LimaBarretoContosCorExclusao Lima 2016

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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE


CENTRO DE ENSINO SUPERIOR DO SERIDÓ
CAMPUS DE CAICÓ – DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA DO CERES
ESPECIALIZAÇÃO EM HISTÓRIA E CULTURA AFRICANA E AFRO-BRASILEIRA

WEBERSON DE AQUINO LIMA

LIMA BARRETO:
CONTOS DE COR E EXCLUSÃO NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX

CAICÓ
2016
1

WEBERSON DE AQUINO LIMA

LIMA BARRETO:
CONTOS DE COR E EXCLUSÃO NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX

Trabalho de Conclusão de Curso, na


modalidade Artigo, apresentado ao Curso de
Especialização em História e Cultura Africana
e Afro-Brasileira, da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte, Centro de Ensino
Superior do Seridó, Campus de Caicó,
Departamento de História, como requisito
parcial para obtenção do grau de Especialista,
sob orientação do Prof. Dr. Joel Carlos de
Souza Andrade.

CAICÓ
2016
2

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 3
2 O SER (PRÉ) MODERNO ...................................................................................................... 6
3 ANÁLISES .............................................................................................................................. 9
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................ 18
FONTES ................................................................................................................................... 19
REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 20
3

LIMA BARRETO: CONTOS DE COR E EXCLUSÃO NAS PRIMEIRAS DÉCADAS


DO SÉCULO XX

Weberson de Aquino Lima *


Joel Carlos de Souza Andrade – Orientador†
RESUMO
Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), neto de escravos, e filho de libertos, e para a
maioria dos autores contemporâneos o primeiro autor brasileiro a se reconhecer e definir
como literato negro, que rompeu os preconceitos do final do século XIX e inicio do Século
XX e inovou a literatura brasileira com seu estilo e linguagem informal para a época. Lima
Barreto pensava o Brasil a partir de seus contos sobre a vida nos subúrbios cariocas. Criou
personagens essencialmente urbanos, do povo, onde na maioria das vezes denunciavam as
injustiças e os preconceitos, uma espécie de laboratório para se compreender e pensar sobre os
avanços sociológicos da uma sociedade pós-abolição, que neste mesmo contexto introduzia
energicamente os discursos científicos raciais e o determinismo. Sob um olhar pré-moderno
do ponto de vista histórico/literário temos nos contos do autor um reflexo de seu período e
através deste reflexo é que é pretendido analisar e tentar entender como os personagens
negros eram vistos e retratadas pelo autor e até onde as questões da cor viriam a interferir nas
relações sociais.

PALAVRAS-CHAVE
Lima Barreto, Preconceito, Séculos XIX e XX.

*
Discente do Curso de Especialização em História e Cultura Africana e Afro-Brasileira – Universidade Federal
do Rio Grande do Norte (UFRN), Centro de Ensino Superior do Seridó (CERES), Campus de Caicó,
Departamento de História (DHC). Graduado em Letras pela UFRN, CERES, Campus de Currais Novos.
E-mail: webersonmonster@hotmail.com

Professor do DHC, CERES, UFRN. E-mail: jocadesoan@yahoo.com.br
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1- INTRODUÇÃO
O escritor Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922) tem sido nas últimas
décadas objeto de estudo e discursões em diversas áreas do conhecimento tais como;
Literatura, Sociologia e História, tendo como foco principal, aspectos de produção literária
relacionados à crítica de “certa” construção da identidade nacional, à denúncia, à exclusão
social durante os primeiros anos da Republica, a características de sua escrita, e a imagens
referentes à modernidade brasileira (NORONHA, 2009). Tal fato para que tais estudos
ocorram está baseado na convicção de que a Literatura pode complementar a História, dado
que, apesar de ser uma escrita ficcional, se for baseada em factos históricos, fornece uma
aproximação emocional aos acontecimentos que é negada ao discurso histórico (AZEVEDO,
2010).
Nota-se no referido autor uma preocupação/temática recorrente para com a
representação da sociedade de sua época como também, mesmo que indiretamente muitas
vezes, esta representação volte-se para o seu próprio passado; de negro nas primeiras décadas
do Século XX.
A análise dos motivos que levam um sujeito a desenvolver uma determinada
atividade na sociedade em que atua está relacionada às experiências que
vivenciou ao longo de sua jornada. [...] Ou seja, o acompanhamento dos
diferentes momentos da sua existência é o que nos oferece os indícios
indispensáveis para compreendermos as suas escolhas dentre as
possibilidades que existiam na época em que viveu. (NORONHA, 2009 p.
20).

