no dia anterior ao sonho que Alicia tem todas as noites?
Nesse dia, acordou entre as queixas da sua mãe, vestiu-se sem vontade de
ir para a escola – as calças de ganga, as sandálias, uma T-shirt de uma
marca desportiva –, regressou a casa. Não faltava muito para as férias,
para uma alteração, para a mudança para o colégio. É um relato cruzado
por muitos corpos: a sua mãe minúscula, a sua irmã minúscula, o seu pai
de costas largas, os quase adolescentes que passeavam pelo pátio durante
o recreio. Não conhece as suas caras, nem praticamente nenhum dos seus
nomes. No sonho que Alicia tem todas as noites, os seus corpos não
aparecem: aparece, sim, o corpo do pai. Será ele quem se estampa contra a
árvore e quem coxeia antes de se enforcar, ou será uma imagem do pai
recriada por si? Para compreender o dia que o seu pai viveu antes de
decidir tudo – antes de escolher uma estrada pouco movimentada, acelerar
numa curva, calcular mal e ficar numa dobra da colina, sem ainda assim
cair no vazio, coxear antes de se enforcar –, Alicia percorre muitas vezes e
um por um os seus gestos, as suas palavras.
*

Do centro da sala conseguia observar a rua sem que ninguém a


avistasse. Acontecia naquela casa, naquela divisão imensa: a maior em que
Alicia já estivera. Se aparecesse no terraço, seria facilmente descoberta: o
elástico vermelho a apanhar-lhe o cabelo claro entre os vasos da mãe.
Porém, situar-se no centro da sala permitia-lhe perceber quem cruzava a
praça, antes do prédio; antecipar-se aos seus passos, ler o seu futuro.
Colocou-se no ponto exato debaixo do candeeiro quando o relógio
marcou as cinco da tarde. Combinara com as suas colegas de turma que
não se apresentariam antes dessa hora, e estava confiante num pequeno
atraso porque Celia nunca era pontual: vivia longe, na ponta do bairro,
perto da estrada para Madrid, e não calculava bem as distâncias. Apesar
disso, assim que o relógio marcou a hora combinada, Alicia levantou-se
do sofá, desligou o televisor e pôs-se a espiar. Passados dez minutos,
apareceu Inma, e pouco depois Celia, em passo acelerado. Parou antes de
atravessar, apoiando-se no poste de iluminação para recuperar o fôlego.
Conversaram entre si, apenas duas ou três frases, e encaminharam-se para
casa de Alicia. Daí a poucos minutos, a campainha lá de baixo tocou.
Porque é que Alicia escolheu Inma e Celia para fazerem aquele trabalho
da escola? Teriam obrigatoriamente de ser três, elas duas andavam sempre
juntas, e Alicia não conseguira encaixar-se em nenhum grupo.
Aproximou-se de Celia, duas carteiras à frente da sua, e ela recebeu a
proposta com resignação, quiçá com desconfiança; já Inma respondeu com
entusiasmo. Nesse momento – naquele dia –, Alicia não ficou preocupada
com a reação de ambas: deu a questão por resolvida. Porém, na manhã
seguinte, Celia explicou que em sua casa não podia ser, porque vivia lá
muita gente, e Inma disse que na sua também não, pois a avó estava
doente e precisava de sossego. De maneira que Alicia, que evitara contar
coisas a seu respeito para lá do necessário, acabou por abrir a sua imensa
sala àquelas raparigas insignificantes.
Mas, no fundo, Alicia estava a mentir: queria saber mais sobre a
determinação de Celia em proteger Inma. Inma, tão ingénua, alvo das
piadas porque acreditava sempre em tudo, com as bochechas coradas ao
mais leve comentário; e Celia disposta a bater em quem gozasse com a sua
amiga, não com o zelo das íntimas, ou das irmãs mais velhas, mas com
aquele cuidado que se espera das mães. Alicia ainda hoje pensa em Celia,
a tentar respirar após a corrida para fingir a pontualidade, e nas suas
precoces ancas largas e pergunta-se o que lhe terá acontecido na vida: se
ela e Inma terão mantido a amizade, se já terá parido três ou quatro filhos,
se as suas vidas serão parecidas. Alicia lembra-se de que Celia gostava
muito de desenhar; entretinha-se a povoar as margens dos manuais
escolares com flores delicadas, e disfarçava os lápis de cor escondendo-os
no colo, plantando esses jardins entre aulas de línguas ou de história. De
Inma, por sua vez, dificilmente poderia dizer mais do que isto: apanhava o
cabelo numa trança, passava a vida a falar da avó e do irmão mais velho.
*

Celia e Inma já tinham fitado noutras ocasiões o janelão da casa de


Alicia: desde que chegou à turma, em setembro, quase todos os grupos de
raparigas se tinham dirigido à praça em algum momento, e tinham parado
– de braço dado umas com as outras – diante do prédio. As mesmas caras
repetiam-se na escola ano após ano, de maneira que alguém novo – porque
era repetente, porque a sua família se mudara – arrastava uma lenda
misteriosa. Para Hashim tinham inventado um passado conflituoso, a
residência num orfanato de filme; no entanto, vivia com os pais e os
irmãos nos blocos novos, à frente do centro comercial. Yoli, que já antes
repetira vários anos, não passara porque o seu pai fugira com uma colega
de trabalho, e tinha dificuldade em entregar os trabalhos a horas e
preparar-se para os exames; nunca descobririam se assim teria de facto
acontecido, pois Yoli, a mãe e um par de irmãos mais novos, gémeos,
ruivos como ela, partiram da cidade assim que o período letivo terminou.
Naqueles filmes que se passavam no verão, as crianças construíam uma
casa na árvore com os pais, e trepavam por ripas de madeira cravadas no
tronco, e refugiavam-se lá, longe dos adultos. Inma, Celia, Marta, Rosi: o
seu bosque eram as quatro delgadas árvores do parque, a terra amarela, os
balouços metálicos impossíveis em junho. Inventar histórias sobre as suas
colegas era a sua casa na árvore.
Ainda não tinham apurado nenhuma história sobre Alicia. Tudo nela as
desorientava: escrevia sem dar erros de ortografia, recordava datas e
nomes de personagens históricas, não bocejava na aula. Desorientava-as
que tivesse repetido o ano, e desorientava-as sobretudo o que acontecia
fora da sua cabeça: que destinasse umas sapatilhas diferentes a cada dia da
semana, que se preocupasse em exibir a marca das suas calças de ganga.
Alicia espicaçava assim a curiosidade: subia a T-shirt até à cintura ao
sentar-se, queixava-se no recreio de que os novos Nike lhe roçavam o
tornozelo. Celia pensava na roupa que a sua mãe lhe comprava na loja de
oportunidades da avenida, nas suas calças iguais às de tantas outras alunas
do liceu, daquelas marcas que trocavam uma letra só para se confundirem
com as da moda: Zappa, Tila. Inma nem sequer estreava roupa: herdava-a
de uma prima.
Não era a primeira vez que Inma e Celia, Celia e Inma, juntas desde os
anos do infantário, paravam junto da passadeira em frente do prédio onde
Alicia vivia, e se esforçavam por distinguir algo – a silhueta da mãe a
servir o lanche, o sofá onde o pai se sentaria – pelo janelão. Nunca tinham
conseguido: acabaram por se fartar de esperar que algo rebentasse, a
realidade ou a imaginação, e alternaram o seu trajeto. Sabiam que Alicia
tinha uma irmã mais nova, Eva, e que ambas se mudariam no ano seguinte
para o colégio dos carmelitas, pois os seus pais tinham comprado um
apartamento na zona melhor do bairro, naqueles edifícios com garagem e
piscina. Nos intervalos, fixavam os olhos em Eva, que dirigia as danças
das suas colegas e inventava passos para as canções da moda. A mãe de
Alicia não trabalhava, ou trabalhava em casa, embora também tivessem
ouvido dizer que às vezes ia lá uma mulher fazer as limpezas, pois Alicia
mencionava-a nas suas conversas: esta tarde não posso fazer os trabalhos
de casa porque vai lá a rapariga, a rapariga tirou-me os bonecos da estante
para limpar o pó.
*

Um toque agudo: a memória de Alicia guarda-as ainda mais pequenas;


