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Os Gêneros no Cinema:
o épico, o dramático e o lírico
João Pessoa
2008
João Pessoa
2008
1Todas as informações contidas nessa breve história dos gêneros foram adaptadas da enciclopédia “The
New Princeton Encyclopedia of Poetry and Poetics” (PREMINGER, A. e BROGAN, T. V. F., 1993),
principalmente dos verbetes: genre; poetry; plot; verse and prose.
Os estudos sobre gênero existem há muitos anos. Talvez a referência mais antiga
seja de Platão, que pensou em dois modos de reprodução de um objeto ou pessoa:
retratando por palavras; ou mimetizando, imitando diretamente. Daí surgem os dois
primeiros gêneros, a poesia dramática (mimética) e a poesia épica, ou narrativa
(descrição das ações humanas). A precariedade dessa divisão dual fez surgir outro
gênero, o misto (narrativa e diálogos), e outros foram surgindo de acordo com vários
métodos de divisão, como métrica ou uso de música. Aristóteles aproveitou a divisão
platônica para fazer a sua. Primeiramente ele divide as obras poéticas de acordo com o
tipo de imitação: segundo os meios (sons, imagens, palavras); segundo o objeto imitado
(homens superiores a nós, homens inferiores a nós, homens iguais a nós); segundo o
modo (narrativa - um narrador assume a personalidade de outros; drama - as
personagens agem diretamente; mista - ora o narrador assume a personalidade de outros,
ora as personagens agem diretamente, através de diálogos). Durante os séculos
seguintes, a preocupação com a divisão em gêneros só aumentou. Vários estudos foram
realizados e muitos gêneros diferentes desses foram teorizados, e as divisões usaram
sempre métodos e características distintas, como o gênero lírico, que significou, durante
séculos, poesia cantada com a lira. No entanto, no romantismo, o lírico ganhou força, e
a divisão antes dupla tornou-se tripla, em Hegel: lírico, épico, dramático. Muitas foram
as tentativas de acabar com estudos de gêneros e com divisões como essa, porém, a
tríade proposta por Hegel continua valendo até hoje (pelo menos no que se refere a
gêneros literários), o que nos deixa esses três gêneros para estudar e examinar: o lírico,
o épico (narrativa), e o dramático.
Os elementos básicos do épico são fábula (ou história, tradução do termo plot3),
personagem (ou personagens), e ponto de vista (ou narração). Como a fábula e a
personagem são típicos também do drama, fica claro que o elemento diferenciador entre
o drama e o épico é a narração. O drama não possui ponto de vista, ou narração, e se
possui, sempre em pequena medida, não é a narração o ponto principal da obra. Para o
épico, a narração é essencial, enquanto para o drama, embora possa estar presente, é um
elemento não-essencial. Mesmo peças que, sendo lidas como obras literárias, possuam
indicações, ou instruções (rubricas), sobre modo da fala, sobre ambiente, etc., não
podem ser consideradas obras narrativas, pois essas instruções são apenas apêndices,
não compõem a própria estrutura da obra. Outro elemento do drama que pode ser
confundido com narração é o coro, tão comum nas tragédias gregas. O coro parece,
várias vezes, realmente ser uma narração, mas não é o coro que rege, que conduz, a
história, e sim os diálogos, a ação dramática. No drama, a estrutura não depende da
narração, mas dos conflitos decorrentes da ação dramática, que têm sua concretização
no diálogo. Na obra épica, no entanto, a narração rege a estrutura. O modo como a
história é contada é decorrente dessa narração, é subjugado a ela. A narração, essa voz
fora da ação que modela a história, é ausente na grande maioria dos dramas, e, quando
presente, repetimos, é elemento acessório. Vale lembrar que, embora os diálogos sejam
presentes na grande maioria das narrativas, ele não é elemento essencial, podendo
2As informações contidas nessa secção (bem como na próxima: Considerações sobre gêneros no cinema
narrativo) foram adaptadas principalmente do livro “Elements of Literature: essay, fiction, poetry, drama,
film” (Scholes, R e outros, 1991). As opiniões e argumentos, no entanto, são de nossa responsabilidade.