Nas palavras de Alfredo Bosi (1994, p.339) Em linhas gerais poderíamos dizer que
“A biografia de Lima Barreto explica o húmos ideológico de sua obra: A origem humilde, a
cor, a vida penosa de jornalista pobre e de pobre amanuense, aliadas a própria situação
social”.
Segundo Francisco de Assis Barbosa (1981), Lima Barreto nasceu em 1881 na cidade
do Rio de Janeiro. Os seus pais foram os mulatos João Henriques de Lima
Barreto e Amália Augusta Barreto. Uma trajetória diferenciada da maior parte da população
negra dos fins do século XIX no qual a escravidão, já apresentando sinais de decadência,
ainda marcava profundamente a sociedade. João Henriques, era filho de uma escrava (Carlota
Maria dos Anjos) e de um português que não reconhecera a sua paternidade, teve uma
instrução considerável com estudos de humanidades e francês realizado no Instituto
Comercial da Corte, chegando a realizar estudos preparatórios, durante as folgas de seu
trabalho como tipógrafo, a fim de entrar na Escola de Medicina.
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Já Amália Augusta era filha de uma liberta que trabalhava para a família Pereira de
Carvalho cujo chefe era o cirurgião Manoel Feliciano. Este, afirma Francisco Barbosa a partir
de informação cedida pela irmã de Lima D. Evangelina, era o provável bisavô de Lima
Barreto, pois suspeitavam que Amália e seus três irmãos fossem “filhos dos varões da casa”.
Aquela família auxiliou a criação de Amália, dando-lhe condições para que se
diplomasse em professora pública, o que, após o casamento com João Henriques, permitiu a
abertura do seu colégio para meninas chamado Santa Rosa em 1878 no bairro das Laranjeiras.
Essa origem dos seus pais marcaria profundamente a formação de Lima Barreto não só pela
contribuição que eles puderam dar nos seus estudos como no que se refere ao tema do
preconceito racial presente na sua produção literária.
A literatura de Lima Barreto está vinculada à realidade social urbana e suburbana do
Rio de Janeiro e é comumente distribuída em seis gêneros: romance, memória, sátira,
epistolografia, crônica e conto, embora que, como antes citado, a obra de Lima Barreto venha
sendo muito estudada durante as últimas décadas, estes estudos tem como objeto especifico de
análise o romance. Partindo deste ponto este trabalho apresenta uma alteração no objeto, a
mudança de olhar dos romances, dos escritos longos e mais densos, para os contos, narrativas
curtas, com menos personagem e com enredos mais simples, porém com importante valor
cultural e social. A partir destes contos e de seus personagens urbanos pretende-se investigar,
analisar e tentar entender como estes personagens negros se apresentam ou são mostrados e
até onde as questões da cor viriam a interferir nas relações destes personagens no contexto
histórico das primeiras décadas do Século XX, em outras palavras, a proposta deste trabalho é
usar a literatura, como uma forma possuidora de historicidade e como fonte documental para a
produção do conhecimento histórico e através da analise contextual do discurso e construir
uma pesquisa bibliográfica realizada em livros e artigos impressos ou eletrônicos para se
investigar e analisar como os personagens negros são retratados nos contos do escritor Afonso
Henriques de Lima Barreto.
Para consulta e analise do presente trabalho optou como fonte primária a edição do
livro Contos Completos de Lima Barreto (2010) organizado por Lilia Moritz Schwarcz, que
reúne mais de 100 contos do autor, resgatados por meio de pesquisas em manuscritos, edições
originais, jornais e revistas da época (e que segundo a própria Schwarcz, perpassa toda a
carreira do autor que é testemunha ocular das convulsões políticas e sociais da República
Velha, sendo um dos primeiros escritores a assumir sua negritude no Brasil e nas
manifestações mais livres e reveladoras de seus contos.). Embora que tenhamos acesso ao
livro em sua totalidade optou-se por trabalhar um número reduzido de contos, descartando,
6

por exemplo, contos estejam voltados especialmente para questões politicas e afins para
focarmos apenas nos que apresentam/mostram traços ligados à população negra urbana e
suburbana daquele período.

2 O SER (PRÉ) MODERNO


Na historiografia da Literatura Brasileira o Pré-Modernismo é colocado didaticamente
no contexto do inicio do Século XX dos anos de 1900 a 1922. O que se convencionou chamar
de pré-modernismo não constituirá uma escola literária ou movimento literário tendo em vista
que a grande gama de autores daquela época não partilhava um ideal artístico comum, logo o
que se entende por pré-moderno será um termo que irá designar toda uma vasta produção
literária, que caracteriza parte das duas primeiras décadas do século XX. No contexto politico
brasileiro da época os governantes defendiam as oligarquias rurais com as quais estavam
comprometidos, ignorando a miséria vivida pela maioria da população do país. Os centros
urbanos cresceram desordenamente em quanto o país recebia um grande contingente de
imigrantes advindos da Europa, que vieram o Brasil para tentar substituir a mão de obra
escrava no Centro-Sul, além de abrigar um grande numero de ex-escravos que muitas vezes
não conseguiam a chamada integração social mesmo após a abolição da escravatura e ficavam
marginalizados.
O Pré-Modernismo é um termo utilizado por Tristão de Athayde por convenção crítica
para definir este período, este momento de transição cultural, em que coexistiram tendências
estéticas distintas. Mesmo assim o período Pré-Moderno apresenta uma quebra ou ruptura
com valores estéticos antes estabelecidos como afirma Alfredo Bosi (1994, p. 209): “Diria
que é efetiva e organicamente pré-modernista tudo o que rompe de algum modo cultura
oficial, alienada e verbalista e abre caminho para sondagens sociais e estéticas retomadas a
partir de 22”. Ou ainda que apresente uma preocupação em mostrar um retrato fidedigno da
realidade social brasileira no período de consolidação da Republica: “creio que se pode
chamar de pré-modernista [...] tudo que nas primeiras décadas do século, problematiza a nossa
realidade social e cultural”. (BOSI, 1994, p. 327).
É nesta alteração de valores estéticos muitos os quais ligados à escola parnasiana é que
se destaca a escrita barretiana, sua temática, mudança de núcleo e afins:

Sua estética, por meio do viés do jornalismo, se distinguira principalmente


pela simplicidade, pelo despojamento, contenção e espirito de síntese,
aplicado a linguagem narrativa; enquanto o tratamento temático se voltaria
7

para o cotidiano, os tipos comuns, as cenas de rua, os fatos banais e a


linguagem usual. (SEVCENKO, 2003, p. 198).

Vemos assim o autor tratar de temas, ambientes e personagens referidos ao


cotidiano, ao domestico, as baixas classes sociais e, portanto, segundo a
tradição, somente merecedores de um entrecho de comedia burlesca ou de
farsa popular. Lima Barreto, entretanto, reserva para os figurantes da sua
obra um tratamento trágico superior, que aufere a máxima dignidade humana
a qualquer deles [...] O autor tem plena consciência das consequências
sociais dessa orientação imprimida à sua produção intelectual.
(SEVCENKO, 2003, p. 195).

É importante ressaltar “que muitos dos autores deste período estavam presos às
ideologias raciológicas ainda em voga, [...]. Outros escritores, por sua vez, escolheram a
contramão do poder, como é ocaso de Lima Barreto, procurando, de forma crítica e
contundente, denunciar as mazelas sociais da época.” (DINIZ, 2010, p. 45).
Esta preocupação com a problematização da realidade sociocultural brasileira e a
excelente produção literária da época desperta em autores como Flávio Kothe a ideia de que o
pré-modernismo não é apenas um momento de transição para o Modernismo:

Como pode ser “pré” uma literatura que foi tão “avançada” quanto àquela
que a sucedeu? O pressuposto do pré é o que vem depois dele. Então ele é
posterior ao posterior, e não anterior a ele: é um antes que vem depois. Ele
serve para fazer de conta que o que vem depois é superior, mais evoluído, e
para fazer de conta que o anterior só tem validade em função do que lhe é
posterior. (KOTHE, 2004, p. 110).

