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CAPÍTULO DOS CHAPÉUS que ele, ainda agora, levava aos enterros, não pela razão que o leitor

ava aos enterros, não pela razão que o leitor suspeita, a solenidade
Machado de Assis da morte ou a gravidade da despedida última, mas por esta menos filosófica, por ser um
Géronte Dans quel chapitre, s'il vous plaît? costume antigo. Não dava outra, nem da casaca nos enterros, nem do jantar às duas horas,
Sganarelle Dans le chapitre des chapeaux. nem de vinte usos mais. E tão aferrado aos hábitos, que no aniversário do casamento da
MOLIÈRE filha, ia para lá às seis horas da tarde, jantado e digerido, via comer, e no fim aceitava um
pouco de doce, um cálix de vinho e café. Tal era o sogro de Conrado; como supor que ele
MUSA, CANTA o despeito de Mariana, esposa do bacharel Conrado Seabra, aprovasse o chapéu baixo do genro? Suportava-o calado, em atenção às qualidades da
naquela manhã de abril de 1879. Qual a causa de tamanho alvoroço? Um simples chapéu, pessoa; nada mais. Acontecera-lhe, porém, naquele dia, vê-lo de relance na rua, de palestra
leve, não deselegante, um chapéu baixo. Conrado, advogado, com escritório na rua da com outros chapéus altos de homens públicos, e nunca lhe pareceu tão torpe. De noite,
Quitanda, trazia-o todos os dias à cidade, ia com ele às audiências; só não o levava às encontrando a filha sozinha, abriu-lhe o coração; pintou-lhe o chapéu baixo como a
recepções, teatro lírico, enterros e visitas de cerimônia. No mais era constante, e isto desde abominação das abominações, e instou com ela para que o fizesse desterrar.
cinco ou seis anos, que tantos eram os do casamento. Ora, naquela singular manhã de abril, Conrado ignorava essa circunstância, origem do pedido. Conhecendo a
acabado o almoço, Conrado começou a enrolar um cigarro, e Mariana anunciou sorrindo docilidade da mulher, não entendeu a resistência; e, porque era autoritário, e voluntarioso, a
que ia pedir-lhe uma cousa. teima veio irritá-lo profundamente. Conteve-se ainda assim; preferiu mofar do caso; falou-lhe
— Que é, meu anjo? com tal ironia e desdém, que a pobre dama sentiu-se humilhada. Mariana quis levantar-se
— Você é capaz de fazer-me um sacrifício? duas vezes; ele obrigou-a a ficar, a primeira pegando-lhe levemente no pulso, a segunda
— Dez, vinte... subjugando-a com o olhar. E dizia sorrindo:
— Pois então não vá mais à cidade com aquele chapéu. — Olhe, iaiá, tenho uma razão filosófica para não fazer o que você me pede.
— Por quê? é feio? Nunca lhe disse isto; mas já agora confio-lhe tudo.
— Não digo que seja feio; mas é cá para fora, para andar na vizinhança, à tarde Mariana mordia o lábio, sem dizer mais nada; pegou de uma faca, e entrou a
ou à noite, mas na cidade, um advogado, não me parece que... bater com ela devagarinho para fazer alguma cousa; mas, nem isso mesmo consentiu o
— Que tolice, iaiá! marido, que lhe tirou a faca delicadamente, e continuou:
— Pois sim, mas faz-me este favor, faz? — A escolha do chapéu não é uma ação indiferente, como você pode supor; é
Conrado riscou um fósforo, acendeu o cigarro, e fez-lhe um gesto de gracejo, regida por um princípio metafísico. Não cuide que quem compra um chapéu exerce uma
para desconversar; mas a mulher teimou. A teima, a princípio frouxa e súplice, tornou-se ação voluntária e livre; a verdade é que obedece a um determinismo obscuro. A ilusão da
logo imperiosa e áspera. Conrado ficou espantado. Conhecia a mulher; era, de ordinário, liberdade existe arraigada nos compradores, e é mantida pelos chapeleiros que, ao verem
uma criatura passiva, meiga, de uma plasticidade de encomenda, capaz de usar com a um freguês ensaiar trinta ou quarenta chapéus, e sair sem comprar nenhum, imaginam que
mesma divina indiferença tanto um diadema régio como uma touca. A prova é que, tendo ele está procurando livremente uma combinação elegante. O princípio metafísico é este: —
tido uma vida de andarilha nos últimos dous anos de solteira, tão depressa casou como se o chapéu é a integração do homem, um prolongamento da cabeça, um complemento
afez aos hábitos quietos. Saía às vezes, e a maior parte delas por instâncias do próprio decretado ab æterno; ninguém o pode trocar sem mutilação. É uma questão profunda que
consorte; mas só estava comodamente em casa. Móveis, cortinas, ornatos supriam-lhe os ainda não ocorreu a ninguém. Os sábios têm estudado tudo desde o astro até o verme, ou,
filhos; tinha-lhes um amor de mãe; e tal era a concordância da pessoa com o meio, que ela para exemplificar bibliograficamente, desde Laplace... Você nunca leu Laplace? desde
saboreava os trastes na posição ocupada, as cortinas com as dobras do costume, e assim o Laplace e a Mecânica Celeste até Darwin e o seu curioso livro das Minhocas, e, entretanto,
resto. Uma das três janelas, por exemplo, que davam para a rua vivia sempre meia aberta; não se lembraram ainda de parar diante do chapéu e estudá-lo por todos os lados. Ninguém
nunca era outra. Nem o gabinete do marido escapava às exigências monótonas da mulher, advertiu que há uma metafísica do chapéu. Talvez eu escreva uma memória a este respeito.
que mantinha sem alteração a desordem dos livros, e até chegava a restaurá-la. Os hábitos São nove horas e três quartos; não tenho tempo de dizer mais nada; mas você reflita
mentais seguiam a mesma uniformidade. Mariana dispunha de mui poucas noções, e nunca consigo, e verá... Quem sabe? pode ser até que nem mesmo o chapéu seja complemento
lera senão os mesmo livros: — a Moreninha de Macedo, sete vezes; Ivanhoé e o Pirata de do homem, mas o homem do chapéu...
Walter Scott, dez vezes; o Mot de l'énigme, de Madame Craven, onze vezes. Mariana venceu-se afinal, e deixou a mesa. Não entendera nada daquela
Isto posto, como explicar o caso do chapéu? Na véspera, à noite, enquanto o nomenclatura áspera nem da singular teoria; mas sentiu que era um sarcasmo, e, dentro de
marido fora a uma sessão do Instituto da Ordem dos Advogados, o pai de Mariana veio à si, chorava de vergonha. O marido subiu para vestir-se; desceu daí a alguns minutos, e
casa deles. Era um bom velho, magro, pausado, ex-funcionário público, ralado de saudades parou diante dela com o famoso chapéu na cabeça. Mariana achou-lho, na verdade, torpe,
do tempo em que os empregados iam de casaca para as suas repartições. Casaca era o ordinário, vulgar, nada sério. Conrado despediu-se cerimoniosamente e saiu.
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A irritação da dama tinha afrouxado muito; mas, o sentimento de humilhação este sentimento caritativo induziu-a a propor à amiga que fossem passear, ver as lojas,
subsistia. Mariana não chorou, não clamou, como supunha que ia fazer; mas, consigo contemplar a vista de outros chapéus bonitos e graves. Mariana aceitou; um certo demônio
mesma, recordou a simplicidade do pedido, os sarcasmos de Conrado, e, posto soprava nela as fúrias da vingança. Demais, a amiga tinha o dom de fascinar, virtude de
reconhecesse que fora um pouco exigente, não achava justificação para tais excessos. Ia de Bonaparte, e não lhe deu tempo de refletir. Pois sim, iria, estava cansada de viver cativa.
um lado para outro, sem poder parar; foi à sala de visitas, chegou à janela meia aberta, viu Também queria gozar um pouco, etc., etc.
ainda o marido, na rua, à espera do bond, de costas para casa, com o eterno e torpíssimo Enquanto Sofia foi vestir-se, Mariana deixou-se estar na sala, irrequieta e
chapéu na cabeça. Mariana sentiu-se tomada de ódio contra essa peça ridícula; não contente consigo mesma. Planeou a vida de toda aquela semana, marcando os dias e horas
compreendia como pudera suportá-la por tantos anos. E relembrava os anos, pensava na de cada cousa, como numa viagem oficial. Levantava-se, sentava-se, ia à janela, à espera
docilidade dos seus modos, na aquiescência a todas as vontades e caprichos do marido, e da amiga.
perguntava a si mesma se não seria essa justamente a causa do excesso daquela manhã. — Sofia parece que morreu, dizia de quando em quando.
Chamava-se tola, moleirona; se tivesse feito como tantas outras, a Clara e a Sofia, por De uma das vezes que foi à janela, viu passar um rapaz a cavalo. Não era inglês,
exemplo, que tratavam os maridos como eles deviam ser tratados, não lhe aconteceria nem mas lembrou-lhe a outra, que o marido levou para a roça, desconfiado de um inglês, e sentiu
metade nem uma sombra do que lhe aconteceu. De reflexão em reflexão, chegou à idéia de crescer-lhe o ódio contra a raça masculina — com exceção, talvez, dos rapazes a cavalo.