Inma, uma bonequinha de porcelana para exibir no móvel da sala; Celia,
com um corpo de menina que se ajustaria à sua idade. Um toque agudo, as
queixas da mãe de Alicia vindas do quarto, tentando manter-se
adormecida, e a euforia da sua irmã por receber visitas. Alicia esperou
atrás da porta até ouvir o clique do elevador ao chegar ao quarto piso, e
abriu-lhes a porta antes que Celia carregasse na campainha.
– A minha mãe está a dormir a sesta.
Alicia achou piada – ou está a achar piada agora, passados estes anos,
mais próxima em circunstâncias daquelas meninas do que da adulta que
deveria ter sido? – ao esmero com que vinham vestidas. Celia conservava
as mesmas calças de ganga da manhã, embora tivesse trocado a T-shirt de
publicidade a uma loja de toldos por uma camisa branca sem mangas,
bordada em renda, talvez encontrada no armário da mãe. A Inma tinham
posto um vestido de verão, aos quadrados e de alças; a parte de cima
ficava-lhe justa, e ela não parava de a recompor para poder mexer-se. A
irmã de Alicia olhava especada para elas, sorridente, e Alicia só estava à
espera de que se sentassem na mesa grande para colarem os recortes no
cartaz.
– Vamos mostrar-vos a casa – anunciou a irmã, dando a mão a Inma.
Assumiu o papel de anfitriã e avançou corredor fora. Enquanto Alicia se
posicionara no centro da divisão, a tentar descobrir as visitantes antes que
o intercomunicador soasse, parecia que a sua irmã teria planeado como
comportar-se, de que forma receber aquelas desconhecidas. A sua irmã –
quatro anos mais nova do que Alicia, a cara cheia de sardas, alguns
intervalos na boca devido aos tropeções – abria a porta da casa de banho,
apontava para a sanita e para a máquina de lavar roupa, para as toalhas de
turco gasto. Guiava Celia e Inma, mostrava o seu quarto com orgulho:
uma divisão só para ela, pintada de cor-de-rosa, com o seu nome em letras
grandes em cima da prateleira central da estante; os peluches, as bonecas,
alguns livros infantis, uma televisão pequena para quando acordasse antes
da hora ao fim de semana e quisesse entreter-se sem incomodar ninguém.
Saía do seu quarto e abria a porta do de Alicia, apontando novamente para
um televisor – um pouco maior do que o seu: os pais tinham respeitado
uma certa hierarquia –, a estante com a sua coleção de miniaturas,
algumas bonecas cobertas de pó; conteve-se e não mostrou o armário,
embora Alicia tivesse reparado que Celia estava a admirar todas as suas
sapatilhas. A menina largou a mão de Inma e puxou a de Celia para que
esta a seguisse. Passaram ao lado do quarto dos pais – teriam encontrado a
mãe de Alicia deitada, de olhos fechados, a ouvir aquela roda-viva no
corredor, e outro televisor, e um armário a abarcar toda a parede, e sapatos
de salto espalhados pelo chão, como migalhas de pão para não esquecer o
caminho de regresso a casa – e entraram no escritório do pai, com o
computador fixo e o modem. Inma perguntou se tinham Internet, e a irmã
de Alicia respondeu que sim, incapaz de conceber que as suas colegas não
procurassem informação para os seus trabalhos no Terra ou no Yahoo.
– Mas, se alguém telefonar, desliga-se – lamentou.
Faltava a casa de banho principal: o bidé, a banheira, o espelho enorme
diante do qual o pai se barbeava, a mãe se maquilhava e Alicia e a sua
irmã apareciam para completarem a fotografia de família. Os cremes, os
perfumes: não a água-de-colónia de bebé numa embalagem de tamanho
familiar com a qual a mãe de Inma borrifava a filha todas as manhãs, mas
os frascos delicados de vidro – umas gotas apenas atrás do lóbulo da
orelha, no início do peito – que o pai oferecia à mãe porque sim. E faltava
ainda a cozinha: o micro-ondas, o frigorífico de duas portas, os sacos
vazios do El Corte Inglés, amontoados a eito. Alicia não sabia de quem
teria herdado o olfato finíssimo, não da mãe, não do pai, mas identificou
em Celia o cheiro de batata acabada de descascar, mais planta do que
alimento.
Alicia, a sua irmã Eva, Inma e Celia: regressaram as quatro à sala,
Alicia direita à mesa para desdobrar a cartolina e distribuir os sticks de
cola, Eva sem outra intenção senão a de mostrar o terraço. Alguns vasos
que a mãe regava com carinho – Alicia nunca aprendeu os nomes das
plantas –, um par de cadeiras nas quais se sentava com o biquíni vestido
para apanhar sol. Inma e a rapariguinha dirigiram-se para lá, para
finalizarem o percurso; Celia permaneceu na sala, no ponto exato que
Alicia ocupara um pouco antes, debaixo do candeeiro. Alicia achou que
Celia não estaria preocupada com o exterior, com o que acontecia lá fora,
nesse mundo que conhecia de trás para a frente. Fixava o olhar no ecrã de
televisão que ocupava metade do móvel, no leitor de vídeo que o pai
acabara de comprar, na aparelhagem de música, na coleção de filmes e
discos e nas fotografias de todas as férias em família: Alicia dentro de uma
moldura, a dançar com outras meninas no hotel de Marbelha; e Alicia com
Eva e os seus pais dentro de outra moldura, sorridentes na Disneylândia de
Paris, Eva tinha um gorro com orelhas, a torre do Castelo da Bela
Adormecida a emergir da cabeça do pai, as pupilas de Celia tão dilatadas
que os olhos verdes se tingiam de negro.
*

Inma e Celia também regressavam, de vez em quando, a essa tarde em


casa de Alicia. Nas semanas seguintes, sentiram dificuldades em explicar
aos restantes colegas o que acontecera: todos lhes perguntavam se tinham
subido até ao apartamento, se lhes tinham mostrado a casa, se estavam lá
quando o telefone tocara pela primeira vez ou aquando do segundo
telefonema. Inma respondia ao início – sim, havia um televisor em cada
divisão; sim, bebemos refrigerantes; não, fomo-nos logo embora –, e Celia
emudeceu. Nem sequer respondia quando os pais lhe contavam um ou
outro boato ouvido no bar lá de baixo, tentando com inépcia que a sua
filha se sentisse acompanhada. Só anos mais tarde Celia começaria a
trazer alguns pormenores para a conversa: certo dia no liceu, numa
mudança de sala de aula, lembrara-se da colcha cor-de-rosa do quarto de
Eva; algum tempo depois, durante o Erasmus em Coimbra, enviou a Inma
um longo e-mail em que evocava as sensações que despertavam nela ao
pensar naquela tarde, o contacto com todas aquelas riquezas, impensáveis
para duas raparigas como elas. Pela primeira vez, referiu a inveja que
Alicia despertara nela durante todo o ano letivo, os fatos de treino caros
em contraste com a combinação de calças e sweatshirts com que elas
tinham de conformar-se, e referiu ainda pela primeira vez o alívio que
aquela tarde – que o final daquela tarde – provocara em si, a tranquilidade
que sentira ao regressar a casa e encontrar no sofá a sua mãe e a sua tia, o
seu irmão mais novo e as suas duas primas a acabarem os trabalhos de
casa; e o seu avô na cadeira de balouço, com a persiana descida, a impor a
noite. E também a tranquilidade de ouvir a porta a fechar-se porque a sua
tia e as suas primas estavam a ir-se embora, e mais tarde a tranquilidade
da porta a abrir-se porque o seu pai estava a voltar do trabalho: correu para
o abraçar, e o seu pai sujou-lhe a camisa com óleo da oficina. Para assunto
da mensagem, Celia escolheu algo sem ligação aparente com a situação:
«As maravilhas.»
Inma leu-a de imediato, embora tivesse demorado várias semanas a
responder-lhe. Teclava e apagava, reescrevia até sintetizar um parágrafo
em duas frases, retomava-o no dia seguinte. No fim, conseguiu contar a
Celia que durante anos sentira que o que acontecera naquela tarde
correspondia à justiça divina: a avareza é um dos pecados capitais, ou pelo
menos assim lhe ensinara a sua avó. Para que precisava aquela família de
tudo aquilo, daqueles televisores, daquelas viagens – era a pergunta que
Inma fazia a si mesma todas as noites, e que mais tarde repetiria de
tempos a tempos, em jeito de refrão. Não sabia o que mais a incomodara:
se a inocência com que Eva lhes mostrara a casa, sem consciência de estar
a exibir o seu nível de vida diante de Celia e Inma, ou a indiferença com
que Alicia as recebera, sem se dar ao trabalho de partilhar com elas a sua
intimidade. Celia respondeu-lhe de imediato, despachando o seu e-mail
em poucas linhas e contando algumas curiosidades sobre a festa da noite
anterior.
Não esqueceram Alicia ou Eva; nem sequer Carmen, a mãe de ambas,
mero corpo a respirar durante o sono do outro lado da porta, mera voz
crescente, do balbuceio ao grito. Certas vezes, no decorrer de todos estes
anos, Celia e Inma – Inma e Celia – recordavam aquela tarde quando se
juntavam à saída do cinema, ou ao darem uma ajuda na mudança de uma
das duas, ou ainda a visitarem a outra no hospital, recém-nascido algum
dos seus filhos.
– Achas que nos transformaremos neles? – perguntava uma ou
perguntava a outra.
E uma ou outra respondia que não, fazia cara feia, ameaçava uma
gargalhada entre o desejo e o terror.
*