Logo segundo Nicolau Sevcenko (2003, p. 106) pode-se afirmar que:

Intelectuais desse período se preocupam excessivamente em construir uma


imagem do brasileiro, a partir de um tipo étnico desejado. Nesse contexto é
que se inserem os esforços renitentes despendidos na tentativa de determinar
um tipo étnico específico representativo da nacionalidade ou pelo menos
simbólico dela, que se prestasse a operar como um eixo sólido que centrasse,
dirigisse e organizasse as reflexões desnorteadas sobre a realidade nacional.

De maneira resumida, pode-se afirmar que o pré-modernismo é um momento


ambíguo, até pelo seu caráter transitório, mas de uma produção literária expressiva, não só no
aspecto quantitativo, mas no qualitativo. Quanto a Lima Barreto, ainda que cronologicamente
esteja compreendido neste período, preferimos percebê-lo como um modernista pelo seu
caráter visionário e a forma dar aos seus escritos uma marca universalizante do homem
brasileiro, embora seus textos fossem tecidos com as teias colhidas do dia-a-dia das pessoas
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mais simples da sociedade daquela época pertencentes aos rincões mais simples de nossa
sociedade. (DINIZ, 2010).
Lima Barreto estava vivenciando o novo regime, as desigualdades e os conflitos
sociais do Brasil, que naquela época nas palavras de Maria Zilda Cury (1981, p.117) “Pode-se
caracterizar modelo socioeconômico da primeira republica como agroexportador comercial”,
e ainda onde “o quadro geral da sociedade brasileira dos fins do século vai se transformando
graças a processos de urbanização e a vinda de imigrantes europeus [...].Paralelamente,
deslocam-se ou marginalizam-se os antigos escravos em vastas áreas do pais’’ (BOSI, 1994,
p.324)
Os contatos com o cotidiano das camadas populares e as produções e os
comportamentos da intelectualidade reunida na cidade do Rio de Janeiro
foram um verdadeiro campo de observação para Lima Barreto construir o
caminho que a sua literatura devia trilhar. (NORONHA, 2006, p.6).

O fato de mostrar a vida dos subúrbios, dos pobres, dos negros, dos marginalizados de
seu período faz com que “o autor preconize uma literatura militante” (CURY, 1981, p.100).

[...] combate a literatura institucionalizada “de salão”. Denuncia a


marginalização que lhe é imposta enquanto escritor. Condena a imprensa os
grandes jornais, alegando que deveriam ter função precípua de luta, de
denuncia, de posicionamento ao lado dos mais humildes, dos discriminados.
(CURY, 1981, p.101).

Esta atitude de um negro que resolve escrever sobre a população, a realidade e as


mazelas de seus semelhantes em uma época em que o negro as teorias de superioridade racial
eram difundidas no país, proporcionam um lugar de destaque ao autor: “Lima Barreto seria a
expressão de um novo bloco histórico, o popular [...] Lima Barreto é importante como
expressão de um limite histórico, como um projeto contraditório de lançar uma palavra nova
de ser expressão de uma camada marginalizada da época” (CURY, 1981, p.26). Assim a obra
de mulato se configura só como um desabafo não apenas pessoal, mas de toda uma população
marginalizada.
Esta ideia de literatura como denúncia é um traço marcante e presente em toda sua
obra e que anos mais tarde viria a influenciar toda uma geração chamada modernista:
“Caberia ao romance de Lima Barreto [...] o papel histórico de mover as águas estagnadas da
belle époque revelando antes dos modernistas, as tensões que sofria a vida nacional” (BOSI,
1994, p. 327).
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3 ANÁLISES
O cenário caótico e os conflitos de transição de um regime para outro, que faziam
parte da realidade de Lima Barreto contribuíram com um cenário fértil para a produção do
autor e sua pluralidade de temas abordados.

A amplitude de temas que Lima Barreto abrange em sua produção literária


[...] Verifica-se nele o mesmo anseio de revelar em seus textos um retrato
maciço e condensado do presente, carregando do máximo de registros e
notações dos vários níveis em que o saber do seu tempo permitia captar e
compreender o real. (SEVCENKO, 2003, p. 190).

Tornando sua obra um perfeito retrato com inúmeras possibilidades de representação e


contemplação do real abrangendo não apenas uma visão parcial, mas um todo dos eventos que
o cercava.
O temário de sua obra inclui: movimentos históricos, relações sociais e
raciais, transformações, sociais, politicas, econômicas e culturais; ideais
sociais, políticos e econômicos; critica social, moral e cultural; discussões
filosóficas e cientificas; referências ao presente imediato, recente e ao futuro
próximo; ao cotidiano urbano e suburbano, á politica nacional e
internacional, á burocracia, dados biográficos, realidade do sertão,
descrições geológicas e geográficas e analises históricas. Praticamente tudo
o que de mais relevante oferecia a realidade de sua época como se pode
perceber. E todos esses temas são refletidos de tal forma enovelados em seus
textos. (SEVCENKO, 2003, p. 191).

Tão vasta quanto a sua temática era a sua galeria de tipos de personagens, que iam dos
mais altos níveis as bases da pirâmide social, ganhando destaque os tipos comuns, cotidianos
renegados e marginalizados do dia a dia carioca do inicio do século XX.

A galeria de seus personagens é uma das mais vastas e variadas da literatura


brasileira destacam-se nela, em particular, os tipos excusos e execrados –
mas mesmos esses se perdem dentre uma legião de figuras representativas
dos mais diversos meios. É praticamente todo o Rio de Janeiro do seu tempo
que nos aparece agitado e tenso, condensado mais nos seus vícios do que nas
suas virtudes. Todas as personagens trazem a marca do seu meio e
constituem o objeto privilegiado da critica social do autor. Nenhum aparece
de forma inócua ou decorativa, todos concorrem para consagrar o destino
“militante” de sua literatura. (SEVCENKO, 2003, p. 192).

Nada mais justo que para personagens assim fossem destinados cenários fora do ideal
burguês, mas dentro do que era real e palpável para se alcançar a maior proximidade possível
com o que era vivido na época longe do centro da cidade, de suas belas e imponentes
fachadas.
Os ambientes em que Lima Barreto vai buscar e apresentar os seus heróis e
vilões são também os mais diversos e desnivelados suas descrições
envolvem: (...) ainda aqui se verifica como a preocupação do autor é
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abranger o maior volume possível da realidade social, traduzindo, inclusive


e sobretudo, as suas várias fissuras e tensões. Sua atenção escapa do cenário
de mármore e cristal montado no centro da cidade (...) par deter-se –
demoradamente- na realidade enfermiça que se oculta por detrás daquela
fachada imponente. É novamente o efeito chocante e a estagnação ao leitor
que o escritor enceta. (SEVCENKO, 2003, p. 192-193).

