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Projeto

PERGUNTE
E
RESPONDEREMOS
ON-LIME

Apostolado Veritatis Spiendor


com autorizagáo de
Dom Estéváo Tavares Bettencourt, osb
(in memoriam)
APRESEISTTAQÁO
DA EDIpÁO ON-LINE
Diz Sao Pedro que devemos
estar preparados para dar a razáo da
nossa esperanca a todo aquele que no-la
pedir (1 Pedro 3,15).

Esta necessidade de darmos


conta da nossa esperanga e da nossa fé
hoje é mais premente do que outrora,
' visto que somos bombardeados por
numerosas correntes filosóficas e
religiosas contrarias á fé católica. Somos
assim incitados a procurar consolidar
nossa crenga católica mediante um
aprofundamento do nosso estudo.

Eis o que neste site Pergunte e


Responderemos propóe aos seus leitores:
aborda questóes da atualidade
controvertidas, elucidando-as do ponto de
_ vista cristáo a fim de que as dúvidas se
. dissipem e a vivencia católica se fortalega
" no Brasil e no mundo. Queira Deus
abencoar este trabalho assim como a
equipe de Veritatis Splendor que se
encarrega do respectivo site.

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2003.

Pe. Esteváo Bettencourt, OSB

NOTA DO APOSTOLADO VERITATIS SPLENDOR

Celebramos convenio com d. Esteváo Bettencourt e


passamos a disponibilizar nesta área, o excelente e sempre atual
conteúdo da revista teológico - filosófica "Pergunte e
Responderemos", que conta com mais de 40 anos de publicacáo.
A d. Esteváo Bettencourt agradecemos a confiaga
depositada em nosso trabalho, bem como pela generosidade e
zelo pastoral assim demonstrados.
Indiice

Pág.

"MEU DEUS, AFASTA DE MIM A TENTAgAO DA SANTIDADE!" .... 237

COMO REZAR NUM MUNDO SECULARIZADO?

Quando tudo parece dissipar 239

"PARAÍSO TERRESTRE: SAUDADE OU ESPERANCA?" 246

HOMEM: "CORPO E ALMA" OU "CORPO-ALMA"?

RESSURREICAO DOS CORPOS COMO SERA?

Filosofía grega antiga e pensamento moderno em aparente confuto .. 247

NUDEZ NA ERA TECNOLÓGICA?

A propósito de um artigo recente 259

"CÁVALO DE TRÓIA NA CIDADE DE DEUS": UM DESAFIO

Um llvro novo 270

TOLERANCIA TRAIDORA?

O "Ndvo Regulamento para o exame das doutrlnas" na Igreja 278

COM APROVACAO ECLESIÁSTICA


"MEU DEUS, AFASTA
DE MIM A TENTAgÁO
DA SANTIDADE!"

Existem certas passagens na literatura mundial que reve-


lam de maneira estupenda a alma humana, com tudo o que
ela tem de vibrátil e, por vézes, de paradoxal.

O escritor francés Jacques Riviére (1886-1925) voltou a


fé católica em 1913 sob a influencia do poeta Paúl Claudel.
Deixownos um volume de notas íntimas intitulado «A la trace
de Dieu» (Ñas pegadas de Deus), em que se expandía nos se-
seguintes termos:

"Lendo Santa Teresa — Médo do abismo. Médo désse


terrível encadeamento de exigencias em que a criatura é
envolvida, desde que diga SIM a Deus.

Recelo que a paciencia da qual eu possa ter dado provas


ñas aflicdes que Deus me envíou até aqui, se torne ocasiao
de que o Senhor me submeta a novos e mais terríveis males.
Receio caír nessa miseria continua e extrema em que ale
mergulha e conserva os que se dio a Ele.

Nao fui feito para tanto. Tenho saúde vigorosa; estou


demasiadamente comprometido com a vida. Meu Deus, afasta
de mim a tentacao da santidade. Nao é esta a minha tarefa.
Contenta-te com urna vida pura e paciente, que eu me esfor-
carei vivamente por dar a ti... Nao te engañes. Eu nao sou
da laia que seria necessária. Sou casado e tenho filhos; sou
escritor. Nao me tentes com coisas impossíveis. Nao me
leves a sofrimentos penosos demais. Eu assim perderia tempo
— tempo que desejo empregar de outro modo no servico a Ti!"

Estranhas palavras! Mas quem nelas nao reconhece um


pouco de si mesmo?

Deus fascina... É a Beleza Infinita. Ele tenta á santidade.


— Mas também incute modo, porque invade a críat
quer cada vez maís para si.

— 237 —
Jacques Riviére exprime muito bem ésse paradoxo. Nos
seus dizeres parece predominar o receio de qus Deus o atraía e
desinstale (embora ele nao esteja ilegítimamente instalado).

Nao há dúvida, se quero usar de sinceridade para eomigo,


parece-me que me descubro ñas condicóes de Jacques Riviére:
é muito mais prudente resistir as loucuras da graca. e do Es
pirito do que dar entrada as arriscadas inspiragóes do Senhor.

Mas, ao verificar isto, creio que nao me devo surpnaender


nem desanimar. — Poderia eu encontrar outra coisa, outra
realidade, em mim mesmo? Nao tentar escapar, prestar ouvi-
do dócil k Palavra de Deus, isso seria precisamente «estar
convertido», estar voltado para o lado certo. Seria ter atingido
a meta antes mesmo de "haver iniciado a caminhada.

O que, afina!, Deus pede de suas criaturas, é que elas


aceitem a sua própria realidade; aceitem-se como elas sao.
Apresentem-se a Dsus na sua pobreza, com a sua recusa ou
resistencia instintiva, semiconsciente... Mas — e isto é ca
pital — olhem mais para Ele do que para si mesmas. Todos,
todos sem excecáo, sao chamados á plenitude, á santídade (o
que nao quer dizer vida exótica, alienada ou desencarnada,
mas, sim, grandeza dalma, coeréncia, tempera forte e heroica
ñas circunstancias cotidianas e comezfrihas da vida). Que a
criatura, portante, se deixe fascinar e cativar; ela nao foi
feita própriamente para o sofrimento, mas, sim, para o Délo
Amor. Deixe que o Amor se derrame dentro déla, despertando-
-a para tona resposta condigna e generosa. É o Amor de Deus
que convida para as suas «exigencias», mas é também o Amor
que ergue o coráceo do homem.

Mais: o cristáo sabe que o arranco inicial é que é o difícil.


Depois déle, o processo se torna cada vez mais fácil, pois tam
bém no plano espiritual se verifica a Iei de Newton: «A ma
teria atrai a materia na razio direta das massas e na razáo
inversa do quadrado das distancias». Sim; o Senhor atrai a
criatura na razáo inversa do quadrado das distancias. O que
quer dizer: quanto mais se aproxima de Deus após o primeiro
e duro arranco, tanto mais velozmente é a criatura atraída
por Ele.

Senhor, qué nos deste a conhecer éste teu designio, ajuda-


-nos a nao afastarmos de nos a tentacáo da santídade!

E. B.

— 238 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS»
Ano XII — N« 138 — Junho de 1971

como rezar num mundo secularizado?

Em sfntese: A resposta á pergunta ácima é dada por Mons. Antonio,


exarca do Patriarcado de Moscou, que se diriglu a Jovens cristSos (católicos
e nSo católicos) de diversas nacfies reunidos no Mostelro protestante de
Taizé.

O conferencista lembrou que o mundo de hoje, por mais materializante


e laicizado que seja, nao afasta necessáriamente o crlst&o da oracfio. Vida
e oracfio sSo Inseparávels urna da outra. Que o crlst&o Inicie o seu dia
elevando o espirito a Deus, e procure ver através das diversas situacOes
ddsse día os sinais e apelos de Deus: tanto o maravllhoso como o trágico
sSo aptos a fazer que o crist&o eleve a alma a Deus. Agradeca e suplique
ao Senhor segundo as circunstancias em que se vlr colocado. E no flm
do día, ao fazer seu balanco retrospectivo, o discípulo de Cristo encon
trará sobaja materia para louvar e glorificar o Criador como também para
se arrepender e pedir perdao.

Unlndo asslm oracSo e vida, o crlst&o encontrará no desempenho mes-


mo de suas alivldades o combustível que o tornará cada vez mals árdanle
no amor de Deus e dos homens.

Resposta: «Mundo secularizado» é expressáo suscetivel de


mais de urna interpretagáo.

— 239 —
4 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 138/1971

Pode significar o mundo que já nao ere na magia, nos


mitos e nas crendices, porque encontrou na ciencia e na técni
ca as respostas que outrora os homens primitivos padiam aos
deuses, semideuses, ritos mágicos, amuletos, talismás... Assim
entendido, o mundo secularizado nao é necsssáriamente um
mundo sem fé ou ateu; pode ser um mundo de auténtica fé
crista; esta, sem dúvida, se opóe a toda forma de idolatría,
politeísmo e supersticáo, para afirmar com pleno realce a uni-
cidade e soberanía de Deus. O cristáo deseja mesmo que a
ciencia ajude o homem a se libertar de toda deturpacáo re
ligiosa e de todo falso culto.

