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Espaço Plural

ISSN: 1518-4196
espacoplural@yahoo.com.br
Universidade Estadual do Oeste do
Paraná
Brasil

de Paula Oliveira, Allan


ENTRE A VÁRZEA E O PROFISSIONAL: SOBRE UM CAMPEONATO DE FUTEBOL
AMADOR
Espaço Plural, vol. XIV, núm. 29, julio-diciembre, 2013, pp. 114-139
Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Marechal Cândido Rondon, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=445944242007

Como citar este artigo


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ENTRE A VÁRZEA E O PROFISSIONAL: SOBRE UM
CAMPEONATO DE FUTEBOL AMADOR

Allan de Paula Oliveira1

RESUMO: Este texto apresenta um estudo sobre alguns aspectos


relacionados à prática do futebol amador na cidade de Curitiba-PR. A partir
de uma etnografia da Suburbana – tradicional campeonato curitibano de
futebol amador – o texto convida o leitor à observação de dinâmicas internas
a este universo futebolístico, tais como as relações comunitárias e de
reciprocidade envolvidas, as pequenas redes sociais e econômicas
acionadas na prática deste futebol, o lugar do futebol amador na história e
na configuração urbana de Curitiba e os diferentes atores sociais que
operam no futebol amador (jogadores, treinadores, jornalistas, torcedores).
Além disso, a etnografia também possibilitou a observação das relações
deste campeonato de futebol amador com o universo do profissionalismo,
diante do qual ele aparece como “mercado de reserva”, e com universos
ainda mais informais, como o “futebol de várzea”. Desta forma, o texto
pretende contribuir para um estudo da diversidade das práticas
futebolísticas no mundo contemporâneo.

Palavras-chave: futebol; amadorismo; reciprocidade; profissionalismo.

BETWEEN PROFESSIONAL AND ‘VÁRZEA’: ABOUT A CHAMPIONSHIP


OF AMATEUR FOOTBALL

ABSTRACT: This text presents a study about the practice of amateur football
in Curitiba (Paraná State, Brazil). From an ethnography of Suburbana – a
traditional championship of amateur football in Curitiba – the article invites
the reader to a observation of internal dynamics of this football universe, as
the comunitarism and the reciprocity that mark the relationships, the small
economic and social nets organized to this football practice, the place of
amateur football in the history and urban configuration of Curitiba city and
the different social actors that works in the amateur football (players,
coaches, journalists, supporters). Beside of this, the ethnography also
allowed the observation of relationships between this amateur football with
the professional football universe, before of which it is placed as “reserve
labor force”, and with others football universes, more informal, as the
“futebol de várzea”. In this way, the article aims to contribute to a study of
the diversity of football practices in the actual world.

Keywords: football; amateurism; reciprocity; professionalism.

1
Doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Professor Adjunto da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Toledo,
Paraná, Brasil. E-mail: allan74oliveira@gmail.com.

Espaço Plural • Ano XIV • Nº 29 • 2º Semestre 2013 • p. 114 - 139 • ISSN 1981-478X 114
Entre a várzea e o profissional: sobre um campeonato de futebol amador
| Allan de Paula Oliveira
Em dezembro de 2009, o Coritiba Football Club, uma das principais
equipes de futebol profissional de Curitiba, estava nas manchetes da maioria
dos cadernos de esportes do Brasil e de alguns no mundo. No dia 06 daquele
mês, na última rodada da série A do campeonato brasileiro, o Coritiba
empatou, no seu estádio (Major Antônio Couto Pereira) com o Fluminense,
do Rio de Janeiro, sendo rebaixado para a série B do campeonato brasileiro.
Este fato provocou uma invasão do campo por uma parte da torcida do time
paranaense, que entrou em confronto com a polícia, resultando em muitos
feridos, além de muitas imagens chocantes, transmitidas ao vivo pela TV
para todo o Brasil. O fato causou grande indignação na cidade de Curitiba e
durante todo o mês de dezembro de 2009 as atenções dos cadernos de
esportes eram para as punições que o clube sofreria e as investigações e
prisões de torcedores por parte da polícia.
Por isso, uma manchete, na página 2 do caderno de esportes do dia 21
de dezembro de 2009, “Cobrador de ônibus garante festa do bicampeão
Urano”, passou despercebida de muitos leitores do jornal Gazeta do Povo, o
diário de maior circulação da cidade. Não só pela atenção dada pelo jornal
ao caso do Coritiba – a principal manchete do caderno de esportes daquele
dia era sobre a situação da equipe alviverde – mas porque tradicionalmente
certos campeonatos dificilmente ocupam a primeira página do caderno de
esportes, a capa do caderno. Eles estão, contudo, sempre na contracapa.
Todos os dias, todos os meses, há anos. E tais campeonatos, de forma quase
discreta, envolvem uma parcela significativa da cidade de Curitiba.
O Urano, aludido na mensagem, é um dos principais clubes amadores
da cidade de Curitiba, sendo que desde sua fundação, nos anos 60, ele
disputa o Campeonato Metropolitano de Futebol, conhecido em Curitiba
como “Suburbana”. O título de 2009 era o terceiro de sua história (fora
campeão em 2001 e 2008) e marcava o seu primeiro bicampeonato. A final
da Suburbana daquele ano, disputada contra o Trieste, tivera uma cobertura
generosa da imprensa: três emissoras de rádio, bem como dois diários da
cidade. Apesar disto, e apesar de ser o assunto de maior pauta na edição do
caderno de esportes da Gazeta do Povo do dia 21, ocupando duas páginas
inteiras, a Suburbana não era capa, era contracapa. A relação capa-

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contracapa oferece uma interessante metáfora para se pensar o lugar deste


campeonato de futebol amador na cidade de Curitiba.
Este texto tem como objetivo explorar este lugar e pensar sobre esta
relação com a “capa do jornal”. Partindo de um acompanhamento
etnográfico do campeonato, feito no segundo semestre de 2010, o texto
pretende convidar o leitor a uma reflexão sobre a relação entre o futebol
profissional e o futebol amador, bem como para os inúmeros significados
que um campeonato de futebol amador possui numa era onde o futebol de
espetáculo, midiático, se apresenta cada vez mais presente na forma como
muitos vivem o futebol.

A Suburbana
O Campeonato Metropolitano de Futebol Amador de Curitiba, a
“Suburbana”, é disputado desde 1941, a partir da fundação da Liga
Suburbana de Curitiba. É o principal campeonato de futebol amador da
capital paranaense e, devido a sua longevidade (72 anos, em 2013), possui
uma verdadeira “aura” no universo do futebol curitibano. Embora tenha uma
pequena, porém constante, cobertura por parte da imprensa local, a
Suburbana não tem a mesma visibilidade do futebol espetacularizado,
representado por clubes como Atlético-PR e Coritiba. Conhecê-la significa
um movimento dentro do universo futebolístico de Curitiba, uma abertura
para dimensões da prática e do usufruto do futebol não imediatamente
visíveis a quem vem de fora. Em uma etnografa sobre o tema, a Suburbana
foi chamada de “Lado B” do universo do futebol em Curitiba2. Vivida por
muitos, é uma dimensão do futebol imersa na cotidianidade da população de
muitos bairros da cidade, de tal forma que a Suburbana é notícia sempre na
contracapa dos jornais, no lado B. Nesse sentido, o próprio fato de se tomar
a Suburbana como “objeto de estudo” significa uma observação do meio
urbano no sentido de chamar a atenção para uma prática que, para muitos
curitibanos, não é digna de atenção – embora, para outros tantos, seja
central no seu cotidiano.

2Cf. OLIVEIRA, Allan de Paula; SOUZA, Helder Cyrelli de e MACHADO, João Castelo Branco.
O Futebol da Contracapa. Curitiba: Máquina de Escrever, 2012.
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Entre a várzea e o profissional: sobre um campeonato de futebol amador
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A “aura” da Suburbana não advém somente de sua longevidade.
Advém também, dentre outros fatores, do fato de que o campeonato é
disputado por equipes representando clubes bastante tradicionais da cidade
de Curitiba. Das 26 equipes que disputaram as duas séries da Suburbana –
série A e série B – 18 representavam clubes com mais de 50 anos de idade.
Um deles, o Iguaçu (Sociedade Operária Beneficente Esportiva Iguaçu), é de
1919, sendo mais antigo que a maioria dos clubes da cidade que disputam
campeonatos profissionais3. Muitos outros clubes são das décadas de 30 e 50
e são índices de processos sociais importantes4: a expansão urbana de
Curitiba, com clubes sendo criados como espaços de sociabilidade em
bairros recém inseridos na malha urbana; a profissionalização do futebol, a
partir da década de 30, que criou uma cisão no campo futebolístico, com o
surgimento de equipes sem condições de profissionalizar-se; a expressão na
esfera pública de identidades étnicas, como é o caso do próprio Iguaçu, cuja
história é também a da imigração italiana para Curitiba. A esses processos
voltarei adiante. Por hora, cabe apontar como tais aspectos dão à Suburbana
um caráter de tradicionalidade bastante marcado e que se expressa em
discursos e práticas de seus próprios agentes.
Desde sua criação, o campeonato teve diferentes fórmulas de disputa
e um número variável de participantes, divididos em duas séries – A e B

