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Moro no Brasil desde 1997. Cheguei no início do mês de maio desse ano,
apenas alguns dias depois da morte de Paulo Freire. Aprendi muitas coisas nestes
anos no Brasil, do Brasil, pelo Brasil, graças ao Brasil... uma delas é que, para
começar a pensar em filosofia, em educação, ou em infância, um bom caminho
costuma ser olhar para, ou lembrar de, letras de música popular brasileira. Refiro‐
me não apenas à busca de uma inspiração para o início temporal de um
pensamento mas para aqueles momentos em que o pensamento parece travar‐se
ou mover‐se em círculos e precisa de uma força que o tire do lugar e o faça
arrancar novamente. Como se Platão tivesse razão lá no início do Fédon (61a)
quando diz que a filosofia é a mais grande música (ou a música a mais grande
filosofia), pois a frase ὡς φιλοσοφίας μὲν οὔσης μεγίστης μουσικῆς (hos philosophías
mèn megístes mousikês) pode ser lida nos dois sentidos).
1
Publicado in: J. Larrosa (org.) Elogio da escola. Belo Horizonte: Autêntica, 2017, p. 65‐86.
anos noventa. Pareceu‐me uma visão renovadora, inspiradora naquele momento
em que nem H. Arendt nem J. Rancière eram tão insistentemente evocados, como
depois seriam, no campo educacional brasileiro. Naquele período estava
organizando, junto a um grupo de colegas com os que formávamos o projeto
“Filosofia na Escola” na Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB),
um Congresso Internacional de Filosofia com Crianças, em Brasília, para julho de
1999. Participariam do evento pessoas do mundo inteiro, muitas trabalhando com
Matthew Lipman, como Ann M. Sharp, e me pareceu que poderia ser interessante
expor aquelas pessoas às ideias de Masschelein, vindas estas de uma tradição
bastante diferente daquela do pragmatismo estadunidense que está na base de
Filosofia para Crianças. Porém, primeiro veio um pequeno desencontro. Na época
ainda não eram tão frequentes os e‐mails e então escrevi uma carta convite para
Masschelein ao endereço postal que estava no final do artigo publicado em
Educação & Sociedade e pouco tempo depois recebi um retorno muito cordial dele
agradecendo o convite mas justificando sua impossibilidade de participar porque
estaria viajando a Vietnam, a trabalho (de fato nesse momento sequer tinha
entendido o lugar aonde viajaria pelo caráter críptico da letra manuscrita do
Masschelein; só recentemente pude entender esse lugar ao ler novamente aquela
carta com a sua ajuda). Algo travou‐se em mim e não voltei a contatá‐lo até que
Jorge Larrosa, quem frequentemente me falava de Jan e de seus trabalhos com ele,
me convenceu de organizarmos, junto com Maximiliano López e Win Cuyvers, um
seminário conjunto.
Também é preciso esclarecer, por ser este um texto inspirado na vida como
arte do encontro, que existe uma espécie de autoria compartilhada nos textos de
Masschelein, que também se percebe em sua forma de habitar a universidade.
Escutemos, ou leiamos ao próprio Masschelein em numa nota de esclarecimento
com tom de confissão escrita a propósito da publicação, entre nós, de A pedagogia,
a democracia, a escola. Ali, o autor belga afirma como esses escritos foram feitos,
todos eles, “a quatro mãos”:
De modo que cada vez que aqui escrevamos “Masschelein” pode ler‐se
também, ou melhor, deveria ler‐se “Masschelein e Simons”. Essa forma de habitar a
universidade está também relacionada a uma compreensão e uma prática da
pesquisa educacional, que envolve, para os autores belgas, três marcas principais:
a) O pesquisador envolve‐se na pesquisa de uma forma que ele próprio se
transforma. Nesse sentido, a pesquisa em educação se caracteriza por um trabalho
do pesquisador sobre si: assim, uma pesquisa é educacional porque coloca em
questão, primeiramente, o próprio pesquisador; b) A educação é, de alguma forma,
o tema ou o problema que está sendo pesquisado. Nesse segundo sentido, uma
pesquisa é educacional porque trata de educação, porque permite elucidar ou
problematizar uma questão educacional, porque confere sentido a uma prática
educacional; c) Finalmente, a pesquisa educacional trata de tornar algo público, de
tornar‐se atento ao mundo em sua verdade e disponibilizar a pesquisa para
qualquer um. Nesse terceiro sentido, uma pesquisa educacional disponibiliza uma
percepção sobre o mundo que não era perceptível. Eis o seu valor ou sentido
educacional (MASSCHELEIN; SIMONS, 2014).
2J. Masschelein. Addressing societal challenges: making university today. Exercises in poor
pedagogy. Course notes 20.. – 20.. Draft version. Nov.24, 2016. Trad. Nossa.
mundo” (MASSCHELEIN, 2013, p. 259), aquela que afasta os estudantes das
perspectivas críticas, a que busca obter uma “opinião formada sobre tudo”, para
submerge‐los em práticas de atenção para tornar o mundo verdadeiro ou real,
para que o mundo fale a eles de outra forma, para que cada um possa “estar
presente no presente” (MASSCHELEIN, 2013, p. 262), através de exercícios de
caminhar e percorrer uma cidade mediante linhas traçadas sempre
arbitrariamente pelo pedagogo, cuja função principal é justamente traçar essas
linhas e manter atentos, nelas, os caminhantes. O pedagogo, professor
universitário, vive uma espécie de experiência de amizade com os estudantes, no
sentido de alguém que compartilha, com eles, uma preocupação com o mundo e
que compartilha, com eles, uma exposição ao que o caminho pode por ventura
trazer de mundo.