sair. Na verdade, aquele era afetado demais; esticava a perna no estribo com evidente vaidade
Vestiu-se, e foi à casa da Sofia, uma antiga companheira de colégio, com o fim das botas, dobrava a mão na cintura, com um ar de figurino. Mariana notou-lhe esses dous
de espairecer, não de lhe contar nada. defeitos; mas achou que o chapéu resgatava-os; não que fosse um chapéu alto; era baixo,
Sofia tinha trinta anos, mais dous que Mariana. Era alta, forte, muito senhora de mas próprio do aparelho eqüestre. Não cobria a cabeça de um advogado indo gravemente
si. Recebeu a amiga com as festas do costume; e, posto que esta lhe não dissesse nada, para o escritório, mas a de um homem que espairecia ou matava o tempo.
adivinhou que trazia um desgosto e grande. Adeus, planos de Mariana! Daí a vinte minutos Os tacões de Sofia desceram a escada, compassadamente. Pronta! disse ela daí
contava-lhe tudo. Sofia riu dela, sacudiu os ombros; disse-lhe que a culpa não era do a pouco, ao entrar na sala. Realmente, estava bonita. Já sabemos que era alta. O chapéu
marido. aumentava-lhe o ar senhoril; e um diabo de vestido de seda preta, arredondando-lhe as
— Bem sei, é minha, concordava Mariana. formas do busto, fazia-a ainda mais vistosa. Ao pé dela, a figura de Mariana desaparecia um
— Não seja tola, iaiá! Você tem sido muito mole com ele. Mas seja forte uma vez; pouco. Era preciso atentar primeiro nesta para ver que possuía feições mui graciosas, uns
não faça caso; não lhe fale tão cedo; e se ele vier fazer as pazes, diga-lhe que mude olhos lindos, muita e natural elegância. O pior é que a outra dominava desde logo; e onde
primeiro de chapéu. houvesse pouco tempo de as ver, tomava-o Sofia para si. Este reparo seria incompleto, se
— Veja você, uma cousa de nada... eu não acrescentasse que Sofia tinha consciência da superioridade, e que apreciava por
— No fim de contas, ele tem muita razão; tanta como outros. Olhe a pamonha da isso mesmo as belezas do gênero Mariana, menos derramadas e aparentes. Se é um
Beatriz; não foi agora para a roça, só porque o marido implicou com um inglês que defeito, não me compete emendá-lo.
costumava passar a cavalo de tarde? Coitado do inglês! — Onde vamos nós? perguntou Mariana.
Naturalmente nem deu pela falta. A gente pode viver bem com seu marido, — Que tolice! vamos passear à cidade... Agora me lembro, vou tirar o retrato;
respeitando-se, não indo contra os desejos um do outro, sem pirraças, nem despotismo. depois vou ao dentista. Não; primeiro vamos ao dentista. Você não precisa de ir ao dentista?
Olhe; eu cá vivo muito bem com o meu Ricardo; temos muita harmonia. Não lhe peço uma — Não.
cousa que ele me não faça logo; mesmo quando não tem vontade nenhuma, basta que eu — Nem tirar o retrato?
feche a cara, obedece logo. Não era ele que teimaria assim por causa de um chapéu! Tinha — Já tenho muitos. E para quê? para dá-lo "àquele senhor"?
que ver! Pois não! Onde iria ele parar! Mudava de chapéu, quer quisesse, quer não. Sofia compreendeu que o ressentimento da amiga persistia, e, durante o
Mariana ouvia com inveja essa bela definição do sossego conjugal. A rebelião de caminho, tratou de lhe pôr um ou dous bagos mais de pimenta. Disse-lhe que, embora fosse
Eva embocava nela os seus clarins; e o contacto da amiga dava-lhe um prurido de difícil, ainda era tempo de libertar-se. E ensinava-lhe um método para subtrair-se à tirania.
independência e vontade. Para completar a situação, esta Sofia não era só muito senhora Não convinha ir logo de um salto, mas devagar, com segurança, de maneira que ele desse
de si, mas também dos outros; tinha olhos para todos os ingleses, a cavalo ou a pé. por si quando ela lhe pusesse o pé no pescoço. Obra de algumas semanas, três a quatro,
Honesta, mas namoradeira; o termo é cru, e não há tempo de compor outro mais brando. não mais. Ela, Sofia, estava pronta a ajudá-la. E repetia-lhe que não fosse mole, que não
Namorava a torto e a direito, por uma necessidade natural, um costume de solteira. Era o era escrava de ninguém, etc. Mariana ia cantando dentro do coração a marselhesa do
troco miúdo do amor, que ela distribuía a todos os pobres que lhe batiam à porta: — um matrimônio.
níquel a um, outro a outro; nunca uma nota de cinco mil-réis, menos ainda uma apólice. Ora
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Chegaram à Rua do Ouvidor. Era pouco mais do meio-dia. Muita gente, andando Mariana enrubesceu muito, voltou a cabeça para o outro lado, tornou logo à
ou parada, o movimento do costume. Mariana sentiu-se um pouco atordoada, como sempre primeira atitude, e afinal entrou. Entrando, viu na sala duas senhoras recém-chegadas, e
lhe acontecia. A uniformidade e a placidez, que eram o fundo do seu caráter e de sua vida, com elas um rapaz que se levantou prontamente e veio cumprimentá-la com muita
receberam daquela agitação os repelões do costume. Ela mal podia andar por entre os cerimônia. Era o seu primeiro namorado.
grupos, menos ainda sabia onde fixasse os olhos, tal era a confusão das gentes, tal era a Este primeiro namorado devia ter agora trinta e três anos. Andara por fora, na
variedade das lojas. roça, na Europa, e afinal na presidência de uma província do sul. Era mediano de estatura,
Conchegava-se muito à amiga, e, sem reparar que tinham passado a casa do pálido, barba inteira e rara, e muito apertado na roupa.
dentista, ia ansiosa de lá entrar. Era um repouso; era alguma cousa melhor do que o Tinha na mão um chapéu novo, alto, preto, grave, presidencial, administrativo,
tumulto. um chapéu adequado à pessoa e às ambições. Mariana, entretanto, mal pôde vê-lo. Tão
— Esta Rua do Ouvidor! ia dizendo. confusa ficou, tão desorientada com a presença de um homem que conhecera em especiais
— Sim? respondia Sofia, voltando a cabeça para ela e os olhos para um rapaz circunstâncias, e a quem não vira desde 1877, que não pôde reparar em nada. Estendeu-lhe
que estava na outra calçada. os dedos, parece mesmo que murmurou uma resposta qualquer, e ia tornar à janela,
Sofia, prática daqueles mares, transpunha, rasgava ou contornava as gentes com quando a amiga saiu dali.
muita perícia e tranqüilidade. A figura impunha; os que a conheciam gostavam de vê-la outra Sofia conhecia também o recém-chegado. Trocaram algumas palavras. Mariana,
vez; os que não a conheciam paravam ou voltavam-se para admirar-lhe o garbo. E a boa impaciente, perguntou-lhe ao ouvido se não era melhor adiar os dentes para outro dia; mas
senhora, cheia de caridade, derramava os olhos à direita e à esquerda, sem grande a amiga disse-lhe que não; negócio de meia hora a três quartos. Mariana sentia-se opressa:
escândalo, porque Mariana servia a coonestar os movimentos. Nada dizia seguidamente; a presença de um tal homem atava-lhe os sentidos, lançava-a na luta e na confusão. Tudo
parece até que mal ouvia as respostas da outra; mas falava de tudo, de outras damas, que culpa do marido. Se ele não teimasse e não caçoasse com ela, ainda em cima, não
iam ou vinham, de uma loja, de um chapéu... Justamente os chapéus, — de senhora ou de aconteceria nada.
homem, — abundavam naquela primeira hora da Rua do Ouvidor. E Mariana, pensando assim, jurava tirar uma desforra. De memória contemplava
— Olha este, dizia-lhe Sofia. a casa, tão sossegada, tão bonitinha, onde podia estar agora, como de costume, sem os
E Mariana acudia a vê-los, femininos ou masculinos, sem saber onde ficar, safanões da rua, sem a dependência da amiga...
porque os demônios dos chapéus sucediam-se como num caleidoscópio. — Mariana, disse-lhe esta, o Dr. Viçoso teima que está muito magro. Você não
Onde era o dentista? perguntava ela à amiga. Sofia só à segunda vez lhe acha que está mais gordo do que no ano passado?... Não se lembra dele no ano passado?
respondeu que tinham passado a casa; mas já agora iriam até ao fim da rua; voltariam Dr. Viçoso era o próprio namorado antigo, que palestrava com Sofia, olhando
depois. Voltaram finalmente. muitas vezes para Mariana. Esta respondeu negativamente. Ele aproveitou a fresta, para
— Uf! respirou Mariana entrando no corredor. puxá-la à conversação; disse que, na verdade, não a vira desde alguns anos. E sublinhava o
— Que é, meu Deus? Ora você! Parece da roça... dito com um certo olhar triste e profundo. Depois abriu o estojo dos assuntos, sacou para
A sala do dentista tinha já algumas freguesas. Mariana não achou entre elas uma fora o teatro lírico. Que tal achavam a companhia? Na opinião dele era excelente, menos o
só cara conhecida, e para fugir ao exame das pessoas estranhas, foi para a janela. Da barítono; o barítono parecia-lhe cansado. Sofia protestou contra o cansaço do barítono, mas