3
Para efeitos de comparação, o Coritiba é de 1909 e o Atlético Paranaense (Clube Atlético
Paranaense) é de 1924. Para informações históricas do Atlético Paranaense – e, por
extensão, do futebol profissional em Curitiba – cf. CAPRARO, André Mendes. O Estádio
Joaquim Américo – a ‘Arena da Baixada’ – e a identidade clubística do torcedor do Clube
Atlético Paranaense In: Campos, Curitiba, v. 5, n. 1, p. 131-149, 2004. Informações
historiográficas também podem ser obtidas em trabalhos de cunho jornalístico – com muitas
informações, porém com ausência de crítica às fontes – tais como: MULFORD, Levi e
MACHADO, Heriberto. Futebol no Paraná: 100 anos de história. Curitiba: edição dos autores,
2005; COELHO, Vinícius e CARNEIRO NETO, Antônio Carlos. Atletiba: Edição dos Autores,
1994.
4
O termo “índice” será usado muitas vezes neste texto e seu uso reflete minha leitura do
texto de GINZBURG, Carlo. “Sinais: raízes de um paradigma indiciário” In: Mitos, Emblemas,
Sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1990, no qual este autor
chama a atenção para um paradigma epistemológico – aplicado às ciências humanas,
segundo ele, pela psicanálise – que toma determinados fatos como índices de questões
mais amplas, mas sem com isso reduzir a singularidade dos fatos. A descrição que Ginzburg
faz deste paradigma epistemológico me parece relacionado a desenvolvimentos recentes
da escrita etnográfica, relação esta que merece maiores análises. Cf., por exemplo, o
manifesto de WILLIS, Paul; TRONDMAN, Mats. Manifesto pela Etnografia In: Educação,
Sociedade e Cultura, São Paulo, n. 27, 2008, p. 211-220.
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(correspondentes a uma primeira e segunda divisão)5. A transição de uma


série a outra equivale aos movimentos de “ascensão” e “rebaixamento”
típico dos campeonatos profissionais, que oferecem também o modelo de
organização da Suburbana: o campeonato tem seu início quando todos os
clubes se reúnem em um arbitral que define as regras – a participação ou
não dos clubes dependendo da aceitação das mesmas – o sistema de
pontuação (três pontos em caso de vitória, um ponto em caso de empate), a
fórmula de disputa do campeonato, o agendamento das partidas e de festas
de premiação ao final do campeonato – com prêmios aos melhores
jogadores, treinadores e juízes.
Assistir a uma partida de futebol da Suburbana não é muito diferente
de assistir a uma partida de futebol profissional. Este último, conforme será
desenvolvido ao longo do texto, oferece o modelo que orienta muito da
ação dos agentes envolvidos na Suburbana – jogadores, técnicos, juízes,
dirigentes, jornalistas e torcedores. Os pequenos rituais que se observa em
uma partida de futebol profissional estão lá: o aquecimento dos jogadores, o
ethos da competição e da vitória, o radialista entrevistando os jogadores
antes do início da partida, a participação da torcida, confusões e brigas
entre jogadores e entre torcidas. Porém, todos estes aspectos aparecem em
escala reduzida, como se a Suburbana fosse uma miniatura do futebol
profissional.
Um exemplo disto pode ser tomado pelos corpos dos jogadores. A
maioria, dividida entre outras atividades e a prática do futebol não possui o
capital corporal tão desenvolvido quanto jogadores profissionais, sendo que
este fato – e não uma diferença técnica – é o que geralmente é acionado
pelos agentes em questão quando confrontados com uma diferenciação
entre o campeonato que disputam e o futebol profissional 6. Um jogador

5
Nos últimos anos a Suburbana tem sido disputada por 26 equipes, sendo 12 na séria A e 14
na série B. Sobre isto cf. OLIVEIRA, SOUZA e MACHADO, op. cit.
6
Vale observar que se trata, aqui, de uma comparação entre os usos do corpo no futebol
profissional e no futebol amador. Há, em cada um desses dois universos, tomados
separadamente, valorações diferentes deste capital e seria errôneo afirmar que no futebol
amador o corpo não seja um elemento capitalizado. No caso da Suburbana, sobretudo entre
jogadores mais jovens, o cuidado com a forma física é perceptível e fundamenta uma série
de ações de normatização dos corpos (exercícios e dietas, por exemplo). No entanto, a
dimensão dessa capitalização do campo é menor quando comparada com aquela que opera
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Entre a várzea e o profissional: sobre um campeonato de futebol amador
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afirmou “eu poderia estar no profissional. O pessoal do Atlético [Atlético
Paranaense] já me disse isso. Eu só precisava trabalhar o lado mais atleta,
físico. Tem muita gente aqui que é a mesma coisa: joga muito, mas não
aguenta o tranco do profissional”. Mas os jogadores da Suburbana, por outro
lado, tem um preparo físico melhor do que meros praticantes ocasionais de
futebol. Alguns clubes realizam treinamentos físicos durante a semana, já
que os jogos ocorrem somente durante os finais de semana 7. Ou seja, o
capital corporal é um bom exemplo deste “modelo reduzido” do
profissionalismo, do qual está mais perto do que do universo das peladas.
A organização do campeonato está a cargo da Liga Suburbana de
Curitiba, que é filiada à Federação Paranaense de Futebol (FPF) – a mesma
entidade que gerencia o futebol profissional no estado. A sede da Liga,
inclusive, funciona nas dependências da FPF. Pelo fato desta federação ser
filiada à Confederação Brasileira de Futebol – entidade que gerencia o
futebol em âmbito nacional – e esta, por sua vez, ser filiada à FIFA –
Federação Internacional de Football Association – há um quadro de relação
entre o local e o global muito interessante. Ao mesmo tempo revela a
extensão do poder da FIFA no gerenciamento do futebol no mundo, à
medida que este se estende para além do profissionalismo e abarca também
as práticas relacionadas ao amadorismo. Obviamente, este controle é
relativo e existem milhares de campeonatos amadores não regulamentados
pela FIFA. Porém, e este é um dos pontos que sugiro ser digno de nota na
Suburbana, é interessante observar a extensão das teias burocráticas e
normativas da FIFA sobre o amadorismo. No caso em questão, significa que
todas as equipes que disputam a Suburbana têm suas atuações gerenciadas,
mesmo que de forma muito indireta, pela FIFA. Por exemplo, pelo fato da
Suburbana ser disputada por equipes federadas (filiadas à Federação

no futebol profissional, universo cada vez mais orientado no sentido de uma capitalização
do corpo. Teoricamente, uma comparação deste tipo pode ser fundamentar na proposta de
um estudo dos esportes tal como apresentada por BOURDIEU, Pierre. Como se pode ser
desportista? In: BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Lisboa: Fim de Século, 2003. p.
181-204, segundo o qual há que se observar, de uma perspectiva relacional, as formas
diferenciadas que cada esporte apresenta no tocante “uso do corpo” (esportes de contato
físico/esportes sem contato físico, por exemplo).
7
Há alguns anos, a Suburbana é disputada no segundo semestre, entre os meses de julho e
dezembro.
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Paranaense de Futebol), todos os jogadores que disputam o campeonato


também se encontram nessa relação de controle por parte da Federação – e,
de forma indireta, por parte da CBF e da FIFA. Além disso, qualquer
transferência de um jogador, de uma equipe para outra, deve ser registrada
na FPF. Esta “vigilância”, ou para usar um termo melhor, normatização, se
expressa nos controles das idades dos jogadores que disputam o
campeonato; nas arbitragens das partidas, feitas por juízes e bandeirinhas
da própria Federação Paranaense de Futebol; e no controle dos espaços dos
jogos, como a exigência de que todos os clubes que disputam a Suburbana
tenham estádios murados8.
A relação com a FPF – e, por extensão, com outras superioras
agências de normatização das práticas futebolísticas – mostra como a
Suburbana está incluída nestas redes de normatização das práticas, centrais
para a compreensão da dimensão que o esporte assumiu na vida moderna9.
No entanto, é útil observar que se trata de uma prática futebolística que
mantém laços com outras dimensões dos futebóis que escapam às redes
normativas, tanto do Estado quanto das agências reguladoras. Refiro-me
aqui ao fato da Suburbana ser um campeonato de futebol amador, ou seja,
sem a mesma amplitude de organização do futebol mais midiático. Minha
sugestão, e que será desenvolvida ao longo deste texto é que a Suburbuna

