MAQUIAVEL EA CONSTRUGAO
DA POLITICA
RAQUEL KRITSCH
Em Maquiavel € muito claro que a politica € a reflexdo que
sobre ela se faz constituem aspectos indissocidveis. O Principe é a prova
mais evidente disso. Embora tenha sido uma obra lida por muitos ao longo
dos séculos como um “manual” ou receitudrio para o governante que dese-
jasse se tornar um principe virtuoso em qualquer tempo e lugar ~ 0 que ev
dencia seu cardter de tratado tedrico -, Maquiavel nao escondeu de seus
leitores que o livro tinha um sentido pritico imediato, explicitamente
declarado no tiltimo capitulo. Nele 1é-se uma exortagdio em favor da “un
cago da Itdlia” ¢ da expulsdo dos estrangeiros. A idéia de um projeto
nacional, missfio que Maquiavel atribufa aquele que assumisse a tarefa de
unificar, libertar e pacificar a Itélia, expressa-se no poema de Petrarca. E
essa mensagem final, portanto, que deve incentivar a ago e permanecer
gravada nelli italici cor e, de modo muito especial, no coragiio de um
principe disposto a redimir a Itélia — "espoliada, lacerada, invadida" — das
“crueldades e insoléncias barbaras".
Essa mensagem, ponto final do escrito, é também ponto de par-
tida, Constitui 0 marco inicial ndo do discurso explicito, mas do trabalho
de Maquiavel. Cauteloso, este nao a revela na dedicatéria. $6 no final se
abrir, por inteiro, 0 sentido da homenagem aparentemente banal. Se este
presente for "diligentemente considerado ¢ lido, encontrar o meu extremo
desejo de que the advenha aquela grandeza que a Fortuna e as outras suas
qualidades Ihe prometem”
A missio prética nao s6 motiva Maquiavel como ilumina todo o
livro. Ea partir dela que se poem as questées técnicas ¢ tedricas enfrentadas
no texto: as formas de acesso ao poder, os meios de agdo e sua hierarquia, as
qualidades necessarias ao governante, as exigéncias préprias da agio politi
ca, as consideragées sobre a natureza humana ¢ as possibilidades da agi,
delimitadas pelo contraste da virri ¢ da Fortuna. Lido a partir da exortagiio
final, todo o texto se encadeia de modo I6gico ¢ mais fluente.182 LUA NOVA N* 53 — 2001
Mas O Principe, além de ter uma finalidade pritica, é uma obra
que pretende ser um pequeno tratado sobre as condigdes de aquisigfo ¢
manutengiio do poder num principado. Pode-se dizer que 6 um texto de
natureza tedrica, pois ao falar da agdo dos prfncipes Maquiavel trabalha
com uma tipologia de governantes, que de alguma forma esti acoplada a
uma tipologia de Estados. F, embora essas ligdes estejam particularmente
voltadas para 0 caso dos principados, elas podem ser estendidas para ou-
tras formas de governo e de Estados.
Maquiavel inicia a discussio dizendo que todas as formagdes
politicas podem ser divididas em duas eategorias: reptiblicas e principados.
Afirma que deixari de lado as republicas, pois j4 haviam sido tratadas
noutro lugar. Esta explicagdo, no entanto, € incompleta: o fato € que, para
seu propésito pratico, interessa essencialmente estudar os principados. Ele
quer discutir a possibilidade de redengio da Itslia, tarefa que dependeria da
ago de um principe.
Divide inicialmente os principados em dois grupos, de acordo
com a forma de acesso ao poder: hereditifrios e novos. A partir desta cisio
bésica pode-se construir um terceiro tipo, o dos principados mistos, caso
dos Estados conquistados e anexados a um antigo. Os principados novos
tema dominante de sua investigagao — podem ser adquiridos, segundo
Magquiavel, de quatro formas: 1) pela "virti"; 2) pela Fortuna; 3) pela vio-
léncia celerada; 4) com o consentimento dos cidadios.
