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O Acordo Ortográfico da

Língua Portuguesa
Prof.ª Adriana Seabra
Primeira aula: programa
 Princípio fonográfico de escrita;
sistema alfabético.
 Regularidades e irregularidades
ortográficas: as diferentes naturezas
do erro ortográfico.
 Escrita etimológica, escrita fonética,
escrita convencional e normativa: a
necessidade da ortografia.
Noções preliminares
 A ortografia (orthós + graphya) é
uma convenção que normaliza a
escrita das línguas alfabéticas.

 Línguas alfabéticas representam na


escrita os sons da fala, obedecendo a
um PRINCÍPIO FONOGRÁFICO
(escrita do som).
Noções preliminares
De tempos em tempos, esse tipo de escrita
demanda reforma:

 Por razões propriamente lingüísticas, que


dizem respeito ao sistema da língua, sua
história e seu uso pelos falantes.

 Por razões extralingüísticas: sociais,


políticas, geopolíticas, econômicas e
culturais.
Noções preliminares
Quanto às razões lingüísticas, importa
considerar as TRANSFORMAÇÕES
FONÉTICAS, produzidas:
 pela dispersão territorial;
 pela incorporação de elementos de outras
línguas;
 por princípios de economia lingüística
internos ao sistema.
A evolução da língua envelhece a escrita,
que se torna incongruente com a
manutenção do princípio fonográfico.
Princípio fonográfico
 É a correspondência entre as unidades
sonoras da língua – os fonemas - e as
unidades gráficas que as representam – os
grafemas.
 Se esse princípio fosse exaustivo e cada
grafema correspondesse a apenas um
fonema, não haveria ORTOGRAFIA.
 Bastaria conhecer a associação letra/som
para escrever corretamente.
Sistema alfabético
Mas, dadas as transformações por que
passam as línguas ao longo de sua
história, os sistemas alfabéticos
possuem:
 Fonemas que são representados por
mais de um grafema, p. ex., o /s/, que é
grafado:
 S e X na palavra “sexta”,
 C e S na palavra “cesta”,
 Ç na palavra “aço”.
Sistema alfabético
 Dígrafos (dois grafemas que
correspondem a um só fonema), o /s/,
p. ex., pode-se representar por:
 SS na palavra “osso”,
 XC na palavra “excelência”,
 XS na palavra “exsudar”,
 SC na palavra “piscina”.
Sistema alfabético
 Grafemas que representam mais de um
fonema, p. ex., o grafemas S
representa:
 /s/
 em início de palavra, “sexta”;
 antes de consoantes surdas,“cesta”;
 /z/
 entre vogais, “asa”, “uso” e “asilo”;
 antes de consoantes sonoras, “desde” e
“desvio”.
Sistema alfabético
 Grafemas que não representam sons, as
chamadas “letras mudas”, p. ex.,
 o H inicial e final, em todas as escritas do
português;
 os grafemas consonânticos iniciais das
sequências cc (accionar), cç (acção), pc
(assumpção), ct (colectivo) e pt (óptimo)
na escrita do português lusitano.
As letras iniciais dessas sequências ficam
abolidas com o Novo Acordo.
O novo alfabeto
Com o acréscimo das letras K (capa
ou cá), W (dáblio) e Y (ípsilon) o
alfabeto português passa a ter:
 Três representações para o fonema /k/
(oclusivo velar surdo),
 C (casa),
 K (kilowatt) e
 QU (quilograma);
O novo alfabeto
 Quatro representações para a
semivogal /w/:
 U (mau, uai!);
 L (carnaval, alvo);
 O (pão);
 W (Kwanza).
 Duas representações para o fonema /v/,
labiodental fricativo sonoro:
 V (válvula);
 W (Wagneriano).
O novo alfabeto
 Três representações para a semivogal
/j/:
 I (pai);
 E (mãe; capitães);
 Y (yen).
 Duas representações para a vogal /i/:
 I (tia);
 Y (Paraty).
O novo alfabeto (Base I)
O emprego das novas letras fica reservado:
 à grafia de nomes próprios originários de
outras línguas e seus derivados (Kafka,
kafkiano; Malawi, malawiano; Byron,
byroniano);
 a siglas, símbolos e unidades de medida de
uso internacional (km- quilômetro, W –
oeste, yd – jarda);
 às enumerações alfabéticas: a), b), c)... j),
k), l), m)... v), w), x), y), z).
Regularidades ortográficas
Mesmo quando não há
correspondência unívoca entre sons e
letras, a representação escrita pode
estar sujeita a regularidades
ortográficas determinadas pelo
contexto silábico das palavras ou por
seus processos de formação.
Regularidades ortográficas
 Regularidades contextuais: o
contexto silábico condiciona a
utilização de um grafema (ou dígrafo)
em detrimento de outros. Por
exemplo:
 Usa-se M como marca de nasalização
vocálica antes de fonemas bilabiais (/p/
e /b/), usa-se N antes de fonemas
articulados sem o concurso dos lábios.
Regularidades ortográficas
 Regularidades morfológico-gramaticais: o
processo de formação e a classe da palavra
condicionam o emprego de determinado
grafema (ou dígrafo) em detrimento de
outros. Por exemplo:
 O sufixo –ESA, formador de adjetivos gentílicos,
grafa-se sempre com S, assim derivam as
palavras “portuguesa”, “inglesa”, “tailandesa”;
 O sufixo –EZA, formador de substantivos
abstratos a partir de adjetivo, grafa-se sempre
com Z, assim derivam as palavras “beleza”,
“limpeza”, “nobreza”.
Regularidades ortográficas
O Novo Acordo não modifica
estruturalmente a escrita do idioma, já que
não interfere nas regularidades
ortográficas:
 Não altera o contexto de emprego dos
grafemas e dígrafos;
 Não atinge sistematicamente os sufixos
empregados nos processos de derivação.
Quanto à derivação, cabe ressalvar
algumas prescrições, como a seguinte:
Regularidades ortográficas (Base V)
“e) Os verbos em -ear podem distinguir-se
praticamente grande número de vezes dos verbos em
-iar, quer pela formação, quer pela conjugação e
formação ao mesmo tempo. Estão no primeiro caso
todos os verbos que se prendem a substantivos em
-eio ou -eia (...); assim se regulam: aldear, por
aldeia; alhear, por alheio; cear, por ceia; encadear,
por cadeia; pear, por peia; etc. Estão no segundo
caso todos os verbos que têm normalmente flexões
rizotónicas/rizotônicas em -eio, -eias, etc.: clarear,
delinear, devanear, falsear, granjear, guerrear,
hastear, nomear, semear, etc. Existem, no entanto,
verbos em -iar, ligados a substantivos com as
terminações átonas -ia ou -io, que admitem variantes
na conjugação: negoceio ou negocio (cf. negócio);
premeio ou premio (cf. prémio/prêmio), etc.”
Irregularidades ortográficas
A regularização de terminações irregulares
favorece o usuário da escrita que, pela
generalização do princípio, pode produzir a
grafia correta de todas as palavras de
estrutura análoga.
No item citado da Base V,
 Por analogia com “negocio, -ias, -ia,
-iamos –iais, - iam” forma-se “odio, -ias, -ia,
-iamos, -iais, -iam”;
 Por analogia com “odeio, -eias, -eia,
-iamos, -iais, -iam” forma-se “negoceio,
-eias, -eia, -iamos, -iais, -eiam”.
Irregularidades ortográficas
O maior esforço do Acordo para a
eliminação das irregularidades ortográficas,
entretanto, não diz respeito à regularização
de sufixos, mas à supressão das
“consoantes mudas” que até hoje se
preservam no português lusitano.