8
Os árbitros que atuam nas partidas da Suburbana são, geralmente, iniciantes no quadro de
árbitros da FPF, de modo que a Suburbana, para muitos, é vista como o primeiro passo para
a consolidação da atividade de árbitro. Um exemplo muito citado na Suburbana é o fato da
final do campeonato de 2009 ter sido apitada por um dos principais árbitros brasileiros da
atualidade, o qual havia iniciado sua carreira no campeonato curitibano.
9
Há um certo consenso entre os historiadores de que a popularização das práticas
esportivas, levada a cabo a partir da segunda metade do século XIX, está ligada ao
entrelaçamento de uma série de fatores: o desenvolvimento de uma ideia de esfera pública,
processos de disciplinamento e normatização do corpo, cristalização de formas de
socialização (como os clubes, por exemplo), dentre outros. Cf., sobre estes pontos e como
ponto de partida para uma historiografia cada vez mais ampla, ELIAS, Norbert e DUNNING,
Eric. A Busca da Excitação. Lisboa: DIFEL, 1985; JESUS, Gilmar Mascarenhas de. Construindo
a cidade moderna: a introdução dos esportes na vida urbana do Rio de Janeiro. In: Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, v. 13, n. 23, 1999, p. 17-40; SEVCENKO, Nicolau. “A capital
irradiante: técnica, ritmos e ritos do Rio” In: NOVAIS, Fernando e SEVCENKO, Nicolau
(orgs.). História da Vida Privada no Brasil, v. 3: da Belle Époque à Era do Rádio. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998. Estes dois últimos analisam o caso da introdução dos esportes
no Brasil e oferecem valiosas indicações bibliográficas. Para as conotações sociológicas
desse processo histórico, cf. BOURDIEU, Pierre. Como se pode ser desportista? In:
BOURDIEU, Pierre. Questões de Sociologia. Lisboa: Fim de Século, 2003; BOURDIEU, Pierre.
Programa para uma sociologia do esporte. In: BOURDIEU, Pierre. Coisas Ditas. São Paulo:
Brasiliense, 2004. p. 207-220.
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está situada a “meio caminho” entre o futebol de espetáculo (matriz
espetacularizada) e outras matrizes futebolísticas (a bricolada, representada
pela pelada, e a comunitária, representada pelo futebol de várzea) e que,
por isso mesmo, oferece um excelente espaço para a observação das
dinâmicas envolvidas na prática do futebol na atualidade10.
A exigência de estádios murados para a participação na Suburbana
exige dos clubes uma certa estrutura, o que de saída exclui deste
campeonato equipes sem vinculação a clubes. Ou seja, a Suburbana é um
campeonato de clubes, todos com sede própria. Por outro lado, os estádios
da Suburbana são bem modestos: a maioria não permite a assistência dos
quatro lados do campo. No campo do Iguaçu, por exemplo, o público deve
assistir à partida de pé, encostado no alambrado. No Urano (Associação
Clube Esportivo Urano) há uma arquibancada de cimento, com capacidade
para umas 300 pessoas, além de ser um estádio com iluminação, o que
permite jogos noturnos (nem todos os estádios têm esta comodidade). A
exceção é o estádio do Trieste Futebol Clube – apelidado de Trieste Stadium,
que conta com uma arquibancada coberta em dos lados do campo – nos
outros três lados, o público assiste de pé, junto ao alambrado11.
Os clubes que disputam a Suburbana oferecem, como foi apontado
acima, campos de estudo dos mais variados fenômenos sociais e históricos.
Muitos clubes, por exemplo, são centrais para o estudo dos movimentos
migratórios que marcaram a história da cidade de Curitiba desde o final do
século XIX. Os já citados Iguaçu (fundado em 1919) e Trieste (fundado em
1937) são clubes ligados à imigração italiana. Por sua vez, muitos clubes têm
sua história diretamente relacionada com os movimentos migratórios que

10
A referência às matrizes futebolísticas – espetacularizada, bricolada, comunitária – se
deve a minha leitura de DAMO, Arlei. Do Dom à Profissão: a formação de futebolistas no
Brasil e na França. São Paulo: HUCITEC, 2007: capítulo 1. Damo deixa claro que estas
matrizes não possuem um valor heurístico em si, ou seja, não denotam fatos que possam ser
isolados e tomados como autônomos. Pelo contrário, tais matrizes são muito mais recursos
descritivos na tentativa de abarcar a natureza múltipla do que é prática do futebol na
atualidade. Ao longo do texto, o lugar da Suburbana entre estas matrizes – bastante
específico, a meu ver – será explicitado.
11
É comum os clubes alugarem seus estádios para escolinhas de futebol, quando não abrem
suas próprias escolinhas. No caso do estádio do Trieste, devido ao fato dele ser um dos
melhores espaços esportivos da cidade (além do campo, o estádio possui dependências
muito bem equipadas para ginástica e atividades físicas), ele é utilizado com frequência por
equipes profissionais de outras cidades que vão à Curitiba jogar contra os times da cidade.
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modificaram o mapa urbano de Curitiba a partir da década de 40, formados


menos de etnias advindas da Europa – como havia ocorrido entre 1880 e
1930 – e mais por um movimento de êxodo rural, advindo de áreas do
interior do estado do Paraná e de outros estados, tais como São Paulo, Minas
Gerais, Santa Cataria e Rio Grande do Sul12. É o caso de clubes como o
Combate Barreirinha (Combate Barreirinha Futebol Clube, fundado em
1945), o Vila Hauer (Vila Hauer Esporte Clube, fundado em 1950) ou o já
citado Urano (fundado em 1968), todos ligados a regiões da cidade de
Curitiba e região metropolitana cuja história é marcada pelo fluxo
migratório de trabalhadores oriundos do interior a partir dos anos 4013. Tais
clubes operam, em diferentes níveis sociais, as funções sociológicas
atribuídas a fenômeno do clubismo: práticas de sociabilidade construídas
em torno de diversos fatores (território, etnia, trabalho, geração, dentre
outras), lazer, expressão de conflitos sociais (estabelecidos em torno de
variáveis diversas, tais como classe, estrato ou etnia) e, conforme será
apontado adiante, a função relativa ao trabalho – como fontes sazonais de
ganhos14.

12
Para as migrações no período 1880 e 1930, cf. PEREIRA, Magnus Mello. Semeando Iras
Rumo ao Progresso: ordenamento jurídico e econômico da sociedade paranaense. Curitiba:
Editora da UFPR, 1996, e WACHONOVICZ, Ruy. História do Paraná. Curitiba: Editoria Gráfica
Vicentina, 1977. Iguaçu e Trieste têm suas sedes no bairro Santa Felicidade, tradicional
bairro de Curitiba – e ponto turístico – historicamente ligado à imigração italiana para o
município.
13
Barreirinha e Hauer são dois bairros de Curitiba. O Urano, por sua vez, traz em seu nome
o topônimo de uma vila, Vila Urano, que é uma das regiões centrais de outro bairro, o
Xaxim. Estes 3 bairros foram urbanizados (ou seja, incorporados à malha urbana) a partir
dos anos 60 e tiveram um acréscimo populacional ligado aos movimentos migratórios
advindos de áreas rurais do centro-sul do Brasil. No caso do Xaxim, em particular, sua
história está ligada à criação da Cidade Industrial de Curitiba, no final dos anos 60, que deu
um impulso enorme a ocupação do bairro. Não possuo dados que me permitam afirmar um
caráter operário do Urano.
14
O fenômeno do clubismo tem sido apontado pela historiografia como um exemplo de
fenômeno moderno – que pode ser remontado ao jogo entre público e privado que passa a
marcar a sociedade europeia entre os séculos XVI e XVIII – que, num processo de
circularidade, popularizou-se a partir das transformações sociais no século XIX. O clube,
constituído em torno da ideia de distinção – que marca a sociedade de castas que emerge
da Renascença (cf. ELIAS, Norbert. A Sociedade de Corte: investigação sobre a sociologia da
realeza e da aristocrática da corte. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001) – é apropriado por
novos atores sociais, que ascendem à esfera pública no século XIX, como é o caso dos
operários. Vale observar que esse movimento guarda um tanto de continuidade com formas
anteriores de organização: lembremos do peso das irmandades religiosas em todo o mundo
católico, desde o século XIII. A novidade dos clubes no século XIX talvez estivesse na
centralidade do elemento do lazer. Sobre o clubismo e a distinção, numa perspectiva
historiográfica, cf. AYMARD, Maurice. “Amizade e Vizinhança” In: CHARTIER, Roger e
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Entre a várzea e o profissional: sobre um campeonato de futebol amador
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O peso do clubismo na Suburbana dá a este campeonato, conforme
apontado, muito da sua aura de tradicionalidade. Exatamente por ser
disputada por equipes representando clubes que são referências no
cotidiano de muitos moradores de Curitiba e região metropolitana – e que
constituem espaços de agência em torno de diversos fatores – a Suburbana
assume um aspecto de evento tradicional do esporte em Curitiba. E é
interessante que, para muitos dos agentes deste universo (jogadores,
torcedores, jornalistas), os clubes que disputam a Suburbana nada devem
aos clubes que disputam o futebol profissional. “Bota o Atlético [Paranaense]
contra o Trieste para ver se ele aguenta”: esta fala foi uma das inúmeras
ouvidas durante a pesquisa na Suburbana e ela aponta justamente para este
dado – de que para muitos de seus agentes, a Suburbana não deve nada ao
futebol profissional.