Para análise optou-se pela escolha dos seguintes contos: “O Moleque”, “Clara dos
Anjos” (ambos publicados originalmente na 1° edição de Histórias e sonhos 1920), “Um
Especialista” (Escrito em Setembro de 1904 e publicado originalmente na 1° edição de Triste
Fim de Policarpo Quaresma, no ano de 1915) e “O Pecado” (texto datado de Junho de 1904 e
conferido a partir da revista Souza Cruz, ano VII, n.92, Agosto de 1924) todos retirados da
compilação que formam o livro Contos Completos de Lima Barreto (2010) organizado por
Lilia Moritz Schwarcz. O critério para escolha dos contos foi meramente ligado a aspectos
relacionados com a questão da cor e a relação social.
Em “O Moleque” Lima Barreto irá tratar do cotidiano e da vida difícil dos habitantes
de uma comunidade Suburbana de Inhaúma (vocábulo de origem indígena, que em Tupi quer
dizer argila ou água escura e barrenta). Um dos primeiros pontos a chamar atenção do leitor é
a minuciosa e detalhada descrição que o narrador de Lima Barreto como observador de seu
tempo faz sobre o subúrbio de Inhaúma, algo que perpassa o espaço físico, mas aspectos da
população negra daquele lugar ressaltando ainda a seu nome origem advindo dos primeiros
homens, em língua tupi, língua dos antigos moradores da vila que confere assim certa
resistência à modernização deixando evidente o caráter rústico do lugar: “Inhaúma é ainda dos
poucos lugares da cidade que conserva o seu primitivo nome caboclo, zombando dos esforços
dos nossos edis para apagá-lo” (BARRETO, 2010, p.143). Inhaúma também pode ser
considerado no conto como um lugar de refugio onde as pessoas se sentiriam livres para
praticar fés e crenças ancestrais estas possivelmente de origens africanas e outras vertentes
religiosas sem maiores perturbações ou interferência policial, observando que apenas o
catolicismo e seus representantes não eram o bastante para atender aqueles moradores dos
morros ou adjacências.
E um subúrbio de gente pobre, [...] Fogem para lá, sobretudo para seus
morros e escuros arredores, aqueles que ainda querem cultivar a Divindade
como seus avós. Nas suas redondezas, é o lugar das macumbas, das práticas
de feitiçaria com que a teologia da polícia implica, pois não pode admitir nas
nossas almas depósitos de crenças ancestrais.
O espiritismo se mistura a eles e a sua difusão é pasmosa. A Igreja católica
unicamente não satisfaz o nosso povo humilde. É quase abstrata para ele,
teórica. Da divindade, não dá, apesar das imagens, de água benta e outros
objetos do seu culto, nenhum sinal palpável, tangível de que ela está
presente. O padre, para o grosso do povo, não se comunica no mal com ela;
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mas o médium, o feiticeiro, o macumbeiro, se não a recebem nos seus


transes, recebem, entretanto, almas e espíritos que, por já não serem mais da
terra, estão mais perto de Deus e participam um pouco da sua eterna e
imensa sabedoria. (BARRETO, 2010, p.143).

Neste caso o sincretismo religioso e a figura dos médiuns e outros que por vezes
substitui a presença de médicos nas imediações compõem um quadro de elementos da cultura
popular associadas à cultura proveniente dos povos africanos se fazem fortes e presentes
Inhaúma formando um tipo de teia mística que surge a partir da religião, superstições e
crenças daquela gente, crenças estas que fazem parte da identidade daquele lugar, ou seja, este
misto de elementos liga-se às necessidades do povo.
Os médiuns que curam merecem mais respeito e veneração que os mais
famosos médicos da moda. Os seus milagres são contados de boca em boca,
e a gente de todas as condições e matizes de raça a eles recorre nos seus
desesperos de perder a saúde e ir ao encontro da Morte. [...]. A feitiçaria, o
espiritismo, a cartomancia e a hagiologia católica se baralham naquelas
práticas, de modo que faz parecer que de tal baralhamento de sentimentos
religiosos possa vir nascer uma grande religião, como nasceram de
semelhantes misturas as maiores religiões históricas. (BARRETO, 2010,
p.143)

Outro ponto que Lima Barreto faz é acerca das moradias ou como o autor nomeia “o
barracão” tipo de moradia simples e comum de toda a comunidade e vivendo nestes tais
barracões é que encontramos figuras femininas fortes destacadas pelas suas virtudes, são estas
Baiana, Dona Felismina e Dona Emerenciana. Baiana é descrita como “rica” por ser dona de
uma casa feita de tijolos em meio aos demais barracões da Rua dos Espinhos. Notando que a
casa da negra fora comprada com o dinheiro proveniente de seu trabalho: “Vendedora de
angu, em outros tempos, conseguira juntar alguma cousa e adquirira aquela casita, a mais bem
tratada da rua” (BARRETO, 2010, p.146). Quanto a sua personalidade era uma mulher
independente e de bom coração capaz de boas ações e de uma solidariedade que ia além da
barreira da cor já que a mesma tinha adotado uma criança branca abandonada nas imediações:

Tinha "homem" em quanto lhe servia; e, quando ele vinha aborrecê-la


mandava-o embora, mesmo a cabo de vassoura. Muito enérgica e animosa,
possuía uma piedade contida que se revelou perfeitamente numa aventura
curiosa de sua vida. Uma manhã havia cinco ou seis anos, saindo com o seu
tabuleiro de angu, encontrou em uma calçada um embrulho um tanto grande.
Arriou o tabuleiro e foi ver o que era. Era uma criança, branca - uma menina.
Deu os passos necessários e criava a criança, que, nas imediações, era
conhecida por "Baianinha". (BARRETO, 2010, p.143)

Quanto a Dona Felismina e Dona Emerenciana eram negras e honestas, a primeira


viúva, mãe do menino Zeca, lavadeira, adepta do espiritismo e digna de honra e virtude de
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todos da rua, enquanto esta segunda não é apresentada grandes informações além de sua cor e
sua honestidade próximas a de Dona Felismina:

