ANÁLISE DAS (RE)CATEGORIZAÇÕES NA CRÔNICA DE LUIS FERNANDO VERÍSSIMO COMO ESTRATÉGIA DE CONSTRUÇÃO DO TEXTO PARÓDICO Karolini Araújo Bezerra Mayara Stephany Sousa Alcindo Paloma Marinheiro Coelho
Orientadora: Professora Dra. Maria Helenice Araújo Costa
Fortaleza – Ceará 2019 INTRODUÇÃO
Quando nos deparamos com um texto, é
necessário que façamos uso de algumas estratégias para a construção de seu sentido. Os processos de referenciação e o conhecimento sobre intertextualidade são essenciais, principalmente quando o texto em questão é uma paródia de um texto mundialmente conhecido, como o texto bíblico. OBJETIVOS
Objetivamos com este artigo analisar os
processos referenciais no texto paródico “A primeira pessoa” de Luis Fernando Veríssimo, investigando como as estratégias de (re)categorização e cadeias referenciais são utilizados para construir o texto como paródia. AUTORES
Fundamentando-se nos estudos da Linguística Textual,
serviram como aporte teórico os trabalhos de Bentes (2006) e Marcuschi (2008), a fim de situar o leitor nas discussões sobre a teoria de texto atual; também serviram de orientação os estudos de Fiorin (2017), baseado na obra bakhtiniana, e Hutcheon (1985) para o conceito de paródia e utilizamos ainda os trabalhos de Moraes e Moraes (2015) e Koch e Cortez (2015), que tratam do fenômeno da referenciação METODOLOGIA
Como procedimento metodológico, adotamos
uma análise em duas etapas para cada perspectiva de observação: inicialmente, na primeira etapa, investigamos a presença do intertexto e o deslocamento feito pelo autor Veríssimo; na segunda etapa, analisamos as formas referenciais na construção do texto. ANÁLISE Propomos uma análise em duas perspectivas: uma mais interpretativa, dando enfoque maior na teoria da paródia e outra com uma visão voltada para a observação dos referentes. Ao fim do processo, esperamos identificar a presença do intertexto (o texto bíblico), averiguar o deslocamento feito por Veríssimo, e analisar as formas referenciais e de que maneira elas colaboram para a interpretação e composição do novo texto. Este tipo de análise está em consonância com as teorias atuais da Linguística Textual, que defendem uma concepção em que o material linguístico não é suficiente para dar conta de todo o sentido do texto, pois além desta, existem muitas outras camadas que precisam ser desvendadas pelo leitor, como explicitada na metáfora “ponta do iceberg”, de Koch (2003). A primeira pessoa - Luis Fernando Veríssimo No começo era eu. Só eu. Eu eu eu eu eu eu. Não existia nem a segunda pessoa do singular, porque eu não podia chamar Deus de "tu". Tinha que chamá-lo de "Senhor". Não existia "ele". Não existia "nós". Nem "vós". Nem "eles". Só existia eu. Eu, eu, eu, eu. Não que eu fosse um egocêntrico. É que não havia alternativa! Eu não podia pensar nos outros porque não havia outros. O mundo era uma gramática em branco. Só havia eu e todos os verbos eram na primeira pessoa. Eu abri os olhos. Eu olhei em volta. Eu vi que estava num Paraíso (do grego paradeisos, um jardim de prazeres, ou do persa paridaiza, o parque de um nobre, E Deus viu que eu me entediava, pois do que vale ser um nobre no seu parque se não existem os outros para nos invejar? E então Deus, que já tinha criado o tempo, criou o passatempo, e me encarregou de dar nome às coisas. Eu vi a uva, e a chamei de parmatursa. Eu vi a pedra e a chamei de cremílsica, e ao pavão chamei de gongromardélio, e ao rio chamei de... Mas Deus me mandou parar e disse que cuidaria daquilo, e me instruiu a procurar o que fazer enquanto terminava de criar o Universo, pois os anéis de Saturno ainda estavam lhe dando trabalho. E eu me rebelei e perguntei "Fazer o que?" e viu Deus que, além do Homem, tinha criado um problema. e frutas e peixes e pássaros de graça e dentes para comê-los, e mel de sobremesa, e que eu esperasse para ver que espetáculo, que show seria o Universo quando ficasse pronto. Tudo para mim. Só para mim. E não bastava? Não bastava. "Eu pedi para nascer, pedi?" disse eu. E Deus suspirou, criando o vento. E pensou: "Filho único é fogo".