janela podia gozar a rua, sem atropelo. Recostou-se; Sofia veio ter com ela. Alguns chapéus ele insistiu, acrescentando que, em Londres, onde o ouvira pela primeira vez, já lhe
masculinos, parados, começaram a fitá-las; outros, passando, faziam a mesma cousa. parecera a mesma cousa. As damas, sim, senhora; tanto a soprano como a contralto eram
Mariana aborreceu-se da insistência; mas, notando que fitavam principalmente a amiga, de primeira ordem. E falou das óperas, citava os trechos, elogiou a orquestra,
dissolveu-se-lhe o tédio numa espécie de inveja. Sofia, entretanto, contava-lhe a história de principalmente nos Huguenotes... Tinha visto Mariana na última noite, no quarto ou quinto
alguns chapéus, — ou, mais corretamente, as aventuras. Um deles merecia os camarote da esquerda, não era verdade?
pensamentos de Fulana; outro andava derretido por Sicrana, e ela por ele, tanto que eram — Fomos, murmurou ela, acentuando bem o plural.
certos na Rua do Ouvidor às quartas e sábados, entre duas e três horas. Mariana ouvia — No Cassino é que a não tenho visto, continuou ele.
aturdida. Na verdade, o chapéu era bonito, trazia uma linda gravata, e possuía um ar entre — Está ficando um bicho do mato, acudiu Sofia rindo.
elegante e pelintra, mas... Viçoso gostara muito do último baile, e desfiou as suas recordações; Sofia fez o
— Não juro, ouviu? replicava a outra, mas é o que se diz. mesmo às dela. As melhores toilettes foram descritas por ambos com muita particularidade;
Mariana fitou pensativa o chapéu denunciado. Havia agora mais três, de igual depois vieram as pessoas, os caracteres, dous ou três picos de malícia; mas tão anódina,
porte e graça, e provavelmente os quatro falavam delas, e falavam bem. que não fez mal a ninguém. Mariana ouvia-os sem interesse; duas ou três vezes chegou a
levantar-se e ir à janela; mas os chapéus eram tantos e tão curiosos, que ela voltava a
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sentar-se. Interiormente, disse alguns nomes feios à amiga; não os ponho aqui por não — Não me pregue outra peça como esta de andar de um lugar para outro feito
serem necessários, e, aliás, seria de mau gosto desvendar o que esta moça pôde pensar da maluca. Que tenho eu com a Câmara? que me importam discursos que não entendo?
outra durante alguns minutos de irritação. Sofia sorriu, agitou o leque e recebeu em cheio o olhar de um dos secretários.
— E as corridas do Jockey Club? perguntou o ex-presidente. Muitos eram os olhos que a fitavam quando ela ia à Câmara, mas os do tal secretário tinham
Mariana continuava a abanar a cabeça. Não tinha ido às corridas naquele ano. uma expressão mais especial, cálida e súplice.
Pois perdera muito, a penúltima, principalmente; esteve animadíssima, e os cavalos eram de Entende-se, pois, que ela não o recebeu de supetão; pode mesmo entender-se
primeira ordem. As de Epsom, que ele vira, quando esteve em Inglaterra, não eram que o procurou curiosa. Enquanto acolhia esse olhar legislativo ia respondendo à amiga,
melhores do que a penúltima do Prado Fluminense. E Sofia dizia que sim, que realmente a com brandura, que a culpa era dela, e que a sua intenção era boa, era restituir-lhe a posse
penúltima corrida honrava o Jockey Club. de si mesma.
Confessou que gostava muito; dava emoções fortes. A conversação descambou — Mas, se você acha que a aborreço não venha mais comigo, concluiu Sofia.
em dous concertos daquela semana; depois tomou a barca, subiu a serra e foi a Petrópolis, E, inclinando-se um pouco:
onde dous diplomatas lhe fizeram as despesas da estada. Como falassem da esposa de um — Olhe o Ministro da Justiça.
ministro, Sofia lembrou-se de ser agradável ao ex-presidente, declarando-lhe que era Mariana não teve remédio senão ver o Ministro da Justiça. Este agüentava o
preciso casar também porque em breve estaria no ministério. Viçoso teve um estremeção de discurso do orador, um governista, que provava a conveniência dos tribunais correcionais, e,
prazer, e sorriu, e protestou que não; depois, com os olhos em Mariana, disse que incidentemente, compendiava a antiga legislação colonial. Nenhum aparte; um silêncio
provavelmente não casaria nunca... Mariana enrubesceu muito e levantou-se. resignado, polido, discreto e cauteloso.
— Você está com muita pressa, disse-lhe Sofia. Quantas são? continuou Mariana passeava os olhos de um lado para outro, sem interesse; Sofia dizia-lhe
voltando-se para Viçoso. muitas cousas, para dar saída a uma porção de gestos graciosos. No fim de quinze minutos
— Perto de três! exclamou ele. agitou-se a Câmara, graças a uma expressão do orador e uma réplica da oposição.
Era tarde; tinha de ir à Câmara dos Deputados. Foi falar às duas senhoras, que Trocaram-se apartes, os segundos mais bravos que os primeiros, e seguiu-se um tumulto,
acompanhara, e que eram primas suas, e despediu-se; vinha despedir-se das outras, mas que durou perto de um quarto de hora.
Sofia declarou que sairia também. Já agora não esperava mais. A verdade é que a idéia de Essa diversão não o foi para Mariana, cujo espírito plácido e uniforme, ficou
ir à Câmara dos Deputados começara a faiscar-lhe na cabeça. atarantado no meio de tanta e tão inesperada agitação. Ela chegou a levantar-se para sair;
— Vamos à Câmara? propôs ela à outra. mas, sentou-se outra vez. Já agora estava disposta a ir ao fim, arrependida e resoluta a
— Não, não, disse Mariana; não posso, estou muito cansada. chorar só consigo as suas mágoas conjugais.
— Vamos, um bocadinho só; eu também estou muito cansada... A dúvida começou mesmo a entrar nela. Tinha razão no pedido ao marido; mas
Mariana teimou ainda um pouco; mas teimar contra Sofia, — a pomba discutindo era caso de doer-se tanto? era razoável o espalhafato? Certamente que as ironias dele
com o gavião, — era realmente insensatez. Não teve remédio, foi. A rua estava agora mais foram cruéis; mas, em suma, era a primeira vez que ela lhe batera o pé, e, naturalmente, a
agitada, as gentes iam e vinham por ambas as calçadas, e complicavam-se no cruzamento novidade irritou-o. De qualquer modo porém, fora um erro ir revelar tudo à amiga. Sofia iria
das ruas. De mais a mais, o obsequioso ex-presidente flanqueava as duas damas, tendo-se talvez contá-lo a outras... Esta idéia trouxe um calafrio a Mariana; a indiscrição da amiga era
oferecido para arranjar-lhes uma tribuna. certa; tinha-lhe ouvido uma porção de histórias de chapéus masculinos e femininos, cousa
A alma de Mariana sentia-se cada vez mais dilacerada de toda essa confusão de mais grave do que uma simples briga de casados. Mariana sentiu necessidade de lisonjeá-
cousas. Perdera o interesse da primeira hora; e o despeito, que lhe dera forças para um vôo la, e cobriu a sua impaciência e zanga com uma máscara de docilidade hipócrita. Começou
audaz e fugidio, começava a afrouxar as asas, ou afrouxara-as inteiramente. E outra vez a sorrir também, a fazer algumas observações, a respeito de um ou outro deputado, e assim
recordava a casa, tão quieta, com todas as cousas nos seus lugares, metódicas, respeitosas chegaram ao fim do discurso e da sessão.
umas com as outras, fazendo-se tudo sem atropelo, e, principalmente, sem mudança Eram quatro horas dadas. Toca a recolher, disse Sofia; e Mariana concordou que
imprevista. E a alma batia o pé, raivosa... Não ouvia nada do que o Viçoso ia dizendo, sim, mas sem impaciência, e ambas tornaram a subir a Rua do Ouvidor. A rua, a entrada no
conquanto ele falasse alto, e muitas cousas fossem ditas para ela. Não ouvia, não queria bond completaram a fadiga do espírito de Mariana, que afinal respirou quando viu que ia
ouvir nada. Só pedia a Deus que as horas andassem depressa. Chegaram à Câmara e caminho de casa. Pouco antes de apear-se a outra, pediu-lhe que guardasse segredo sobre
foram para uma tribuna. O rumor das saias chamou a atenção de uns vinte deputados, que o que lhe contara; Sofia prometeu que sim.
restavam, escutando um discurso de orçamento. Tão depressa o Viçoso pediu licença e Mariana respirou. A rola estava livre do gavião. Levava a alma doente dos
saiu, Mariana disse rapidamente à amiga que não lhe fizesse outra. encontrões, vertiginosa da diversidade de cousas e pessoas. Tinha necessidade de
— Que outra? perguntou Sofia.
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equilíbrio e saúde. A casa estava perto; à medida que ia vendo as outras casas e chácaras Em Capítulo dos Chapéus aparecem a frivolidade e ostentação da época de
próximas, Mariana sentia-se restituída a si mesma. Machado de Assis.