A “chuteira imortal” como devir


A fala “Bota o Atlético [Paranaense] contra o Trieste para ver se ele
aguenta” revela também o lugar de referência – ou conforme sugeri, de
modelo – do futebol profissional para muitos dos agentes envolvidos na
Suburbana. Ou seja, o futebol profissional aparece aqui como o “Outro” –
diante do qual a Suburbana se constitui. Esse é um dado muito interessante,
porque permite observar a relação entre os diferentes futebóis –
profissional, amador, várzea, pelada – e de como tal relação é
compreendida por agentes concretos. Durante a pesquisa de campo ouvi
várias vezes frases como “a Suburbana não é pelada” ou “isso aqui não tem
nada a ver com a várzea”. Ouvimos isto de jogadores, jornalistas e
torcedores. Tais falas, antes de tudo, revelavam como a constituição da
Suburbana e da imagem que seus agentes têm deste universo está atrelada
ao futebol profissional. Este é uma espécie de “devir” que espreita a
Suburbana – o profissionalismo é um espaço que, como será apontado, está

ÀRIES, Phillipe. História da Vida Privada. Vol. 3: Da Renascença ao Século das Luzes. São
Paulo: Companhia das Letras, 1994. Para uma análise do clubismo entre operários,
relacionado à história do futebol, cf. HOLT, Richard. La Tradition Ouvriériste Du Football
Anglais. In: Actes de La Recherche en Sciences Sociales, Paris, vol. 103, Les Enjeux du
Football, 1994, p. 36-40, e GOLDBLATT, David. The Ball is Round: a global history of football.
London: Penguin Books, 2006. Kindle Edition: cap. 3.
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ou esteve no horizonte de muitos na Suburbana. Mais do que isto, o futebol


profissional e, para além dele, aquele mais midiático e espetacularizado,
oferece uma espécie de “modelo para a ação” – nos termos de Geertz15 –
diante do qual muitos dos discursos e das práticas da Suburbana são
acionados.
A “Suburbana não é pelada” opera exatamente neste sentido: o de
aproximar o campeonato do profissionalismo e seu grau de organização. A
pelada e a várzea – verdadeiros mitos na prática do futebol no Brasil – são
vistos como a essência do amadorismo e os próprios agentes da Suburbana,
oficialmente um campeonato de futebol amador, procuram se afastar disso.
A principal característica da pelada, a bricolagem e o improviso no tocante a
todos os aspectos da prática futebolística, são negados a todo instante na
Suburbana e situações onde o improviso aparece automaticamente são
relacionados à pelada. Numa partida entre o Nova Orleans (União Nova
Orleans, fundado em 1973) e o Trieste, no estádio do primeiro, em um
momento que a equipe se lançou ao ataque de forma desordenada, vários
torcedores afirmaram, em tom crítico, “virou pelada”16. Nesse sentido,
chamar de “pelada” as partidas da Suburbana é uma ofensa aos seus
participantes17.
Por outro lado, o exemplo citado acima revela como este futebol
amador atualiza a divisão do trabalho, rígida, que opera no profissionalismo.
É muito interessante observar como as equipes da Suburbana se prendem a
essa divisão, que se expressa em táticas de organização das equipes dentro
de campo. Indiretamente, isto limita improvisos individuais: dificilmente um
jogador tentará algo fora do previsto, que saia do ordenado por seu
treinador. Inclusive, este aspecto é visto como a “essência do

15 GEERTZ, Clifford. “Religião como Sistema Cultural” In: A Interpretação das Culturas. Rio
de Janeiro: LTC, 1989.
16
Orleans é um bairro do município de Curitiba, cuja urbanização data dos anos 60.
17
Exatamente por seu caráter espontâneo e bricolado, é difícil uma pesquisa sobre a
pelada. Pesquisas tendem a observá-la somente no momento em que ela se fixa em mínimos
níveis de organização, como é o caso do futebol de várzea em algumas cidades. Sobre este,
ver nota abaixo.
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profissionalismo”: saber jogar em equipe e seguir orientações18. Daí a
negação do improviso da pelada.
O mesmo afastamento aparece em relação ao outro elemento mítico
da prática do futebol no Brasil: a várzea. Em certa medida, o futebol de
várzea e a pelada são sinônimos. Contudo, em algumas cidades – como São
Paulo, por exemplo – determinados campeonatos de futebol de várzea
adquiriram tamanha estabilidade e tradição que também os torna distantes
da bricolagem que marca a pelada. Nesse caso, a Suburbana de Curitiba
seria o equivalente destes campeonatos de várzea. No entanto, no caso
curitibano a expressão “futebol de várzea” é usada para denotar
campeonatos cuja organização se dá num nível menor do que o da
Suburbana e que conta com equipes não tão tradicionais como as que
disputam a Suburbana. Nesse ponto de vista, o futebol de várzea seria um
futebol mais amador do que o praticado na Suburbana.
Curitiba, nesse sentido, é muito pródiga. Há uma centena de
campeonatos, ao longo de todo ano, que congregam equipes não
relacionadas a clubes – meros grupos de pessoas que se organizam
temporariamente para disputar um campeonato – bem como equipes não
federadas. É o caso, por exemplo, de campeonatos organizados por critérios
etários, cujos nomes revelam a intenção: Quarentinhas, Cinquentinhas,
Sessentinhas. Tais campeonatos envolvem equipes temporárias – sem
filiação na Federação Paranaense de Futebol – e equipes organizadas por
clubes tradicionais, filiados. Do ponto de vista da Suburbana, esses
campeonatos, mais amadores, seriam o equivalente do futebol de várzea 19.

18
O que dá aos treinadores um poder simbólico imenso. Não tenho como apresentar este
aspecto a partir de falas dos próprios jogadores – aqueles que entrevistei não trataram
deste ponto. Ou seja, esse é um aspecto da observação que ainda merece ser cotejado com
elaborações êmicas. No entanto, é interessante lembrar como no futebol profissional, nos
últimos anos, um ethos de “trabalho em equipe” se tornou mais agudo, dando pouco espaço
para aqueles que não se coadunam com esta ética (os jogadores mais rebeldes,
sintomaticamente, são acusados de “pouco profissionais”) e elevando o peso simbólico da
figura do treinador. No Brasil, por exemplo, um treinador profissional como Flávio Costa ou
Vicente Feola (décadas de 40, 50 e 60) nem de longe usufruíam do prestígio e do poder
concedidos a figuras como Luiz Felipe Scolari ou Vanderlei Luxemburgo. Sugiro que esse
mesmo movimento encontra ecos neste futebol amador.
19
O futebol de várzea conta uma literatura que se amplia cada vez mais, seja do ponto de
vista de suas funções comunitárias, seja do ponto de vista de categorias como “patrimônio”.
No primeiro caso, cf. SANTOS, Marco. “Periferia e Várzea: um espaço de sociabilidade” In:
COSTA, Márcia et al. (org.). Futebol: o espetáculo do século. São Paulo: Musa Editora, 1999.
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Ao afirmar “isso aqui não tem nada a ver com a várzea”, o agente em questão
está construindo seu universo a partir de um afastamento da várzea e da
pelada e de uma aproximação com o profissional.
Essa aproximação com o profissionalismo se expressa de diversas
formas. Uma delas reside no verdadeiro “orgulho” do grau de organização
do campeonato – “esse é o campeonato mais organizado do Brasil”, disse um
jornalista que cobre a Suburbana há duas décadas. Ou ainda, como afirmou
um ex-jogador: “Amador? Só no nome”. Tal organização é apresentada, por
vezes, como sendo superior a do futebol profissional: “aqui não tem virada
de mesa e nem tapetão”, segundo um dirigente de clube. Para além disso, a
aproximação com o futebol profissional ocorre a partir de dois fatos que
merecem destaque: o caráter semiprofissional que regula a relação dos
clubes com os jogadores e a relação de sazonalidade que muitos jogadores
estabelecem entre a Suburbana e o futebol profissional.
O caráter amador do futebol praticado na Suburbana não reside na
ausência de relações monetárias entre clubes e jogadores. Tais relações
existem “desde sempre”, ou seja, desde 1941, quando o campeonato
começou a ser disputado. A Suburbana, no tocante às relações monetárias, é
um campeonato marcado por um semiprofissionalismo, onde jogadores e
técnicos recebem valores por partida – embora tais valores sejam muito
menores do que os praticados no futebol profissional. Obviamente, este é
um ponto de difícil acesso a um pesquisador, à medida que os agentes,
nesse sentido, declaram o caráter amador do campeonato e tendem a tratar
da questão monetária de forma muito subreptícia. Esse semiprofissionalismo
– nenhuma novidade em se tratando de prática de futebol no Brasil, como se
verá adiante – aparece, desta forma, velado em discursos que são sempre
indiretos20. Por outro lado, em torno das relações monetárias, uma forma