Na memória de Alicia, as lembranças daquele dia não se sucedem de


forma cronológica. Cenas concretas: por exemplo, não é capaz de
reconstituir os momentos entre o toque do despertador e o seu regresso a
casa; as horas – nem sequer é capaz de precisar o tempo – em que se
espreguiça, em que a mãe lhe grita para ir a correr tomar banho, em que a
sua irmã entorna o leite com chocolate no bibe, em que a mãe grita a
Alicia que ajude Eva a mudar de roupa. No entanto, Eva defenderia nos
anos seguintes – poucos – que o pai madrugava mais do que elas e tomava
o pequeno-almoço fora, mas que nesse dia preferiu acompanhá-las até ao
liceu; ela entornou o leite, sim, mas ele acompanhou-a ao quarto e
escolheram juntos um vestido para ela ir às aulas nesse dia. Nos dois
relatos – no de Alicia e no de Eva –, a mãe ainda não acordara ou, melhor,
não saíra da cama: era de lá que lhes ordenava o que fazer, como fazer,
ouvia-se de vez em quando um bocejo. A partir daí, Alicia perde-se: foi
para o liceu com Eva, ou com o seu pai e com Eva, e só acedeu ao edifício
dos mais velhos depois de ter a certeza de que a sua irmã entrara no dos
mais novos, ou beijou o seu pai na face para fazer sozinha os últimos
metros e para que assim ninguém a visse acompanhada? Aturou três aulas
diferentes, foi ter com Celia e Inma no intervalo maior para explicar a que
horas deveriam chegar a sua casa nessa tarde, a diretora de turma do ano
anterior felicitou-a pelos seus progressos. Depois de mais três horas –
Religião ou Educação Visual, talvez –, guardou os livros e os cadernos
dentro da mochila, despediu-se de Celia, foi a correr buscar a sua irmã.
Esperem lá: Alicia acha que a sua irmã aguarda junto da vedação com um
vestido cor de laranja, de um tecido suavíssimo, com o qual a sua mãe
jamais permitiria que se sujasse a brincar no pátio. Sim: manchas de terra
no vestido da sua irmã, como se se tivesse atirado para o chão para imitar
alguma coreografia. Sim: é possível que a sua irmã tivesse razão e que o
seu pai tivesse decidido atrasar a saída de casa naquele dia, ciente do que
aconteceria mais tarde. Alicia pegou-lhe com força na mão, na mão da sua
irmã – esqueceu-se do tato da mão do seu pai –, e voltaram para casa.
Almoçaram – o que terão almoçado?, passaram-se quase vinte anos e
ainda um nó no estômago –, a irmã fechou-se no quarto a ver televisão, a
mãe fechou-se no seu a dormir a sesta, Alicia assistiu a um programa
qualquer e, às cinco da tarde, desligou o televisor e colocou-se no centro
da sala, no ponto exato debaixo do candeeiro, para se antecipar à chegada
das suas colegas.
– Querem Coca-Cola?
– A minha mãe não me deixa beber. Diz que provoca cancro.
– A minha tia besunta o corpo com ela quando apanha sol, e assim fica
mais morena. Tu costumas beber? É boa?
– Sim, eu gosto. A minha mãe está a fazer a sesta. E as vossas?
– A minha está em casa.
– A minha no supermercado.
– Foi lá comprar o quê?
– Não, é lá que ela trabalha.
Enquanto Inma ia recortando algumas figuras com cuidado, Celia
transcrevia para uma cartolina de outra cor alguns dos textos que
pretendiam mostrar no mural que estavam a construir, e Alicia rotulava
com um título na parte de cima. A sua irmã abrira alguns livros de colorir
mais dirigidos a outra idade, mas que ainda a distraíam. Eva ia também
oferecendo refrigerantes, doces, perguntava por parentes cuja existência
nem sequer conhecia; imitava a atitude da mãe perante as amigas com a
mesma palraria insistente, mais barulho do que conversa.
– Eva, cala-te lá e deixa-nos em paz, estamos a estudar.
Ela emudeceu e, quando Inma lhe perguntou em que ano andava, quais
as suas disciplinas preferidas, o que queria ser quando fosse grande, a
menina apenas deixou escapar uns monossílabos. Como noutras ocasiões,
Alicia conseguira desativar Eva transformando-se numa versão reduzida
da mãe, tendo-a assim devolvido ao seu estado natural: menina de nove
anos incapaz de modular o tom de voz e de pensar além do umbigo.
A mãe de Inma trabalha num supermercado, a de Celia onde pode. Nuns
meses esfrega escadas, noutros ajuda num cabeleireiro; Alicia acha
inclusivamente que Celia terá comentado consigo certa vez, na aula, que a
mãe esteve uns meses em algum dos restaurantes do seu pai. Se Alicia
acreditasse em sonhos e profecias, diria que o seu futuro lhe foi revelado
naquele dia, na mesa grande da sala de estar, diante de uma cartolina com
um trabalho de Estudo do Meio. Mas não é isso que sucede: agora acredita
em pouca coisa, na altura em menos ainda, e naquela tarde apetecia-lhe
divertir-se. Faltavam alguns dias para se despedir delas para sempre –
Alicia achava que famílias como as delas nunca conseguiriam pagar a
matrícula no seu novo colégio – e elas não lhe despertavam qualquer
simpatia, tão idiotas, com roupa de domingo num dia de semana.
– Inma, tens Internet em casa?
– Lá em casa não temos computador.
– Mas já alguma vez te ligaste à Internet?
– Também não. Uma vez, na biblioteca, acho que a Vicky… Acho que
foi a Vicky que se ligou.
– Estava muito lenta – precisou Celia. – A Vicky sabe porque uns
vizinhos dela têm.
– E têm televisão?
– Televisão, sim.
– Sim, na sala.
– Mas só na sala, certo?
– Sim, na sala.
– Eu também, só aí. Mas não a ligamos muito porque a minha avó está
doente.
– Nós, sim, a toda a hora. Quando vem a minha tia, a toda a hora.
– Aqui cada um vê o programa que quer no seu quarto.
Eva estava a colorir uma figura, tentando não ultrapassar o risco.
Enquanto Alicia pensava na frase seguinte, ia admirando o esforço da irmã
para não deixar um único espaço em branco, embora também para não
pintar para lá da figura definida pela forma. Alicia punha o mesmo
cuidado, a mesma atenção, para encontrar palavras que magoassem Celia
e Inma. Aquela sua memória, uma linha de tristeza na memória das
miúdas.
– E essa roupa com que estão hoje, Inma, Celia… Adoro.
– Obrigada. O vestido é novo.
– Ai, sim? Onde é que o compraste? Adoraria ter um igual.
– Recebi-o na semana passada porque já está pequeno à minha prima,
apertado no peito, que o dela já é de mulher. Mas só o usou duas ou três
vezes. Por isso, na realidade, é quase novo.
– Deve ser da feira, não?
– Não, acho que não. A minha prima compra no bairro, não vai lá.
– Onde é que fica a feira, Celia? Nunca lá fui.
Alicia pronunciou «Celia» e procurou o seu olhar. Antes, reparou em
Eva, a língua entre os lábios, concentrada, e em Inma, o olhar fixo numa
paisagem que procurava cortar; mais tarde, esta viria a revelar-se a última
imagem. Celia tapara a esferográfica, cruzara os braços e antecipara-se: os
seus olhos, ferozes, já estavam postos nos de Alicia. Nesse momento,
Alicia apercebeu-se do erro: como se não soubesse. Gozar com Inma,
naturalmente que sim; a sua maldade teria significado para ela
curiosidade, ter-se-ia sentido lisonjeada com a vontade de Alicia de saber
coisas da sua vida, talvez até se tivesse iludido naqueles minutos de
conversa como se fosse uma amizade de tardes de verão diante do
televisor, debaixo do aparelho de ar condicionado. Porém, o mesmo não
acontecia com Celia: doía-lhe cada ataque a Inma, e cada ataque a si
mesma espicaçava-a. Uma palavra de Alicia bastaria para que ela a
magoasse, já presenciara as suas reações nos corredores: no dia em que
por pouco não a expulsaram, quando Dani levantou a saia de Inma e Celia
o agarrou pelo pescoço; os pés de Dani a poucos centímetros do chão, as
mãos de Celia em tensão, e o seu olhar igual ao de agora.
– Montam a feira perto da igreja, no estacionamento junto da estrada da
zona industrial. À terça e à sexta-feira. Eu não vou porque estou nas aulas,
mas a minha mãe vai lá dar uma volta quando não trabalha, para passar o
tempo. Estas calças de ganga são da feira, e a camisa é da nova loja de
oportunidades, perto do primeiro snack-bar que o teu pai abriu. Há um tio
da tua mãe que vive para essas bandas, não há? Acho que um vizinho meu
o conhece.
Nesse momento, a resposta de Celia tirou o tapete a Alicia, pois
ambicionava uma cena diferente; que ela arregaçasse as mangas e lhe
batesse, e que Eva gritasse e a sua mãe irrompesse por ali adentro. No dia
seguinte, o episódio teria sido comentado na sala de aula, e talvez o diretor
de turma tivesse convocado até os pais de Celia, os de Inma, os de Alicia,
para encontrar uma solução a tão poucos dias de terminar o ano letivo. No
entanto, Celia calou-se e retomou o seu trabalho, com um pouco mais de
pressa, tentando acabar quanto antes o texto que lhe cabia copiar. Alicia
achou Celia inteligente; inteligente, e velocíssima com as palavras, direta.
Lamentou ter passado um ano inteiro tão perto dela e não terem
conversado mais; lamentou, também, tê-la subestimado e ferido daquela
forma. Aliás, não: naquele momento, Alicia estava a divertir-se com a
situação, com Inma enganada quanto às lisonjas e Celia humilhada, sem
Internet e sem televisores, com a sua renda ridícula. Alicia não pode fingir
que sentiria aos treze anos o arrependimento dos trinta; também não pode
imaginar para a sua adolescência a empatia que, por outro lado, continua a
faltar-lhe agora.
Foi então que o telefone tocou.
*