Pois do que valem os prazeres do Paraíso sem
alguém para compartilhá-lo, e o espetáculo do Universo sem alguém com quem comentá-lo? O que eu queria? Queria outra pessoa. Era isso. Queria a segunda pessoa. Um irmão, alguém para chamar de "tu". Alguém com quem chamar o Senhor de "ele". Ou E Deus fez a minha vontade, e me pôs a dormir, e quando acordei tinha um irmão ao meu lado, tirado do meu lado. Igual a mim em todos os aspectos. Espera aí, em todos não. Deus, com a cabeça em Saturno, não prestara atenção no que fazia e errara a cópia. Colocara coisas que eu não tinha e esquecera coisas que eu tinha, como o pênis, que se dependesse de mim se chamaria Obozodão. Deus se ofereceu para recolher a cópia defeituosa e fazer uma certa, mas eu disse "Na-na-não, pode deixar". Pois tinha visto que era bom. Ou boa. E fui tomado de amor pelo outro. A segunda sensação humana.
Ela era o meu tu, eu era o tu dela. Juntos, inauguramos
E quando ela perguntou como era o meu nome, respondi "Mastortônio", mas Deus limpou a garganta, inventando o trovão, e disse que não era, não. Ficou Adão e Eva (eu Adão, ela Eva) aos olhos do Senhor e na História oficial, mas, em segredo, isto pouca gente sabe, nos chamávamos de Titinha e Totonho. E foi ela quem disse "Totonho, quero que tu me conheças mais a fundo". E eu: "No sentido bíblico?" E ela: "Existe outro?" E inauguramos outro verbo. E foi ela quem me ofereceu o fruto da árvore do Saber, a que Deus tinha me dito para nunca tocar mas colocado bem no meio do Paraíso, vai entender. Resisti, embora a fruta fosse rubicunda (uma das poucas palavras que consegui inventar, driblando a "Em compensação...", disse a Titinha. Em compensação, o quê? Só saberíamos se comêssemos a fruta. E fomos tomados de curiosidade. A terceira sensação humana. A fatal.
Quando soube da nossa transgressão, Deus deu um
murro na Terra, criando o terremoto, e nos expulsou do nosso jardim persa. E durante todos estes anos muitas pessoas têm me perguntado (pois depois disso a Terra se encheu de muitas pessoas) se valeu a pena trocar meus privilégios de primeira e única pessoa pelo prazer de conjugar com outra, e o meu tédio pelas sensações de envelhecimento e a morte, e a inocência eterna pelo saber fugaz. E sabe que eu não sei? ANÁLISE: DIÁLOGO ENTRE O TEXTO BÍBLICO E A CRÔNICA “A PRIMEIRA PESSOA”. O texto em análise trata-se de uma crônica de autoria de Luis Fernando Veríssimo intitulada “A primeira pessoa”. A partir dos conhecimentos apresentados no tópico de referencial teórico, percebe-se que a obra é uma paródia do texto bíblico, especificamente do livro Gênesis e em menor medida, do livro de João. Essa informação fica clara quando se passa a considerar alguns fatores na atividade de compreensão leitora, como o reconhecimento do intertexto, que só é possível ser identificado pelo conhecimento prévio do texto original, armazenado na memória; a recorrência de lexemas que fazem remissão ao universo semântico do texto da Criação e o estilo, que colabora para que o leitor faça a relação entre a paródia e o primeiro livro da Bíblia. A primeira pessoa
Luis Fernando Veríssimo
No começo era eu. Só eu. Eu eu eu eu eu eu.