Acontece, porém, que a secularizacáo (ou seja, a liberta-


cáo do homem em relagáo aos baixos conceitos religiosos) nao
raro leva á total negacáo dos valores religiosos e do próprio
Deus. Empolgado pelas conquistas da ciencia e da técnica, o
homem pode fácilmente crer que estas Ihe resolveráo todos
os problemas; tende entáo a endeusá-las. Pode também con
fundir «deuses» com Deus, crendioas com fé, primitivismo re
ligioso com auténtico comportamento religioso; em conseqüén-
cia, rejeitando os erros religiosos, rejeita também as verdades
religiosas. O mundo secularizado entáo vem a ser um mundo
ateu.

Ora, inegávelmente vivemos num mundo em que os va


lores religiosos (falsos e auténticos) váo sendo postes em
xeque, por influencia de fatóres diversos. O ateísmo contem
poráneo é um fenómeno de importancia vultosa, que repercute
até mesmo no comportamento dos que aínda guandam fé; de-
saparecem insignias religiosas, os criterios para julgar tarefas,
profissóes e valores sao freqüentemente criterios mataríais ou
materialistas. A luta pela vida é cada vez mais absorvente e
materializante. Compreende-se entáo que muitos cristáos pro-
ponham a pergunta: Como orar no mundo de hoje, dito «se
cularizado»? Outrora o ritmo e o ambiente em que os fiéis
viviam, facilitavam ou mesmo ihspiravam a oracáo; a fé era
professada publicamente por instituigóes diversas. Mas hoje
como pretender elevar o espirito a Deus, quando tudo tende
a desviá-lo do Senhor e a converté-lo para a materia?

Foram aproximadamente estas as perguntas que um gru


po de jovens formulou num encontró ecuménico internacional
realizado em Taizé-Cluny (Franga) de 31 de agosto a 3 de
setembro de 1967.
Sabe-se que em Talzé-Cluny existe um mostelro de protestantes que
se dedica especialmente á tarefa ecuménica, ou soja, á restaurado da

— 240 —
ORACAO NUM MUNDO SECULARIZADO

unldade entre os crlstios separados. A ésse mosteiro afluem regularmente


visitantes do mundo Inteiro, tanto católicos cómo protestantes e ortodoxos,
visando orar pela unldade dos crlstBos e estudar conjuntamente os tenias
relacionados com esta.

As interrogagóes dos jovens respondeu o exarca do Patri


arcado de Moscou, Mons. Antonio. Éste prelado oriental orto
doxo sugeriu entáo reflexóes e diretrizes que tém indiscutíyel
valor e bam poderáo auxiliar a qualquer leitor cristáo, inclusive
no Brasil. Eis por que publicamos a traducáo de táo rica e
bela resposta:

"A vida e a oracáo sao inseparáveis. Urna vida sem oracáo


é vida que ignora urna dimensao essencial da existencia; é
urna vida satisfeita com o que é visível, com o nosso próximo,
com o nosso próximo físico, com o nosso próximo no qual
nao descobrimos a ¡mensidade e a eternidade do seu destino.
O valor da oracáo consiste em descobrir, em afirmar e viver
o fato de que tudo tem urna dimensao de imensidade, se se
pode dizer.

O mundo em que vivemos, nao é um mundo profano. É


um mundo que nos profanamos, mas que saiu das máos de
Deus, e que Deus ama. O valor que Deus Ihe atribui, é ates
tado pela vida e a morte do seu Filho único. A oragáo mani-
festa que reconhecemos éste fato; manifesta que descobri
mos que cada pessoa em torno de nos, cada coisa em torno
de nos, tem aos olhos de Deus um valor sagrado e se torna
preciosa para nos, cara para nos. Nao orar é deixar fora da
existencia Deus, e nao sómente Deus, mas tudo que Ele signi
fica no mundo que Ele criou e em que nos vivemos...

Parece-nos multas vézes que é difícil coordenar a vida


e a oragáo. Eis um erro, um erro absoluto. Ele provóm de
que temos urna idéla falsa tanto da vida como da oracfio. Jul-
gamos que a vida consiste em nos agitarmos e que a oracáo
consiste em nos retirarmos para um lugar qualquer, em esque-
cermos tudo que se refere ao nosso próximo e á nossa situacáo
humana. Ora isto é falso; equivale a urna calúnia contra a
vida e a urna calúnia contra a própria oracáo. Se queremos
aprender a rezar, é preciso, antes do mais, que nos fagamos
solidarios com a realidade total do homem, do seu destino e
do mundo inteiro; é preciso que o assumamos totalmente. Foi
éste o ato que Deus realizou na encarnagáo. é isto o que
nos chamamos intercessao. Geralmente, quando pensamos em
¡ntercessao, julgamos que ela consiste em lembrarmos diplo
máticamente a Deus o que Ele esqueceu de fazer. Em ver-

— 241 —
«PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 138/1971

dade, a intercessao consiste em que demos um passo que


nos leve ao ámago de urna situacáo trágica, um passo que
tenha a mesma qualidade que o passo de Cristo feito homem
urna vez por todas...

Agora, porém, voces me diráo: que fazer ?

Pois bem. A oragáo brota de duas fontes: ou ela nasce


da admiracáo que tenhamos frente a Deus e ás coisas de
Deus (nosso próximo, o mundo que nos cerca, apesar das suas
sombras). Ou a oragáo jorra do senso do trágico: do nosso
trágico e, principalmente, do trágico dos outros. Berdiaeff
dizia: 'Se tenho tome, isto é um fato físico. Se meu vizinho
tem fome, é um fato moral'. Pois bem ; eis o trágico tal como
ele nos aparece a cada momento: meu vizinho tem sempre
fome. Ele nem sempre tem fome de pao: por vézes, ele tem
fome de um gesto de humanidade, de um olhar caridoso.
Entáo é ai que comega a oragáo, nessa nossa capacidade
de nos sensibillzarmos para as coisas maravilhosas e para as
coisas trágicas. Enquanto essa nossa capacidade subsiste,
tudo é fácil: ao admirarmo-nos, oramos fácilmente, como
oramos fácilmente quando o senso do trágico nos empolga.
Mas, fora dísso, como orar ? Fora dísso, a vida e a ora-
cao devem ser urna só realidade. Nao tenho o tempo de dízer
muita coisa, mas quisera apenas dizer o seguinte:

Levantem-se de manhá. Coloquem-se na presenca de


Deus, e digam: 'Senhor, abengoa-me e abengoa éste día que
comega'. A seguir, considerem ésse dia todo como um dom
de Deus, e considerem-se voces mesmos como enviados de
Deus nesse terreno desconhecido que é a jornada nova. Isto
quer dizer simplesmente algo de muito -difícil: nada do que
acontecer nesse dia, será estranho á vontade de Deus; tudo
sem excegáo será urna situagáo na quai Deus os terá colo
cado para que voces sejam sua presenca, sua caridade, sua
compaixao, sua inteligencia criadora, sua coragem, etc. — E,
doutra parte, todas as vézes que voces encontrarem urna si
tuacáo, voces serao aquéle que Deus colocou ai para fazer
o papel de cristao, para ser urna parcela do Cristo, urna agáo
de Deus.

Se fizerem isto, voces veráo fácilmente que, a cada ins


tante, voces terSo que se voltar para Deus e dizer: 'Senhor,
ilumina minha inteligencia, reforca e dirige a minha vontade;
dá-me um coragao de fogo, ajuda-me!' Em outros momentos,
voces poderáo dizer: 'Senhor, obrigado !' E, se voces forem

— 242 —
ORACAO NÜM MUNDO SECULARIZADO

sabios e souberem agradecer, evitarao a tolice que se chama


a vaidade ou o orgulho, tolice que consiste em imaginar que
alguém fez aiguma coisa que ninguém mais podia fazer. Foi
Deus quem a fez; fot Deus quem nos deu ésse presente ma-
ravilhoso de nos permitir que fagamos isto.

E, quando, á noite, voces voltarem á presenga de Deus


e fizerem breve exame da jornada, voces poderáo cantar os
louvores de Deus, glorificá-lo, agradecer-lhe, prantear os
outros e chorar por causa de voces mesmos.

Se voces comecarem a unir déste modo a vida á sua


oragáo, elas jamáis se separaráo. E a vida será como um
combustfvel que, a todo momento, nutrirá um fogo, fogo que
se tornará cada vez mais rico, cada vez maís ardente, e que
transformará voces pouco a pouco nessa sarga ardente de
que fala a Escritura Sagrada".

Tentemos agora realgar algo dos tragos mais salientes


desta notável instrugao:

1) Orasóo e nova vlsáo do mundo

Quem ora,, entra em contato com Deus. Ésse contato nao


pode deixar de redundar em novo modo de ver e apreciar a
realidade sensível que nos cerca. O mundo tem urna dimensáo
física, química, biológica, mas ele possui também urna dimen
sáo de «imensidade» ou de eternidade: é reflexo da sabedoria
do Criador; ora, é pela prece — instrumento de uniáo com o
Criador — que essa visáo auténtica e profunda se desvenda.