Um dos assuntos que mais preocupavam Celia, explicava Inma nas suas
conversas, era detetar alunas que despertassem nela a imagem daquela
tarde. Identificara um modelo que designava por «Alicia» e que
correspondia às características da sua antiga colega. Qualquer rapariga que
se sentisse superior por algum aspeto, porque tivesse sido criada numa
família com mais dinheiro ou porque fosse mais bonita ou mais
inteligente, e que procurasse colegas mais pobres, mais feias, mais parvas.
Como aquele gesto na piscina: quando nos apoiamos nos ombros de
alguém para dar impulso, para saltar e afundar essa pessoa ao mesmo
tempo. Poucas semanas após o início de cada ano letivo, Inma e Celia
falavam ao telefone e analisavam os seus estudantes: primeiro com o
entusiasmo de quem não sabe, depois com o fastio de quem já conhece a
lição de cor. Celia defendia que Inma não reparava tanto nisso porque era
muito mais difícil humanizar os alunos em ciências, mas em História da
Arte a matéria facilitava-o: Uma Alicia, explicava Celia, uma Alicia não
se emociona. Uma Alicia finge que se emociona; abre muito os olhos
porque sabe que é o que faz sentido, o que se espera dela. Aquela rapariga
transformara-se em arquétipo: despojada das suas fraquezas e das suas
qualidades, Inma e Celia – Celia e Inma – evocavam-na ao longo dos anos
como se se tratasse de uma anedota conhecida. Os anos tinham-nas
transformado em espectadoras: ocuparam duas cadeiras à volta da mesa da
sala, ouviram o telefone tocar, as palavras de Carmen e o choro de Eva,
que será feito da Carmen, que será feito da Eva; o silêncio de Alicia. Mas
o tempo afasta-as, expulsa-as da cena; primeiro Celia e Inma sentaram-se
no terraço, a ver o que acontecia dentro da sala, e mais tarde passaram
para a rua, de novo naquela passadeira da qual contemplavam o janelão.
– Foi então que o telefone tocou – rematava sempre Celia. – De que
maneira tão absurda lhes mudou a vida, não foi? Com um telefonema.
*

Foi então que o telefone tocou. A mãe de Alicia atendeu, como sempre:
o telefone tocava na sala e no seu quarto. Alicia não percebeu porque
estava ela a irromper daquela maneira diante das raparigas; desconcertou-
a que a mãe, que fazia sempre questão de se maquilhar mesmo para as
suas filhas, permitisse que aquelas duas desconhecidas reparassem nas
varizes que iam surgindo pelas suas pernas, teias roxas perto do joelho. O
telefone tocou e Alicia distinguiu algumas palavras da mãe, explicando
que não, que guardava o caderno no escritório. O barulho, todavia, não a
levou a essa divisão, mas à que as raparigas ocupavam: a mãe irrompeu,
localizou um caderno de capa preta no móvel junto do televisor, levantou
o outro telefone sem se importar com a presença de Celia e Inma.
– Já cá estou, tinha-o noutro sítio. Acabei de me lembrar de que ontem à
noite ele apontou qualquer coisa enquanto via televisão, e deixou-o à mão.
Vou ditar-te o número.
A voz da mãe travou o rangido dos marcadores contra a cartolina. Eva
parou de colorir, Alicia também; Inma largou a tesoura na mesa, e Celia
tapou outra vez a esferográfica. As amigas olhavam umas para as outras,
atentas à conversa, tentando adivinhar a voz do outro lado, de quem, sobre
o quê.
*

Foi então que o telefone tocou e aquela mulher entrou na sala como um
fantasma: uma combinação preta sobre a pele branquíssima, alças pretas e
renda preta sobre pele branquíssima, as olheiras desenhadas pelo rímel
esborratado. O telefone tocou e nem Alicia nem Eva se esforçaram por
atender: Celia e Inma intuíram a voz da mãe ao longe, a uma distância
muito superior à do corredor. Sem disfarçar, as raparigas interromperam o
seu trabalho para ouvir: nem pontas de marcador contra a cartolina grossa,
nem gume de tesoura a percorrer uma silhueta de montanha. Carmen
gaguejou enquanto localizava um endereço – assegura Inma – ou um
telefone – assegura Celia –, ditou qualquer coisa, agradeceu o esforço.
– Não sei porque ele costuma sair de casa antes de eu acordar. Ontem à
noite disse-me que hoje iria dar uma volta pelos restaurantes… Calculei
que comesse no do centro, porque estivemos anteontem com o meu tio.
Estás a dizer-me que não o viram em nenhum deles, em nenhum
momento? E que ligaram para todo o lado? Não, não duvido, estou só a
perguntar. Podes passar-me ao meu tio, por favor? Está bem, então diz-lhe
para me ligar assim que chegar a um deles, informa toda a gente para que
ele me ligue, esteja onde estiver. Não estou nervosa, mas tens de perceber
que é muito estranho. Não estou a ficar nervosa. Não me fales como se eu
fosse uma tontinha, peço-te. Olha, o que vou fazer é chamar um táxi e ir
para aí. Digam ao meu tio para ir aí ter assim que acabar. Não voltem a
ligar para minha casa enquanto eu não chegar aí.
Carmen desapareceu da sala com a mesma brusquidão com que se
apresentara diante de Celia e Inma: uma presença brotada sabia-se lá de
onde. Para Celia e para Inma, Carmen transformara-se em alguém de fora
deste mundo.
*

Aquilo que Alicia recorda é que, nessa tarde, a sua mãe a chamou ao
quarto, enquanto trocava de roupa para sair à rua, e lhe disse:
– Alicia, o teu pai desapareceu. Não passou em nenhum dos restaurantes
durante toda a manhã, nem no escritório, nem no apartamento novo. Não
atendia o telefone, e já nem sequer dá sinal. A secretária ligou para os
hospitais e para a polícia, mas ninguém sabe de nada. O tio Chico foi de
carro à procura dele, e vai parando em cada restaurante para avisarem de
lá que não está a encontrá-lo. Diz às tuas amigas que se vão embora, por
favor.
Pelo contrário, o que aconteceu nessa tarde foi que a sua mãe a chamou
ao quarto, enquanto trocava de roupa para sair à rua, e lhe disse:
– Não sabem do teu pai, Ali. Vou ao restaurante do centro para ver o que
se passa. Toma conta da Eva, por favor, e não lhe digas nada. Vou avisar a
tia Sole para vir ter convosco, a ver se tenho tempo antes de chamar o
táxi… Só lhe abres a porta a ela, que não tem as chaves cá de casa, ou ao
teu pai, se ele chegar entretanto, claro. As tuas amigas podem ficar se
quiseres que estejam contigo, para estarem entretidas. Não digas nada à
Eva. Põe-lhe um filme de desenhos animados, para ela se distrair e não se
assustar.
*