Não existia nem a segunda pessoa do singular, porque eu não podia chamar Deus de "tu". Tinha que chamá-lo de "Senhor". Não existia "ele". Não existia "nós". Nem "vós". Nem "eles". Só existia eu. Eu, eu, eu, eu. Não que eu fosse um egocêntrico. É que A relação intertextual se estabelece de início na primeira frase da crônica: “No começo era eu”, referindo-se a dois evangelhos das Escrituras: em uma proporção maior ao primeiro livro da Bíblia, Gênesis, no qual é descrito os seis primeiros dias da criação, estando a criação dos seres viventes, em especial o homem, no sexto dia. A frase também dialoga com o seguinte trecho do Evangelho de João: “No princípio era o Verbo, e o verbo estava com Deus, e o verbo era Deus. Ele estava no princípio com Deus” (João 1:1-2). Na passagem mencionada, as Escrituras apresentam Jesus como sendo o Verbo de Deus, aquele responsável por reunir os doze apóstolos e espalhar a palavra do Senhor pelo mundo. Na crônica em questão, o sentido de apresentação e ANÁLISE: PERSPECTIVA DA REFERENCIAÇÃO Observando as (re)categorizações e encadeamentos referenciais relacionados aos personagens e a objetos no percurso enunciativo, podemos observar como se dão a progressão textual e o desenvolvimento dos objetos de discurso. Essa dinâmica discursiva só é possível quando os interlocutores atuam de forma conjunta na produção de sentido do texto. Na crônica de Veríssimo, o sentido objetivado é o da paródia, que se fale da subversão de um texto-base para construção de outro paralelo. Partindo desses pressupostos, analisaremos a seguir as estratégias (re)categorização e o encadeamentos presentes na crônica A primeira pessoa. Pois do que valem os prazeres do Paraíso sem alguém para compartilhá-lo, e o espetáculo do Universo sem alguém com quem comentá-lo? O que eu queria? Queria outra pessoa. Era isso. Queria a segunda pessoa. Um irmão, alguém para chamar de "tu". Alguém com quem chamar o Senhor de "ele". Ou "Ele". E que quando Ele chamasse de vós, respondêssemos em uníssono "nós?". E quando se referisse a nós para os anjos, dissesse "eles". Criando outra pessoa, Deus estaria, para todos os efeitos gramaticais, criando cinco. E Deus fez a minha vontade, e me pôs a dormir, e quando acordei tinha um irmão ao meu lado, tirado do meu lado. Igual a mim em todos os aspectos. Espera aí, em todos não. Deus, com a cabeça em Saturno, não prestara atenção no que fazia e errara a cópia. Colocara coisas que eu não tinha e esquecera coisas que eu tinha, como o pênis, que se dependesse de mim se chamaria Obozodão. Deus se ofereceu para recolher a cópia defeituosa e fazer uma certa, mas eu disse "Na-na-não, pode deixar". Pois tinha visto que era bom. Ou boa. E fui tomado de amor pelo Ela era o meu tu, eu era o tu dela. Juntos, inauguramos vários verbos que estão em uso até hoje. E eu a chamei de Altimanara, mas Deus vetou e lhe deu outro nome. E quando ela perguntou como era o meu nome, respondi "Mastortônio", mas Deus limpou a garganta, inventando o trovão, e disse que não era, não. Ficou Adão e Eva (eu Adão, ela Eva) aos olhos do Senhor e na História oficial, mas, em segredo, isto pouca gente sabe, nos chamávamos de Titinha e Totonho. E foi ela quem disse "Totonho, quero que tu me conheças mais a Nesse trecho, destacamos o encadeamento, feito a partir (re)categorizações, que se relaciona a um outro personagem que comporá a narrativa. No decorrer do texto, sabemos se tratar da criação de Eva, a mulher de Adão. Inicialmente, essa personagem é introduzida pelos referentes “alguém”, “outra pessoa” e “segunda pessoa” (a expressão nominal “segunda pessoa” também é utilizada no começo do texto), sendo, em seguida, categorizada pela expressão indefinida “um irmão”, contextualizando sobre a perspectiva de Adão sobre esse ser que ainda não conhecia. A narrativa progride e a construção desse referente de forma que o referente é retomado por meio da expressão definida “a cópia” e é recategorizado por caracterização pela expressão “a cópia defeituosa”; em seguida, a perspectiva adâmica sobre o referente demonstra que o que ele chama de defeito, na verdade, “era bom. Ou boa”. Neste fragmento podemos observar uma elipse do referente (Ou [cópia] boa), adequação(bom/boa) e caracterização do mesmo. Podemos, também, perceber traços estilísticos que novamente evocam o texto-base como a