3A fábula é um dos elementos da narrativa, junto à trama. Enquanto trama é o modo específico de
organização dos acontecimentos em uma obra, a fábula é a história em si, como recontada em ordem
cronológica. O termo plot, usado por Scholes, no entanto, aproxima-se mais de “fábula” do que de
“trama”.
existir épicos sem diálogos. Claro que podemos imaginar um drama sem diálogos, uma
peça que, sem palavras, tenha ação dramática, personagens, trama, e tudo mais, porém a
interação deve ocorrer como se houvesse diálogo, a questão seria apenas substituir a
forma de concretização dos conflitos por gestos corporais e faciais, no lugar de diálogos
(as palavras, embora ausentes, ficam implícitas). Um último problema merece ser
tratado antes de passarmos aos outros gêneros: a descrição. A descrição é comum no
épico, e pode existir no lírico, no entanto, só existe no drama de forma tácita, não
explícita. Talvez se possa considerar que os cenários, as vestimentas, a própria
caracterização dos atores, tudo isso seja descrição. No entanto, não é descrição da forma
como vemos num épico, num romance, por exemplo, ou até mesmo em um filme. Mas
deixemos os filmes para depois.
São vários os elementos básicos do lírico, ou, como chamaremos aqui algumas
vezes, do poético: musicalidade, som, rima, ritmo, metro, significado, etc. Um poema
lírico possui, não há dúvidas, um “eu” que fala. Esse “eu”, chamado muitas vezes de
“eu-lírico”, assemelha-se a uma personagem, e sua fala se iguala a uma fala em um
drama, de certo modo. No entanto, enquanto no drama a fala, mesmo que seja um
solilóquio, está presa a uma trama, no poema lírico ela é tudo, é aquilo e somente
aquilo, é sua essência e sua base estrutural. Essa “fala” no poema pode ser narrativa ou
dramática, e também pode ser simplesmente lírica. O que há em comum, então, entre o
poema narrativo, o poema dramático e o poema lírico? Vejamos, rapidamente, como
Jakobson4 trata o fenômeno poético. Para ele, um texto se define pela função da
linguagem que nele predomina, pela função que ocupa o lugar no topo da hierarquia das
funções da linguagem. No caso do texto poético, essa função deve ser a poética. A
função poética é aquela que faz um texto se voltar para a mensagem em si. O que faz
com que um texto se volte para a mensagem são os dois modos básicos de arranjo da
linguagem: seleção e combinação. A seleção diz respeito à equivalência, à semelhança e
à dessemelhança, sinonímia e antonímia, e a combinação diz respeito à construção da
seqüência, à contigüidade. Dessa forma, o que a função poética faz é projetar sobre o
eixo da combinação, o princípio de equivalência do eixo da seleção (sintagma sobre
paradigma). O poético surge, para Jakobson, dessa projeção, que resulta, em última
instância, na polissemia, na multiplicidade significativa. É essa multiplicidade
significativa, proveniente da equivalência entre o eixo da seleção e o eixo da
combinação, a essência do poético. Claro que a musicalidade, metro, ritmo, rima, etc.,
têm grande participação no fenômeno poético, até mesmo porque, em sua maioria, é
Já dissemos que o cinema, por natureza, é de gênero misto. Por vezes ele é um
épico puramente narrativo (ou épico prosaico), um épico dramático, ou um épico lírico
(ou épico poético). Em todo filme narrativo há elementos que denunciam a presença do
narrador, como: angulação, distância do objeto, movimento de câmera, edição ou
montagem, música, efeitos sonoros, e outros. O ponto de vista, no cinema, então,
mostra-se presente através dos ângulos e da distância em relação ao objeto,
principalmente. Já a montagem é responsável por nos indicar a ordem de organização
dos eventos, e as relações de causa e efeito. Enquanto num romance, questões como
ponto de vista e organização dos eventos ficam um tanto num plano metafórico, no
cinema tudo é mostrado, determinado concretamente pela própria imagem. A narração,
sendo elemento essencial do épico, torna-se concreta através desses elementos,
principalmente, mas ela pode se mostrar mais concreta ainda, em outros casos, quando