Uma família ia a subir da cidade para o monte, para jantar aproveitando


a brisa que corria, e a filha mais nova distinguiu ao longe o corpo do
homem. A menina celebrou o achado: igual à figura que desenhava para se
entreter, a cabeça amarrada à corda, essa corda a pender do ramo, os
espaços em branco a caírem das pegadas que jamais marcariam a terra. A
mãe gritou, assustada, e o pai hesitou entre acelerar para esquecer aquilo
ou parar. Estacionou a alguns metros – um carro estampado contra a
árvore, o carro do enforcado, puro milagre que não se tivesse incendiado –
e aproximou-se com prudência, como se a morte fosse contagiá-lo. O
morto fechara os olhos ao saltar, e o calor secara-lhe os fios de sangue do
nariz e da boca. O homem vivo regressou ao automóvel, conduziu até à
bomba de gasolina mais próxima, no sopé da colina, e daí ligaram para a
Polícia.
Nos primeiros dias, falou-se no bairro de acidente: a família estava a
pensar em mudar-se para uma moradia, pois o apartamento novo revelara-
se pequeno antes mesmo de o habitarem, ou o morto estava a tentar
ampliar o negócio comprando uma das churrasqueiras, e era tanta a pressa
de regressar que perdeu o controlo do carro. Alguém – o homem vivo, um
empregado qualquer, quiçá os polícias que levantaram o cadáver –
descreveu a corda feita com os cintos de segurança, o carro espatifado
contra a árvore ao tentar simular o acidente, era o que se dizia em voz
baixa nos cafés do bairro, nas cozinhas dos seus restaurantes.
Perguntavam a Inma e Celia se tinham ouvido algo de estranho naquela
casa: Inma comentava qualquer coisa, Celia ficava sempre calada, também
se ergueu em torno delas a lenda de que teriam presenciado o choro
desesperado de Carmen ao atender o telefone ou quando lhe comunicaram
a morte do marido. Durante meses, apareceram amigos íntimos do casal,
cúmplices das suas escapadinhas para a praia, testemunhas de relações
paralelas e até quem assegurasse que o morto aparecia em sonhos, e
revelava segredos, e jurava vinganças.
Meses mais tarde, no dia da inauguração das obras de reabilitação da
avenida, uma vizinha atirou-se do terraço do prédio para a rua, e o seu
corpo aterrou – envolto num lençol branco, recusando a visão da queda – a
poucos metros da presidente da câmara. Quando chegou o outono, toda a
gente se esquecera de Carmen, de Alicia e de Eva, do homem enforcado
do monte, e por essa altura já elas se tinham instalado noutra vida.
A TEMPERANÇA
Madrid, 1975

Pernas para cima: quem o ordena é María, uma camada fina de pó de


talco cobrindo a pele das suas mãos. Por favor. Pernas para cima, para me
facilitar a vida. Isso. Assim. Limpou-a durante o banho, de maneira que só
lhe faltava conseguir que se deitasse para lhe pôr a fralda; noutras
ocasiões, estende uma toalha para não sujar a coberta, aquece um pouco
de água – umas vezes tirada da torneira, na banheira, e noutras aquecida
no fogão, como se para um chá –, humedece um pano e passa-o pelo rabo,
ensaboa, enxuga com outro pano. Aplica a fralda – um tecido grosseiro,
como um resto de lençol que não é capaz de reter a caca nem de
impregnar-se de urina – prendendo-a à volta daquele corpo com a
naturalidade de quem a aplica e prende ao mesmo corpo a toda a hora,
várias vezes por dia, todos os dias, anos a fio: o corpo na horizontal em
cima da cama, os olhos fechados – o olhar do corpo nunca se cruza com o
de María, como se tentasse apagá-la da cena: uma lógica estranha, sente
María, a de não existir aquilo que não vemos –, pernas para cima. Pernas
para cima e, com o gesto, eleva os glúteos e arqueia as costas com o
esforço, às vezes queixa-se, e María aproveita então para encaixar o tecido
entre o corpo e a cama, pernas para baixo e passa o resto do tecido entre as
coxas, um nó de um dos lados da anca e outro do outro lado. María
oferece-lhe as suas mãos para que se endireite: ela estica os braços, cerra o
punho em torno das costas da mão de María, resiste com o polegar, María
atrai-a para si. Alcançam a estabilidade. Já não fita o corpo fragilíssimo
que resiste na beira da cama, as mãos que mal se agarram à colcha,
ignorando que o tecido não evitaria a sua queda, mas que perdendo ela o
equilíbrio logo se seguiriam o cobertor, quiçá o lençol também. Por
instantes, enquanto procura a roupa para a vestir, María imagina a forma
como o corpo chocaria contra o chão: saco de ossos, carne parca sobre os
ossos velhos, pele seca e gasta. Se o corpo caísse enquanto María – de
costas – procura as cuecas, as meias até aos joelhos, um vestido para hoje,
chamar-lhe-ia a atenção, confundi-lo-ia com um objeto ou com algo a cair
noutra casa? Um objeto no piso de cima, um livro do colo para o chão: o
peso da dona Sisi a poucos centímetros de si equivale ao peso de um
objeto vários metros acima? O ar e a distância, o corpo da dona Sisi – um
queixume agudo, porventura uma chamada de atenção: rapariga, María,
está a doer-me – debaixo do lençol, debaixo da colcha, nu – uma fralda de
tecido grosseiro, bebé de oitenta anos – em cima da madeira fria.
Durante o banho, María repara naquele corpo: avalia estragos, compara
o de hoje com o de ontem. Nota uma ferida nova ou a cicatriz da ferida de
dias antes, e em certas semanas pensa em avisar a filha da velocidade a
que aquele corpo está a dar de si: ajuda-a a mergulhar – com cuidado – e
permite que a mulher fique sozinha durante algum tempo, cinco ou dez
minutos enquanto a água amorna. Ao início, María perguntava se ela
queria ouvir música, ou cedia-lhe o pequeno rádio da cozinha; mais tarde,
reparou que a mulher não se importava muito com o silêncio ou a rádio, e
poupou a deslocação. Depois, quando calcula que a água começa a
arrefecer, María ajoelha-se junto da banheira e esfrega a luva contra a pele
tensa, nem um único pelo na pele tensa, riscas finíssimas de sangue seco
sobre a pele seca, tão ténues que não formam crosta sequer: é como se se
abrissem uma e outra vez, uma e outra vez, talvez o mesmo sangue
diferente. Mais do que com eficácia, María enfrenta o gesto com doçura:
desliza a luva pela pele, braço abaixo, tronco acima, procura que a mulher
não se mexa, ainda não está habituada – já assumiu que nunca acontecerá
– aos peitos e ao púbis, nem está habituada ao pudor. Decidiram cortar-lhe
a cabeleira uns meses antes, pois a senhora arrancou a si mesma pequenas
mancheias de cabelos brancos em várias discussões; desde então, a cada
quinze ou vinte dias, María corta com cuidado o cabelo que ao crescer
tapa as orelhas, que desce pela nuca. María evita os olhos ao enxaguá-la, e
pressiona aos poucos com uma toalha: o rosto – também aí a pele seca,
enrugada, pele contra pele em torno dos olhos e da boca –, o resto do
corpo. Vamos lá, avisa sempre María, ou já terminámos, ou qualquer outra
mensagem perante a qual a mulher sabe – lembra-se, por enquanto – que
tem de reagir, esticar os braços e rodear o pescoço de María com eles:
apalpa o vazio até notar a rapariga, e María agarra então o corpo como
pode, envolve-o numa toalha, transporta-o da casa de banho para o quarto.
Procura não a carregar como se fosse um fardo, imprimindo antes à
situação uma certa delicadeza, finge por vezes o riso ou trauteia para
retirar gravidade ao momento, manuseia-a de maneira que o corpo não lhe
fuja, não pingue e tenha de refazer o caminho para evitar que as manchas
sequem. Enquanto não lhe coloca a fralda limpa, enquanto María não a
veste, desde que a despem para tomar banho, a mulher fecha os olhos: se
conseguir não ver o seu corpo nu, se não tiver consciência de que está
alguém a lavar o seu corpo nu, a cena não acontece.
À medida que a idosa vai fazendo anos, escapa-se-lhe o peso, esvai-se-
lhe a memória: quando María entrou para aquela casa, a mãe ainda tomava
duche sozinha, recebia algumas amigas à tarde. As conversas chegavam à
cozinha; os temas, inclusivamente a escolha da linguagem, transportavam
María para alguns filmes dos cinemas a várias ruas dali. Verificavam o
santo do dia, lamentavam os seus achaques, deleitavam-se com historietas
das décadas anteriores: festas, vestidos, joias, a mediocridade de hoje
relativamente aos anos cinquenta, a felicidade pura das suas biografias. A
tagarelice das senhoras, em vez de despertar a curiosidade de María,
despertava nela uma raiva invulgar, nada parecida com outras raivas.
María pensava nessa sua época: da choça dos primeiros anos não sabia
mais do que a sua mãe lhe contara, quando falava com ela, embora se
lembrasse do lodaçal no novo bairro após as tempestades, e de alguns
domingos de frio na alameda, com as famílias a esticarem a hora do
almoço, ou das manhãs de verão no moinho – um dia proibiram ali os
banhos, e Chico já não o conheceu.
A filha rezava o terço de manhã; a mãe acompanhava-a na litania e
evitava os mistérios, as outras orações. Durante esse tempo, María estava
proibida de ouvir rádio: isolava-se da voz delas e dedicava-se a lavar
tachos ou aproveitava para ir às compras. Mãe e filha também se
separavam à tarde: enquanto não demoliram a igreja ao lado de Argüelles,
a mãe e as amigas subiam a Calle de la Princesa de braço dado e
lanchavam em alguma confeitaria próxima; a filha da senhora, essa,
atravessava a rua até San Marcos ou descia até à igreja dos carmelitas.
Primeiro, morreu uma das idosas, e depois outra, passados poucos meses;
a estas ausências juntaram-se as daquelas que adoeciam, já incapazes de
outro caminho que não o que as levasse do seu quarto à casa de banho, e
Another random document with
no related content on Scribd:
phrase means no more than “men.” [522]

62. Regarding Gunnar’s harp-playing, and his death, cf.


Oddrunargratr, 27–30 and notes, and Atlakvitha, 34. Toes (literally
“sole-twigs”): the Volsungasaga explains that Gunnar’s hands were
bound. Rafters: thus literally, and probably correctly; Gering has an
ingenious but unlikely theory that the word means “harp.”

