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Era um senhor tão distraído, tão distraído que passava o

tempo todo na lua. Aquilo não era doença. Era mesmo


distracção.
A pobre da mulher do senhor Distraído – vamos dar-lhe esse
nome para encurtar – já não sabia o que fazer. Passava o santo
dia a chamar-lhe a atenção para tudo e mais alguma coisa. E a
apontar-lhe as coisas em montes de blocos de notas para ele
não se esquecer.

No dia do casamento, o senhor


A sua distracção era tanta que, quando Distraído estava mais distraído do que
começou a namorar, em vez de oferecer à nunca (devia ser do nervoso) e ficou
rapariga um belo ramo de flores, pacatamente em casa a comer pipocas,
ofereceu-lhe um colorido espanador. a tratar do periquito e a ver televisão.
A namorada do senhor Distraído ficou Só quando recebeu várias chamadas –
muito admirada; mas com o andar do do padre, do padrinho, do amigo, do
tempo acabou por se conformar. sacristão, e depois da noiva – é que se
lhe fez luz.
Desatou então a correr para a igreja com o
comando da televisão na mão, pensando
ser o telemóvel; e subiu ao altar com a
gaiola e o periquito debaixo do braço, de
pijama e com um sapato de cada cor.

Quando o padre lhe pediu as alianças, ele perguntou:


-Quanto custam?
Aquilo não era falta de amor. Era mesmo distracção.
O senhor Distraído era tão distraído, tão distraído, tão distraído que quando chegava a casa
enganava-se sempre na porta; e entrava na porta ao lado, que era a casa da porteira.
Todos os dias, de manhã, o senhor Distraído pedia à mulher que lhe fizesse um belo sumo de
laranja. Mas esquecia-se invariavelmente de o beber. A mulher ficava exasperada.
Um dia, o senhor Distraído chegou ao emprego e lembrou-se (coisa rara!) de que não tinha
tomado o sumo de laranja.
Ficou muito irritado e disse para consigo: “Apre, isto é demais!, lá me esqueci de beber o
sumo de laranja outra vez.”
E decidiu voltar a casa.
Chamou a empregada e pediu:
-Trigénia, traga-me, por favor, o sumo de laranja. Hoje… não falho!
A empregada ficou muito atrapalhada e exclamou:
- Mas hoje o senhor bebeu o sumo! Aliás, foi o único sumo que bebeu desde o dia em que
entrei nesta casa.

Certa vez, o senhor Distraído, que adorava


banhos de espuma, pôs a água a correr e foi
dar várias voltas ao jardim. Quando chegou a
casa, a espuma saía pelas janelas, havia água
por todo o lado… e os vizinhos andavam de
barco.
O senhor Distraído andava sempre à procura dos óculos, que estavam na ponta do nariz. Punha-e
a perguntar a toda a gente:
-Onde estão os meus óculos, que não vejo nada?!
E só quando lhe tiravam os óculos da ponta do nariz é que ele acreditava, pois ficava a ver tudo
desfocado e numa grande névoa.
O senhor Distraído nunca sabia onde punha o carro. Andava horas e horas de um lado para o
outro na rua à procura dele. E punha-se a berrar:
Fui roubado! Fui roubado!
Depois aparecia a polícia, que já sabia da sua distracção, e dizia-lhe:
-Ó amigo, você não foi roubado, você trocou mas foi de carro, e não se lembra!
Nessa altura, o senhor Distraído ficava descansado.

Um dia o senhor Distraído teve de ir ao médico. Mas quando lá chegou já não se lembrava nada
do que lhe doía. O médico perguntou-lhe:
-Então o que é que sente?... O que lhe dói?
O senhor Distraído respondeu de olhar vago:
-O senhor doutor como vai… Sente-se bem?...
E acabou por sair dali sem se queixar de nada e com o estetoscópio do médico pendurado ao
pescoço.
Ao volante, o senhor Distraído era um perigo. Ia sempre tão distraído, tão distraído, a sonhar,
ou a olhar para tudo quanto era sítio, que a mulher estava constantemente a apanhar sustos.
Fazia tangentes aos passeios, andava aos ziguezagues e, um dia, até conseguiu a proeza de
atropelar o dedo mindinho do pé a um transeunte que ia a atravessar a rua.
A pessoa ficou furiosa e pôs-se a gesticular. Mas o senhor Distraído achou que o estavam a
cumprimentar, sorriu e começou a dizer adeus.
Quando ia ao restaurante, o senhor Distraído, em vez de ficar na sala, ia sempre
direito à cozinha; e punha-se com uma colher de pau a mexer nas panelas,
calçava as luvas para lavar a loiça, julgando estar em casa, e esquecia-se de que
ia almoçar.
Depois vinha-se embora, a dizer que se sentia zonzo e com tonturas. E marcava
nova consulta para ir ao médico.
Os amigos, que já sabiam que ele era muito distraído, davam-lhe logo um belo
bife com batatas fritas. E o senhor Distraído arrebitava.
Entretanto a mulher do senhor Distraído, depois de dez anos de namoro, e de mais dez de
casamento, viu que eram anos a mais, que já estava farta de tanta distracção e de gastar tantos
blocos de notas, e mandou-o passear de vez.
O senhor Distraído foi então jogar na lotaria (dizem que azar aos amores é sorte ao jogo!), mas
esqueceu-se do bilhete em cima do balcão. Ou melhor, esqueceu-se de que tinha jogado! No dia
em que andava a sorte, o senhor Distraído resolveu ir viajar.
Entretanto conheceu uma senhora que também era muito distraída e que andava sempre à procura
dos óculos, que estavam postos na testa.
E lá partiram os dois para muito longe, e nunca mais se soube nada deles. Nem eles próprios.
A esta hora, devem andar perdidos pelo
mundo, esquecidos, mas muito felizes.
Mais feliz ficou o empregado do balcão, que
nunca mais pôs a vista em cima do senhor
Distraído; e que ao ver o bilhete da lotaria
percebeu que estava milionário.
Começou então aos pinotes, a gesticular de
braços no ar, e a berrar muito alto:
- Estou rico! Estou rico!... Muito, muito
rico!... E não sou nada distraído!
Este excerto da obra de Vera Roquette foi
trabalhado com os alunos do 3º e 4º anos de
escolaridade, na BE/CRE O Sabichão, na
EB1 do Prior Velho, para a Feira do Livro
2010, pelo professor bibliotecário Paulo
Gomes.

Cota: 82-93-34 ROQ

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