Vem a propósito o seguinte episodio:

Um pintor (ranc6s narra que, moblllzado durante a guerra de 1939-1945,


recebeu por tarefa Inspeclonar os leitos e trunos da estrada de ferro em
urna regfSo, cuja natureza era magnífica. Havlam-lhe dado por companhelro
um servente de artigue. Ora, sempro que o podía, o pintor interrompla
a sua vigilancia para contemplar maravllhado a palsagem que o cercava.
Perguntava-the entSo o companhelro mais Jovem:
— "Que fazes asslm Imóvel?
— Olho a palsagem.

— E, quando olhas a palsagem, que vés?


— O que há de mais beto após a face do homem.
— É estranho, murmurou o rapaz, eu, por mais que olhe, ñas paisa-
gens nunca vi senSo bols, camelros ou porcos, quando os há".

— 243 —
8 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 138/1971

O episodio é significativo.

O pintor e o acougueiro olhavam para a mesma paisagem,


mas cada um tinha o seu olhar. O primeiro tínha o olhar do
artista e, por isto, sabia descobrir nessa realidade os vestigios
do primeiro Artista ou do Criador (vestigios que se exprimem
por excelencia na face do homem, mas nao deixam de aparecer
ñas idemais criaturas). Assim quem ora, quem vive com o pri
meiro Artista, há de perceber o mundo de maneira diversa da
de quem nao tem o olhar do Artista Divino; vé-lo-á com mais
profundeza e beleza.

2) Orasóo e nova visáo do próximo

Também o próximo passa a ser considerado de novo modo


por quem tem o olhar de Deus adquirido na oracáo.

É Georges Bernanos (t 1949), o famoso romancista fran


cés, quem escreve:

"A experiencia ensinou-me tarde «temáis que nao podemos explicar os


homens pelos seus vicios, mas, ao contrario, pelo que éles guardaran)
de Intato, de puro, pelo que neles permanece da sua infancia, por mais
fundo que o tenhamos de procurar".

Sim. A uniáo com Deus leva a ver que muitos homens de


semblante e gestos antipáticos nao podem ser definidos por
ésse aspecto desagradável. Sao talvez vítimas... Receberam
posávelmente urna educacáo reta e pura da parte de sua ge-
nitora; esta suscitou néles um fundo de retidáo, bondade e
feliciidade... Cedo, porém, viram-se atirados aos embates da
vida, onde se defrontaram com brutalidade, ganancia, odio,
corrupgáo; adquiriram entáo novos tipos de comportamento,
tomando-se brutais como o ambiente em que haviam sido
colocados. Consciente disto, Bernanos lembra que nos devemos
empenhar por descobrir nesses homens o que de bom e reto
néles esteja soterrado'pelos embates da vida; descobrindo-o,
o cristáo procura idesenvolvé-lo, a fím de ajudar seu irmáo a
se tornar mais o que ele deve ser.

Aínda a propósito vém as palavras de Tennessee Williams:


«Ningaém vale antes de ter sitio amado».

É, sim, o amor dispensado gratuitamente que suscita va


lores no próximo, fazendo que o bem latente ou embrionario
se desabroche. O amor transforma ambientes e pessoas; quem
nunca recebeu um sorriso ou um sinal de aprégo e amor, fácil-

— 244 —
ORACAO NUM MUNDO SECULARIZADO 9

mente se degrada, ao passo que os homens mais odientos e


desregrados nao raro se rendem á linguagem do amor.

Alias, a Escritura apresenta o próprio Deus a exercer


para com os homens ésse amor gratuito, a fim de Ihes dar
valor. É Sao Joáo quem escrev©: «Nisto se manifestou o amor
de Deus para conosco:... nao fomos nos que amamos a Deus,
mas foi Ele que nos amou e enviou o seu Filho como propicia-
gáo pelos nossos pecados» (1 Jo 4,9s).

Sao Paulo acrescenta: «Diflcilmente alguém morrerá por


um justo; por um homem bom talvez alguém se resolva a
morrer. Deus, porém, demonstra o seu amor para conosco pelo
fato de Cristo haver morrido por nos, quando éramos peca
dores» (Rom 5,7s).
Foi ésse amor gratuito de Deus que deu ao homem a pos-
sibilidade de reencontrar os seus verdadeiros valores após o
pecado.

3) Orajáo e trabalho

Nao há divorcio entre os dois termos. Quem cuida de sua


vida de oracáo, nao é um alienado diante das realidades terres
tres. Ao contrario, o cultivo da oracáo leva ao cumplimento
dos deveres de estado. O cristáo sabe que, entregando-ee cons
cientemente ao trabalho, nao abandonará a Deus.

Mas como é que o cristáo se pode manter unido a Deus


através do trabalho?
É claro que, se nao exercer urna certa industria espiritual,
será tragado pela onda de preocupagóes. O conferencista, pc-
rém, propunha aos jovens um programa interessante:
Que o cristáo se coloque de manhá na presenca de Deus;
ofereca-lhe o seu día, renové a sua uniáo com o Senhor. Éste
ato será muito mais intenso, como se compreende, se o cristáo
participar da S. Missa. — Depois, parta para a sua luta. Esta
lhe oferecerá quadros variados: uns belos, maravilhosos, outros
trágicos. Em todas essas situacóes o cristáo procurará ver o
sinal e o apelo de Deus. Responderá com sua admiracáo diante
das obras de Deus ou com pedido de auxilio diante do trágico.
Em tudo, o cristáo esforcar-se-á por ser o reflexo da sabedo-
ria, do amor, da compaixáo do Criador. Nada, pois, ficará para
ele na esfera do meramente humano ou mecánico: o desemj
nho de sua tarefa, estimulando-o a procurar

— 245 —
10 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 138/1971

viva de Deus em toda parte, tenderá a uni-lo cada vez mais


ao Senhor.

Eis como em termos simples se poderia responder k per-


gunta sobre a possibilidade e o sentido da oracáo num mundo
que absorve o homem e pareos afastá-lo de Deus.

paraíso terrestre:
saudade ou esperanca?1
Freí Carlos Mesters tem-se- esforzado, através de cursos e escritos, por
tornar a Escritura Sagrada viva e atuante na vida de seus leltores — o
que é de grande valor. Possulndo boa formaclo científica, procura traduzlr
em linguagem popular os seus conheclmentos, apresentando a Biblia para
o homem de hoje. — O llvro ácima é mais um testemunho déste afl. E
como procede?

Em slntese, o autor julga que os capítulos do Génesis (2-3) concer-


nentes ao paraíso e ao pecado dos prlmelros pais nao referem acontecl-
mentos passados, mas transmltem, sob forma de narrativa, urna mensagem
ou urna exortacfio para o presente: a atual ordem das coisas, em que
reinam entre 03 homens o odio, a Injustlca, as dlvlsfies, o alheamento a
Deus, ó contraria ao designio do Criador, é preciso, pols, que o leitor da
Biblia (qualquer que seja a sua época) refuta sobre as desordens existentes
em si e em torno de si e se esforcé por Ihes dar termo, colaborando asslm
para Instaurar um mundo mais unido a Deus e mais humano. Segundo Frei
Carlos, os enslnamentos outrora transmitidos a respeito do estado de "Jus
tina original" (harmonía e flllac&o divina) dos primeiros pais, a respeito
de urna culpa ou transgressfio que se tornou decisiva para a historia
subseqüente, sSo ensinamentos dependentes de óculos ou enfoques de que
hoje temos de nos despojar, pois nio correspondem á IntencSo do autor
sagrado.

Que dfzer a propósito?

— A tese de Freí Carlos «em sido professada em nossos tempos por


outros autores (com matlzes próprlos), inclusive pelo "Novo Catecismo Ho
landés" (em seu corpo). — Parece que, por mais que procuremos encará-la
com simpatía, nSo nos podemos furtar a duas observacOes:

1) Nao se podém reduzir as narrapOes de Gen 2-3 a flccSes conce


bidas simplesmente a fim de excitar os leltores a assumlrem as suas tarefas

(Continua na pág. 269)

1Livro de Frei Carlos Mesters. — Editora Vozes, Petrópolis 1971,


130x180 mm, 162 pp.

— 246 —
homem: "corpo e alma" ou "corpo-alma"?
ressurreicáo dos mortos como será?

Em sintese: Registra-se certa tendencia na teología contemporánea a


acentuar a unldade do ser humano. Este nSo deverla ser considerado como
um composto de corpo (material) e alma (espiritual), mas, slm, como
corpo-alma ou corpo espiritualizado ou também espirito corporificado. Esta
corrente nova diz corresponder melhor ao pensamento bíblico, em oposicáo
ao pensamento da filosofía grega, dada ao dualismo (ou desprézo do corpo
em favor da alma) e ao Individualismo. Em conseqüéncia, quando alguém
morre, nSo se pode dizer que a alma se separa do corpo, mas, slm, que
ela assume urna nova forma de corporeidade.