Chegou finalmente; entrou no jardim, respirou. Era aquele o seu mundo; menos
um vaso, que o jardineiro trocara de lugar. Este interessante conto põe a nu a posição da mulher na nova sociedade que
— João, bota este vaso onde estava antes, disse ela. se forma no Brasil dessa segunda metade do século XIX, por meio de uma
Tudo o mais estava em ordem, a sala de entrada, a de visitas, a de jantar, os
prosa irônica, mas que não deixa de revelar um tom trágico, por meio de uma
seus quartos, tudo. Mariana sentou-se primeiro, em diferentes lugares, olhando bem para
todas as cousas, tão quietas e ordenadas. Depois de uma manhã inteira de perturbação e tarde na vida da pacata Mariana.
variedade, a monotonia trazia-lhe um grande bem, e nunca lhe pareceu tão deliciosa. Na
verdade, fizera mal... Quis recapitular os sucessos e não pôde; a alma espreguiçava-se toda A história do conto é simples: Mariana, ―esposa do bacharel Conrado
naquela uniformidade caseira. Quando muito, pensou na figura do Viçoso, que achava agora Seabra‖, pede ao marido que troque o chapéu que costuma usar todos os
ridícula, e era injustiça. Despiu-se lentamente, com amor, indo certeira a cada objeto. Uma dias. O marido, diante não de um pedido mas da teima da esposa, acha
vez despida, pensou outra vez na briga com o marido. Achou que, bem pesadas as cousas, absurda sua atitude e responde-lhe ironicamente, humilhando-a. Conrado
a principal culpa era dela. Que diabo de teima por causa de um chapéu, que o marido usara desconhece o fato de a solicitação de Mariana ter origem em uma colocação
há tantos anos? Também o pai era exigente demais... feita pela pai dela: De noite, encontrando a filha sozinha, abriu-lhe o
"Vou ver a cara com que ele vem", pensou ela. coração, pintou-lhe o chapéu mais baixo como a abominação das
Eram cinco e meia; não tardaria muito. Mariana foi à sala da frente, espiou pela
abominações e instou com ela para que o fizesse desterrar.
vidraça, prestou o ouvido ao bond, e nada. Sentou-se ali mesmo com o Ivanhoe nas palmas,
querendo ler e não lendo nada. Os olhos iam até o fim da página, e tornavam ao princípio,
em primeiro lugar, porque não apanhavam o sentido, em segundo lugar, porque uma ou Humilhada, repleta de despeito, Mariana resolve espairecer, indo visitar uma
outra vez desviavam-se para saborear a correção das cortinas ou qualquer outra feição amiga, Sofia – ―alta, forte, muito senhora de si‖. Num ato de fraqueza,
particular da sala. Santa monotonia, tu a acalentavas no teu regaço eterno. confessa a Sofia o motivo de sua visita e a amiga a convence a irem juntas
Enfim, parou um bond; apeou-se o marido; rangeu a porta de ferro do jardim. passear na Rua do Ouvidor. No entanto, o passeio revela-se perturbador e
Mariana foi à vidraça, e espiou. Conrado entrava lentamente, olhando para a direita e a Mariana, angustiada, anseia por voltar para a segurança do seu lar. Ao chegar
esquerda, com o chapéu na cabeça, não o famoso chapéu do costume, porém outro, o que em casa, porém, o marido comprou um chapéu novo e Mariana, ainda
a mulher lhe tinha pedido de manhã. O espírito de Mariana recebeu um choque violento, assustada, pede-lhe que volte a usar o chapéu de sempre.
igual ao que lhe dera o vaso do jardim trocado, — ou ao que lhe daria uma lauda de Voltaire
entre as folhas da Moreninha ou de Ivanhoe... Era a nota desigual no meio da harmoniosa O conto é dominado pelas figuras de duas mulheres: Mariana e Sofia.
sonata da vida. Não, não podia ser esse chapéu. Realmente, que mania a dela exigir que
Personalidades opostas, elas representam dois mundos diferentes, mas
ele deixasse o outro que lhe ficava tão bem? E que não fosse o mais próprio, era o de
longos anos; era o que quadrava à fisionomia do marido... próximos entre si, presentes na nova configuração da realidade brasileira da
Conrado entrou por uma porta lateral. Mariana recebeu-o nos braços. segunda metade do século XIX. Mariana é a mulher infantilizada e alienada
— Então, passou? perguntou ele, enfim, cingindo-lhe a cintura. num ambiente doméstico; sua vida resume-se a casa e seus objetos: Móveis,
— Escuta uma cousa, respondeu ela com uma carícia divina, bota fora esse; cortinas, ornatos supriam-lhe os filhos; tinha-lhes um amor de mãe; e tal era
antes o outro. a concordância da pessoa com o meio que ela saboreava os trastes na
posição ocupada, as cortinas com as dobras do costume, e assim o resto.
ANÁLISES Sua caracterização evidencia o quanto está de acordo com os ideais de
Neste conto Machado de Assis discorre sobre um desejo reprimido que feminilidade de um mundo marcado pela figura do patriarca: era uma
reaparece, deslocado, mas que perturba a jovem Mariana. Ela e Sofia, sua criatura passiva, meiga, de uma plasticidade de encomenda, capaz de usar
amiga, são as duas mulheres que representam os dois mundos que colidiam com a mesma divina indiferença tanto um diadema régio como uma touca.
no Brasil da segunda metade do século XIX. Ou seja, é uma criatura feita de clichês que servem para reafirmar o oposto, a
virilidade masculina. Sua vida estreita, concorda com suas leituras: Os
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hábitos mentais seguiam a mesma uniformidade. Mariana dispunha de mui convença o compadre a aceitar o filho em casa. Neste ínterim, temos outra
poucas noções, e nunca lera senão os mesmos livros: a Moreninha, de personagem crucial na narrativa, Lucrécia, uma franzina escrava de onze
Macedo, sete vezes; Ivanhoé e o Pirata, de Walter Scott, dez vezes; e Mot de anos, que juntamente como outras moças, toma aulas de renda com a
l´enigme, de Madame Craven, onze vezes. senhora, que é outrossim sua dona. Durante a estadia na casa, o rapaz, depois
de contar algumas anedotas para a Sinhá e para as díscípulas, notou que a
Em oposição à sua figura, há Sofia, uma mulher da nova sociedade: menina, ao escutar uma das piadas, deixou a tarefa de lado e começou a rir.
independente, resoluta, seus limites vão além da vida doméstica, estendendo- A viúva, com uma vara, ameaçou a pequena que tinha descuidado do bilro. A
se para a rua: Sofia, prática daqueles mares, transpunha, rasgava ou compleição física da jovem, a tosse para dentro, bem como a advertência de
contornava as gentes com muita perícia e tranqüilidade. Mais ainda, Sofia Rita, fizeram com que Damião sentisse pena de Lucrécia, assim sendo, ele
era honesta, mas namoradeira: o termo é cru e não há tempo de compor um decidiu apadrinhá-la. Num outro dia, o moço, a pedido da senhora, contou
mais brando. Namorava a torto e a direito, por necessidade natural, um outra piada. Neste viés, o mancebou, após de atender a solitação, observou se
costume de solteira. A relação das duas mulheres com os maridos segue esse a pequena escrava havia rido, notou que não, viu que a garotinha quedou-se
caráter de oposição. Sofia domina o marido: Olhe eu cá vivo, muito bem com calada, ela estava concentrada em seu afazer. Destarte, imaginou que se ela
o meu Ricardo; temos muita harmonia. Não lhe peço coisa que ele não faça tivesse dado uma alguma gargalhada, teria feito isso para dentro, tal como
logo; mesmo quando não tem vontade nenhuma, basta que eu feche a cara, procedia quando tossia. Depois desse acontecimento, durante a noite, ele
obedece logo. Não era ele que teimaria assim por causa de um chapéu! Pois recebeu a notícia de que o pai não lhe aceitaria em casa. Porém, a viúva
não! Onde iria ele parar! Mudava de chapéu, quer quisesse, quer não. decidida ajudá-lo, tomando o negócio como dela, ordenou que João Carneiro
retornasse a casa do pai do rapaz para tentar mais uma vez fazer com que a
Sofia possui certa consciência de seu desejo e aproveita-se do fato de ser situação fosse resolvida. Em seguida, notou que Lucrécia não havia
objeto de desejo dos outros homens: sai para ser vista, seu olhar se desloca terminado o trabalho. Isso fez com que a Sinhá ralhasse com a menina, que
incessantemente para capturar o olhar do outro, numa postura ativa: Muitos após suplicar para não ser castigada, fugiu pela outros cômodos. Porém, a
eram os olhos que a fitavam quando ela ia à câmara, mas os do tal senhora agarrou-a, e puxando a orelha escrava, levou-a até até sala. Não
secretário tinham uma expressão mais especial, mais cálida e súplice. querendo soltar a menina, pediu para que Damião pegasse a vara. Ele numa
Entende-se, pois, que ela não o recebeu de supetão; pode mesmo entender-se grande indecisão, ouvindo pedido de ajuda da jovem, agarrou o instrumento
que o procurou curiosa. e entregou nas mãos de Rita.