Talvez por que minha vida acadêmica esteve sempre atravessada de uma
forma ou outra pela filosofia, desde que o conheci me pareceu ver em Masschelein
uma recriação de uma certa maneira de atualizar uma vida filosófica. Ele se
aproximaria daquela ascese filosófica que Michel Foucault. pareceu buscar
obstinadamente entre os antigos gregos nos seus últimos cursos. Neles, Foucault
mostra que com Sócrates a filosofia não nasce apenas como doutrina, teoria ou
sistema, mas também como um cuidado com a própria vida, como um fazer da
própria vida um problema crucial para a pensamento: por quê se vive da maneira
em que se vive e não de outra? Nessa leitura de Foucault, o que de fato Sócrates
inaugura é a vida como problema para a filosofia e também a filosofia como
educação, como educação de si mesmo e dos outros no seu caminhar pela cidade
interrogando os seus outros habitantes.
Certamente, esse Sócrates é uma figura mítica, excepcional. Ele parece estar
afirmando ao mesmo tempo uma experiência filosófica e educacional e, de alguma
forma, a inseparabilidade entre uma e outra. Desde que conheci o modo de
Masschelein habitar a vida universitária pareceu‐me que ele encarna, a sua
maneira, essa figura do educador‐filósofo. Há também algumas diferenças, claro. A
primeira diz respeito ao que pareceria ser uma grande “vantagem” dessa figura
mítica socrática: ele não tem que responder a nenhuma instituição, e é por isso a
expressão de uma vida educacional e filosófica livre das ataduras e constrições
institucionais. Em outras palavras, Sócrates faz escola sem escola, nas ruas, ao ar
livre, à sombra de uma árvore e é ali onde justamente se afasta Masschelein para
quem a escola exige essa separação, essa porta que se fecha e simbolicamente
divide o escolar do social. Um outro Sócrates do qual Masschelein explicitamente
quer se separar tem a ver como esse “você tem que mudar a sua vida”, que aparece
para o pedagogo belga como um mandato ético que ocultaria ou dissimularia a
experiência educacional, que não teria a estrutura de um comando moral imediato,
mas que se refere ao des‐fechamento do mundo e à des‐coberta de uma (im)‐
potencialidade (KOHAN; MASSCHELEIN, 2014). Em outras palavras, onde o
filósofo diz “você deve mudar a sua vida”, o educador diz “você não é in‐capaz”,
“você pode colocar atenção no mundo”. O pedagogo seria quem leva o aluno até a
escola, o local onde o mundo se des‐fecha e a potência se des‐cobre. Masschelein
duvida que esses elementos estejam presentes na prática de Sócrates e atenta, ao
contrário, para a escola de Isócrates como figura de referência no mundo grego
antigo.
“Já que este ensino tem por objeto, como tentei sugerir, o discurso preso
à fatalidade de seu poder, o método não pode realmente ter por objeto
senão os meios próprios para baldar; desprender, ou pelo menos
aligeirar esse poder. E eu me persuado cada vez mais, quer ao escrever,
quer ao ensinar, que a operação fundamental desse método de
desprendimento é, ao escrever, a fragmentação, e ao expor, a digressão
ou, para dizê‐lo por uma palavra preciosamente ambígua: a excursão.”
(BARTHES, 1996, p. 41‐2)
As idas e vindas de uma criança que brinca em torno da mãe. Que traz ora
uma pedrinha, ora um fiozinho de lã. Mas o que importa não é o que a criança leva
ou o traz, mas o “dom cheio de zelo” com que ela faz o que faz. Barthes dá razão a
M. Serres: “A viagem das crianças; eis o sentido desnudo da palavra grega
pedagogia.” (1991, p. 27). Olha o que encontramos no final, Vinicius. A pedagogia é
uma viagem infantil. A vida é uma excursão. A vida pedagógica que nos oferece Jan
Masschelein é uma excursão infantil.
REFERÊNCIAS
ARENDT, Hannah. The Crisis in Education (1958). In: ARENDT, H. Between Past
and Future: Eight Exercises in Political Thought. New York: Penguin, 1977.
_______. O mundo mais uma vez. Andando sobre linhas. In: KOHAN, Walter;
MARTINS, Fabiana; VARGAS, Maria Jacintha (orgs). Encontrar escola: o ato
educativo e a experiência da pesquisa em educação. Rio de Janeiro: Lamparina,
2013, p. 259‐264.
_______. Filosofia como (auto)educação: para fazer a voz do pedagogo ser ouvida. In:
MASSCHELEIN, Jan; SIMONS, Maarten. A democracia, a pedagogia, a escola. Belo
Horizonte: Autêntica, 2014, p. 7‐24.