Frente ás novas ¡délas, pode-se reconhecer que o dualismo pessimista,


que estabelece antagonismo entre alma e corpo, nao é cristSo, mas órfico
e platónico. Todavía nSo se deve estabelecer antltese entre o modo de pensar
da Biblia e qualquer tipo de filosofía grega. Na verdade, a Biblia nSo
pretende considerar o homem em todos os seus aspectos, mas apenas na
medida em que ele ó envolvido num plano de salvacfio sobrenatural con
cebido por Deus; para a Biblia, vida nfio é qualquer tipo de existencia
humana, mas ó a salvacfio eterna; morte nao é o que a biología entende
por éste tormo, mas é algo que está ligado com o pecado e a perdlcáo
eterna. Por consegulnte, ao lado da mensagem da Biblia fica lugar para
urna reflexSo filosófica sobre o homem. Esta reflexSo pode ser inspirada
pela filosofía grega de Aristóteles assumlda por S. Tomás de Aqulno e
completada por dados modernos. Nesta perspectiva filosófica sadia, o homem
é um composto harmonloso de corpo e alma, sendo que a alma sobrevive
ao corpo, aguardando a ressurreicáo final dos mortos.
O magisterio da Igreja Interveio últimamente no assunto, por ocasláo
do tangamente) do "Novo Catecismo Holandés".

Kesposta: Nos últimos tempos a filosofía e a teología


tém-se voltado, com grande interésse, para a questáo da iden-
tidade do ser humano: que é o homem? Em que consiste a

— 247 —
12 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 138/1971

esséncia do ser humano? — A resposta clássica, no Cristia


nismo, afirma que o homem é um composto de corpo material
e alma espiritual (racional); esta posicáo foi diversamente de
senvolvida pelos pensadores cristáos no decorrer dos sáculos
(S. Agostinho, S. Boaventura, S. Tomás e a escola tomista...);
de tal concepgáo costumam os teólogos e os mestres da vida
espiritual deduzir um conjunto de conclusóes práticas e impor
tantes (no tocante principalmente a morte e á ressurreigáo
final).

Eis, porém, que nos últimos anos a concepgáo de «homem


= corpo e alma» tem sido revista. Há quem a julgue dualista
ou dicotómica demais; prefersm, antes, acentuar a unidade do
ser humano, evitando mesmo falar de separacáo de corpo e
alma na hora da morte e de re-uniáo de um e outro no dia
de ressurreicáo final.

Em vista do interésse que tais idéias tém suscitado, pro


curaremos abaixo expor sucintamente o novo modo de consi
derar o homem, ao que se seguiráo algumas reflexóes.

1. Corpo-alma

1. Os arautos da nova concepgáo partem da afirmagáo


de que a clássica doutrina de «corpo e alma» tem suas raizes
na filosofía grega e nao ñas páginas da Sagrada Escritura.

Os filósofos gregos (dizem) concebiam o homem como


um composto de dois elementos estranhos (se nao antagónicos)
um ao outro: corpo (soma) e alma (jpsyché). A alma estaría
encarcerada no corpo e só poderia conseguir sua fielicidade ao
se libertar totalmente dos grilhóes da corporeidade. Tal era,
certamente, o modo de pensar das correntes órfica, pitagórica,
platónica e neoplatónica.

Tal concepgáo ter-se-á comunicado aos antigos cristáos, di-


fundindo-se através dos sáculos na Igreja. Daí haverá resultado
o menosprezo do corpo em numerosas obras de espiritualidade
católica: o homem seria própriamente alma presa ao corpo
como a um instrumento necessário, mas incómodo e humi-
lhante. Terá também resultado o anseio de salvagáo psssoal
individual expresso na fórmula «Salva a tua alma».

Varios autores cristáos contemporáneos (protestantes e


católicos) julgam que devem rejeitar tal modo de pensar para
dar ¿rifase as concepgóes biblicas. Alias, assim procedendo,

— 248 —
VISAO NOVA DO HOMEM 13

fazem eco á filosofía, á psicología e, em geral, as ciencias an


tropológicas modernas, que tendem a considerar o ser humano
como unidade indivisível.

Fergunta-se entáo: como os mencionados teólogos moder


nos concebem o ser humano?

Nao negam que o homem tenha duas dimensóes: a espiri


tual e a corporal. Fazem questáo, porém, de acentuar a íntima
uniáo de corpo e alma, a ponto de nao se oompreender, por
vézes, como ainda se salva a diferenca entre um e outro. «O
homem é totalmente corpo e totalmente alma. Corpo e alma
ou espirito e materia nao sao dois elementos no homiem, mas
dois principios que constituem o homem inteiro. O corpo é a
realidade do espirito presente e se exprimindo. O espirito é
subjetividade do corpo, dando-se conta de si mesmo» (L. Boff,
art. citado na bibliografía, p. 64).

2. As conseqüéncias de tais idéias fazem-se sentir mais


notoriamente quando aplicadas as nogóes de morte e ressurrei-
gáo dos mortos (ressurreiQáo que constituí um dos artígos da
fé crista). Os mencionadas autores nao aceitam a sentenca
segundo a qual, na morte, corpo e alma se separam um do
outro; enquanto o corpo (feito cadáver) se dissolve na poeira
da térra, a alma subsiste imortal; fícará «separada do corpo»
até o dia do juizo final, em que Deus reunirá corpo e alma,
restaurando assim o homem em sua integridade física. Os au
tores modernos rejeitam a tese de que a alma humana, sendo
espiritual (ou ¡náo-material), é por si imortal (tal tese íhes
parece ser resquicio da filosofía grega, que atribuía algo de
divino e, por isto, imortal á alma humana). A nova corrente
afirma que a alma é por si mortal; Deus, porém, gratuitamente
lhe concede a imortalidade, ultrapassando assim as exigencias
da natureza da alma. Em conseqüéncia, na hora da morte o
que se dá, é o seguinte: a alma (que Deus quer tornar imortal)
troca de materia; depóe a materia a que estava unida durante
a vida presente, para tomar outro tipo de corporeidade... cor-
poreidade mais sutil. Pode-se, pois, afirmar que a ressurreigáo
já se realiza (ou comisca a se realizar) mediatamente após a
morte; a morte nao é senáo «a passagem para a plenitude cor
poral transfigurada» (L. Boff, art. cit. p. 67).

"A morte humana é morte do corpo-esplrlto. Isto aínda nüo significa


aniquilado da realidade. Nem separacSo da alma do corpo, porque nSo há
nada que se possa separar. Vimos que corpo e alma nao sSo duas realtda-

— 249 —
14 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 138/1971

des no homem, mas o homem mesmo todo Intelro sob duas dtmens6es
diferentes. Morte significa o termo e o fim de um modo de existencia e
pas9agem para outro... Com a morte, a alma nfio perde sua corporatidade,
mas adquire outro tipo de eorporalldade" (L. Boff, art. clt., p. 66).

Ensina o «Catecismo Holandés» em seu corpo doutrinário


(anteriormente ao Apéndice que Ihe foi acrescentado):

"A exlstdncla depols da morte já é algo no sentido da ressurreicao do


ndvo corpo" (traducBo brasilelra, p. 544s).
Ou segundo a tradu;So francesa:

"L'extstence apres la mort est done déjá quelque choce de la résurrec-


tion du corps nouveau" (p. 598).
Na traducSo Italiana 16-se:
"L'eslstenza dopo la morte é dunque glá qualcosa como la risurreztone
del nuovo corpo" (p. 574).

A ressurreieáo geral no fim dos tempos, de que fala o


Credo, terá, nesta perspectiva, urna dupla fungió:

— consumar e manifestar a ressurreisáo iniciada logo


após a morte;

— atender as exigencias comunitarias do ser humano.


Ninguém se consuma a sos ou á parte, independente-
mente ¡de seus semelhantes, mas só chegamos á nossa
plenitude quando vivemos a dimensáo social ou comu
nitaria da pessoa humana.

3. Em particular, o teólogo alemáo Joseph Ratzinger, no


seu livro «Introdugáo ao Cristianismo» (Sao Paulo 1970), deduz
a imortalidade da alma-corpo do fato de que o homem é co-
nhecido e amado por Deus. «Todo amor quer eternidade — o
amor de Deus nao só a deseja, como a realiza e é» (p. 302).
O conhecimento e o amor que Deus tem para com o ho
mem, se nos manifestaram plenamente em Cristo e por Cristo.
Por isto quem aceita Cristo pela fé, «está dialogando com
Deus, que é vida, .e sobrevive á morte» (ob. cit. p. 304). «A
existencia com Cristo iniciada na fé é vida de ressurreieáo ini
ciada e, por isto. sobrevivencia á morte (Flp 1,23; 2 Cor 5,8;
1 Tes 5,10). O diálogo da fé já é vida agora e nao pode ssr
destruido pela morte» (p. 304s). Em conseqüéncia, Ratzinger
afirma que o homem goza de urna imortalidade «dialógica».
Essa imortalidade compete nao sómente aos homens de
fé crista, os quais dialogam com Deus pela fé, mas toca tam-

— 250 —
VISAO NOVA DO HOMEM 15

bém aos incrédulos e perversos, porque também estes tém em


si ao menos a capacidade de «pensar Dsus» e de se abrir para
os valores transcendentais. Em última análise, para Rateinger,
«o que faz do homem um homem», ou «o elemento constitutivo
do homem» é a capacidade natural de receber a palavra de
Deus e de ser parceiro do diálogo com Deus. Ainda que o
homem nao aceite ésse diálogo com o Senhor, ele é homem
pelo fato de ter sido chamado por Deus para o diálogo. A imor-
talidade (decorrente do chamamento para o «diálogo») cabe
assim ao homem como homem; nao é «elemento sobrenatural,
acrescentado secundariamente» (p. 306).