Sofia encarna o novo papel da mulher: a vida social é muito importante e o Com base na breve descrição do enredo que foi explicitada acima, podemos
que vale é ver e ser vista. realizar uma análise mais elaborada acerca do conto.

Primeiramente falaremos da personagens. A personagem central, como já


"O caso da vara", conto de Machado de Assis, publicado no jornal Gazeta de fora dito, é Damião, ele está no cerne dos conflitos principais da narrativa. Já
Notícias em 1891, reeditado em 1899 no livro Páginas recolhidas, traz à tona o pai do mancebo, poderia ser enquadrado como o antogonista da história.
a história da personagem protagonista Damião, um mancebo, que devido a Apesar dele não contar nem ao menos com um nome, e nem com uma
falta de vocação para o clero, foge do seminário, e, deste modo, abriga-se na descrição física elaborada — o que se justifica, uma vez que o conto é um
casa da viúva Sinhá Rita. gênero onde a história deve ser célere —, nota-se facilmente que ele se opõe
ao protagonista, uma vez que sua ação atrapalha o jovem a voltar para casa.
Todavia, não poder-se-ia afirmar que ele seja o vilão da história. Como
Como sugere o narrador e os diálogos que se dão entre as personagens, Rita personagens secundárias, temos Sinhá Rita, João Carneiro e Lucrécia, essas,
possuí uma estreita ligação, isto é, um namoro às escondidas com João como bem frisa Cândida Vilares Gancho, na obra Como analisar narrativas,
Carneiro, o padrinho do jovem. Sendo assim, ela pede para que o namorado
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―são personagens menos importantes na história, isto é, que têm uma recorrentes na obra machadiana é a transformação do homem em objeto do
participação menor ou menos freqüente no enredo; podem desempenhar o homem. Um ser que escraviza outrem, está justamente fazendo isso,
papel de ajudantes do protagonista ou do antagonista, de confidentes, enfim, utilizando o outro como um mero objeto. É essa a relação que se dá entre
de figurantes.‖ . A discípulas da viúva devem ser compreendidas com Rita e Lucrécia, e também entre Damião e Rita, uma vez que o moço utiliza-
personagens planas, mais especificamente de tipo, dado que são pouco se da influência que a senhora tem mediante ao padrinho para conseguir seu
complexas. objetivo que é o de voltar para casa; dessa maneira também acaba
envolvendo Lucrécia. O mancebo que teve a oportunidade salvar a pequena
Cabe-nos agora tecer algumas considerações sobre esse narrador machadiano escrava da punição, opta por não fazê-lo, visto que se ele intercedesse em
que trouxe à baila a história de Damião. Como poder-se-á notar, é um prol da menina, com certeza ele seria o alvo da vara, que provavelmente o
narrador em terceira pessoa onisciente e onipresente, haja vista que conhece pai ou alguém do seminário, e que sabe até ambas as figuras, iriam desferir
tudo sobre a história, e que, além disso, está presente em todos os lugares da em seu corpo. Ora, sendo assim, vemos que este tema abordado pelo escritor
mesma. fluminense é universal, ou seja, não está ligado a particularidade de um povo
No tocante ao tempo, o leitor percebe que Machado lançou mão basilarmente ou uma nação; é algo que não está preso às correntes de determinada época
do cronológico. Os fatos que permeiam o enredo são narrados de maneira ou lugar.
linear, em outras palavras, acontecem de maneira natural, partem do início
para o final. Todavia, numa certa parte do conto, mais especificamente no
início, Damião realiza uma digressão, onde ele se lembra de como foi levado
ao seminário pelo padrinho. Calcando-se nisso, notar-se outrossim o tempo
psicológico, que também está inserido na narrativa. Ademais, vale ressaltar
Introdução
que a história se passa no século XIX em 1850.
Publicado em 1881, Memórias Póstumas de Brás Cubas, além de
Isto posto, partiremos para as relações entre literatura e história que estão inaugurar o Realismo brasileiro, apresenta as mais radicais
pautadas em "O caso da vara". experimentações na prosa do país até então. Narrado por um
defunto, de forma digressiva e agressiva, o romance apresenta a vida
O conto se passa no período imperial brasileiro, segundo reinado, onde a inútil e desperdiçada do anti-herói Brás Cubas. Utilizando recursos
escravidão ainda estava em voga. Vale lembrar que o texto foi levado ao narrativos e gráficos inusitados, Machado surpreende a cada página
público em 1891, três anos após a abolição do regime escravocrata no Brasil. com sua ironia cortante e, acima de tudo, com a inteligência que
Porém, faz-se importante destacar também, que Machado vivenciou grande
parte do período oitocentista, ele teve a oportunidade de acompanhar o longo
prende até o leitor mais desconfiado. Antecipando procedimentos
processo, que se deu através de idéias, pressão estrangeira — da Inglaterra modernistas e descobertas da psicanálise, esta obra ácida e irônica
— e leis, que foram responsáveis pela derrocada do supracitado regime no de Machado de Assis eleva a literatura brasileira a um patamar
Brasil. Baseando-se nisso, é inegável que o texto de Machado está ligado a jamais antes atingido.
história. e conseqüentemente a um tempo que ele viveu. Contudo, uma
questão nos vem à mente: como o escritor conseguiu exprimir o universal no DO ROMANTISMO AO REALISMO
seu conto?, levando em consideração que ele trouxe para o leitor o tema da
escravidão, que como se sabemos, no Brasil e em qualquer local do mundo, A obra de Machado de Assis pode ser dividida em dois momentos
possuiu características bastante peculiares. Esse problema pode ser elucidado bem distintos: as obras da juventude, com forte influência do
se utilizarmos como referência o excelente ensaio de Antonio Candido, Romantismo e seu progressivo amadurecimento, até chegar ao
Esquema de Machado de Assis. Como bem salienta o crítico, um dos temas
Realismo de suas obras da maturidade. Entre estas, as mais
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destacadas e consideradas são Memórias Póstumas de Brás Cubas vivem e circulam operários, prostitutas e personagens das mais