A manutenção de grafemas na escrita que


não reproduzem sons da língua deve-se à
intenção de representar a história da
palavra.
Irregularidades ortográficas
De modo geral, irregularidades ortográficas
relacionam-se a notações que perderam a
funcionalidade e apenas se justificam pela
etimologia ou pela tradição de uso.

Há, portanto, outro princípio que, em


concorrência com o fonográfico, orienta a
normalização da escrita.

O princípio etimológico.
Escrita etimológica
Palavras como pharmácia, geographya e
thermodynâmica e phleugma retiveram sua
escrita etimológica até a reforma
ortográfica de 1945.
O presente Acordo versa sobre a
conservação ou supressão dos grafemas
consonantais c, p, b, g, m e t nas
sequências consonânticas, conforme sejam
ou não pronunciados.
A intenção é compatibilizar a escrita com a
fonética, em detrimento da etimologia.
Escrita etimológica vs. escrita fonética
 Em nota explicativa (Anexo II) os autores do Acordo
admitem a preponderância do critério fonético sobre o
etimológico:
 “Pode dizer-se ainda que, no que respeita às
alterações de conteúdo, de entre os princípios em que
assenta a ortografia portuguesa se privilegiou o
critério fonético (ou da pronúncia) com um certo
detrimento para o critério etimológico.
 É o critério da pronúncia que determina, aliás, a
supressão gráfica das consoantes mudas ou não
articuladas, que se têm conservado na ortografia
lusitana essencialmente por razões de ordem
etimológica.
Escrita etimológica vs. escrita fonética
 É também o critério da pronúncia que nos
leva a manter um certo número de grafias
duplas do tipo de caráter e carácter, facto e
fato, sumptuoso e suntuoso, etc.
 É ainda o critério da pronúncia que conduz
à manutenção da dupla acentuação gráfica
do tipo de económico e econômico, efémero
e efêmero, género e gênero, génio e gênio,
ou de bónus e bônus, sémen e sêmen, ténis
e tênis, ou ainda de bebé e bebê, ou metro
e metrô, etc.” (p. 23)
Escrita etimológica vs. escrita fonética