Dona Emerenciana era casada com o senhor Romualdo, servente ou cousa


que o valha em uma dependência da grande oficina do Trajano. Era preta
como dona Felismina e honesta como ela.Defronte ficava a residência da
Antônia, uma rapariga branca, com dous filhos pequenos, sempre sujos e
rotos. [...] A vizinhança, ao mesmo tempo que falava dela, tinha-lhe piedade
[...]
Dona Felismina gozava de toda a consideração nas cercanias e até de crédito,
tanto no Antunes, como no Camargo da padaria. Além de lavar para fora,
tinha uma pequena pensão que lhe deixara o marido [...]. Era uma preta de
meia-idade, mas já sem atrativo algum.
Tudo nela era dependurado e todas as suas carnes, flácidas. Lavava todo o
dia e todo o dia vivia preocupada com o seu humilde mister. Ninguém lhe
sabia uma falta, um desgarro qualquer, e todos a respeitavam pela sua honra
e virtude. Era das pessoas mais estimadas da ruela e todos depositavam na
humilde crioula a maior confiança. (BARRETO, 2010, p.145).

Assim um nas palavras de Romulo Costa Mattos (2013, p.6) ao afirmar que Dona
Felismina e Dona Emerenciana eram negras e honestas, Lima Barreto:

contradizia o reiterado discurso de que os negros e os moradores das favelas,


além de desprovidos de moral, pertenceriam às “classes perigosas”. Não
encontramos no conto “O Moleque” condenações à suposta promiscuidade, à
precária condição sanitária e à presença de contraventores nas favelas.

E ao fazer isto o discurso de Lima Barreto ainda contradiz um segundo discurso de tradição
de pensamento que apontava para o servilismo e a dependência dos negros, que seriam
naturais tendo em vista a suposta inferioridade racial, fato este simulado na autonomia e
possibilidade de as mulheres pobres arrumarem serviço com mais facilidade as colocava em
posição de relativa independência como nos é mostrado e defendido por Romulo Costa
Mattos no conto.
É perceptível que o autor também trás a tona mais que apenas a face da virtude dos
viventes de Inhaúma, ele trás também o preconceito diário de que as populações negras e
pobres eram vítimas em meados do início do Século XX em situações cotidianas: A primeira
revela-se quando Baianinha (menina branca criada pela negra Baiana) passava em frente à
venda, o caixeiro costumava lhe falar, em tom de brincadeira: “– Baianinha, tua mãe é negra”
(BARRETO, 2010, p.146). E a segunda em relação a Zeca (menino negro filho de Dona
Felismina), por sua vez, ouvia dos meninos: “ó moleque! – ó moleque! – ó negro – ó gibi!”
(BARRETO, 2010, p.151). O que segundo Mattos (2013) irá justificar o nome do conto já que
era a forma como os escravos eram conhecidos quando crianças e ainda que “o garoto Zeca
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representava bem o que Lima Barreto queria ressaltar nas crianças das favelas: Doce,
resignado, e obediente, por causa do zelo da mãe, vivia com a carapinha sempre aparada [...] e
com as roupas sempre limpas”. Ao contrario dos filhos da Prostituta Branca Vitória, ousando
assim uma contradição do que se era disseminado acerca das pessoas do subúrbio.
De modo geral o conto “O Moleque” produz o que é defendido por autores como Maria Zilda
Ferreira Cury que é a literatura barretina serviu e serve como forma de representação do perfil
dos marginalizados, negros e brancos pobres tornando-se a expressão de uma camada
marginalizada da época. Isto se faz presente e evidente nas descrições das moradias e no
tratamento dado aquele lugar e aquelas pessoas. Neste primeiro conto o elemento da cor ele é
repreendido pela virtude de algumas personagens contradizendo o que era o discurso daquele
período; a incapacidade inata do trabalhador negro que fora agravada pelo período do
cativeiro era muito difundida entre as classes dominantes. Assim, a noção de os que negros e
os mulatos se encontravam em um estado de anomia no pós-abolição se explicava pela
herança do escravismo. (SCHWARCZ, 1987).
Antes de partirmos para as próximas análises é necessário que se reflita ou se recorra à
visão ou ao pensamento acerca das mulheres negras naquela época, embora que no conto
abordado acima Lima Barreto tenha focado na virtude das personagens Baiana, Dona
Felismina e Dona Emerenciana os dois próximos contos Um Especialista e Clara dos Anjos
irão nos levar a refletir sobre o outro lado da negritude, os mulatos mais especificamente
como as mulheres mulatas ainda eram vistas nas primeiras décadas do Século XX.
Para Borges (2012) Entende-se que a escravidão no Brasil, pregava a inferioridade
intelectual do negro, sua falta de caráter e tendência à preguiça e à submissão. E nesta
disseminação é que se implantou a imagem de senhores e escravos submissos, a ideia de
submissão que por sua vez resultava em um intercurso sexual constante entre os senhores e as
escravas, negras ou mulatas sendo estas ultimas nas palavras de Lucina Borges (2012, p. 561-
580):
No caso das mulatas, a preferência por elas se dá justamente por que, pela
ideologia do embranquecimento, a mulata se aproximaria mais das mulheres
brancas, ao mesmo tempo em que, por inversão, distanciam-se das negras.

A partir do que foi visto acima teceremos uma breve analise dos contos Um
Especialista e Clara dos Anjos. O conto Um Especialista inicia-se com a apresentação de dois
personagens e suas conquistas ou preferencias sexuais, ambos portugueses de meia idade o
primeiro deles é um Coronel viúvo que tende a gostar de meretrizes de nações estrangeiras o
outro é o Comendador que embora casado e com filhos vive uma vida libertina, mas que ao
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contrario do amigo este por sua vez tinha um gosto particular preferia as mulheres de cor,
negras e mulatas e o mesmo se dizia um especialista e vivia a procura-las:

Gostava das mulheres de cor e as procurava com o afinco e ardor de um


amador de raridades. À noite, pelas praças mal iluminadas, andava catando-
as, joeirando-as com olhos chispantes de lubricidade e, por vezes mesmo, se
atrevia a seguir qualquer mais airosa pelas ruas de baixa prostituição.
— A mulata, dizia ele, é a canela, é o cravo, é a pimenta; é, enfim, a
especiaria de requeime acre e capitoso que nós, os portugueses, desde Vasco
da Gama, andamos a buscar, a procurar. (BARRETO, 2010, p.90)