p. 117-118; GONÇALVES, Alana Mara Alves. Futebol Amador: campo emergente de


sociabilidade. Fortaleza, 2002. Dissertação de mestrado (Sociologia). Programa de Pós-
Graduação em Sociologia. Universidade Federal do Ceará. No segundo, cf. MAGNANI, José
Guilherme e MORGADO, Naira. “Futebol de Várzea também é pratimônio” In: Revista do
Patrimônio Artístico e Nacional, São Paulo, n. 24, 1996, p. 175-184. Cf., também, DAMO, op.
cit. p. 45-47, para mais indicações bibliográficas.
20
O que torna a observação participante, na forma como foi desenvolvida pela antropologia
no século XX, o modo mais adequado para uma pesquisa sobre as relações monetárias na
Suburbana. Entrevistas diretas não dão muita conta do tema, exatamente por seu caráter
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Entre a várzea e o profissional: sobre um campeonato de futebol amador
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muito ativa de relação com a alteridade e com a rivalidade é construída.
Nesse caso, a aproximação com o profissionalismo oferece motes para
denegações.
É o que transparece em um dos aspectos mais interessantes – e que
ainda merece muitos estudos – da Suburbana: as acusações mútuas de
profissionalismo, onde um clube acusa outro de estar se profissionalizando,
ou seja, de estar pagando seus jogadores. Nos últimos anos, um dos clubes
da Suburbana, por meio de relações familiares, passou a ser patrocinado
por uma grande empresa, o que deu a ele uma série de vantagens em
termos de estrutura21. Imediatamente, muitas acusações de
profissionalização foram feitas por outros clubes, fato este que é uma
atualização de inúmeros eventos semelhantes que ocorreram na história do
campeonato22. Some-se a isto o fato de que “está se profissionalizando” é um
tópico recorrente nos discursos dos agentes mais velhos – jornalistas,
torcedores e ex-jogadores – ao tratar da Suburbana hoje. Um ex-jogador
afirmou: “Hoje em dia não é mais a mesma coisa. Jogam por dinheiro. No meu
tempo [anos 60] se jogava por amor à camisa”. Ou seja, o dinheiro oferece
aqui não somente um eixo em torno do qual se constrói o jogo entre “nós e

velado. Ademais, não se trata aqui de “descobrir a verdade” (se os clubes pagam ou não
seus jogadores), mas sim capturar, via texto, como agentes sociais elaboram tal questão. Ou
seja, o velamento não é um obstáculo a ser vencido pelo pesquisador, mas sim um elemento
a mais do próprio campo a ser descrito. Ao conversar com jogadores sobre este tema,
chamava-me mais atenção a forma como o tema era tratado (com desconforto, velamento)
do que seus dados objetivos (quanto se paga).
21
Um dos temas completamente inexplorados com relação à Suburbana diz respeito aos
dirigentes dos clubes que disputam o campeonato: suas posições sociais, relações de
interdependência, relações de patrocínio, dentre outros aspectos. Tal estudo seria
extremamente útil para diversos campos de estudos: a história dos bairros de Curitiba,
imigração, redes de lazer, parentesco e política. Vale lembrar que o estudo sobre
dirigentes também está nos seus primórdios com relação ao futebol profissional. Cf., por
exemplo, a tese de GODÍO, Matías. Somos Hombres de Platea: a sociedade dos dirigentes e
as formas experimentais do poder e da política no futebol profissional na Argentina.
Florianópolis, 2010. Tese de doutorado (Antropologia Social). Programa de Pós-Graduação
em Antropologia Social. Universidade Federal de Santa Catarina - sobre dirigentes no
futebol argentino.
O tema dos patrocínios também renderia análises que teriam a oportunidade de observar
redes econômicas bastante cotidianas, à medida que muitos clubes têm como patrocínio
pequenas empresas comerciais, que operam em um nível local.
22
Em 1970, uma das equipes mais tradicionais do futebol amador de Curitiba, à época, o
Operário do Ahú, se retirou da Suburbana, sob a alegação de que não poderia disputar um
campeonato cada vez mais profissional.
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eles”, mas também um eixo que oferece uma possibilidade de pensar o


tempo: “nós de antigamente e eles de hoje em dia”23.
O que interessa aqui é menos a veracidade do fato de equipes
pagarem seus jogadores e muito mais o caráter de denegação que o termo
“profissional” adquire neste contexto de fala. “Profissional” é sempre o
Outro – seja esta alteridade pensada no espaço (o outro clube), seja pensada
no tempo (a geração de hoje) – e, neste ponto, a proximidade do futebol
profissional é usada de forma negativa. Não importa que todos pratiquem
um semiprofissionalismo velado: o futebol profissional, neste contexto de
fala, assume um lugar de exclusão, de negação do outro, e os jogos
acusatórios revelam, em grande medida, esse aspecto24.

23
Aqui, tangencia-se um tema – o dinheiro e a desarticulação do mundo – que aparece, de
forma transformada em muitos outros contextos explorados por antropólogos. JACQUES,
Tatyana Alencar. Comunidade Rock e Bandas Independentes de Florianópolis: uma etnografia
sobre socialidade e concepções musicais. Florianópolis, 2007. Dissertação de mestrado
(Antropologia Social). Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social. Universidade
Federal de Santa Catarina. p. 84-91, mostra como a inserção em relações monetarizadas cria
zonas de conflito entre jovens músicos de rock; por sua vez, em textos muito comentados,
VELHO, Otávio. “O Cativeiro da Besta Fera” In: Besta Fera – Recriação do Mundo: ensaios
críticos de antropologia. São Paulo: Direl, 1995. p. 4-31 e TAUSSIG, Michel. O Diabo e o
Fetichismo da mercadoria na América do Sul. São Paulo: Editora da UNESP, 2010 mostram
como cosmologias camponesas formulam a introdução de relações monetarizadas em
modos de produção tradicionais.
24
A análise da dinâmica social estabelecida por estas acusações pode ter seu paralelo nas
acusações de feitiçaria em sociedades africanas, estudadas pela antropologia britânica
entre as décadas de 30 e 60. Autores como EVANS-PRITCHARD, Edward. Bruxaria, Oráculos
e Magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, e DOUGLAS, Mary. Os Lele
Revisitados, 1987. Acusações de feitiçaria à solta In: Mana – Revista de Antropologia Social,
Rio de Janeiro, v. 5, n. 2, p. 7-30, 1999, sobretudo esta última autora, descreveram como as
acusações de feitiçaria colocavam grupos domésticos ou territoriais em relação de
interdependência - era preciso acusar alguém do outro grupo – de modo que tais acusações
operavam como um dos elementos que mantinham a dinâmica social. Por outro lado, vale
lembrar do texto clássico de GLUCKMAN, Max. Análise de uma situação social na Zululândia
moderna. In: FELDMAN-BIANCO, Bela (org.). Antropologia das Sociedades Contemporâneas.
São Paulo: Global Universitária, 1987. p. 227-344, onde, a partir da análise das tensões entre
grupos raciais, ele mostrava como o conflito fazia parte de uma estrutura que, por meio
dele, se mantinha em uma situação de relativa estabilidade. Ao mesmo tempo, tais conflitos
estavam no cerne de possibilidades de transformação da estrutura. O mesmo ocorre aqui.
Todos se acusam desde sempre e isto faz parte da Suburbana. Vez ou outra, no entanto, um
e outro clube vão além da mera acusação e se desligam do campeonato (estrutura),
operando a mudança de seus quadros. Cf., também, as análises que ELIAS, Norbert e
SCOTSON, John. Os Estabelecidos e os Outsiders: sociologia das relações de poder a partir
de uma comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2000, fizeram da fofoca enquanto modo de
regulação das relações sociais em uma pequena comunidade inglesa. Ali também era
possível observar as acusações como mecanismo de construção de identidades e
alteridades. Em suma, este jogo de acusações na Suburbana ainda merece ser estudado
mais profundamente.
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Uma segunda aproximação com o universo do profissionalismo diz
respeito ao trânsito de jogadores entre a Suburbana e o futebol profissional.
Esse trânsito pode ser descrito em termos de uma perspectiva temporal,
onde o profissionalismo aparece como passado, presente e futuro. O
primeiro caso é representado por ex-jogadores profissionais que, finda
carreira profissional, atual pelas equipes que disputam a Suburbana. Em
2010, por exemplo, o Urano contava no seu meio campo com Reginaldo
Vital, ex-meia com passagens destacadas pelo Paraná Clube e Atlético
Paranaense. A equipe campeã da Suburbana em 2012, Bairro Alto (Clube
Atlético Bairro Alto, fundado em 1987), contava com Alex Mineiro, Nem e
Rogério Correa – três jogadores que atuavam na equipe do Atlético
Paranaense, campeão brasileiro de 2001. No começo da década de 90, foi
muito destacada a passagem do goleiro Roberto Costa (que atuou pela
seleção brasileira nos anos 80) pela equipe do Vila Fanny (Vila Fanny
Futebol Clube, fundado em 1952). Em suma, a Suburbana aparece como um
atrativo para jogadores que se retiram do profissional: ali podem atuar sem
a pressão do universo profissional – seja em termos de capital corporal, seja
em termos de capital futebolístico – mas em um nível superior ao do
universo das peladas. Tais jogadores, em alguns casos, exigem um
investimento do clube que o coloca par a par com clubes do futebol
profissional25. Aqui é o caso em que o profissionalismo é o lugar do passado
e nesta situação se encontram muitos atuais jogadores da Suburbana, bem
como treinadores.
Há casos – e estes são comoventes de se ouvir, porque envolvem a
dimensão de “ascensão social” que significa o futebol para muitas pessoas –
de ex-jogadores que tiveram sua carreira abreviada – por questões de
contusão, por exemplo – e que encontraram na Suburbana um lugar de
trabalho. Neste caso, o profissionalismo aparece como um “devir não
realizado”, não raro associado a discursos de vitimização: “Eu dei azar [no