um narrador se mostra presente no filme. Há três tipos, basicamente, de narrador
presente: uma voz em off narra o filme como se fosse um romance, através de palavras,
fazendo uma narração direta; uma das personagens é possuidora dessa voz da narração
em off, o que leva a uma narração aproximada da de primeira pessoa na literatura, às
vezes até falando diretamente para a câmera, como é tão comum em Bergman (A Hora
do Lobo, Persona, Saraband); a câmera assume o ponto de vista da personagem,
narrando realmente em primeira pessoa, como se nós estivéssemos vendo o que a
personagem vê5. Como a câmera já é, por si só, um narrador (quando temos mudança de
ângulos, movimentação, mudança de distância dos objetos, etc.), muitas vezes um filme
tem, ao mesmo tempo, dois procedimentos narrativos, como por exemplo: uma voz em
off mais a câmera como narrador. O cinema narrativo, de que tratamos agora, então, é
sempre épico, mas, dependendo do elemento principal, dependendo do elemento que
ocupa o topo da hierarquia, ele pode ser épico prosaico, épico poético, ou épico
dramático. O filme que, assim como o épico na literatura, tem como ponto essencial e
principal a trama, os acontecimentos, e as relações entre esses acontecimentos, ou seja,
a narrativa em si, é um épico prosaico. O filme que dê prioridade, assim como o drama,
ao diálogo, à ação dramática, e às relações entre as personagens (a interação através do
diálogo), é um épico dramático. O filme que possua, assim como a poesia, como
elemento principal a multiplicidade significativa, que surge da superposição do eixo da
combinação sobre o eixo da seleção, é um épico poético. Esse princípio, no entanto, no
cinema, não utiliza o som como elemento de semelhanças, mas a imagem. Vejamos, por
exemplo, como isso ocorre em pelo menos uma cena. No filme 2001: uma odisséia no
espaço, de Stanley Kubrick, há um corte bastante famoso, em que um homem-macaco
arremessa para o alto um osso, na pré-história. Enquanto o osso gira no céu, um corte
leva a um objeto espacial, uma espécie de satélite, que orbita em torno da Terra, no
espaço. Os dois objetos aparecem na tela com o mesmo tamanho e praticamente o
mesmo formato. Essa semelhança visual entre os dois nos leva a perceber uma
comparação entre os objetos. O osso da pré-história, que é usado como tecnologia, é
algo análogo aquele aparato tecnológico no espaço para os homens do futuro. Os dois
objetos têm a mesma importância, cada um para a sua comunidade, para o seu tempo.
Assim, a contigüidade e a semelhança visual entre os dois objetos levam a um novo
entendimento da relação entre eles, a novas significações. Podemos perceber, ainda com
2001, como mesmo uma imagem sozinha pode gerar novos significados em um filme,
sob o mesmo mecanismo de projeção de um eixo sobre o outro. A nave que os
astronautas usam para chegar a Júpiter tem a aparência de um espermatozóide. Essa
semelhança visual entre a nave e um espermatozóide nos leva a um novo significado
para toda a viagem pelo cosmos. O astronauta penetra um canal de luzes que leva a um
quarto onde ele se divide e se torna, por fim, um feto. Há toda uma analogia a um
processo reprodutivo humano na cena final de 2001 que tem início com essa
5O uso da câmera subjetiva de forma esporádica em um filme, no entanto, não configura uma narração
subjetiva por si só, como deixa claro João Batista de Brito no texto “O ponto de vista no cinema”,
publicado na Revista Graphos (2007).
semelhança imagética entre a nave e um espermatozóide. Não podemos deixar de
entender uma imagem demorada, como aquela que mostra a nave por vários minutos,
como uma descrição do objeto, algo necessário para que o espectador pense sobre
aquelas formas e possa chegar a conclusões outras sobre seu significado. Esse tipo de
descrição, bastante aproximado da pintura, que precisa de uma observação demorada,
aproxima-se também do poético. Como a poesia usa palavras, é até mais fácil para um
poema determinar significados para uma imagem. A imagem, num filme épico prosaico,
não é tratada assim, é uma imagem comum e não determinadora de novos significados.