Sua mais nova “aquisição” era a mulata Alice descrita como um "achado” um
“petisco” Uma “mulata deliciosa” (BARRETO, 2010, p.90). O conto vai se arrastando nas
tramas das festas, dos bailes e dos espetáculos que animavam as noites da burguesia carioca,
até que o Coronel indaga ao comendador o que ele pretende fazer com Alice e o comendador
responde como se fosse obvio o que se pretendia fazer com a moça “É boa... Que pergunta!
Prová-la, enfeitá-la, enfeitá-la e "lançá-la" E é pouco?” (BARRETO, 2010, p.92), ou seja, usar a
moça para satisfação sexual própria e depois prostitui-la dando continuidade ao que Luciana
Borges (2012, p.573) irá definir como “procedimento típico do proprietário de escravos onde
por sua vez ocorre uso do corpo, como degustação pessoal e permanente, bem como a
sublocação do escravo para aumentar os ganhos, no caso, com a prostituição de Alice, e com
os lucros que teria como seu protetor”.
O conto na verdade pode ser centralizado na vida de promiscuidade do Comendador,
que ao tratar a mulata Alice como objeto sexual em uma conversa com moça descobre no
desfecho do conto que a mesma na verdade é sua filha, fruto de uma de suas aventuras quando
jovem, onde o mesmo engravidou, roubou mãe da mulata e a abandonara a própria sorte.
Traços biográficos relatados pela personagem Alice mostram como a sua vida fora amarga e
como a sua figura sempre esteve ligada a duas imagens: a primeira como objeto sexual e a
segunda como meio de gerar lucros para terceiros através de seu trabalho (imagens estas que
irão se mesclar a partir do momento da prostituição), destino este claramente partilhado por
muitas outras moças de cor e de condição semelhantes a sua durante este periodo que mesmo
ao fim do regime escravocrata eram abusadas e exploradas em virtude de sua cor e de sua
posição de mulher em um processo de objetificação originado nos períodos coloniais entre a
cassa grande e a senzala.

Fiquei órfã aos dezoito. Durante esses oito anos tenho rolado por esse mundo
de Cristo e comido o pão que o diabo amassou. Passando de mão em mão,
ora nesta, ora naquela, a minha vida tem sido um tormento. Até hoje só
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tenho conhecido três homens que me dessem alguma coisa; os outros Deus
me livre deles! - só querem meu corpo e o meu trabalho. Nada me davam,
espancavam-me, maltratavam-me. Uma vez, quando vivia com um sargento
do Regimento de Polícia, ele chegou em casa embriagado, tendo jogado e
perdido tudo, queria obrigar-me a lhe dar trinta mil-réis, fosse como fosse.
Quando lhe disse que não tinha e o dinheiro das roupas que eu lavava, só
chegava naquele mês para pagar a casa, ele fez um escarcéu. Descompôs-
me. Ofendeu-me. Por fim, cheio de fúria agarrou-me pelo pescoço,
esbofeteou-me, deitou-me em terra, deixando-me sem fala e a tratar-me no
hospital. Um outro - um malvado em cujas mãos não sei como fui cair - certa
vez, altercamos, e deu-me uma facada do lado esquerdo, da qual ainda tenho
sinal.! Tem sido um tormento... Bem me dizia minha mãe: toma cuidado,
minha filha, toma cuidado. Esses homens só querem nosso corpo por
segundos, depois vão-se e nos deixam um filho nos quartos, quando não nos
roubam como fez teu pai comigo... (BARRETO, 2010, p.95-96)

Embora que “Clara dos Anjos” tenha como ambientação uma parte suburbana da
cidade do Rio de Janeiro assim como no conto “O Moleque”, porém um dos pontos relevantes
do texto e de maior importância para a nossa pesquisa refere-se à descoberta do que é ser uma
mulher de cor na sociedade do começo do século XX por parte da personagem Clara.
A moça Clara é filha do Carteiro Joaquim e é descrita como uma mescla entre os seus
progenitores: “Eram casados há quase vinte anos, mas só tinham uma filha, a Clara. O carteiro
era pardo claro, mas com cabelo ruim, como se diz; a mulher, porém, apesar de mais escura,
tinha o cabelo liso.” (BARRETO, 2010, p.248) Que sempre tinha zelo e carinho pela moça.
Durante o desenvolver do conto Clara acaba por conhecer e se apaixonar pelo senhor Júlio
Costa que é um rapaz branco de má índole e descrito pelo narrador como “o tipo completo do
vagabundo doméstico, como há milhares nos subúrbios e em outros bairros do Rio de
Janeiro” (BARRETO, 2010, p.253), e ainda “Mais de uma vez, ele se vira a braços com a
polícia por causa de defloramento e seduções de menores” (BARRETO, 2010, p.253),
entretanto Júlio pertence a uma família burguesa e não revela suas verdadeiras intenções para
com a protagonista.
A diferença de classes aos olhos de Clara não apresentava aparentemente um
obstáculo para um futuro casamento, temendo a morte dos pais e a possibilidade de estar
sozinha no mundo, Clara por um breve momento chega a cogitar a questão da cor, mas logo
abandona a ideia:
Não havia de ser toda a vida assim como um cão sem dono… Os pais viriam
a morrer e ela não podia ficar pelo mundo desamparada… Uma dúvida lhe
veio: ele era branco; ela, mulata… Mas que tinha isso? Tinham-se visto
tantos casos… Lembrou-se de alguns… Por que não havia de ser?

O caso entre os dois jovens segue até o dia em que Clara se ver gravida e abandonada
e em uma atitude desesperada recorre a pedir ajuda a mãe de Júlio Costa. Embora que o
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narrador faça uma relação de contraste de caráter entre Júlio e Clara de modo a perceber que
mesmo a moça sendo pobre era superior moral e intelectualmente se comparada ao burguês a
família do rapaz principalmente a mãe e as irmãs, não iriam aceitar que uma moça de cor por
ventura juntar-se a família, pois “ elas não admitiriam, para Clara, senão um destino: o de
criada de servir” (BARRETO, 2010, p.252) porém, o narrador nos revela que Clara não foi à
primeira moça de cor nesta situação a procurar a família do rapaz que como citado
anteriormente:
Mais de uma vez, ele se vira a braços com a polícia por causa de
defloramento e seduções de menores.
O pai, desde a segunda, recusara intervir; mas a mãe, dona Inês, a custo de
rogos, de choro, de apelo — para a pureza de sangue da família, conseguira
que o marido, o capitão Bandeira, procurasse influenciar, a fim de evitar que
o filho casasse com uma negrinha de dezesseis anos, a quem o Júlio “tinha
feito mal.
Apesar de não ser totalmente má, os seus preconceitos junto à estreiteza da
sua inteligência não permitiram ao seu coração que agasalhasse ou
protegesse o seu infeliz neto. “Sem nenhum remorso, deixou-o por aí, à toa,
pelo mundo…(BARRETO, 2010, p.253).