63. There is some doubt as to the exact meaning of line 2. After this
line two lines may have been lost; Grundtvig adds: “Few braver shall
ever | be found on the earth, / Or loftier men | in the world ever
live.”

64. Wise one: Guthrun. The manuscript marks line 3 as beginning a


new stanza. [523]

65. The manuscript does not indicate the speaker.

66. The manuscript does not name the speaker. The negative in the
first half of line 1 is uncertain, and most editions make the clause
read “Of this guilt I can free myself.” The fairest, etc.: i.e., I have
often failed to do the wise thing.

67. The manuscript does not indicate the speaker. Requital, etc.: it is
not clear just to what Guthrun refers; perhaps she is thinking of
Sigurth’s death, or possibly the poet had in mind his reference to the
slaying of her mother in stanza 53. [524]

68. Line 5 is very probably a later addition, though some editors


question line 3 instead.

69. Guthrun suddenly changes her tone in order to make Atli believe
that she is submissive to his will, and thus to gain time for her
vengeance. Line 2 in the original is thoroughly obscure; it runs
literally: “On the knee goes the fist | if the twigs are taken off.”
Perhaps the word meaning “fist” may also have meant “tree-top,” as
Gering suggests, or perhaps the line is an illogical blending of the
ideas contained in lines 1 and 3.

70. The manuscript indicates line 3 as the beginning of a new


stanza. Two shields, etc.: i.e., Guthrun concealed her hostility
(symbolized by a red shield, cf. Helgakvitha Hundingsbana I, 34) by
a show of friendliness (a white shield). [525]

71. Many editions make a separate stanza of lines 1–2, some of


them suggesting the loss of two lines, and combine lines 3–4 with
lines 1–2 of stanza 72. The manuscript marks both lines 1 and 3 as
beginning stanzas.

72. The manuscript marks line 3 as beginning a new stanza; some


editions make a separate stanza of lines 3–5, while others combine
them with lines 1–2 of stanza 73. Line 2 in the original is clearly
defective, the verb being omitted. The meaning of line 3 is uncertain;
the Volsungasaga paraphrase has: “At evening she took the sons of
King Atli (Erp and Eitil) where they were playing with a block of
wood.” Probably the text of the line as we have it is faulty. Lines 4–5
may possibly have been expanded out of a single line, or line 5 may
be spurious. [526]

73. The manuscript does not name the speakers. It indicates line 3
as beginning a new stanza, in which it is followed by many editions.
The Volsungasaga paraphrases line 4 thus: “But it is shameful for
thee to do this.” Either the text of the line has been changed or the
Volsungasaga compilers misunderstood it. The angry one: Atli.

74. The manuscript indicates line 3 as beginning a new stanza.

75. The manuscript does not name the speaker. [527]

76. Morning: Guthrun refers to Atli’s taunt in stanza 64.

77. The manuscript indicates no gap (lines 1–2), and most editions
make a single line, despite the defective meter: “Thy sons hast thou
lost | as thou never shouldst lose them.” The second part of line 2
is in the original identical with the second half of line 3 of stanza 80,
and may perhaps have been inserted here by mistake. Skulls: it is
possible that line 3 was borrowed from a poem belonging to the
Völund tradition (cf. Völundarkvitha, 25 and 37), and the idea
doubtless came from some such source, but probably the poet
inserted it in a line of his own composition to give an added touch of
horror. The Volsungasaga follows the Atlamol in including this
incident. [528]

78. Some editions add lines 3–4 to stanza 79; Finnur Jonsson marks
them as probably spurious.

79. Perhaps these two lines should form part of stanza 78, or
perhaps they, rather than lines 3–4 of stanza 78, are a later addition.
A gap of two lines after line 1 has also been conjectured.

80. The manuscript does not indicate the speaker.

81. The manuscript does not indicate the speaker. Lines 1–2 may be
the remains of a separate stanza; Grundtvig adds: “Thou wast
foolish, Atli, | when wise thou didst feel, / Ever the whole | of thy
race did I hate.” The Volsungasaga paraphrase, however, indicates
no gap. Many editions make a separate stanza of lines 3–6, which,
in the Volsungasaga, are paraphrased as a speech of Atli’s. Lines 5–
6 may be spurious. [529]

82. The manuscript does not indicate the speakers. Many editions
make two separate stanzas of the four lines. Another light: a fairly
clear indication of the influence of Christianity; cf. Introductory Note.

83. The manuscript marks line 3 as the beginning of a new stanza.


Hniflung: the Volsungasaga says that “Hogni had a son who was
called Hniflung,” but the name appears to be nothing more than the
familiar “Niflung” applied in general to the sons of Gjuki and their
people. On the spelling cf. note on stanza 44. [530]This son of Hogni
appears in later versions of the story. In the Thithrekssaga he is
called Aldrian, and is begotten by Hogni the night before his death.
Aldrian grows up and finally shuts Attila in a cave where he starves
to death. The poet here has incorporated the idea, which finds no
parallel in the Atlakvitha, without troubling himself to straighten out
the chronology.

84. Line 4 may be in Fornyrthislag, and from another poem.

85. The manuscript marks line 3 as beginning a new stanza. The


Volsungasaga makes line 2 part of Atli’s speech.

86. The manuscript does not name the speakers. It marks line 4 as
the beginning of a new stanza, and many editions follow this
arrangement, in most cases making a stanza of lines 4–5 and line 1
of stanza 87. However, line 1 may well have been interpolated here
from stanza 75. Grundtvig adds after line 3: “His father he avenged,
| and his kinsmen fully.” Some editors assume the loss of one or
two lines after line 5. [531]

87. The manuscript marks line 2 as beginning a new stanza, and


some editions make a stanza out of lines 2–4 and line 1 of stanza
88.

88. The manuscript marks line 2 as the beginning of a stanza, and


many editions make a stanza out of lines 2–4, or combine them with
stanza 89. Some question the genuineness of line 4.

89. Many editions assume a gap of one line after line 3;


[532]Grundtvig adds: “Bit-champing horses | and wheel-wagons
bright.” Line 4 may be spurious. Greater: i.e., the silver which Atli
gave Guthrun was of greater value even than the honor of receiving
such royal gifts.

90. Some editions mark line 3 as spurious or defective. The


manuscript marks line 4 as the beginning of a new stanza. The land,
etc.: there is much obscurity as to the significance of this line. Some
editors omit or question “me,” in which case Atli is apparently
reproaching Guthrun for having incited him to fight with his brothers
to win for himself the whole of Buthli’s land. In stanza 91 Guthrun
denies that she was to blame for Atli’s quarrels with his brothers. The
Volsungasaga reading supports this interpretation. The historical
Attila did actually have his brother, Bleda, killed in order to have the
sole rule. The treasure: Sigurth’s hoard, which Atli claimed as the
brother of Brynhild and husband of Guthrun, Sigurth’s widow, but
which Gunnar and Hogni kept for themselves, with, as Atli here
charges, Guthrun’s connivance. My mother: the only other reference
to Atli’s mother is in Oddrunargratr, 30, wherein she appears as the
adder who stings Gunnar to death, and in the prose passages based
on that stanza. [533]

91. The manuscript does not indicate the speaker. It marks both lines
4 and 5 as beginning new stanzas, but line 5 is presumably an
interpolation. The text of the second half of line 2 is obscure, and
many emendations have been suggested. Ye brothers: cf. note on
stanza 90. Half: i.e., two of Atli’s brothers were killed, the other two
dying in the battle with Gunnar and Hogni; cf. stanza 51.