(1881), Quincas Borba (1891) e Dom Casmurro (1899). Se os variadas classes sociais. A composição desses tipos e do enredo tem
escritores românticos, José de Alencar à frente, conseguiram a intenção de descrever objetivamente a vida de uma determinada
estabelecer o romance como um gênero literário de respeito no sociedade e retratar seu funcionamento. O Realismo-Naturalismo é
Brasil, foi Machado de Assis quem elevou a prosa brasileira ao nível cientificista e determinista, considerando que as ações humanas são
das melhores escritas no mundo em sua época. Sua obra não almeja produtos de leis naturais: do meio, das características hereditárias e
mais apenas divertir, moralizar ou afirmar valores nacionais, mas do momento histórico.
visa esmiuçar o espírito humano, refletindo sobre valores universais, Já o Realismo Psicológico de Machado de Assis despreza tanta
sem jamais perder de vista a realidade brasileira. objetividade. O escritor concentra sua narrativa na visão de mundo
de seus personagens, expondo suas contradições. A classificação
O PRIMEIRO ROMANCE PSICOLÓGICO mais adotada para definir a escola literária a que pertence Machado
de Assis na segunda fase de sua obra é Realismo Psicológico. O
Com Memórias Póstumas de Brás Cubas a literatura brasileira recurso que ele utiliza para discutir a sociedade é a abordagem, em
atingiu a sua maturidade. Marco inicial do Realismo, introduz o profundidade, da individualidade e do caráter dos personagens.
romance psicológico na Literatura brasileira. Nesta obra, Machado
de Assis desloca o foco de interesse do romance. O seu enfoque POUCA AÇÃO E MUITAS SURPRESAS
central não é a vida social ou a descrição das paisagens, mas a forma
como seus personagens vêem e sentem as circunstâncias em que Na abertura do livro, uma dedicatória escrita sob a forma de um
vivem. Em vez de enfatizar os espaços externos, investe na epitáfio anuncia o narrador desse romance inusitado: Brás Cubas,
caracterização interior dos personagens, com suas contradições e um defunto-autor que começa contando detalhes do seu funeral.
problemáticas existenciais. Depois de algumas digressões, ele retoma a ordem cronológica dos
acontecimentos, relatando a infância e a primeira paixão da
DOIS TIPOS DE REALISMO adolescência, aos 17 anos, pela cortesã Marcela. Presenteia tanto a
amada que o pai, irritado com o gasto excessivo, manda-o estudar
O chamado Realismo na Literatura brasileira compreende duas Direito em Coimbra, Portugal.
manifestações literárias muito diferentes, ambas marcadas pela Assim como foi, também volta a chamado do pai porque a mãe
oposição à tendência idealizante do Romantismo e pela atitude está à morte. Namora então Eugênia, a filha de uma amiga pobre da
crítica em relação à sociedade. família, enquanto o pai procura arranjar um casamento de interesse
De um lado temos o Realismo propriamente dito, ou Realismo com Virgília, a filha de um político, o Conselheiro Dutra. Ela, no
Psicológico, inaugurado por Memórias Póstumas de Brás Cubas; de entanto, casa-se com um político, Lobo Neves, e posteriormente se
outro, o Realismo-Naturalismo, cujo marco inicial é o romance O torna amante de Brás, mantendo com ele encontros na casa habitada
Mulato, também de 1881, de Aluísio Azevedo (1857-1913). por dona Plácida. Antes de o caso começar, morre o pai de Brás.
A obra mais importante do Realismo-Naturalismo é O Cortiço, de Começa então um litígio entre ele e a irmã Sabina pela herança.
Aluísio Azevedo, editado em 1890. No livro de Azevedo, a trama Em meio a tudo isso, o protagonista Brás reencontra Quincas
desenvolve-se em uma habitação coletiva do Rio de Janeiro, onde Borba, amigo dos tempos de escola, que lhe apresenta uma doutrina
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filosófica que criara, o Humanitismo. Virgília parte para o Norte, jovem adulto leviano, em busca da melhor maneira de tirar
acompanhando o marido, nomeado presidente de província. Brás vantagem. Sua conduta fica explícita quando descreve sua formação
namora então a sobrinha do cunhado Cotrim, mas a garota morre aos universitária na Europa:
19 anos. Ele, que já se tornara deputado, fracassa na tentativa de
virar ministro de Estado. Frustrado, funda um jornal de oposição. “Não digo que a Universidade me não tivesse ensinado alguma;
Percebe, então, que Quincas Borba está enlouquecendo mas eu decorei-lhe só as fórmulas, o vocabulário, o esqueleto.
progressivamente. Tratei-a como tratei o latim – embolsei três versos de Virgílio, dois
Procurado por Virgília, já idosa, Brás ampara dona Plácida, que de Horácio, uma dúzia de locuções morais e política para as
morre pouco depois. É um período cheio de perdas e decepções: despesas da conversação. Tratei-os como tratei a história e a
morrem Marcela, o louco Quincas Borba, Lobo Neves e Eugênia jurisprudência. Colhi de todas as coisas a fraseologia, a casca, a
aparece em um cortiço. Ao tentar inventar um emplasto que lhe ornamentação (...)"
daria a fama tão desejada, Brás Cubas adoece e recebe a visita da
ex-amante Virgília e do filho dela. Morre depois de um delírio, aos Quando volta ao Brasil, por causa da doença da mãe, se defronta
64 anos. Decide, então, contar sua vida em detalhes, mas, pouco pela primeira vez com a questão da morte e vive então um momento
sistemático que é, e ainda excitado pela experiência da morte, sua de introspecção e reflexão. Quando reencontra Marcela velha e
narrativa segue a lógica do pensamento. doente, retoma a idéia da passagem do tempo. A isso Brás chama de
O caráter inovador de Memórias Póstumas de Brás Cubas não teoria das edições da vida, anunciada nos primeiros capítulos, mas
está na história propriamente dita ou na seqüência cronológica dos comentada muito depois.
fatos. A melhor chave para compreender a obra são as reflexões do
personagem, como elas se encadeiam e se misturam aos eventos que “Pois sabei que, naquele tempo, estava eu na quarta edição,
ele vive. revista e emendada, mas ainda inçada de descuidos e barbarismos;
defeito que, aliás, achava alguma compensação no tipo, que era
NARRADOR – O PERSONAGEM CENTRAL elegante, e na encadernação, que era luxuosa.”