Norma PT Norma BR Com o AO


acto ato ato
acção ação ação
afecto afeto afeto
óptimo ótimo ótimo
adoptar adotar adotar
intersecção intersecção/ intersecção/
interseção interseção
Escrita etimológica vs. escrita fonética

Norma PT Norma BR Com o AO


concepção concepção conceção/concepção
recepção recepção receção/recepção
antisséptico antisséptico antissético/antissép-
tico
aspecto aspecto aspeto/aspecto
respectivo respectivo respetivo/respectivo
infecção infecção infeção/infecção
Escrita fonética
A eliminação das consoantes mudas
tem provocado reações inflamadas
em Portugal. No debate público, fala-
se em:
 “Abrasileiramento da língua”;
 “Lei do menor esforço”;
 “Crime contra a Língua Portuguesa”;
 “Rendição simbólica ao emergente
leviatã de língua portuguesa”.
Escrita fonética
 Os autores do AO, defendem-se (Anexo II):
 “a) O argumento de que a manutenção de tais
consoantes se justifica por motivos de ordem
etimológica, permitindo assinalar melhor a
similaridade com as palavras congéneres das outras
línguas românicas, não tem consistência. Por um lado,
várias consoantes etimológicas se foram perdendo na
evolução das palavras ao longo da história da língua
portuguesa. Vários são, por outro lado, os exemplos
de palavras deste tipo pertencentes a diferentes
línguas românicas que, embora provenientes do
mesmo étimo latino, revelam incongruências quanto à
conservação ou não das referidas consoantes.
Escrita fonética
 É o caso, por exemplo, da palavra objecto,
proveniente do latim objectu-, que até agora
conservava o c, ao contrário do que sucede em
francês (cf. objet) ou em espanhol (cf. objeto). Do
mesmo modo projecto (de projectu-) mantinha até
agora a grafia com c, tal como acontece em espanhol
(cf. proyecto), mas não em francês (cf. projet).
Nestes casos o italiano dobra a consoante, por
assimilação (cf. oggetto e progetto). A palavra vitória
há muito se grafa sem c, apesar do espanhol victoria,
do francês victoire ou do italiano vittoria. Muitos
outros exemplos se poderiam citar. [...] (p.24)
Escrita fonética
Limitações da escrita fonética:
 Embora a observação do princípio
fonográfico auxilie o processo de aquisição
da escrita, é inviável assentar a ortografia
inteiramente na representação de um só
fonema por um só grafema.
 A distinção entre sessão, cessão e seção,
por exemplo, passaria a depender
exclusivamente do contexto de emprego
dessas palavras.
Escrita fonética
 A total fonetização implicaria fazer da
escrita uma representação da fala, não da
língua.
 Com isso, a escrita perderia a função de
garantir a comunicação entre os falantes de
diferentes variedades dialetais da mesma
língua.
 Nóis (ao lado de nós), tamém (ao lado de
também) e muinto (ao lado de muito)
seriam formas aceitáveis na escrita.
Escrita convencional e normativa
 Nem só fonética, nem só etimológica, a
ortografia atende parcialmente a um e
outro princípio, procurando compatibilizá-
los, quando isso é possível.
 Quando não, a grafia se estabelece por
convenção de caráter normativo.
 A finalidade da norma é cristalizar na
representação gráfica da língua as
divergências da fala.
VERBA VOLANT, SCRIPTA MANENT
Base IV - Das sequências consonânticas
 1.º O c, com valor de oclusiva velar, das sequências interiores
cc (segundo c com valor de sibilante), cç e ct, e o p das
sequências interiores pc (c com valor de sibilante), pç e pt, ora
se conservam, ora se eliminam. Assim:
 a) Conservam-se nos casos em que são invariavelmente
proferidos nas pronúncias cultas da língua: compacto,
convicção, convicto, ficção, friccionar, pacto, pictural; adepto,
apto, díptico, erupção, eucalipto, inepto, núpcias, rapto;
 b) Eliminam-se nos casos em que são invariavelmente mudos
nas pronúncias cultas da língua: ação, acionar, afetivo, aflição,
aflito, ato, coleção, coletivo, direção, diretor, exato, objeção;
adoção, adotar, batizar, Egito, ótimo;
 c) Conservam-se ou eliminam-se facultativamente, quando se
proferem numa pronúncia culta, quer geral quer restritamente,
ou então quando oscilam entre a prolação e o emudecimento:
aspecto e aspeto, cacto e cato, caracteres e carateres, dicção e
dição; facto e fato, sector e setor; ceptro e cetro, concepção e
conceção, corrupto e corruto, recepção e receção;
Base IV - Das sequências consonânticas
 d) Quando, nas sequências interiores mpc, mpç e mpt se
eliminar o p de acordo com o determinado nos parágrafos
precedentes, o m passa a n, escrevendo-se, respetivamente, nc,
nç e nt: assumpcionista e assuncionista; assumpção e
assunção; assumptível e assuntível; peremptório e perentório,
sumptuoso e suntuoso, sumptuosidade e suntuosidade.