92. From the land: this maritime expedition of Guthrun and her two
brothers, Gunnar and Hogni (the poet seems to know nothing of her
half-brother, Gotthorm), with Sigurth seems to have been a pure
invention of the poet’s, inserted for the benefit of his Greenland
hearers. Nothing further is reported concerning it.

93. The forest: i.e., men who were outlawed in the conquered land
were restored to their rights—another purely Norse touch. [534]

94. Hun-king: Sigurth, though most illogically so called; cf.


Sigurtharkvitha en skamma, 4 and note. The Volsungasaga
paraphrase of line 2 is so remote as to be puzzling: “It was little to
bear the name of widow.” Perhaps, however, the word “not” fell out
between “was” and “little.”
95. Thing, etc.: here the poet makes Atli into a typical Norse land-
owner, going to the “Thing,” or general law council, to settle his
disputes. Even the compilers of the Volsungasaga could not accept
this, and in their paraphrase changed “Thing” to “battle.” The text of
the second half of line 2 is uncertain. The manuscript leaves a blank
to indicate the gap in line 4; Grundtvig adds: “as beseems not a
king.” [535]

97. The manuscript does not indicate the speaker. Many editors
assume a gap either before or after line 1. A ship: the burial of Norse
chiefs in ships was of frequent occurrence, but the Greenland poet’s
application of the custom to Atli is somewhat grotesque.

98. Heirs, etc.: merely a stock phrase, here quite meaningless, as


Atli’s heirs had all been killed. Long: cf. Guthrunarhvot, introductory
prose. [536]

[Contents]
GUTHRUNARHVOT
Guthrun’s Inciting
[Contents]

Introductory Note
The two concluding poems in the Codex Regius, the Guthrunarhvot
(Guthrun’s Inciting) and the Hamthesmol (The Ballad of Hamther),
belong to a narrative cycle connected with those of Sigurth, the
Burgundians, and Atli (cf. Gripisspo, introductory note) by only the
slenderest of threads. Of the three early historical kings who
gradually assumed a dominant place in Germanic legend,
Ermanarich, king of the East Goths in the middle of the fourth
century, was actually the least important, even though Jordanes, the
sixth century author of De Rebus Getecis, compared him to
Alexander the Great. Memories of his cruelty and of his tragic death,
however, persisted along with the real glories of Theoderich, a
century and a half later, and of the conquests of Attila, whose lifetime
approximately bridged the gap between Ermanarich’s death and
Theoderich’s birth.

Chief among the popular tales of Ermanarich’s cruelty was one


concerning the death of a certain Sunilda or Sanielh, whom,
according to Jordanes, he caused to be torn asunder by wild horses
because of her husband’s treachery. Her brothers, Sarus and
Ammius, seeking to avenge her, wounded but failed to kill
Ermanarich. In this story is the root of the two Norse poems included
in the Codex Regius. Sunilda easily became the wife as well as the
victim of the tyrant, and, by the process of legend-blending so
frequently observed, the story was connected with the more famous
one of the Nibelungs by making her the daughter of Sigurth and
Guthrun. To account for her brothers, a third husband had to be
found for Guthrun; the Sarus and Ammius of Jordanes are obviously
the Sorli and Hamther, sons of Guthrun and Jonak, of the Norse
poems. The blending of the Sigurth and Ermanarich legends
probably, though not certainly, took place before the story reached
the North, in other words before the end of the eighth century.

Regarding the exact status of the Guthrunarhvot and the


Hamthesmol there has been a great deal of discussion. That they
are closely related is obvious; indeed the first parts of the two poems
are nearly identical in content and occasionally so in actual diction.
The annotator, in his concluding prose note, refers to [537]the second
poem as the “old” ballad of Hamther, wherefore it has been assumed
by some critics that the composer of the Guthrunarhvot used the
Hamthesmol, approximately as it now stands, as the source of part
of his material. The extant Hamthesmol, however, is almost certainly
a patchwork; part of it is in Fornyrthislag (cf. Introduction), including
most of the stanzas paralleled in the Guthrunarhvot, and likewise the
stanza followed directly by the reference to the “old” ballad, while the
rest is in Malahattr. The most reasonable theory, therefore, is that
there existed an old ballad of Hamther, all in Fornyrthislag, from
which the composer of the Guthrunarhvot borrowed a few stanzas as
the introduction for his poem, and which the composer of the extant,
or “new,” Hamthesmol likewise used, though far more clumsily.

The title “Guthrunarhvot,” which appears in the Codex Regius, really


applies only to stanzas 1–8, all presumably borrowed from the “old”
ballad of Hamther. The rest of the poem is simply another Guthrun
lament, following the tradition exemplified by the first and second
Guthrun lays; it is possible, indeed, that it is made up of fragments of
two separate laments, one (stanzas 9–18) involving the story of
Svanhild’s death, and the other (stanzas 19–21) coming from an
otherwise lost version of the story in which Guthrun closely follows
Sigurth and Brynhild in death. In any event the present title is really a
misnomer; the poet, who presumably was an eleventh century
Icelander, used the episode of Guthrun’s inciting her sons to
vengeance for the slaying of Svanhild simply as an introduction to
his main subject, the last lament of the unhappy queen.

The text of the poem in Regius is by no means in good shape, and


editorial emendations have been many and varied, particularly in
interchanging lines between the Guthrunarhvot and the Hamthesmol.
The Volsungasaga paraphrases the poem with such fidelity as to
prove that it lay before the compilers of the saga approximately in its
present form.

[Contents]

Guthrun went forth to the sea after she had slain Atli.
She went out into the sea and fain would drown
herself, but she could not sink. The waves bore her
across the [538]fjord to the land of King Jonak; he took
her as wife; their sons were Sorli and Erp and
Hamther. There was brought up Svanhild, Sigurth’s
daughter; she was married to the mighty Jormunrek.
With him was Bikki, who counselled that Randver,
the king’s son, should have her. This Bikki told to the
king. The king had Randver hanged, and Svanhild
trodden to death under horses’ feet. And when
Guthrun learned this, she spake with her sons. [539]

1. A word-strife I learned, | most woeful of all,


A speech from the fullness | of sorrow spoken,
When fierce of heart | her sons to the fight
Did Guthrun whet | with words full grim.

2. “Why sit ye idle, | why sleep out your lives,


Why grieve ye not | in gladness to speak?
Since Jormunrek | your sister young
Beneath the hoofs | of horses hath trodden,
(White and black | on the battle-way,
Gray, road-wonted, | the steeds of the Goths.)

3. “Not like are ye | to Gunnar of yore,


Nor have ye hearts | such as Hogni’s was;
Vengeance for her | ye soon would have
If brave ye were | as my brothers of old,
Or hard your hearts | as the Hunnish kings’.”

4. Then Hamther spake, | the high of heart:


“Little the deed | of Hogni didst love, [540]
When Sigurth they wakened | from his sleep;
Thy bed-covers white | were red with blood
Of thy husband, drenched | with gore from his
heart.

5. “Bloody revenge | didst have for thy brothers,


Evil and sore, | when thy sons didst slay;
Else yet might we all | on Jormunrek
Together our sister’s | slaying avenge.
6. “. . . . . . . . | . . . . . . . .
The gear of the Hunnish | kings now give us!
Thou hast whetted us so | to the battle of swords.”

7. Laughing did Guthrun | go to her chamber,


The helms of the kings | from the cupboards she
took,
And mail-coats broad, | to her sons she bore them;
On their horses’ backs | the heroes leaped.

8. Then Hamther spake, | the high of heart: [541]


“Homeward no more | his mother to see
Comes the spear-god, fallen | mid Gothic folk;
One death-draught thou | for us all shalt drink,
For Svanhild then | and thy sons as well.”

9. Weeping Guthrun, | Gjuki’s daughter,


Went sadly before | the gate to sit,
And with tear-stained cheeks | to tell the tale
Of her mighty griefs, | so many in kind.

10. “Three home-fires knew I, | three hearths I


knew,
Home was I brought | by husbands three;
But Sigurth only | of all was dear,
He whom my brothers | brought to his death.

11. “A greater sorrow | I saw not nor knew,


Yet more it seemed | I must suffer yet
When the princes great | to Atli gave me.

12. “The brave boys I summoned | to secret


speech;
For my woes requital | I might not win
Till off the heads | of the Hniflungs I hewed.

[542]

13. “To the sea I went, | my heart full sore


For the Norns, whose wrath | I would now escape;
But the lofty billows | bore me undrowned,
Till to land I came, | so I longer must live.

14. “Then to the bed— | of old was it better!—


Of a King of the folk | a third time I came;
Boys I bore | his heirs to be,
Heirs so young, | the sons of Jonak.

15. “But round Svanhild | handmaidens sat,


She was dearest ever | of all my children;
So did Svanhild | seem in my hall
As the ray of the sun | is fair to see.