O romance tem uma perspectiva deslocada: é narrado por um Na maturidade, começa a buscar a compensação pela existência
defunto, que reconta a própria vida, do fim para o começo, num sem nada de notável, sem filhos ou realizações: consegue um cargo
relato marcado pela franqueza e inseção. "Falo sem temer mais público, busca notoriedade e respeitabilidade ao querer tornar-se
nada", diz o morto. É Brás Cubas, personagem ―esférico‖, ou seja, ministro. Pouco antes de morrer, imagina ainda um último modo de
de grande densidade psicológica, quem comenta as próprias se perpetuar: inventando um emplasto, uma medicação sublime.
mudanças. Brás Cubas, classificado pelos críticos como o grande
hipócrita da Literatura brasileira, é um sujeito sem objetivos e muito PERSONAGENS COMPLEMENTARES
contraditório, sempre rondando a periferia do poder. Típico burguês
da segunda metade do século XIX, encarna o homem que passou a Os personagens criados por Machado de Assis entram e saem de
vida sem conquistar nenhuma realização efetiva. Se na infância o cena conforme os pensamentos de Brás Cubas. Entre eles, quem
personagem fora uma criança abastada e protegida, torna-se um merece maior destaque é Quincas Borba, que, mais tarde, será o
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personagem-título de outro romance do autor. Ele influencia Aqui, por exemplo, constrói uma frase realista típica, contrapondo
profundamente o narrador com a sua teoria do Humanitismo. Os ao romantismo do envolvimento de 15 meses os 11 contos de réis.
dois conheceram-se no colégio e reencontram-se muitos anos Ao contrário dos personagens românticos, que se movem por um
depois. Quincas é um mendigo que vai enlouquecendo objetivo, e estabelecem metas ou fazem algo notável, a trajetória de
progressivamente. Brás Cubas e dos personagens que o circundam nada tem de
Ao morrer, está completamente fora de si. Seu Humanitismo especial. Muitas vezes, eles se norteiam, como no caso de Marcela,
prega que tudo pelo mais vil dos interesses. No final da vida, Brás Cubas conclui
o que acontece na vida faz parte de um quadro maior de preservação que precisa deixar alguma realização e se anima com a idéia de criar
da essência humana. A ironia é uma das marcas da obra de Machado um emplasto com seu nome, algo que o tornaria famoso.
de Assis. Nesta obra isso fica claro quando o autor faz com que uma
doutrina de valorização da vida seja defendida justamente por um A estrutura de Memórias Póstumas de Brás Cubas tem uma lógica
mendigo que morre completamente louco. narrativa surpreendente e inovadora. A seqüência do livro não é
No contexto do romance, o Humanitismo convém a Brás para determinada pela cronologia dos fatos, mas pelo encadeamento das
justificar sua existência vazia. A teoria de Quincas Borba dá a ele reflexões do personagem. Uma lembrança puxa a outra e o narrador
uma ilusão da descoberta de um sentido para a vida. A morte de Brás Cubas, que prometera contar uma determinada história,
Quincas Borba reconduz Brás Cubas ao confronto com a vacuidade comenta todos os outros fatos que a envolvem, para retomar o tema
de sua existência. Machado confirma assim a tese anunciada no anunciado muitos capítulos depois. Organizados em blocos curtos,
Capítulo 7 – ―O delírio‖, sobre a perseguição inútil da felicidade. os 160 capítulos de Memórias Póstumas de Brás Cubas fluem
Quincas Borba é importante porque introduz Brás Cubas na teoria segundo o ritmo do pensamento do narrador. A aparente falta de
que inventou, o Humanitismo. Na verdade, a teoria do mendigo é coerência da narrativa, permeada por longas digressões, dissimula
uma caricatura que Machado de Assis faz do positivismo e do uma forte coerência interna, oferecendo ao leitor todas as
evolucionismo, teorias científicas e filosóficas em voga na época informações para conhecer a visão de mundo de um homem que
que atribuem sentido de evolução mesmo às fatalidades da vida. passou pela vida sem realização nenhuma, apenas ao sabor de seus
desejos. Logo nas primeiras páginas, o escritor brinca com a
AS INOVAÇÕES DE MACHADO DE ASSIS expectativa do leitor de chegar logo às ações do romance. Machado
de Assis, por intermédio do seu narrador, se dirige diretamente ao
Escritor dedicado à problematização e ao questionamento da leitor, metalingüisticamente, para comentar o livro. Diz Brás Cubas:
função da Literatura, Machado de Assis inova, neste livro, a
temática, a estrutura e a linguagem. “Veja o leitor a comparação que melhor lhe quadrar, veja-a e
não esteja daí a torcer-me o nariz, só porque ainda não chegamos à
Na temática, investe na complexidade dos indivíduos, que retrata parte narrativa destas memórias. Lá iremos. Creio que prefere a
sem nenhuma idealização romântica: anedota à reflexão, como os outros leitores, seus confrades, e acho
que faz muito bem”.
“(...) Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de
réis (...)”
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Ao usar a metalinguagem, Machado convida o leitor a refletir . . . . . .
sobre a estrutura da obra e perceber dois níveis de leitura: a que
revela diretamente o personagem e a que o faz objeto de crítica do Brás Cubas
autor. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . .
Machado de Assis foi o mais ousado dos escritores brasileiros . . . . . . . . . . . . . . . . . .
anteriores ao Modernismo (1922) na experimentação de novas
formas de expressão. Em Memórias Postumas de Brás Cubas mostra Virgília
sua desconfiança da articulação perfeita entre o texto e a realidade e . . . . . . !
procura adequar a forma ao conteúdo. Exemplo: para traduzir a
frustração de Brás Cubas quando não consegue se tornar ministro, a Brás Cubas
solução do autor foi deixar o Capítulo 139 em branco. No capítulo . . . . . . .
seguinte, explica:
Virgília
“Há coisas que melhor se dizem calando; tal é a matéria do . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
capítulo anterior”. . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . ? . . . . . . . . . .
O autor também questiona a forma tradicional de expressão, . . . . ..
acreditando que falta a ela a capacidade plena de levar ao leitor os . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
sentimentos do personagem. É essa preocupação que faz Machado . . . . . .
de Assis subverter a forma para adaptá-la ao conteúdo que deseja
transmitir, como neste trecho do Capítulo 55 – ―O velho diálogo de Brás Cubas
Adão e Eva‖ –, em que descreve o auge da paixão entre Brás Cubas . . . . . . . . . . . . . . . . . .
e Virgília:
Virgília
. . . . . . .

Brás Cubas
Capítulo LV - O Velho Diálogo de Adão e Eva . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . .
Brás Cubas . . . . . . . . . . . ! . . . . . .
. . . . . ? . . ! . . . . . . . . . . . . . . .
. . . . . . . . . . . . . . . . . !
Virgília
Virgília
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. . . . . . . . . . . . . . . . . ? leitura proposto pelos romances românticos, que mobilizam a
emoção e a imaginação.
Brás Cubas É o que acontece, por exemplo, na parte inicial do romance,
. . . . . . . ! quando Brás Cubas deixa em suspenso por vários capítulos a
explicação para sua morte, que prometera desde o início, para
Virgília passear descomprometidamente por assuntos tão díspares quanto as
. . . . . . . ! pirâmides do Egito e a sua árvore genealógica. Quando volta a falar
da causa mortis, é para comentar, com ironia "...acabemos de uma
vez com o nosso emplasto”. Como se já tivesse explicado antes do
que se tratava!
A ironia é um dos traços mais marcantes da obra de Machado de
Assis e aparece ainda mais acentuada nos chamados romances da
maturidade. Pode ser entendida como mais um recurso para VIDA E OBRA
combater as verdades absolutas, das quais desacreditava por O GÊNIO QUE VEIO DO MORRO
princípio. A construção irônica prevê sempre outros sentidos para o
que é dito. Nascido no Morro do Livramento, no Rio de Janeiro, filho de
Machado de Assis utiliza-se da ironia como um recurso para fazer mulato em uma sociedade ainda escravocrata, paupérrimo, sofrendo
o leitor desconfiar das declarações, pensamentos e conclusões do de gagueira e epilepsia, nada indicaria que Joaquim Maria Machado
narrador Brás Cubas. de Assis teria, ao morrer em 1908, um enterro de estadista, seguido
Ao comentar, no primeiro capítulo, sobre o amigo que lhe por milhares de admiradores pelas ruas da cidade em que nasceu,
presenteia com um empolado discurso fúnebre, o narrador agradece viveu e morreu. Autodidata, aos 15 começa a trabalhar em
as palavras ditas em tom de comoção exagerada com uma frase tipografias, onde conhece escritores importantes, como Manuel
certeira: Antônio de Almeida. Em 1855 inicia sua carreira literária com a
publicação de um poema na revista Marmota Fluminense.
“Bom e fiel amigo! Não, não me arrependo das vinte apólices que Consegue, logo depois, um emprego na Secretaria da Fazenda.
lhe deixei". Trabalha a vida toda na burocracia, na qual vai galgando posições
até ser Ministro substituto. Mas a carreira burocrática é apenas uma
A digressão é outro elemento importante da linguagem machadiana. forma de ganhar o sustento, ainda que humilde, que o possibilita
Consiste na interrupção do fluxo narrativo, que envereda por escrever. Contribui com diversos jornais e revistas e, com a
assuntos desvinculados do tema inicial, mas mantendo com ele publicação de seus livros de poesia, contos e romances, só vai
alguma analogia criada pela mente de quem conta. Essa analogia, ganhando em notoriedade e respeito. Em 1869, casa-se, enfrentando
com algum esforço, pode ser percebida pelo leitor, desde que ele se grave preconceito racial da família, com a portuguesa Carolina
mantenha atento. Augusta Xavier de Novais. Em 1876, antes mesmo de publicar a
O leitor de Machado é constantemente solicitado a interagir parcela de sua obra mais significativa, já é considerado, na
criticamente com a obra, distanciando-se ainda mais do modelo de companhia de José de Alencar, um dos maiores escritores
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brasileiros. Em 1881 inicia a publicação dos seus romances realistas. O crítico
Em 1896 é um dos principais responsáveis pela fundação da
Academia Brasileira de Letras, do qual é eleito presidente vitalício. Também para os jornais, Machado de Assis escreveu durante toda
Em 1904 morre Carolina. Quatro anos depois, Machado de Assis, a vida textos críticos. Sua produção infindável envolve ensaios
consagrado como o maior escritor brasileiro, é enterrado com pompa teóricos, como O passado, o presente e o futuro da nossa literatura
no Rio de Janeiro. O mulato paupérrimo do Morro do Livramento (1858), O ideal do crítico (1865) e Notícia da atual literatura
tornara-se um dos homens mais respeitados do país. brasileira - instinto de nacionalidade (1873), diversas resenhas
críticas importantes, como aquela ao livro O Primo Basílio, de Eça
O poeta de Queirós (1878) e inúmeras críticas de teatro.