 2.º Conservam-se ou eliminam-se, facultativamente, quando se


proferem numa pronúncia culta, quer geral, quer restritamente,
ou então quando oscilam entre a prolação e o emudecimento: o
b da sequência bd, em súbdito; o b da sequência bt, em subtil e
seus derivados; o g da sequência gd, em amígdala,
amigdalácea, amigdalar, amigdalato, amigdalite, amigdaloide,
amigdalopatia, amigdalotomia; o m da sequência mn, em
amnistia, amnistiar, indemne, indemnidade, indemnizar,
omnímodo, omnipotente, omnisciente, etc.; o t da sequência tm,
em aritmética e aritmético.
Objeção lusitana à Base IV
 “Se falamos em unidade, devemos ter presente a do padrão
europeu, a da matriz de que saem depois as variedades e
cujo valor histórico, cultural e simbólico deve ser
preservado.
 E essa unidade é permanentemente instabilizada, não pelas
diferenças ortográficas, mas pelas que surgem no léxico, na
sintaxe, na morfossintaxe e na pronúncia, por força da
descontinuidade geográfica, sociológica e cultural.
 Outra consequência inevitável das facultatividades será a
que decorre, a curto prazo, do funcionamento da lei do
menor esforço.
 A aplicar-se o Acordo, não tardará a dar-se a supressão na
grafia (e portanto também na pronúncia) das consoantes c
e p nos casos em que continuam a ser pronunciadas ou
semi-articuladas em Portugal.
Objeção lusitana à Base IV
 E nesse caso não caberá mais falar-se em elas serem
pronunciadas no nosso país.
 Ou seja, chegar-se-á, por este caminho ínvio, ao que era
provavelmente o principal desígnio da feitura do Acordo:
homogeneizar integralmente a grafia portuguesa com a
brasileira nesse plano, mais uma vez desfigurando a escrita,
a pronúncia e a língua que são as nossas.
 Na verdade, não é difícil concluir que o único objectivo real
de toda a negociação do Acordo, repito, o único objectivo
real de toda a negociação do Acordo foi o dessa supressão
das consoantes ditas mudas ou não articuladas!”
 Vasco Graça Moura, escritor e eurodeputado português.
 Comunicação lida na Audição Parlamentar sobre o Acordo
Ortográfico da Língua Portuguesa, promovida pela Comissão
de Ética, Sociedade e Cultura da Assembleia da Republica, em
Lisboa, no dia 7 de Abril de 2008.
A artograffia muderna
A artograffia muderna é uma maniera
de scrivê, chi a genti scrive uguali
come dice. Per insempio: — si a genti
dice Capitó, scrive Kapitó; si si dice
Alengaro, si scrive Lenkaro; si si dice
dice, non si dice dice, ma si dice
ditche.
[...]
A artograffia muderna
Io non gusto tambê a artograffia
muderna, pur causa chi a genti non si
puó indiscobrí as origini da as parola.
Si a genti tê per insempio a parola
Capitó e si tê vuntada di indiscobrí a
sua originia si vá dirittigno no latino
che é proprio o linguaggio che si
diceva inda a mia terra nu tempio do
Cesare e giá s’incontra lá a parola
Capitano.
A artograffia muderna
Aóra a genti vá studiano a parola i giá
indiscobre chi fui di lá che vignó Capitó de
ista maniere: — Primiere o o finale tive
uma sincoppe i murré i ficô solamente
Capitan.
Intó o Cissero, migliore oratore da mia
terra in quello tempio lá, si dexô pigá uma
brutta gunstipaçó e aóra só parlava p’ro
narisi e non poteva dizê Capitan ma
Capitão.
[...]
A artograffia muderna
Ma si aóra si dexa scrivê Kapitó cum
kappa (K), nisciuno saria ingapaze di
indiscobrí ista bunita originia.
Pur istos mutives che io non gusto a
artograffia muderna.

Juó Bananère
O Pirralho, 49: 13. jul. 1912, p. 9.

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