25
Segundo depoimento do presidente do Bairro Alto ao jornal Gazeta do Povo, com o
investimento do clube em 2012 daria para disputar a série B do campeonato paranaense de
futebol profissional. Cf. GAZETA DO POVO. “Bairro Alto aposta em time galáctico na
Suburbana”. Reportagem de Maurício Fernando Kern. Curitiba, 15/09/2012. Disponível em
http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/suburbana-em-campo/bairro-alto-aposta-em-
time-galactico-na-suburbana/).
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profissional]. Primeiro me machuquei muito. Depois um técnico que estava lá


não me deu oportunidade. Achei melhor voltar e aqui em Curitiba não tive
espaço em lugar nenhum. Daí apareceu esta escolinha”, disse um ex-jogador
que rodou por equipes profissionais da segunda divisão de São Paulo e que
agora atua numa escolinha de futebol que funciona nas dependências de um
dos clubes que disputam a Suburbana.
Mas o profissionalismo também pode ser um projeto de futuro. A
Suburbana é disputada em duas categorias, adulto e juvenil. Nesta última,
cujas partidas são realizadas sempre antes da categoria adulto – na forma de
rodada dupla – é que aparecem em maior evidência projetos de ascensão
social através do futebol. Muitos garotos jogam nas equipes amadoras da
cidade (de maneira completamente informal) e em equipes juvenis do
futebol profissional. Em outros casos, jogadores juvenis dispensados de
equipes profissionais passam “um tempo” em equipes amadoras. De toda
forma, entre estes jogadores mais jovens o profissionalismo ainda é um
“devir possível” e a Suburbana ou outros campeonatos amadores são vistos
como lugares provisórios26. Os exemplos de nomes que se tornaram
famosos no futebol profissional e que começaram na Suburbana, neste caso,
são citados com frequência: atualmente, o nome de Cuca – ex-jogador com
passagem destacada no Grêmio (de Porto Alegre) na segunda metade dos
anos 80 e técnico do Atlético-MG, em 2012 e 2013 – é muito citado devido a
sua passagem pelo Iguaçu no começo de sua carreira.
Esse caráter de “lugar provisório” marca também a atividade de
muitos jogadores que não são juvenis e que disputam a Suburbana como um
interregno em suas carreiras profissionais. Este é um aspecto que parece
muito interessante e que revela as interconexões entre a matriz
espetacularizada e a matriz comunitária da prática futebolística, no qual a
Suburbana poderia ser vista como um “mercado de reserva”, ou ainda, para

26
Durante a pesquisa de campo, um aspecto que se imaginava corrente e que não se
concretizou foi a presença de observadores dos clubes profissionais, os chamados
“olheiros”, cuja função é descobrir talentos. Eles até existem, mas em grau muito menor do
que o esperado. O que ocorre é que treinadores e dirigentes da Suburbana fazem esta
intermediação: ao perceber algum jogador com chances no profissionalismo, eles
estabelecem o contato entre o jogador e o clube profissional. Isso é possível muito em
função do fato de que treinadores e dirigentes são ex-jogadores com passagens mais longas
ou mais breves pelo futebol profissional.
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Entre a várzea e o profissional: sobre um campeonato de futebol amador
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usar a expressão de um torcedor, “um lugar de engorda” para o mercado
profissional. É muito comum jogadores disputarem o campeonato
paranaense de futebol profissional por um clube do interior e no restante do
ano disputarem a Suburbana, caso não consigam (ou não desejem) um lugar
em algum clube que vai disputar o campeonato brasileiro em alguma de
suas divisões. Um jogador comentou “é melhor jogar aqui que disputar a
série C do campeonato brasileiro”. Desta forma, entre o profissionalismo e a
amadorismo é estabelecida uma relação de sazonalidade que, segundo ouvi
durante a pesquisa, abarca muitos dos jogadores da Suburbana – um
jornalista que cobre o campeonato estipulou em mais de 50% o percentual
de jogadores envolvidos nesta sazonalidade. O profissionalismo aqui é o
presente, mas que não se sustenta por si – daí o recurso ao amadorismo da
Suburbana e o seu semiprofissionalismo velado, sendo que essa relação de
sazonalidade, somente esboçada aqui, constitui um dos aspectos a ser
estudado ainda entre jogadores da Suburbana27. Ser uma “chuteira imortal”
– para usar a expressão de Nelson Rodrigues e que marca muito do aspecto
sociológico relacionado ao futebol – é um projeto corrente que orienta
muitas das ações de muitos jogadores da Suburbana, que disputam jogos
aos sábados à tarde em estádios modestos e que sonham em disputar
partidas das tardes de domingo – o futebol espetáculo – em um estádio bem
maior.
Quando assisti pela primeira vez a uma partida da Suburbana, em
agosto de 2010, imaginava, devido ao caráter amador do campeonato, que
ali o futebol espetacularizado seria apenas uma sombra distante. Ledo
engano: ele está em todo lugar. Nos rituais, nos desejos, nos projetos e é
impossível pensar a Suburbana sem referência ao futebol das “chuteiras

27
De certa forma, a Suburbana está inserida no mercado de formação de jogadores, tal
como descrito por DAMO,op. cit.. O que necessita de mais estudos são as redes desta
inserção, ainda muito pouco esboçadas na pesquisa que deu origem a este artigo. Cf.
também RIAL, Carmen. “Rodar: a circulação de jogadores de futebol brasileiro no exterior”
In: Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 14, n. 30, jul./dez. 2008, p. 21-65 e RUGGI,
Lennita Oliveira. Em Campo: transferências internacionais de futebolistas brasileiros. São
Paulo: Blucher Acadêmico, 2009, sobre o funcionamento do mercado de transferência de
jogadores para o exterior. Ao contrário do que parece a muitos, este mercado não opera
somente com jogadores consagrados no mercado interno brasileiro. Pelo contrário, e na
Suburbana há vários casos disto, muitos jogadores fazem o circuito “futebol amador-futebol
profissional brasileiro série C ou B – futebol amador – futebol profissional de mercados
marginais como o Leste Europeu”.
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imortais”. No entanto, descrevê-lo somente em relação ao profissionalismo é


construir um quadro distorcido, que minimiza o outro lado do evento: aquele
que estabelece laços com a vida da comunidade, dos bairros, do cotidiano.
Este lado também é parte, e muito presente, da Suburbana.

Devolver o que é dado: o aspecto comunitário da Suburbana


Se por um lado, a Suburbana pode ser descrita na sua
interdependência com o futebol profissional, por outro lado acompanhar o
campeonato é observar também uma série de fatos cuja compreensão exige
que se leve em conta as relações comunitárias envolvidas na Suburbana.
Tais fatos nos ajudam a dimensionar a inserção da Suburbana no cotidiano
de muitas pessoas em Curitiba. Para muitos curitibanos, a Suburbana é uma
atividade de lazer que promove um trânsito de pessoas pela cidade, entre
seus bairros, de modo a acompanhar uma partida de futebol.
Em primeiro lugar, é preciso não subestimar o fato de que a maioria
dos clubes que disputam a Suburbana são também espaços de lazer em seus
bairros. Para além de serem clubes de futebol, eles são também lugares de
uma série de práticas de sociabilidade, tais como bailes, formaturas,
quermesses, festas, além de serem espaços de encontro de moradores dos
bairros. Um bom exemplo eram as partidas no estádio Egydio Pietrobelli, do
Iguaçu. Ao mesmo tempo em que uma partida era disputada, muitas outras
atividades aconteciam concomitantemente: campeonatos de truco, pessoas
confraternizando diante de uma TV (passando futebol) no bar do clube,
jogos de sinuca e outras atividades. O mesmo cenário ocorria na maioria dos
estádios onde as partidas eram disputadas – dificilmente, o evento consistia
apenas de uma partida de futebol. Essa dimensão de espaço de lazer
aproxima a Suburbana daquilo que Damo28 chamou de “matriz comunitária”
da prática futebolística – representada pelo futebol de várzea.
Para além disso, as próprias partidas possuem uma dinâmica onde
não operam, ainda, elementos observados no futebol de espetáculo. É o
caso das torcidas, que tendem a não ser separadas. Aliás, a própria