Machado de Assis iniciou sua carreira literária como poeta. Seu O contista
livro de estréia foi Crisálidas (1864), que lhe conferiu imediata
notoriedade. Embora sua poesia esteja muito aquém da prosa que o Muitos das centenas de contos que Machado de Assis escreveu ao
imortalizou, nunca deixou de escrever poemas. Em 1870 lança longo da vida se perderam, com o desaparecimento dos números dos
Falenas, em 1875, Americanas e, em 1901, as suas Poesias jornais em que foram publicados. Outros estão apenas agora sendo
Completas, que ainda não incluem um dos seus mais famosos republicados em livro. Sua versatilidade como contista é imensa.
poemas, o belo soneto A Carolina, escrito após a morte da esposa, Escreveu tanto para os jornais mais sentimentalóides quanto para
em 1904. publicações seriíssimas. A qualidade dos contos varia de acordo
com a publicação e o público leitor a que se destinavam. Entre as
O cronista coletâneas de contos que publicou, destacam-se Papéis Avulsos
(1882), com o grande conto, ou novela, O Alienista, Teoria do
Seguindo a linha dos textos de Ao Correr da Pena, de José de Medalhão e O Espelho, e Várias Histórias (1896) em que se
Alencar, Machado de Assis contribuiu durante toda a sua carreira encontram, entre outras obras-primas da concisão e do impacto
com textos breves para jornais, em que comenta os mais variados narrativo, A Causa Secreta, A Cartomante e Um Homem Célebre.
assuntos da vida do Rio de Janeiro e do país. Esses textos leves, de
temática cotidiana, podem ser considerados os precursores da A fase romântica
crônica moderna, em que se haveriam de destacar, no século
seguinte, escritores como Rubem Braga, Fernando Sabino e Carlos Entre 1872 e 1878, Machado de Assis começa a publicar romances.
Drummond de Andrade. A produção do Machado cronista se inicia Ainda muito influenciado pelo amigo e mestre José de Alencar,
já em 1859 e se estende até 1904, com raras interrupções. Sua publica, com regularidade britânica, um romance a cada dois anos.
produção mais madura foi publicada na colunas do jornal Gazeta de Em Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e
Notícias, em que contribui de 1881 a 1904: Balas de Estalo (1883- Iaiá Garcia (1878), temos um Machado ainda romântico, mas
1885), Bons Dias! (1888-1889) e principalmente em A Semana antecipando alguns temas e procedimentos de suas obras-primas
(1892-1897).

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realistas e, principalmente, conquistando um público leitor que já Bentinho?), Machado de Assis apresenta o primeiro narrador não
receberia sua revolução realista com boa vontade. confiável da literatura brasileira.

As obras-primas realistas Os últimos romances


A mais importante fase da carreira de Machado de Assis concentra- Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908), têm o mesmo
se na trilogia de romances realistas publicados no final do século. O narrador personagem, o conselheiro Aires, que pouco age e passa a
primeiro deles foi Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881). maior parte da narrativa contemplando placidamente as aventuras
Depois, seguiram-se: amorosas e existenciais dos jovens ao seu redor. A descrição dos
dias de perplexidade da população carioca com a proclamação da
Quincas Borba (1891) narra, na terceira pessoa, as desventuras República, em Esaú e Jacó, é um dos pontos altos da narrativa
do ingênuo Rubião, herdeiro da fortuna e do cachorro da machadiana.
enlouquecida personagem Quincas Borba, que já aparecia, e morria,
no livro anterior. Através dessa personagem, cômica no seu A Academia Brasileira de Letras
despreparo para as armadilhas da corte, e trágica no seu destino,
Machado ao mesmo tempo ironiza e demonstra as teorias Fundada em 1896, foi um dos mais acalentados sonhos de
darwinistas tão caras aos naturalistas. O ensandecido "humanitismo" Machado de Assis no final da vida. Eleito seu primeiro presidente,
de Quincas Borba, herdeiro direto da "luta pela vida" de Darwin, é Machado via na fundação da Academia, nos moldes da Academia
sintetizado na frase "Ao vencedor, as batatas!", e acaba por ser Francesa, uma possibilidade de dignificar o trabalho do escritor,
comprovado tragicamente pela ação espoliadora do casal Sofia / acabando com a imagem de malandro boêmio que viera do
Palha sobre o provinciano protagonista. romantismo, e afirmando-o como um intelectual sério e
Dom Casmurro (1899) apresenta algumas das personagens mais conseqüente.
complexas da literatura universal. Narrado pelo velho Bento
Santiago, apelidado Dom Casmurro, apresenta a história de seu *Roberto Alves foi professor de Literatura da Escola Logos e no
relacionamento - namoro, casamento e afastamento - com Capitu,
Colégio Waldorf Micael, ambos em São Paulo (SP). Atualmente é professor
sua vizinha de infância. O narrador se esforça por demonstrar o
da Casa das Rosas - Espaço Haroldo de Campos de Poesia e Literatura,
caráter ambíguo e dissimulado tanto de sua esposa quanto de seu
também em São Paulo.
melhor amigo, o hábil Escobar, para assim justificar sua convicção
de ter sido por eles traído. Como prova da traição, apresenta a
semelhança que enxerga em seu filho, Ezequiel, com o amigo, que
supõe pai da criança. Mas o esforço é vão. Se consegue construir a Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), Machado de Assis
imagem de personagens extremamente complexos, nada nos
consegue provar, pois o seu próprio caráter é tão fraco, tão inseguro Características:
e titubiante, que o leitor passa a desconfiar de seus julgamentos.
 Foco Narrativo: 1ª- pessoa onisciente ("defunto autor")
Assim, além de construir a eterna dúvida (Capitu traiu ou não
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 Espaço: Rio de Janeiro
 Tempo: entre 1805 e 1869 (nascimento e morte do protagonista)
 Personagens esféricas: Brás Cubas / Virgília / Lobo Neves / Marcela /
Eugênia / Nhã Loló / Dona Eusébia / Dona Plácida / Sabina / Cotrim /
Quincas Borba (Humanitismo) / Prudêncio (escravidão)
 Personagem alegórica: Pandora (= Natureza)

Temática:

 a natureza humana: egoísmo, hipocrisia e vaidade


 a sociedade burguesa: o amor / a riqueza / o poder
 a literatura / a filosofia / a ciência / a loucura
 a morte

Realismo machadiano:

 elegância / equilíbrio / clareza


 simplicidade / concisão / coloquialismo
 microrrealismo psicológico
 digressão / intertextualidade / paródia
 metalinguagem
 humor e ironia: carnavalização
 pessimismo / amoralismo
 tradição luciânica: sátira menipéia

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