frase “tinha visto que era bom”. No Gênesis, Deus contempla o que faz e vê que é bom, na crônica, Adão olha para No decorrer do texto, os dois personagens, criaturas de Deus, são retomados e recategorizados, primeiro pelos pronomes “Ela”, “tu” e “eu”, em seguida pelos nomes próprios “Altimanara”, “Mastortônio”, “Adão”, “Eva”, “Titinha” e “Totonho”. Essas recategorizações são feitas com o intuito de trazer os nomes originais do texto-base e retomar a conotação cômica por meios de outros referentes apresentados no contexto em que Adão tem mania de atribuir nomes incomuns às coisas e pessoas. Outra recategorização se dá com o referente “amor pelo outro”, que é redefinido pela CONCLUSÃO
A partir do estudo analisado, no que diz
respeito à importância da intertextualidade no processo de leitura, concluímos que o texto estabelecia diálogos intertextuais de diferentes graus, os mais específicos exigiam um maior conhecimento sobre o texto-fonte para identificá-los. Também verificamos que os processos referenciais conferem dinamismo ao texto, num constante processo As histórias bíblicas fazem parte da memória social do povo brasileiro, seja pela leitura direta das Escrituras, seja pela tradição oral ou por outro meio de acesso. Esses conhecimentos armazenados na memória, decorrentes de inúmeras atividades interacionais, possibilitam a construção de novos sentidos. Isto ocorre porque eles são ativados e relacionados à informações veiculadas pelo texto, fazendo com que o leitor desempenhe um papel ativo na construção de significado. Em especial, no que diz respeito à importância da intertextualidade no processo de leitura, é necessário que o leitor tenha um mínimo de repertório de informações para estabelecer a ponte necessária entre o texto-fonte e o texto paródia. Percebemos, também, que ele oferecia informações gerais, de conhecimento popular, e outras que necessitavam de um leitor mais informado sobre as Escrituras, talvez de Concluímos, através de nossa análise, que é imprescindível a utilização de estratégias de (re)categorização na construção do texto paródico, pois sem essas estratégias, diversos aspectos essenciais para que a paródia alcance o seu propósito de subversão do texto, se tornam inviáveis. São em processos referenciais como as (re)categorizações encontradas na crônica de Veríssimo, que os interlocutores interagem e constroem de forma conjunta o sentido do texto por meio da intersubjetividade das negociações e de pistas oferecidas pela cotexto e contexto, que permitem que o texto tenha seus objetos de discurso modificados no percurso textual- discursivo, formando cadeias referenciais que se conectam e viabilizam a progressão do texto e o sucesso do propósito comunicativo na tessitura do texto; a saber, a subversão do texto bíblico, que como vimos, não REFERÊNCIAS
BARROS, Diana L. P.; FIORIN, José L. (orgs.) Dialogismo,
Polifonia, Intertextualidade: Em torno de Bakhtin. São Paulo, SP: Edusp, 1994, cap. 6. BENTES, Anna Christina. Linguística Textual. In: MUSSALIM, Fernanda; _______. Introdução à linguística: domínios e fronteiras. 2. ed. São Paulo: Cortez, 2006. BÍBLIA sagrada: edição revista e corrigida. Tradução de João Ferreira de Almeida. 7. ed. São Paulo: King’s Cross, 2008. FERNANDES, Cleudemar. A. Análise do discurso: reflexões introdutórias. 2. ed. São Paulo: Claraluz, 2007. FIORIN, José L. Introdução ao pensamento de Bakhtin. 2. ed., 1ª reimpressão. - São Paulo: Contexto, 2017. HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX. Trad. de Tereza Louro Pérez. KOCH, Ingedore G. Villaça. Desvendando os segredos do texto. 2° Ed. – São Paulo: Cortez, 2003. ______, Ingedore G. Villaça; CORTEZ, Suzana Leite. A construção heterodialógica dos objetos de discurso por formas nominais referenciais. ReVEL, vol. 13, n. 25, 2015. Disponível em: <http://www.revel.inf.br/files/d2ee1e769b32a398e9b14e2e225 b073f.pdf> Acesso em: 05 maio 2019 MARCUSCHI, Luiz Antônio. Processos de produção textual. In: _______. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. 4. ed. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. MORAES, Carla Roselma Athayde; MORAES, Isabela Dias. O processo de (re)categorização pelo uso de expressões nominais em crônicas narrativas. ReVEL, vol. 13, n. 25, 2015. Disponível em:<http://www.revel.inf.br/files/c1d87b2be4990f5a53771aa2 OBRIGADA!