28
DAMO,op. cit.
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Entre a várzea e o profissional: sobre um campeonato de futebol amador
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espacialidade dos estádios, com boa parte da torcida assistindo de pé, junto
ao alambrado, contribui para isto. As torcidas existem, inclusive as
organizadas – porém sua participação, em comparação com o que se
observa no futebol profissional, é muito menor. O mais comum é que os
torcedores assistam aos jogos sem estarem separados de acordo com as
equipes de sua predileção, tomando sua cerveja e comendo o pão com bife
– considerado a “iguaria da Suburbana”. Ou seja, as partidas da Suburbana
são eventos de cunho muito mais comunitário do que as correlatas do futebol
de espetáculo – o que não significa a ausência de confusões envolvendo
torcidas (nas finais de 2010 e 2012, por exemplo, a polícia teve que intervir
para separar torcedores).
No entanto, o caráter “comunitário” da Suburbana também pode ser
observado dentro de campo, onde impera, muito mais do que no futebol
profissional, uma ética baseada na reciprocidade, a partir da qual “o que é
dado tem que ser devolvido”. Em uma partida entre Nova Orleans e Trieste,
a torcida do primeiro exigia que o jogo violento da primeira partida – no
estádio do Trieste – fosse devolvido dentro de campo. E, de fato, um olhar
mais atento percebe que as partidas da Suburbana tendem a ser mais
ríspidas do que as do futebol profissional. As partidas, com frequência,
entram em zonas de tensão, com muitas reclamações das equipes em torno
da arbitragem e entre elas próprias. Em suma, há sempre um conflito à
espreita.
Esse é um aspecto que somente pode ser esboçado aqui, pois ainda
merece maiores aprofundamentos. Porém, o que eu gostaria de enfatizar é
que códigos morais bastante explícitos – envolvendo noções de pessoa,
honra, masculinidade – são ativados durante as partidas. Ao contrário do
futebol profissional, onde há uma tentativa – nem sempre bem sucedida – de
domesticação das tensões, na Suburbana tal processo é muito mais tênue.
No profissionalismo, as tensões tendem a ser evitadas e operar numa ética
de reciprocidade muitas vezes é criticado como “falta de profissionalismo”.
Nesse ponto, é importante lembrar a valorização, no futebol de espetáculo,
do fair play, que pode ser visto como um regime moral a regular as relações

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envolvidas no jogo29. Ao mesmo tempo, o fair play tem um aspecto muito


interessante de renúncia, à medida que ele convida o agente a abrir mão da
reciprocidade – que marca muito das relações comunitárias – em
determinados aspectos, marcadamente o da violência30.
Exatamente por ser regida mais por códigos comunitários do que
aqueles do futebol de espetáculo, a Suburbana possui uma fama de violenta.
É parte do folclore de Curitiba referências à violência que reina nas edições
da Suburbana, violência esta que está ligada à tensão que se observa
durante as partidas. Em certa medida, o que não há é o grau de renúncia à
reciprocidade que se observa, cada vez mais, no futebol de espetáculo: um
lance violento será revidado e assim por diante. Exatamente por este ponto,
as partidas da Suburbana chamam a atenção pelos bate-bocas e discussões
entre jogadores e entre estes e os juízes. As torcidas, por sua vez, que
raramente brigam entre si – conforme foi afirmado, não há, em geral,
separação de torcidas – acabam participando desta tensão de dentro de
campo. Em várias partidas que acompanhei, houve problemas para o juiz ou
o time visitante sair do estádio, em função deste princípio da reciprocidade:
o que é dado será devolvido31.
Neste sentido, o que se observa na Suburbana, sobretudo quando se
comparada como futebol de espetáculo, é que ali o processo de

29
Para uma análise sociológica do fair play, analisando-o como elemento de regulação
moral, cf. BRITO, Simone; MORAIS, Jorge Ventura de e BARRETO, Túlio Velho. Regras de
Jogo versus Regras Morais: para uma teoria sociológica do fair play In: Revista Brasileira de
Ciências Sociais, São Paulo, v. 26, n. 75, p. 133-146, 2011. Vale observar que este ponto pode
ser analisado também a partir de uma literatura, vasta, que tem como objeto a noção de
honra. Para uma introdução a esta literatura, v. o artigo de TEIXEIRA, Carla Costa. O preço
da honra. In: Série Antropologia, Brasília, n. 253, 1999. p. 1-24. Para um estudo sobre a
construção da masculinidade a partir do futebol, cf. FARIA, Eliene Lopes. Jogo de corpo,
corpo do jogo: futebol e masculinidade. In: Cadernos de Campo, São Paulo, n. 18, 2009, p.
65-86.
30
Lembremos do peso da reciprocidade na análise que BOURDIEU, Pierre. Três Estudos de
Etnologia Cabila. In: Esboço de uma Teoria da Prática. Oeiras: Celta Editora, 2002. p. 3-131,
faz da honra entre os Kabila. A honra é construída a partir de uma administração do tempo
do dar e do devolver: jamais algo que foi dado deve ser retribuído imediatamente. Uma
análise semelhante aparece na etnografia de WACQUANT, Loïc. De Corpo e Alma: notas
etnográficas de um aprendiz do boxe. São Paulo: Relume Dumará, 2002, entre lutadores de
boxe de Chicago: o bom lutador é aquele que devolve o golpe, na hora certa e na medida
certa. Um lutador que espanca seu oponente – ou seja, que dá mais do que este pode
devolver – é visto como um mau lutador.
31
Como geralmente a torcida “acerta as contas” com o juiz ou com o time adversário ao
final do jogo, este é o momento em que um pequeno efetivo policial aparece nas partidas da
Suburbana. Durante a maioria do tempo das partidas, não há policiamento algum.
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Entre a várzea e o profissional: sobre um campeonato de futebol amador
| Allan de Paula Oliveira
normatização e repressão das pulsões, descritas por Norbert Elias como
processo civilizatório – e que, conforme o próprio Elias32 (1976 e 1985) é
central para a compreensão da normatização das práticas esportivas, a partir
da segunda metade do século XIX – é menos intenso, o que significa que ele
existe mas opera em menor grau. De novo: vale lembrar da proximidade
com o profissionalismo. Em uma determinada partida, tirei fotos de uma
confusão entre jogadores ao final do jogo, sendo que logo após a confusão
fui procurado por três deles e “convidado” a apagar as fotos, já que seu
temor era que com a publicação das fotos suas carreiras fossem
prejudicadas33. No entanto, os conflitos – sobretudo dentro de campo – são
muito mais mediados por regras comunitárias e, portanto, baseadas no
princípio da reciprocidade, do que no futebol profissional. Neste, a
reciprocidade é, a todo momento, escamoteada em nome de um princípio
civilizatório. Na Suburbana, não: é por ela que a comunidade se faz
perceber.
Um dos temas centrais da história da antropologia é a noção de
pessoa, consagrada a partir de um texto seminal de Marcel Mauss em
193834. Desenvolvimentos teóricos posteriores – a obra de um aluno de
Mauss, Louis Dumont, entre as décadas de 50 e 80, a partir de estudos sobre
a sociedade indiana, ou ainda, as etnografias produzidas pela antropologia
inglesa entre as décadas de 40 e 60 – ajudaram os antropólogos a formular

32
ELIAS, Norbert. Sport et violence. In: Actes de La Recherche en Sciences Sociales, Paris,
v.2, n. 6, p. 2-21, décembre 1976; ELIAS, Norbert. A gênese do desporto: um problema
sociológico. In: ELIAS, Norbert e DUNNING, Eric. A Busca da Excitação. Lisboa: DIFEL, 1985.
p. 187-222.
33
Minha inserção no campo foi mediada em grande medida por uma máquina
fotográfica. Alguns jornalistas, dirigentes, torcedores e jogadores com quem conversei e
entrevistei sabiam do teor da pesquisa que eu estava fazendo. Mesmo assim, essa
compreensão não era generalizada. Para muitos jogadores que me viam fotografando os
jogos, eu parecia um jornalista. Mais de uma vez tive que responder a pergunta “você é
jornalista?”, ao que eu respondia que era professor de uma universidade e estava
escrevendo um livro sobre a Suburbana. Com exceção desta situação da briga, não tive
nenhum problema e nenhum impedimento em registrar fotograficamente as partidas. Aliás,
era solicitado quanto a isto e em um universo onde o nome e o reconhecimento são eixos
centrais para a construção da pessoa, a fotografia é um capital simbólico valioso. Sobre este
ponto, minha inserção no campo como pesquisador (em comparação com outra pesquisa
que realizei, sobre música – OLIVEIRA, Allan de Paula. Miguilim foi pra cidade ser cantor.
Tese de doutorado em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina, 2009),
pretendo escrever em breve.
34 MAUSS, Marcel. Uma categoria do espírito humano: a noção de “eu”. In: Sociologia e

Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.