Ratzinger acrescenta:

"Ter alma espiritual significa exatamenta: ter objeto de um bam-queref


especial, de um especial conheelmento e amor de Deus. Ter urna alma
espiritual denota: ser um ente chamado por Deua para o diálogo eterno e,
por isto, estar em condicfies de conhecer a Deus e responder-lite. O que
exprimimos por 'ter alma' em urna linguagem mals substancial, expressa-
mos em linguagem mals histórica e atual como 'ser parceiro do diálogo
com Deus"' (p. 306s).

Estes dados já permitem ao leitor conceber urna ñoclo


do que sejam as teses propostas pelos autores modernos a res-
pelto do «corpo-alma». Nao é sempre fácil acompanhar o pen-
samento désses escritores, pois as vézes se torna extremamente
sutil; os incisos ácima foram quase todos transcritos direta-
mente das obras dos novos teólogos, a fim de que o leitor possa
mais fácilmente avaliar o que lhe é proposto.

A tese do «corpo-alma» sugere algumas

2. Reflexoes e perguntas

Distinguiremos abaixo quatro setores de reflexáo:

2.1. ConcepsSo grega

1. Inegávelmente dentro da filosofía grega vigorou acen


tuada tendencia ao dualismo pessimista, que fácilmente concebía
o ser humano como urna alma encerrada no corpo e destinada
a se libertar .déle para conseguir a sua felicidade; desde o
orfismo (séc. VI a.C), até o neoplatonismo (séc. VI d.C.) a
tentacáo foi forte. Ela tomou novas formas nos primeiros
póculos do Cristianismo, quando gnósticos e maniqueus propu-

— 251 —
16 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 138/1971

seram suas concepcóes dicotómicas, contrarias a tudo que fósse


corpóreo ou material.
Os escritores cristáos até o século XII foram propensos a
adotar algumas teses da filosofía platónica a fim de penetrar
e elucidar a mensagem crista. Tenham-se em vista, entre
outros, Orígenes (t ca. 253), S. Gregorio de Nissa (t 394),
S. Hilario (t 367), S. Ambrosio (t 397), S. Agostinho (t 430),
S. Boaventura (t 1274)... Ésses escritores, sem deixar de
ser cristáos, apreciavam no platonismo principalmente a cons-
ciéncia de que existe um mundo superior, invisível, que é muito
mais belo e importante do que a realidade sensível e material
que nos cerca. Por isto no seu modo de avallar o corpo talvez
se tenham mostrado severos e pessimistas — o que foi opor
tuno e fecundo naqueles sáculos recuados, mas hoje merece
reformulacáo (que nao é necessáriamente traigáo).

2. Note-se, porém, que a filosofía grega nao foi sómente


o orfismo-platonismo. Entre os seus grandes vultos, figura
também Aristóteles, o qual soube fazer a crítica de Platáo,
sempre que necessária. Para Aristóteles, alma e corpo sao duas
substancias intrínsecamente relacionadas entre si, de modo a
constituir um todo unitario, que é o ser humano. As duas partes
componentes do homem se unem entre si, como materia e for
ma, potencia e ato, dai resultando um ser substancial, uno e
harmonioso (do ponto de vista físico). Maniendo bem nítida a
distmgáo de materia e alma espiritual (a potencia nunca pode
ser o ato, a materia nunca pode ser a forma, no aristotelismo),
Aristóteles, nao obstante, afirma a unidade do ser humano e
liberta-se do pessimismo platónico e dualista.
Ora, S. Tomás de Aquino, no séc. xm, afastou-se do pla
tonismo, para introduzir a filosofía de Aristóteles ñas escolas
católicas. Segundo a filosofía aristotélico-tomista,1 o que faz

1A expressSo "aristotélico-tomista" causa certa suspeita a estudiosos


modernos, pols pode lembrar rigidez de pensamento árido, fechado, incapaz
de acompanhar a mentalldade e a cISncia do homem de hoje.
Nfio se pode negar a esterilidad© artificial de certas teses propostas
em nome de Aristóteles no decorrer dos séculos. Sejam rejeltadas na
medida do necessárlo! Parece, porém, que na filosofía de S. Tomás se
encontram principios e teses de valor sempre atual, de sorte que o Concilio
do Vaticano II renovou a recomendacfio do tomismo Já formulada por Lefio
XIII e os Pontífices posteriores; cf. Decreto sobre a Formac&o dos Presbí
teros n"? 16; DeclaracSo sobre a Educacáo Crista n? 10..
O que se deve fazer neste setor, é estender a filosofía tomista aos
problemas filosóficos de nossos días, complementando e em parte reformu-
lando os mestres antigos.

— 252 —
VISAO NOVA DO HOMEM 17

que um corpo vivo organizado seja tal, é a alma que informa


(= penetra) os múltiplos elementos materiais a que ela se
une (O, H, Fe, Ca, I...), tornándoos organismo vivo, capaz
de se nutrir e reproduzir; cf. S. Tomás, Suma Teológica I,
qu. 75-77.

Foi a concepeáo tomista que prevaleceu ñas escolas cató


licas a partir do séc. XIV até os últimos decenios déste séc. XX:
como se vé, tal concepcáo afirma nítidamente a distingáo entre
corpo e alma, materia e espirito, dentro do homem. Rejeita,
porém, o dualismo pessimista de Platáo. Segundo a concepeáo
aristotélico-tomista, o corpo é o espélho da alma; o fato de que
o homem é um corpo organizado, e nao um acervo de elementos
materiais (O, H, C...), significa que também é um principio
organizador, é urna alma viva, de sorte que nao há necessidade
de utilizar o bisturí para encontrar a alma; basta olhar para
o ser humano, a fim de ver a alma que o vivifica.

Em consequéncia, compreende-se também que nao se deve


rejeitar globalmente a filosofía grega como sendo dualista e
antibíblica. Distingamos, antes, entre os gregos, o orfismo-pla-
tonismo (que nao se concilla com a visáo crista) e o aristote-
lismo (apto a ser introduzido numa genuína síntese crista).

2.2. Concepjáo bíblica

Ao abordar os textos da S. Escritura, é de notar que ela


apresenta a morte como consequéncia do pecado (cf. Gen 2,17;
Rom 5,12) :x o homem através da historia, quando morre, está
carregando a sancáo do pecado. Em outras palavras: os textos
bíblicos consideram o homem, sua vida e sua morte, através
de um prisma religioso. A vida, na S. Escritura, significa ge-
ralmente a salvacáo eterna, a libertacáo do pecado e a plena
posse de Deus; a morte, na Biblia, é a ruina ou a perdicáo
eterna. Vida e morte, nos textos bíblicos, portante, nao signi-
ficam o ser (o existir) e o «nao ser mais» (o «já nao existir»
ou o «deixar de existir») de que falam a filosofía, a biología e
as ciencias naturais. A Escritura, portanto, deixa margem a
que o estudioso encare homem, vida e morte no plano mera
mente filosófico, racional, plano éste que nao é o plano sobre

2,17: "No dfa em que comeres da árvore do conhecimento do


bem e do mal, cortamente morreras".

Rom 5,12: "Pelo pecado a morte entrou no mundo".

— 253 —
18 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 138/1971

natural, revelado, em que as Escrituras colocam o homiem e


seu destino. Aínda com outras palavras: a Escritura tem em
vista a morte do homem como um fato concreto na presente
ordem das coisas, mas nao pretende fomecer urna análise fi
losófica ou metafísica do que seja a morte. Conscientes disto,
vemos que nao se devem opor necesariamente a ctoncepgao
bíblica atinente ao homem e a concepcáo filosófica;; a Biblia
nao pretende estudar o homem sob todos os seus aspectos, mas
apenas o encara a fim de lhe dizer o que Deus, em seu
livre designio, dispós para salvá-lo e consumá-lo; resta, pois,
ao lado da mensagem bíblica um campo de reflexáo para a
filosofía (que nao há de ser, no caso, a filosofía grega plató
nica, mas bem pode ser- outro tipo de filosofía racional).

Ampliando esta última afirmacáo, dir-se-á: a Biblia propóe


urna visáo sobrenatural do que sejam o homem e seu destino.
Esta visáo de um destino sobrenatural (gratuito e liberal da
parte de Deus) nao excluí urna reflexáo meramente racional
do que sejam a natureza do homem e suas capacidades.

2.3. Alma é ¡mortal ?

O que até agora foi dito, evidencia que nada se opóe, por
parte da Biblia, a que se fale do homem como sendo um
composto harmonioso de ctorpo e alma.

O corpo é perecível, sem dúvida, nao sómente na morte


final, mas também por um processo de renovacáo segundo o
qual de sete em sete anos está totalmente mudada a materia
do corpo humano. O organismo assimila e elimina os mais
diversos elementos materiais, sem, porém, perder a sua iden
tidade. E nao há perda de identidade precisamente porque
existe algo no ser humano que nao muda quando a materia
muda, algo, pois, que subsiste independentemente da materia e
que se chama «alma espiritual». Essa alma espiritual continua
a existir viva quando o corpo se díssolve na poeira da térra;
ela garantirá a identidade da pessoa quando esta ressuscitar no
último día; a mesma alma, que terá subsistido sem corpo será
reunida á materia e com esta constituirá o homem ressuscitado.
Nao se vé bem por que afirmar que logo após a morte
a alma é reunida a algum tipo de materia, de modo a iniciar
a ressurreigáo final. Que seria essa ressurreicáo lenta em mar
cha, que dura séculos (desde a morte ido individuo até o fim
dos séculos)? Como entendé-la? Nao há nisto algo de fanta-
sista e arbitrario?