Esta classificagdo segundo a forma de conquista corresponde
também a uma classificagdo das condigGes de estabilidade. Os principados
totalmente novos adquiridos com armas e virtude préprias stio diffceis de
conquistar e, no entanto, mais Mceis de manter (cap. 6). JA os menos
estaveis sio aqueles conquistados com armas ¢ Fortuna dos outros e os que
so fruto da violéncia extremada, No caso da conquista pela Fortuna a
manutengiio do poder pouco depende das qualidades do principe e, por
sso, € instével (cap. 7); no caso da violéncia celerada o risco de rebelidio €
permanente, a menos que o tirano saiba usar bem a crueldade, aplicando-a
com rapidez, ¢ deixando-a extinguir-se com o tempo (cap. 8).
O exemplo escolhido por Maquiavel para ilustrar este dltimo
tipo de formagio € o de Agatocles. Este, no entanto, nio teria sido um go-
vernante virtuoso, explica. Pois a sua ago nao se seguiu a gloria. Ea virti
inclui a gléria como uma espécie de “categoria conceitual”: ndo hd virtir
num principe incapaz de conquistar honra e gléria para si e seguranga para
seu Estado, como dird mais adiante, no capitulo 25. O problema, esclarece,
no foi quantidade de violéncia usada por Agdtocles. Ha uma dilerengaMAQUIAVEL EA CONSTRUGAO DA POLITICA 183
entre a violéncia que se extingue e aquela que se perpetua. A violéncia que
se perpetua é mA, insiste Maquiavel. Por esta razdo € que Agatocles nao
pode ser considerado virtuoso. Pois teria derramado mais sangue do que 0
necessério. Faltou-lhe, em termos modernos, uma certa “economia do
poder”: nao soube calcular a relagio custo/beneficio na politica,
Pode-se dizer que hd um grau de moralidade no julgamento que
Maquiavel faz da ago de Agatocles. Pois 0 poder, em seu raciocinio, nao é
todo 0 objeto da ago politica, mas somente uma sua parte, Essa moralidade
aqui presente ~ que, vale Jembrar, nao é substantiva — tem de servir ao fim
da agio politica, que nao se limita ao poder em si mesmo mas inclui a sua
manutengao e estabilidade, fatores que no dependem somente da forga. A
durabilidade de um principado requer algum grau de legitimagao pelos stidi-
tos, que nfo se rebelardio nem depordo o soberano enquanto acreditarem
existir alguma razao para Ihe obedecerem (relacio esta que aparece com
mais clareza na obra que Maquiavel dedica & repiblica, os Discorsi).
Os principados também podem ser clasificados de acordo com a
forma de governo. Alguns so governados por um principe ajudado por seus
ministros, "servos" (ministeres) que participam da administragao "por graga
e concessio do senhor". Noutros, 0 principe divide a autoridade com os
bardes, que possuem "lominio e stiditos préprios", De modo geral, o grande
tema dessa primeira parte ~ na qual Maquiavel privilegia 0 campo da agiio
politica — € a implantagdo do poder a partir da conquista e sua manutengio,
que se dé pela eliminagao dos focos de resisténcia e pela sujeigdo dos alia-
dos, sempre perigosos quando conservam alguma parcela de forca.
segundo grande passo € a discussdo dos meios materiais de
ago do principe, tema que se estende dos capitulos 12. 14, ¢ consiste no
exame do uso da forga (parte “técnica” do livro). A pergunta a qual
Maquiavel procura responder aqui é: quais so, genericamente, os instru-
mentos de comando que asseguram a estabilidade do.poder e, portanto, a
estabilidade do Estado? Hé4 duas bases que sustentam o poder do principe
em qualquer principado, explica ele: as boas leis e as boas armas. E as boas
armas antecedem as boas leis. Como niio pode haver boas leis onde nao ha
boas armas, Maquiavel concentra sua atengio inicialmente no estudo da
forca. A decisio de discutir apenas as boas armas deve-se ao fato de que
Maquiavel raciocina aqui pela condigio limite: as armas so a condigao
primeira de qualquer lei, pois Ihe garantem a eficécia.
Agora ja nao se trata de discutir uma classificagao das formagées
politicas, ¢ sim a condigiio de manutengdo do poder. E a condigao de dura-
bilidade do Estado sao as armas, que podem ser préprias ou de terceiros. As
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