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quadros onde em alguns casos a sociabilidade é pensada a partir de grupos,


conquanto em outros o indivíduo – segundo Mauss, uma construção histórica
específica (portanto, não universal enquanto categoria social) – é o valor
central35. De alguma forma, pode-se fazer a pergunta se o que observamos
no futebol de espetáculo atualmente é um movimento no sentido de uma
“impersonalização” das relações, ou seja, um movimento de normatização e
controle dos códigos sociais marcados pelo coletivo, pela noção de pessoa.
Isto significa que os espaços de operação de códigos coletivos serão cada
vez mais reduzidos e o que estou tratando por “reciprocidade” é um deles.
Quanto mais profissional um campeonato – e, por extensão, maior o
espetáculo – se torna, maior o peso das relações impessoais e mais
escamoteadas as pessoais.
O que a Suburbana nos oferece é um meio-termo disto. Este texto
tentou apresentar ao leitor um modelo no qual este campeonato de futebol
amador é descrito na sua grande proximidade com o futebol profissional,
tendo ainda, contudo, aspectos comunitários bastante marcados. Nesse
sentido, a Suburbana é um espaço onde as relações pessoais, marcadas pela
ideia de grupo, comunidade, bairro, o “nós” contra o “eles” ainda tem um
peso considerável, embora dentro de campo ela tente a impessoalidade do
futebol profissional. O interessante é exatamente este meio-termo. À
princípio se espera de um campeonato amador o predomínio do caráter
comunitário e a Suburbana, em certa medida, quebra esta projeção. Ela não
pode ser compreendida sem relação ao futebol profissional, do qual é, cada
vez mais, um mercado de reserva. No entanto, descrevê-la somente com
relação ao profissionalismo é perder o que ocorre fora de campo, entre
aqueles que a assistem36.

35
Para uma introdução à temática da noção de pessoa, com exegeses da obra de Mauss,
Dumont e dos antropólogos ingleses, cf. GOLDMAN, Márcio. Uma categoria do pensamento
antropológico: a noção de pessoa. In: Alguma Antropologia. Rio de Janeiro: Relume Dumará,
1999.
36
Em hipótese alguma a frase “quanto mais profissional, mais impessoal” deve ser lida em
termos absolutos. Embora o futebol de espetáculo tenda a uma impessoalidade cada vez
maior, isto não significa que ele seja bem sucedido. Um dos aspectos da obra de Louis
Dumont é mostrar que o projeto individualista da modernidade (e que permite a
“impersonalização” das relações sociais) não foi tão bem sucedido quanto desejava: a ética
de grupo, ou ainda, a noção de pessoa opera em muitos domínios do mundo moderno.
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Entre a várzea e o profissional: sobre um campeonato de futebol amador
| Allan de Paula Oliveira
Do Fair Play à Sazonalidade Informal
Por fim, é interessante pensar em alguns significados que a Suburbana
oferece para a análise. Um deles diz respeito ao seu caráter de “campeonato
de futebol amador” diante do peso do futebol de espetáculo nas
representações sobre o esporte. Este é um ponto curioso porque, em grande
medida, a “educação sentimental” de muitos envolvidos na Suburbana é
dada pelo futebol de espetáculo37. É sonhando em ser um jogador
profissional de destaque que muitos jovens atuam nos clubes da Suburbana;
é tendo vivido o futebol profissional espetacularizado que ex-jogadores
profissionais atuam na Suburbana; é como torcedor de um time de futebol
espetacularizado que muitos torcedores vão torcer por equipes da
Suburbana38. Diante dessa onipresença do futebol espetacularizado, o que
significa um campeonato de futebol amador?
Uma primeira resposta seria a própria diversidade das práticas
futebolísticas, como apontado por Arlei Damo39. Estas não se resumem ao
futebol de espetáculo, às partidas do campeonato brasileiro ou a um jogo da
Champions League. Há o campeonato de times de várzea, há a pelada no
intervelo do trabalho na fábrica, há os garotos jogando em um campo de
terra, há a partida mista (com homens e mulheres) na aula de educação
física. A Suburbana seria um elemento nesta diversidade dos futebóis. No
entanto, e esse foi um dos objetivos desse texto, entre essas práticas há uma
relação mediada, a meu ver, cada vez mais, pelo futebol de espetáculo. E,
por isso, o significado deste campeonato amador também pode ser pensado
em função do futebol de espetáculo, profissional e midiático.

37
E isso vale para o pesquisador também. A medida de todas as coisas que eu observava
era dada pela minha relação pessoal com o futebol de espetáculo, como torcedor e
espectador (já que consumo muito futebol pela TV). A medida do que seja uma boa partida
de futebol, a medida do que seja um bom jogador, uma boa equipe, uma boa jogada, me é
dada pelo futebol espetáculo – daí a sensação de que a maioria das partidas que assistia na
Suburbana eram “ruins”. Repare o leitor que não se trata aqui de uma veleidade pós-
moderna de me colocar no texto, mas sim de chamar a atenção para as fontes das
representações relacionadas ao futebol e que orientam as ações e os julgamentos, sejam
dos agentes envolvidos na prática, sejam do próprio pesquisador.
38
O exemplo é uma das torcidas organizadas do Pilarzinho (Operário Pilarzinho Sport Club,
fundado em 1951 e tendo o nome do bairro onde tem sua sede), que é parte de uma torcida
organizada do Paraná Clube, um dos principais clubes profissionais de Curitiba.
39 DAMO, op. cit..

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| DOSSIÊ FUTEBOL E DIVERSIDADE CULTURAL

Para compreender este significado, é preciso levar em conta, aqui,


algumas inflexões históricas da expressão “futebol amador”. O futebol
moderno nasce amador, marcado pelos códigos de ética e comportamento
de determinados estratos sociais e se populariza, sofrendo, a partir do
último quartel no século XIX e as três primeiras décadas do século XX, uma
série de transformações, entre elas o advento do profissionalismo. No Brasil,
a profissionalização do futebol começou em 1933, após um período de um
pouco mais de uma década onde um semiprofissionalismo foi praticado de
forma escusa40. A Suburbana, que começou a ser disputada em 1941, tem
seu significado primeiro atrelado a este movimento: a Liga Suburbana de
Curitiba era formada por clubes que não se profissionalizaram em um
momento onde esta ação estava ocorrendo. Somente uma pesquisa
historiográfica mais acurada poderá dizer se estes clubes não se
profissionalizaram por falta de interesse ou por falta de condições. No
entanto, é interessante pensar neste ponto: “não se profissionalizar quando
isto é possível”.
O amadorismo no futebol moderno tem sua origem ligado a um
processo de distinção de classe, que apregoava valores como o fair play,
visto, naquele momento, como um código de conduta que renunciava ao
dinheiro41. Durante a segunda metade do século XIX e começo do século XX
houve um debate no sentido da manutenção desses valores, à medida que o
futebol incorporava classes sociais menos favorecidas – as quais
demandavam a possibilidade de que o futebol fosse um trabalho. Em suma,
até o advento da profissionalização, o amadorismo tem este caráter de
distinção, de fair play, de elegância e de desprendimento. No entanto, este
significado ganha novos contornos a partir do momento em que a
profissionalização se torna uma ação possível.

40
A historiografia sobre a profissionalização no futebol brasileiro, nas décadas de 20 e 30, é
cada vez mais ampla. Cf., como ponto de partida, LEITE LOPES, José Sérgio. Classe,
etnicidade e cor na formação do futebol brasileiro. In: BATALHA, Cláudio H. M; SILVA,
Fernando Teixeira e FORTES, Alexandre (orgs.). Culturas de Classe: identidade e
diversidade na formação do operariado. Campinas: Editora da UNICAMP, 2004. p. 121-163,
e PEREIRA, Leonardo. Footballmania: uma história social do futebol. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000.
41 FRYDENBERG, Julio. História Social del Fútbol: del amateurismo a la profesionalización.

Buenos Aires: Siglo Veintuno Editores, 2011.


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Entre a várzea e o profissional: sobre um campeonato de futebol amador
| Allan de Paula Oliveira
É possível que alguns clubes que disputaram a Suburbana em 1941
eram clubes que não podiam se profissionalizar, por falta de condições.
Alguns, ao longo das décadas, fizeram esse movimento, para depois
retornarem ao amadorismo. É o caso do clube Primavera (Clube Atlético
Primavera), fundado em 1930 e que, entre 1961 e 1969 se profissionalizou,
não conseguindo manter essa condição. Ou seja, desde sua fundação, a
Suburbana apresenta um amadorismo que não é tanto aquele do fair play do
futebol de antes da era profissional, mas muito mais um amadorismo que,
conforme foi apontado anteriormente, tem no profissionalismo uma relação
de constituição, de “devir possível”. Um dos aspectos dessa relação é o que
esse texto tentou apresentar: a Suburbana como uma reserva de mercado do
futebol profissional, como um espaço de trabalho informal e sazonal para
muitos jogadores. Se o amadorismo em um primeiro momento era uma
negação do profissionalismo, a Suburbana mostra como ele pode ser, agora,
uma parte do universo profissional, um domínio complementar que opera
como espaço de trabalho sazonal. Se em um primeiro momento, ser amador
era uma ação moral de distinção, agora o amadorismo pode ser uma
estratégia dentro de um quadro que opera por sazonalidades.
É claro que o futebol amador, muitas vezes, está muito longe do
profissionalismo. Como foi afirmado, existem centenas de campeonatos em
Curitiba caracterizados, aí sim, por um amadorismo que beira a bricolagem
da pelada. Não é este o caso da Suburbana, um campeonato amador que nos
permite perceber a relação dinâmica entre códigos comunitários e os mitos
prometidos pelo futebol de espetáculo. Em suma, um campeonato amador
onde seus agentes não hesitam em afirmar: “amador? Só no nome”.

Recebido em 04.02.2014
Aprovado em 21.05.2014

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