16. “Gold I gave her | and garments bright,


Ere I let her go | to the Gothic folk;
Of my heavy woes | the hardest it was
When Svanhild’s tresses | fair were trodden
In the mire by hoofs | of horses wild.

17. “The sorest it was | when Sigurth mine [543]


On his couch, of victory | robbed, they killed;
And grimmest of all | when to Gunnar’s heart
There crept the bright-hued | crawling snakes.

18. “And keenest of all | when they cut the heart


From the living breast | of the king so brave;
Many woes I remember, | . . . . . . . .
. . . . . . . . | . . . . . . . .

19. “Bridle, Sigurth, | thy steed so black,


Hither let run | thy swift-faring horse;
Here there sits not | son or daughter
Who yet to Guthrun | gifts shall give.

[544]

20. “Remember, Sigurth, | what once we said,


When together both | on the bed we sat,
That mightily thou | to me wouldst come
From hell and I | from earth to thee.

21. “Pile ye up, jarls, | the pyre of oak,


Make it the highest | a hero e’er had;
Let the fire burn | my grief-filled breast,
My sore-pressed heart, | till my sorrows melt.”

22. May nobles all | less sorrow know,


And less the woes | of women become,
Since the tale of this | lament is told.

[536]

[Contents]

NOTES
[538]

Prose. In the manuscript the prose is headed “Of Guthrun,” the title
“Guthrunarhvot” preceding stanza 1. The prose introduction is used
both by Snorri (Skaldskaparmal, chapter 42) and in the
Volsungasaga. It would be interesting to know on what the annotator
based this note, for neither Bikki nor Randver is mentioned by name
in either the Guthrunarhvot or the Hamthesmol. On the prose notes
in general, cf. Reginsmol, introductory note. Guthrun: on the slaying
of Atli by his wife, Guthrun, Sigurth’s widow, cf. Atlamol, 83–86 and
notes. Jonak: a Northern addition to the legend, introduced to
account for Svanhild’s half-brothers; the name is apparently of Slavic
origin. Sorli, Erp, and Hamther: Sorli and Hamther are the Sarus and
Ammius of the Jordanes story (cf. introductory note). The
Volsungasaga follows this note in making Erp likewise a son of
Guthrun, but in the Hamthesmol he is a son of Jonak by another
wife. Svanhild: cf. Sigurtharkvitha en skamma, 54 and note.
Jormunrek (Ermanarich): cf. introductory note. Bikki: the Sifka or
Sibicho of the Gothic legends of Ermanarich, whose evil counsel
always brings trouble. Randver: in the Volsungasaga Jormunrek
sends his son Randver with Bikki to seek Svanhild’s hand. On the
voyage home Bikki says to Randver: “It were right for you to have so
fair a wife, and not such an old man.” Randver was much pleased
with this advice, “and he spake to her with gladness, and she to
him.” Thus the story becomes near of kin to those of Tristan and
Iseult and Paolo and Francesca. According to the Volsungasaga,
Bikki told Ermanarich that a guilty love existed between his son and
his young wife, and presumably the annotator here meant as much
by his vague “this.” [539]

1. The poet’s introduction of himself in this stanza is a fairly certain


indication of the relative lateness of the poem.

2. Idle: a guess; a word is obviously missing in the original. The


manuscript marks line 5 as beginning a new stanza, and lines 5–6
may well have been inserted from another part of the “old”
Hamthesmol (cf. Hamthesmol, 3).

3. Gunnar and Hogni: cf. Drap Niflunga. Line 5 may be interpolated.


Hunnish: here used, as often, merely as a generic term for all South
Germanic peoples; the reference is to the Burgundian Gunnar and
Hogni.

4. Hamther: some editions spell the name “Hamthir.” Sigurth, etc.: cf.
Sigurtharkvitha en skamma, 21–24, and Brot, concluding prose. This
stanza has been subjected to many conjectural rearrangements,
[540]some editors adding two or three lines from the Hamthesmol.

5. Bloody: a guess; a word in the original is clearly missing, and the


same is true of all in line 3. Thy sons: i.e., by killing her sons Erp and
Eitil (cf. Atlamol, 72–74) Guthrun deprived Hamther, Sorli, and the
second Erp of valuable allies in avenging Svanhild’s death.
6. The manuscript indicates no gap, but most editors assume the
loss of one, two or even more lines before the two here given.

7. The manuscript indicates line 4 as beginning a new stanza.

8. Line 1, identical with line 1 of stanza 4, may be interpolated


[541]here. Spear-god: warrior, i.e., Hamther himself. With this stanza
the introductory hvot (“inciting”) ends, and stanza 9 introduces the
lament which forms the real body of the poem.

11. Line 1 in the original is of uncertain meaning. Many editors


assume the loss of a line after line 1, and some completely
reconstruct line 1 on the basis of a hypothetical second line. Princes:
Gunnar and Hogni.

12. Some editors assume the loss of one line, or more, before line 1.
Hniflungs: Erp and Eitil, the sons of Guthrun and Atli. On the
application of the name Niflung (or, as later spelt, [542]Hniflung) to
the descendants of Gjuki, Guthrun’s father, cf. Brot, 17, note.

13. Norns: the fates; cf. Voluspo, 8 and note.

14. The manuscript omits the first half of line 4.

16. Some editors assume a gap of two lines after line 2, and make a
separate stanza of lines 3–5; Gering adds a sixth line of his own
coining, while Grundtvig inserts one between lines 3 and 4. The
manuscript indicates line 5 as beginning a new stanza.

17. The manuscript does not indicate line 1 as beginning a stanza


(cf. note on stanza 16). Stanzas 17 and 18 are very likely [543]later
interpolations, although the compilers of the Volsungasaga knew
them as they stand here. The whole passage depends on the
shades of difference in the meanings of the various superlatives:
harþastr, “hardest”; sárastr, “sorest”; grimmastr, “grimmest,” and
hvassastr, “keenest.” Snakes: cf. Drap Niflunga.
18. The king: Hogni; cf. Atlakvitha, 25. The manuscript marks line 3
as beginning a new stanza. Most editors agree that there is a more
or less extensive gap after stanza 18, and some of them contend
that the original ending of the poem is lost, stanzas 19–21 coming
from a different poem, probably a lament closely following Sigurth’s
death.

19. The manuscript does not indicate line 1 as beginning a stanza,


and it immediately follows the fragmentary line 3 of stanza 18. The
resemblance between stanzas 19–21 and stanzas 64–69 of
Sigurtharkvitha en skamma suggests that, in some otherwise lost
version of the story, Guthrun, like Brynhild, sought to die soon after
Sigurth’s death. Thy steed: Guthrun’s appeal to the dead Sigurth to
ride back to earth to meet her is reminiscent of the episode related in
Helgakvitha Hundingsbana II, 39–48. The promise mentioned in
stanza 20 is spoken of elsewhere only in the Volsungasaga
paraphrase of this passage. [544]

21. Perhaps something has been lost between stanzas 20 and 21, or
possibly stanza 21, while belonging originally to the same poem as
stanzas 19 and 20, did not directly follow them. Sore-pressed: a
guess; a word seems to have been omitted in the original.

22. Words of the poet’s, like stanza 1, and perhaps constituting a


later addition. Many editors assume the loss of a line after line 3. The
meaning, of course, is that the poet hopes the story of Guthrun’s
woes will make all other troubles seem light by comparison. [545]

[Contents]
HAMTHESMOL
The Ballad of Hamther
[Contents]

Introductory Note
The Hamthesmol, the concluding poem in the Codex Regius, is on
the whole the worst preserved of all the poems in the collection. The
origin of the story, the relation of the Hamthesmol to the
Guthrunarhvot, and of both poems to the hypothetical “old”
Hamthesmol, are outlined in the introductory note to the
Guthrunarhvot. The Hamthesmol as we have it is certainly not the
“old” poem of that name; indeed it is so pronounced a patchwork that
it can hardly be regarded as a coherent poem at all. Some of the
stanzas are in Fornyrthislag, some are in Malahattr, one (stanza 29)
appears to be in Ljothahattr, and in many cases the words can be
adapted to any known metrical form only by liberal emendation. That
any one should have deliberately composed such a poem seems
quite incredible, and it is far more likely that some eleventh century
narrator constructed a poem about the death of Hamther and Sorli
by piecing together various fragments, and possibly adding a
number of Malahattr stanzas of his own.

It has been argued, and with apparently sound logic, that our extant
Hamthesmol originated in Greenland, along with the Atlamol. In any
case, it can hardly have been put together before the latter part of
the eleventh century, although the “old” Hamthesmol undoubtedly
long antedates this period. Many editors have attempted to pick out
the parts of the extant poem which were borrowed from this older
lay, but the condition of the text is such that it is by no means clear
even what stanzas are in Fornyrthislag and what in Malahattr. Many

Você também pode gostar