As naves de Guerra nas Estrelas, por exemplo, são apenas naves, não representam mais
nada. Claro que há, na literatura, uma espécie de prosa poética, cujo maior representante
talvez seja o fluxo-da-consciência. Essa prosa que adentra o mundo interior da
personagem, e examina seus pensamentos de uma forma aproximada da “verdade”, é
semelhante, não há dúvida, a um poema lírico. Um “eu” vem à superfície do texto e se
mostra quase por completo, o que se assemelha também ao solilóquio no drama. O
cinema também pode fazer algo do tipo, e poderíamos apontar vários exemplos disso.
Como exemplo, podemos recorrer a Blow-up, de Michelangelo Antonioni. A
personagem principal, em determinado momento, caminha até uma hélice de madeira
que comprara em uma cena anterior, ajoelha-se diante dela, pensa, e bate levemente
com os dedos em um dos cantos da hélice, de forma que ela passa a oscilar de um lado
para o outro, como uma gangorra. Nesse momento há uma introspecção da personagem,
ela entra em um mundo interno, só seu, mas que nos é mostrado através da imagem. Sua
vida se encontra em um momento como aquele, um momento de oscilação, ele procura
a realidade, mas começa a confundir ficção e realidade. A hélice demonstra essa
confusão, esse balanço entre realidade e ficção em que ele se encontra, a oscilação da
hélice funciona como um solilóquio mudo, um poema lírico em uma única imagem. O
cinema, como vimos, também oscila, entre um gênero e outro, os limites entre os
gêneros no cinema são tão tênues que apenas uma oscilação pode nos dar uma imagem
aproximada do que ocorre em um filme. Em um momento ele se mostra poético, em
outro prosaico, em outro dramático, e continua nessa oscilação. No entanto, é evidente
que é possível, na maioria dos filmes, determinar qual elemento é essencial para a obra.
Em filmes como O Fantasma da Liberdade (Le Fantôme de la Liberté, Luis Buñuel,
1974), A Hora do Lobo (Vargtimmen, Ingmar Bergman, 1968), Blow-up – depois
daquele beijo (Blow-up, Michelangelo Antonioni, 1966), 2001 – uma odisséia no
espaço (2001 – a space odyssey, Stanley Kubrick, 1968), é a construção de novos
sentidos através da superposição do paradigma sobre o sintagma, utilizando imagens;
em filmes como O Poderoso Chefão (The Godfather, Francis Ford Coppola, 1972),
Onde os Fracos Não Têm Vez (No Country For Old Men, Ethan Coen e Joel Coen,
2007), Amnésia (Memento, Christopher Nolan, 2000), Coração Valente (Braveheart,
Mel Gibson, 1995), é a trama, a história em si, e a relação de causa e efeito entre os
acontecimentos; em filmes como Perto Demais (Closer, Mike Nichols, 2004), Hamlet
(Hamlet, Kenneth Branagh, 1996), O Segredo de Brokeback Mountain (Brokeback
Mountain, Ang Lee, 2005), Gênio Indomável (Good Will Hunting, Gus Van Sant, 1997),
é a ação dramática, concretizada através da interação entre as personagens, a partir do
diálogo. Citamos filmes que são reconhecidamente bons, tanto pela crítica quanto pelo
público (mesmo que seja um público um tanto especializado), de forma que se
compreenda que não há hierarquia em relação à qualidade de um ou outro gênero.
Devemos ressaltar, a título de conclusão, que o cinema pode não ser narrativo,
fugindo, assim, do gênero épico. No entanto, mesmo ele sendo narrativo, sendo
primariamente épico, ele pode possuir um direcionamento para outros gêneros, bem
como para o próprio épico, de forma a ser um cinema prosaico, um cinema poético, ou
um cinema dramático.
Bibliografia
LUNA, S. Arqueologia da ação trágica: o legado grego. João Pessoa: Idéia, 2005.
SCHOLES, R. e outros. Elements of Literature: essay, fiction, poetry, drama, film. 4ed.
New York/Oxford: Oxford University Press, 1991.
SZONDI, P. Teoria do drama moderno [1880-1950]. São Paulo: Cosac & Naify, 2001.