Diante da situação que mais uma vez se repetia a matriarca tomou as devidas
precauções para que o sangue da família continuasse “puro” a mesma destila seu preconceito
com a intenção de diminuir Clara “Você não vê mesmo que meu filho não é para se casar com
gente da laia de você!” (BARRETO, 2010, p.254), ou seja, mulata e pobre. Clara humilhada
retira-se local e ao mesmo tempo reflete sobre o seu lugar naquela sociedade e o que a tornava
tão inferior aos olhos da mãe de Júlio:
Clara saiu sem dizer nada [...]. Então, ela? Então ela não se podia casar com
aquele calaceiro, sem nenhum título, sem nenhuma qualidade superior? Por
quê?
Viu bem a sua condição na sociedade, o seu estado de inferioridade
permanente, sem poder aspirar a cousa mais simples a que todas as moças
aspiram. Para que seriam aqueles cuidados todos de seus pais? Foram inúteis
e contraproducentes, pois evitaram que ela conhecesse bem justamente a sua
condição e os limites das suas aspirações sentimentais… Voltou para casa
depressa.
Foi ao encontro da mãe. Não lhe disse nada; abraçou-a chorando. A mãe
também chorou e, quando Clara parou de chorar, entre soluços, disse:
— Mamãe, eu não sou nada nesta vida. (BARRETO, 2010, p.255).

A citação acima mostra a desesperança de Clara, grávida e abandonada por um rapaz


branco e de família burguesa. Há diversos significados que, de maneira velada, trazem ao
leitor o que Rangel (2013, p.23) irá chamar “de realidade caótica da sociedade brasileira do
início do século XX, são os gritos contidos de tantas outras vítimas [...] despidos de ambição e
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achatados pelas demais camadas, que infestam os subúrbios cariocas tão bem conhecidos e
retratados pelo autor”.
A situação de Clara se relaciona muito com a da mãe da mulata Alice ou da própria
Alice do conto Um Especialista, considerando a condição de mulher e mulata no início do
século XX, o que conforme Luciana Borges (2012, p.576) “a sedução e o abandono
pressupunha a total dependência da mulher em relação às figuras masculinas a sua volta – pai,
irmão, marido – pois não existia a possibilidade de auto provimento, e a situação de
desvirginamento sem reparação significavam bilhete de entrada em um mundo de
degradações morais contínuas”. De maneira geral a exclusão nos dois contos Um especialista
e Clara dos Anjos é um pouco mais agravada, além da pobreza, aliada a sua cor, Clara e Alice
são mulheres o que o que somado ao contexto histórico e social daquele período as prende a
figura de objeto sexual, tornando-as assim alvo de abusos como tantas outras moças em sua
condição.
.O ultimo conto analisado aqui é “O Pecado” que de forma simples e bem humorada o
autor recorre neste caso a um tema comum que é a religiosidade para problematizar revelar
com bastante clareza o preconceito sofrido por toda a população negra do Brasil. Em linhas
gerais o conto se dá em um ambiente astral, extraterreno, onde São Pedro examina uma alma
e a julga digna de sentar-se a direita do trono do Senhor por toda eternidade:

Vinha assim: P. L. C., filho de..., neto de..., bisneto de... – Carregador,
quarenta e oito anos. Casado. Casto. Honesto. Caridoso. Pobre de espírito.
Ignaro. Bom como São Francisco de Assis. Virtuoso como São Bernardo e
meigo como o próprio Cristo. É um justo. Deveras, pensou o Santo Porteiro,
é uma alma excepcional; como tão extraordinárias qualidades bem merecia
assentar-se à direita do Eterno e lá ficar, per saecula saeculorum, gozando a
glória perene de quem foi tantas vezes Santo...(BARRETO, 2010, p.547).

Mas como o escriturário nota que é a alma de um negro, deve ir ao Purgatório:


“Esquecia-me... Houve engano. É! Foi bom você falar. Essa alma é a de um negro. Vai para o
purgatório.”(BARRETO, 2010, p.547).
Neste conto Lima Barreto nos mostra o reflexo irônico do destino de um individuo que
será partilhado por toda a população negra que se vê excluída e marginalizada já que o fato
dos negros terem sido libertos por força da lei não garantia aos mesmos os direitos, as
oportunidades dadas aos brancos no Brasil, especialmente às camadas mais ricas por este
motivo, após a abolição da escravatura, os negros brasileiros tiveram que implantar um longo
caminho de construção de igualdade e de acesso às camadas sociais (MUNANGA,2006).
Desta forma Lima Barreto nos mostra que ao negar a entrada do negro no reino dos céus, de
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forma irônica o texto remete ao período em que todas as portas foram fechadas para os
“recém-libertos”.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Literatura Barretiana é marcada pela temática social, foi instrumento de crítica e de
combate aos discursos e teorias raciais dos primeiros anos da República. Caracterizada por
trazer a tona o perfil do ser humano marginalizado e excluídos, neste caso, negros, mulatos,
prostitutas e os brancos dos subúrbios que a pobreza os unia e amenizavas as tenções com
relação a cor. Lima Barreto deu ao leitor a oportunidade de contato com o submundo dos
subúrbios cariocas e a vida miserável que neles levava a maioria negra da população.
Um negro que falava de negros sendo ele mesmo um oprimido na sua condição de
pobre e mulato, neto de escravos num país que abolira a escravidão, mas que mantinha em seu
ímpeto uma mentalidade escravocrata, excludente e preconceituosa.
A problemática da cor se faz presente e muito forte interferindo nas relações sociais
das personagens nos contos aqui abordados, mesmo que em certos pontos o autor exalte as
qualidades dos sujeitos de cor e tente descontruir os estereótipos e as mentiras difundidos
durante os Séculos XIX e inicio do Século XX impulsionados graças às teorias raciais,
sempre se encontrará um motivo para a inferiorizarão dos negros e mulatos por parte de
personagens brancos ou do próprio sistema social como um todo, por exemplo, os
xingamentos ao menino Zeca, a associação entre mulher negra ou mulata e objeto sexual
reduzindo-a corporalidade e sexualidade em Clara dos Anjos e Um especialista (onde a
questão da cor pode ser somada e agravada a condição feminina) e ainda mais metafórica e
ironicamente o negar dos céus a um homem negro em “O Pecado” fazendo da dor ironia para
desmascarar o racismo e os preconceitos impostos a uma parcela da população.
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LIMA BARRETO: TALES OF COLOR AND EXCLUSION IN THE FIRST