— 254 —
VISAO NOVA DO HOMEM 19

Por que nao admitir que a alma possa subsistir sem corpo
(veja-se o concertó de alma separada dos escolásticos), desde
que nao se admitam as idéias espiritas ou as teses da metem-
psicose e da reencarnagáo?

A S. Igreja através do seu magisterio definiu que as almas


dos justos, urna vez purificadas após a morte, gozam, sem de
mora, da visáo ide Deus face-a-face, antes mesmo da ressur-
reicáo da carne (cf. Bento XII, em 1336, na Constituigáo «Be-
nedictus Deus», Enquirídio Denz.-Sch6nm. n" lOOOs [530]). O
Concilio do Latráo V (1513), por sua vez, rejeitou a .tese do
fisósofo Pomponazzi segundo a qual a alma humana nao é
imortal (cf. Denz.Schonm. n* 1440s [738]).

A filosofía tomista, alias, completa as afirmacóes até aqui


formuladas do seguinte modo: a alma humana espiritual, tendo
criatura (nao sendo Deus), é passível de ser aniquilada (saiu
do nada, pode voltar ao nada). Ela é composta de esséncia e
existencia; por isto pode-se conceber que perca a sua existencia.
Sómente em Deus esséncia e existencia nao se distinguem;
sómente Deus nao pode deixar de existir. Todavía, continuam
os tomistas, admite-se que Deus nao aniquile as almas huma
nas ou nao lhes tire a existencia. A alma humana tem aspiragóes
naturais que só numa vida postuma podem ser plenamente
saciadas (aspiragóes á felicidade, ao amor, a justica, á ver-
dade...); se, pois, Deus aniquilasse as almas, contradiría as
aspiragóes naturais incutidas pelo próprio Criador a essas cria
turas. Deus seria ilógico; a natureza seria frustrada, se nao
absurda — o que seria inconoebível.

Assim prova a filosofía tomista a subsistencia ou a imor-


talidade natural da alma humana.

2.4. O «Novo Catecismo»

Ainda merece atengáo o seguinte fato:

O «Novo Catecismo Holandés» em seu corpo doutrinário


propde a tese da ressurreigáo inicial logo após a morte (veja
pág. 250 déste fascículo). Ora, foi éste um dos pontos que
mereceram atengáo da parte da Comissáo Cardinalicia e dos
teólogos encarregados de revisar tal obra. Em conseqüéncia,
no seu Apéndice, o «Novo Catecismo» reformulou a doutrina,
de modo a já nao falar de ressurreigáo iniciada logo após a
morte; em seu lugar, o novo texto do «Catecismo Holandés»
alude a documentos do magisterio da Igreja que mencionara a

— 255 —
20 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 138/1971

visáo beatífica dada aos justos falecidos desde que estejam


purificados. Tenham-se em vista os dizeres abaixo:

Vil. O misterio da vida depois da morte

Prlmelro texto (pp. 543-545): o parágrafo intitulado: EstSo ressuscitando.

Ndvo texto:

Na expectativa da ressurretcao universal

Se indagarmos a respelto do "como" da nossa existencia depois da


morte, verificaremos que geralmente a Sagrada Escritura nos fala da res-
surrelcáo do homem inteiro, com corpo e alma.

Mas ela está relacionada com a vlnda gloriosa do Senhor Jesús que a
Igreja espera. Aonde v5o, entSo, os nossos queridos falectdos [mediatamente
depolq da morte? A Biblia nao nos dá urna resposta detalhada a esta
pergunta, mas Indfcacees aqui e acolé. Nao é sua ftnalidade dar-nos Intor-
macoes exatas sobre o "como" da vida no além.

Curvemo-nos, pols, sem preconceitos sobre as palavras escrlturísticas.


Que dlzem elas? A respeito de Jesu3 temos: "Ele ressuscilou". A respeito
dos outros que já faleceram: "RessuscilarSo" (1 Cor 15,22). "Foram des
cansar" (Ib. 6). As vézes Jesús usa a palavra "alma": "Nao temáis os que
podem matar o corpo, mas nao a alma" (Mt 10,28). O Senhor quer dizer
"algo", o mais próprlo do homem pode ser salvo depots da morte. Ésse
"algo" n3o é o corpo terrestre que resta como cadáver. Nao é tampouco
um espirito puro, libertado do corpo no qual eslava preso. É o núcleo vivo
do homem que fol criado para vlver num corpo e que nunca deve ser visto
de oulra maneira. Mas tal núcleo pode existir separado do corpo mortal.

Conhecemos também a prcmessa que Jesús fez ao bom ladrSo: "Hoja


mesmo estarás comigo no paraíso" (Le 23,43). Paulo fala de um desejo
de "ausentar-se déste corpo, para ir habitar Junio do Senhor" (2 Cor 5,8)
e, como escreve aos filipenses, ele mesmo deseja "ir-se para estar com
Cristo" (Flp 1,23). Já o livro da Sabedoria dlsse sobre a morte dos justos:
"As almas dos Justos est3o na m§o de Deus... Aparentemente éles estao
mortos aos olhos dos insensatos... a esperanca déles era portadora de
Imortalldade; e, por terem sofrldo um pouco, receberfio grandes bens"
(Sab 3,1-15).

Éstea e mais outros textos levam-nos a nSo adiarmos, sem mala, a


gtorlflcacao dos eleitos até a vlnda do Senhor. Qual é o estado em que se
encontram? Jesús disse: "Felizes os puros de coracáo, porque verSo a
Deus" (Mt 5,8). Por sua vez, Paulo e JoSo escreveram: "Mas entSo o vere
mos face a face... entfio conhecerel totalmente, como eu mesmo aou
conhecldo (por Deus)" (1 Cor 13,12); "Veremos como Ele é" (1 Jo 3,2).
Pergunta-se se os falecidos recebem a felieldade da contemplacSo de Deus
logo depois de acabada a purificacSo de que eventualmente preclsem, a
respelto da qual Calaremos mais adianto.

Infclatmente, a tradicSo eclesiástica conservou-se calada sobre éste pon


to, para em seguida flcar hesitando durante multo tempo; mas pronunclou-se
definitivamente, pelo menos a partir da ConstltulcSo "Benedlctus Deus" do
Papa Bento XII (1336). O magisterio, que dá a expllcacio autentica do tesouro

— 256 —
VISAO NOVA DO HOMEM 21

da lé, enslna-nos que os falecldos, depois de serem suficientemente purifi


cados, |á antes da vinda do Senhor gozam da clara vIsSo de Deus uno e
trino, tal qual é (Const Lumen Gentium do Conc do Vaticano II n? 49).
Mas esta visáo nao constituí aínda a glorlficacáo final. Esta se realizará por
ocasISo da vinda do Senhor (parusia) em conexSo com á renovacSo geral
(cf. Apc 21,5), da qual Jesús ressuscitado e sua'Mie sa°o as primicias. EntSo
o Senhor Jesús "transformará o nosso corpo mlserável, para que seja
conforme o sen corpo glorioso, em vlrtude do poder que tem de submeter
a si t&da criatura" (Flp 3,21). Contemplaremos entBo a Deus de urna ma-
neira mals perfellamente humana do que antes. Pois nSo somente o contem
plaremos desvelado em aeu misterio insondável, mas também de urna manelra
adaptada a nossa situacáo de corporeldade glorificada — primeramente na
adorável humanidade de Jesús, em seguida na muitldSo imensa dos santos
do Senhor e, enfim, no n6vo céu e na nova térra. E o amor dominará
soberano.

Nota — No mesmo sentido, modl(lcar>aa-á urna outra passagem (p. 547).


Dos morios — com excecfio de María — dlr-se-á slmplesmente que t0m a
promessa da ressurrelcao. E, se alguns deles estfio mala intensamente pre
sentes do que os outros (pelos favores que concedem aos fiéis), Isso tahrez
se deva ao fato de estarem mate unidos ao Cristo ressuscitado".

("O Novo Catecismo. Suplemento". Ed. Herder, SSo Paulo 1970, pp.
74-76).

O fato de que o texto primitivo do Novo Catecismo haja


sido censurado e modificado pela Comissáo revisora é evidente
sinal de que a doutrina do «corpo-alma» é, no mínimo, ambigua
e insuficiente aos olhos da fé católica. Esta afirma a distíngáo
nítida entre corpo e alma, de modo a admitir que as almas dos
.defuntos aguardam a ressurreicáo final, separadas dos respecti
vos corpos. Tal doutrina está longe de significar que a uniao
entre alma e corpo seja acidental ou que o homem seja pró-
priamente um espirito condenado a viver no corpo ou na
materia.

