Você está na página 1de 3

A B C D

O amor, quando se revela,


Não se sabe revelar.
Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar. Entre o sono e o sonho,
Entre mim e o que em mim
Quem quer dizer o que sente É o quem eu me suponho,
Não sabe o que há-de dizer. Corre um rio sem fim.
Fala: parece que mente...
Tudo que faço ou medito Quando as crianças brincam Cala: parece esquecer... Passou por outras margens,
Fica sempre na metade. E eu as oiço brincar, Diversas mais além,
Querendo, quero o infinito. Qualquer coisa em minha alma Ah, mas se ela adivinhasse, Naquelas várias viagens
Fazendo, nada é verdade. Começa a se alegrar. Se pudesse ouvir o olhar, Que todo o rio tem.
E se um olhar lhe bastasse
Que nojo de mim me fica E toda aquela infância P'ra saber que a estão a amar! Chegou onde hoje habito
Ao olhar para o que faço! Que não tive me vem, A casa que hoje sou.
Minha alma é lúcida e rica, Numa onda de alegria Mas quem sente muito, cala; Passa, se eu me medito;
E eu sou um mar de sargaço — Que não foi de ninguém. Quem quer dizer quanto sente Se desperto, passou.
Fica sem alma nem fala,
Um mar onde boiam lentos Se quem fui é enigma, Fica só, inteiramente! E quem me sinto e morre
Fragmentos de um mar de além... E quem serei visão, No que me liga a mim
Vontades ou pensamentos? Quem sou ao menos sinta Mas se isto puder contar-lhe Dorme onde o rio corre —
Não o sei e sei-o bem. Isto no coração. O que não lhe ouso contar, Esse rio sem fim.
Já não terei que falar-lhe
Porque lhe estou a falar...
Pessoa by Miguel Yeco. O Teatro íntimo do ser. 1986.

Você também pode gostar