DECADES OF THE TWENTIETH CENTURY

ABSTRACT
Afonso Henriques de Lima Barreto (1881-1922), the grandson of slaves and son of freedmen,
and for and most contemporary authors the first Brazilian author to recognize and define as
black literary, broke the prejudices of the nineteenth and early twentieth century and
innovated Brazilian literature with his style and informal language at the time. Lima Barreto
thought to Brazil from his tales about life in the Rio suburbs. He created essentially urban
characters, where most of the time denounced the injustices and prejudices, a kind of
laboratory to understand and think about the sociological advances in post-abolition society,
in this same context energetically introduced racial scientific discourse and determinism.
Under a pre-modern look of the historical / literary point of view we have the author of tales
reflect his period and through this reflection are that it is intended to analyze and try to
understand how black characters were seen and portrayed by the author and as far as the color
of the issues were to interfere with social relationships of his characters.

KEYWORD
Lima Barreto, Literature, Nineteenth and twentieth centuries

FONTES

Para construção do objeto de estudo optou-se por analisar os contos reunidos no livro
Contos completos de Lima Barreto (Editora Companhia das Letras,2010), organizado por
Lilia Moritz Schwarcz que contempla também uma série de contos inacabados do autor, A
Literatura Como Missão: tensões sociais e criação cultural na primeira República do autor
Nicolau Sevcenko ( Brasiliense, 1983) e Um mulato no reino de Jambom: as classes sociais
na obra de Lima Barreto de Zilda Ferreira Cury (Cortez Editora, 1981) além de artigos
disponíveis no sitio da UNICAMP (http://www.bibliotecadigital.unicamp.br) e outros
posteriormente listados na lista de referências.
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REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Viviana Clara Carvalho Freitas de. Representações da sociedade colonial de
Moçambique em escritas de mulheres: a partir de A Árvore das Palavras de Teolinda
Gersão. 2010.
BARBOSA, Francisco de Assis. A vida de Lima Barreto: 1881-1922. Rio de Janeiro, 1981.
BARRETO, Lima. Contos completos de Lima Barreto. Editora Companhia das Letras,
2011.
BORGES, Luciana. Personagens femininas e mulatas no universo ficcional de Lima
Barreto In: II Simpósio Nacional de Letras e Linguística, p. 561-580.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. Editora Cultrix, 1994.
BOTELHO, Denilson. Letras militantes: história, política e literatura em Lima Barreto.
2001.
BRIDA, Ana Claudia. BREVE Análise Comparativa entre “O Moleque” e “A Nova
Califórnia” de Lima Barreto.
CURY, Maria Zilda Ferreira. Um mulato no reino de Jambom: as classes sociais na obra
de Lima Barreto. Cortez Editora, 1981.
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DA SILVA, Mário Augusto Medeiros. Esboço de análise sociológica da ideia de Literatura
Negra no Brasil. BALEIA NA REDE, v. 1, n. 4, 2007.
DE OLIVEIRA SILVA, Priscila Cardoso. Desvelando o racismo no conto “O pecado”, de
Lima Barreto.
DINIZ, Jackson. Identidade negra e modernidade na obra de Lima Barreto.
FREIRE, Manoel. A retórica do oprimido: sobre a idéia de literatura militante em Lima
Barreto. Revista Travessia, Pesquisa em Educação, Cultura, Linguagem e Linguagem e
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FREIRE, Manoel. Revolta e melancolia: uma leitura da obra de Lima Barreto.
Annablume, 2013.
GILENO, Carlos Henrique. Clara dos Anjos: Uma Reflexão sobre o status da mulata no
Brasil do início do século XX In: Ciência & Trópico, Recife, nº. 01, v. 29, jan. - jul. 2001, p.
124-146 . Disponível em: <http://periodicos.fundaj.gov.br>. Acesso em: 14 abr. 2012, p. 135.
MATTOS, Romulo Costa. As favelas na obra de Lima Barreto. URBANA: Revista
Eletrônica do Centro Interdisciplinar de Estudos sobre a Cidade, v. 2, n. 2, 2013.
NICOLA, José de. Literatura Brasileira das Origens aos Nossos Dias. 15ªed. São Paulo:
Scipione, 1998.
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NORONHA, Carlos Alberto Machado. Lima Barreto e a escrita da História no início do


século XX: críticas e sugestões.
PRADO, Antônio Arnoni. Lima Barreto: literatura comentada. São Paulo: Ed. Abril
Educação, 1980.
PROENÇA FILHO, Domício. A trajetória do negro na literatura brasileira. Estudos
avançados, v. 18, n. 50, p. 161-193, 2004.
RANGEL, Tauã Lima Verdan. Dialogando com Clara dos Anjos: Uma Análise
Transdisciplinar da Ficção de Lima Barreto.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na
Primeira República. Brasiliense, 1983.
SILVA, Raphael Frederico Acioli Moreira da. A moléstia da cor: a construção da
identidade social de Lima Barreto (1881-1922). 2002. Tese de Doutorado. Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP). Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
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AGRADECIMENTOS
Gostaria de Agradecer a meu orientador Joel Carlos de Souza Andrade, o qual sem a
atenção nada disto seria possível.
Agradecer ao meu ex-professor e eterno amigo Carlos Roberto Rodrigues Barata
Júnior, que com sua amizade e bons conselhos sempre me deu os tapas necessários para que
eu continuasse a jornada.
Agradecer também a Felipe Rodolfo Pereira da Silva por sua amizade, carinho e
paciência e por entender que são necessárias reclusão e paz para que se possa escrever.

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