A re-uniáo de materia e alma no fím dos tempos nao será


algo de supérfluo ou desnecessário. E isto, por tres motivos:

1) Ela corresponderá, sem dúvida, <á relacáo que toda


alma tem ao respectivo corpo; a alma humana por sua natureza
é feita para se consumar na materia (durante a vida presente)
e na materia gozar de sua consumacáo (na vida futura).

2) Ela atenderá também á índole social ou comunitaria do


ser humano, que foi feito para se consumar plenamente em
comunháo com os seus semelhantes.

3) Ela significará outrossim um aumento de gloria para


a humanidade ressuscitada de Jesús Cristo. A ressurreicáo dos

— 257 —
22 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 138/1971

mortos implicará a vitória completa de Cristo sobre a última


inimiga — a morte (cf. 1 Cor 15, 25s). Em outros termos:
somente quando os homens ressuscitarem da morte, Cristo terá
consumado a sua obra redentora, conforme Sao Paulo. Donde
se vé que nao carecerá de sentido (e de rico sentido) a ressur-
reigáo final dos mortos.

Conclusao

A nova concepgáo do homem, acentuando o valor do corpo


a a índole comunitaria da consumagáo da pessoa humana, vem
certamente atender a válidos anseios da filosofía moderna. Re-
age contra exagerado esplritualismo (angelismo) e individua
lismo de pensadores de épocas passadas.
Todavía nao se corrige um exagero mediante outro exa
gero. Nao se confundam entre si corpo e alma para reduzir o
homem a urna unidade artificial ou mesmo irreal: a dualidade
do ser humano é evidente pelo fato de que a materia corpórea
se modifica constantemente em todo individuo, ao passo que a
personalidade conserva a sua identidade.
Por conseguinte, neste momento de hesitagóes e dúvidas
no tocante a táo delicado assunto, parece mais do que nunca
oportuno evitar as posigóes exageradas ou extremistas e aten
der á voz autorizada da Tradigáo Crista e do Magisterio da
Igreja.

Bibliografía:

J. Ratzlnger, "IntroducSo ao Cristianismo". Sao Paulo 1970.


L. Boff, "Teología do Corpo: o homem-corpo é (mortal", em "Vozes",
ano 65, n? 1. ianelro-feverelro 1971, pp. 61-68.
"O Novo Catecismo" com seu Apéndice. Sfio Paulo 1969 e 1970.
J. H. Libanlo, "Mistarlo da RessurreigSo dos Mortos", em "AtualizacSo"
4, marco 1970, pp. 11-20.
P. Hoffmann-H. Volk, "Mort" em "Encyclopódle de la Fol" sob a dlrecBo
de H. Fríes, vol. III. París .1966, pp. 134-155.
Cl. Tresmontant-P. Hoffmann, "Immortalitó", Ib. vol. II. París 1965, pp.
290-311.
B. Thum-V. Wamack, "Homme", Ib. vol. II, pp. 233-261.

— 258 —
nudez na era tecnol
(a propósito de um artigo recente)1

Em sintese: O nudismo, propugnando o despojamento total do corpo


humano em público, basela-se em premlssas contestávels e erróneas, tais
como as de Jean-Jacques Rousseau, segundo as quals a natureza humana
é por si propensa ao bem moral ou Isenta de tendencias desregradas. A fó
crista julga que a natureza está sujelta a Instintos desregradoB, os quals
8§o oportunamente coibldos pela veste. A S. Escritura, alias, augere bola
nocSo teológica de veste.

Verdade é que o nudismo moderno pretende ser urna reacSo contra o


dualismo exagerado e pesslmista que geracSes passadas professaram em
relacfio ao sexo. O homem normal deve adquirir certa llberdade e superio-
rldade no trato do seu corpo, atendendo tranquilamente ás exigencias c*a
higiene e da medicina — o que nSo o dispensa de modestia e pudor.
Ademáis estas atltudes sfio penhor de auténtica saúde (tslca e mental.

Besposta: Nos tempos atuais vai crescendo a campanha


em favor do nudismo ou despojamento ido corpo humano em
público, seja de maneira esporádica, seja de maneira habitual.
As razóes evocadas em favor dessa prática se tornam, por vézes,
sedutoras: apelam para a libertacao do homem moderno em
relacáo ao's tabus antigos, para razóes higiénicas, psicológicas,
pedagógicas, etc.

Em conseqüéncia, procuraremos abaixo reproduzir algo da


problemática Jangada por correntes nudistas; ao que se acres-
centaráo aJgumas reflexóes de bom senso e de consciéncia
crista.

1 Cf. Rose-Marle Muraro, "A nudez na era tecnológica", em "Vozes",


ano 65, rfi 1, janeiro-fevereiro 1971, pp. 39-42.

— 259 —
24 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 138/1971

1. Nudismo e progresso

Os fautores do nudismo em nossos dias apelam tanto para


motivos filosófico-científicos como para a historia antiga.

Vejamos, pois, sucessivamente uns e outros argumentos.

1.1. Naturismo e nudismo

O nudismo pode ser considerado como lexpressáo de urna


tendencia mais ampia dita «naturismo».

1. O naturismo é urna atividade do espirito humano que


aspira a seguir em tudo a natureza ou a realidade visível aínda
nao manipulada pelo homem. Excluí positivamente, ou ao
menos pretende ignorar, os valores de ondem transcendente.

O naturismo gerou um certo tipo de comportamiento social


que apela para a medicina e a higiene e pretende reagir contra
o artifidalismo ida sociedade urbanística e mecanizada. Apregoa
um teor de vida cada vez mais simples; a natureza seria a gran
de «médica» (tese de Hipócrates); dai a necessidade de viver
cada vez mais segundo seus ditames. A conseqüénda é que se
háo de evitar alimentos demasiado delicados ou artificiáis, re
buscados, em favor de um regime sobrio á base de produtos
naturais ou mesmo simplesmente vegetáis; preferir-se-áo vestes
poucas e leves, que nao deformem o físico da pessoa. O naturis
mo preconiza, de maneira geral, a profilaxia contra as doengas
(ou seja, dietas, exercícios físicos, horarios sistemáticos...) a fim
de evitar o recurso a farmáda e remedios para estados mor
bosos. Os nomes mais representativos dessa comente sao Se-
bastiáo Kneipp, Birker Brenner, Paúl Cartón. Em 1931 fundou-
-se em Miláo a Uniáo Naturistica Italiana (U.N.I.), com a
sua revista «L'idea naturista».

O naturismo assim compreendido está longe de favorecer


no homem a vida animal meramente instintiva. Tem, antes, em
vista promover o desenvolvimento harmonioso da pessoa hu
mana em seus diversos planos (corpóreo, afetivo, espiritual).

£!, porém, sob a hégíde do naturismo que tende a se co


locar o nudismo, tentando realcar afínldade com aquéle, embora
na verdade conduza a resultados totalmente opostos ao natu
rismo.

_ 260 —
NUDISMO NA ERA TECNOLÓGICA 25

2. O nudismo é um sistema de doutrinas e práticas que


tem por fím difundir a nudez como se esta fósse- meio oportuno
para atender a necessidades físicas e moráis do género humano.

Varios sao os principios filosóficos ou científicos para os


quais apela o naturismo:

— a filosofía de Jean-Jacques Rousseau (f 1778), segundo


a qual a natureza humana por si é moralmente boa e reta.
A educacáo e as convengóes estabelecidas pelos homens a de-
formariam. Por conseguinte, segundo tais premissas, é neces-
sário despojar-se de todo costume ou de toda regra de vida
imposta pelos homens; entre ésses costumes convencionais, es
taría (segundo a interpretagáo dos discípulos ide Rousseau) o
de trajar-se;

— certas comentes psicológicas, segundo as quais a líber*


tacáo dos instintos 6exuaís é fator de (equilibrio ou reencontró
do equilibrio da personalidade. A veste, sendo indiretamente
um coibitivo ou sedativo désses instintos, deveria conseqüente-
mente ser abolida;

— reacao contra certo pesimismo no tocante ao corpo


e ao sexo. Ésse pessimismo, em épocas passadas, pode realmente
ter suscitado atitudes artificiáis e deformantes do vestuario;
dificultou a aceitacáo da sexualidade própría do homem e da
mulher. Em conseqüénda, há quem pretenda combater os tabus
do sexo, recorrendo mesmo ao acinte e á afronta;

— a onda fie erotismo modeirno" vem suscitando um clima


de sugestionamento psicológico tal que muitas pessoas difícil
mente compreendem o pudor e a modestia de porte e o conse-
qüente uso da veste. Esta pode aparecer como parede ou bar-
reira entre os homens.

Eis as principáis premissas doutrinárias sobre as quais se


baseia o nudismo contemporaeho.
Éste pode apelar também para precedentes históricos, dos
quais abaixo enunciaremos alguns.

1.2. Fale a histeria

Os historiadores apontam fenómenos de nudismo no de-


correr dos sáculos. Tenham-se em vista os seguíntes:

— 261 —
26 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 138/1971

Certos povos primitivos, tribos de indios das zonas trapi


cáis, geralmente na sua fase de declinio físico, psíquico e nu
mérico, cediam ao nudismo.

Na historia das religióes, verifica-se que alguns cultos re


ligiosos incentivavam a «nudez sacra» no Egito, na Grecia, no
próximo Oriente, na India, no México e no Perú antigos; tal
nudez era justificada por «estonias» mitológicas ou pelo culto
dos deuses da fscundidade; em honra de espirites superiores
praticavam-se dangas sagradas com despojamento de vestes.

Em certas populagóes primitivas, as mulheres costumavam


prostrar-se desnudas por- térra a fím de ser favorecidas em sua
fecundidade por fórgas ctónicas, ou ssja, por fórgas mágicas
semidivinas, emanadas do solo.

Entre monges hinduístas e budistas, a nudez tem sido


cultivada a título de ascese, mortificagáo e pobreza; é tida como
expressáo de desprendimento e insensibilidade. No monaquisino
cristáo dos sáculos IV/V, houve também monges (em número
exiguo) que abracaram a nudez parcial ou mesmo total no
intuito de se despojaren! e tornaren! pobres, tentando assim
reproduzir o que chamariam «o estado paradisíaco inicial».
Todavía ésses ascetas cristáos nao fizeram escola; ao contrario,
foram considerados como exóticos; sao heróis ide amor a Deus,
cuja consciéncia merece ser respeitada, sem que por isto seu
comportamento deva ser imitado.

Entre os árabes antigos, a nudez religiosa era justificada


pelo desejo de preservar a pessoa da sujeira física e moral que
adere a toda veste.

Em suma, varios foram os motivos de Índole ou supersti


ciosa ou contestável que inspiraram a nudez através dos sáculos.

Nos tempos atuais, já nao sao as razóes religiosas, mas,


sim, indicagóes de saúde, procura do gozo e de determinado
tipo de arte (note-se o «striptease» na danga) que inspiram
práticas de nudismo, as quais tendem a se impor em onda
crescente.

A partir de 1920, o nudismo conheceu notável difusáo,


primeiramente na Alemanha; depois, na Franca e nos países
anglo-saxónicos, onde se constítuiram grupos destinados a pro-
pagá-lo e praticá-lo, como o «Pelagianer-Bund», o «Lichtfreun-
de» de Berlim, e o dos Irmáos Durville na Franga.

Vejamos agora o que pensar a propósito.

— 262 —
NUDISMO NA ERA TECNOLÓGICA 27

2. A voz da consciéncia

Procederemos por partes.

2.1. Foro de considerajóo

Nao vem ao caso, neste estudo, a nudez exigida por


abalizadas razóes higiénicas ou médicas. Nada há que opor ao
desnudamente do corpo por ocasiáo do banho (mesmo do banho
de sol, se necessário), contanto que se evite promiscuidade de
pessoas, sexos e idades; em tais ocasióes, a preservacáo ou o
fomento da saúde, nao a ostentacáo ou o acinte sao os criterios
a ser adotados. Todavía mesmo nos casos de tratamento higié
nico o pudor e a discricáo merecem ser observados, de modo
a se guardaren* os limites da decencia e da dignidade.

Uma pessoa normal ou psíquicamente sadia deve adquirir


no trato do seu corpo uma liberdade ou superioridade equili
brada. Nao há razáo para se perturbar, desde que seja movida
por ditames moralmente válidos e por sobriedade.

2.2. Em foco

O que vem a consideracáo nestas páginas, é a nudez tida


como expressáo de progresso mental e moral ou como reacáo
contra o espirito exageradamente tímido dos antigos.

A essa tese do nudismo liberal ou libertino podem-se fazer


algumas observacóes:

1) O corpo humano é criatura de Deus; traz em si os


vestigios da sabedoria do Criador (tenham-se em vista as es-
truturas do dlho, do ouvido, do pulmáo...); a rigor, nao se
pode dizer que a natureza corpórea do homem tenha «partes
desonestas». Compreende-se que hoje em dia mesmo os cristáos
mais dignos e respeitáveis nao aceitem o dualismo pessimista
que inspirou certos comportamentos de outrora no setor da
sexualidade; é com mais tranqüilidade e naturalidade que se
encara tal assünto; chega-se mesmo a favorecer (com razáo)
a educagáo sexual dos jovens dentro dos limites e do ritmo
oporturios.

Acontece, porém, que, dentro do ser humano (que é afe-


tivo e racional, ao mesmo tempo), a afetividade nem sempre
obedece á razáo; as tendencias instintivas nao se submetem

— 263 —
28 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 138/1971

dócilmente aos ditames da inteligencia. Daí a necessidade de


se evitar a excitagáo sensual e instintiva que resulta do des
nudamente» do corpo; a nudez pode provocar atos desatinados,
que a pessoa há de lamentar, porque a aviltam ou bestíalizam.

2) Mais aínda: a Escritura Sagrada tem sobre o assunto


importante ligáo. Ela ensina que Deus constituiu os primeiros
país em estado de amizade e filiagáo divina (tal é a chamada
«justica original»). Nota que entáo estavam ñus, mas nao
sentiam rubor por isto (cf. Gen 2,25); possuindo a amizade e
a graga de Deus, desfrutavam de harmonia em si mesmos ou
em seus instintos. Os primeiros homens, porém, pecaram, nao
se maniendo na fídelidade a Deus. Urna das conseqüéncias
déste ato de rebeliáo. é assim descrita pelo texto sagrado:
«Abriram-se os olhos aos dois e, reconhecendo que estavam ñus,
prenderam fólhas de figueira urnas as outras e colocaram-nas
como se fóssem cinturóes á volta de seus ríns» (Gen 3,7).

Nao vem ao caso examinar aqui os pormenores desta cena


bíblica (em que terá consistido o pecado? onde se deu? quan-
do... ?). Apenas convém frisar que nao há fundamento bíblico
para se dizer que foi pecado sexual. Mas o que importa, é de*
preender éste aspecto da mensagem: o homem senté rubor de
sua nudez em conseqüéncia do pecado, ao passo que antes déste
nao o sentía.

Por qué?

— O pecado despojou o homem de algo, ou seja, da ami


zade e da graga de Deus, que o tornavam harmonioso. Para
encobrir ésse despojamento e evitar as manifestagóes de sua
desarmonia, o homem passou a usar veste. Assim a S. Escri
tura intenciona propor o significado da veste ou da roupa do
homem; esta se tornou necessária para evitar que a pobreza
ou a fraqueza interior do homem se exteriorizem em atos
desarmoniosos.

As páginas bíblicas da Anllgo Testamento menclonam mais de urna


vez a nudez como sinal da degradacSo que possa atetar alguém em con-
seqDSncla do pecado.
Asalm Noé, embriagado e desnudo, passa vexames (el. Gen 9,21).
Diz o profeta a fllha (ou ao povo) de Edom: "A ti também chegará o
cálice e, embriagada, descobrirás a tua nudez!" (LamentacSes 5,21).
Cf. Jar 13,26; Is 3,17; 20,4; Hab 2,15; Lam 4,21...

O primeiro homem mesmo, conforme Gen 3,10, responde


ao Serihor: «Tive médo porque estou nu». O pecado fez que

— 264 —
NUDISMO NA ERA TECNOLÓGICA 29

o homem perdesse a consciéncia de que pertence a Deus; a


nudez o surpreende como um espélho que já nao reflete a
imagem do Criador. Deus, porém, nao afasta os primeiros ho-
mens pecadores sem os ter revestido de túnicas de pele (Gen
3,21). Evidentemente trata-se aqui de metáfora, A veste dada
por Deus nao extingue o despojamento e a desarmonia que o
homem após o pecado experimenta e experimentará; mas essa
veste simbólica significa que o homem continua a ser chamado
á dignidade de fílho de Deus (revestido da graga santificante),
dignidade que o primeiro pecado ameagou. Na visáo bíblica,
portante, a veste veio a ser o sinal de» que, de um lado, o
homem está interiormente desnudado (destituido de harmonía,
pois é portador de concupiscencia desordenada), mas, de outro
lado, ele conserva a possibilidade de voltar á gloria perdida.

3) Pelos motivos atrás indicados compreende-se que numa


autentica visáo crista nao se pode justificar o nudismo.

Este supóe a tese filosófica de J. J. Rousseau segundo a


qual a natureza humana é por si propensa ao bem moral .e
isenta de tendencias desregradas. Ora, tal proposicáo nao se
concilia nem com a experiencia nem com a concepcáo crista do
homem. A veste tem um significado e urna fungáo sugeridos
ou mesmo exigidos pelas presentes condigóes do ser humano.
Ela exprime a realidade íntima da pessoa: esta é, como foi
dito, alguém que padece desordem interior, mas tende a se
resstruturar segundo os ditames da sá inteligencia e da fé.

A recusa sistemática de veste redunda em excitagáo da


concupiscencia desordenada. Tende a favorecer a vida instin
tiva do homem, nao levando em consideragáo o fato de que
nem tudo que a sensualidade pede é apto a construir urna au
téntica personalidade. Esta, como dissemos, se rege, antes do
mais, pela razáo e pela fé; concebe um ideal condizente com
sua dignidade e, em vista disto, deve saber evitar tudo que a
desvie para urna vida meramente erótica ou hedonística.

4) É possível que a prática do nudismo conoorra para


dissipar a curiosidade sexual e os tabus concernentes á sexua-
lidade. Todavía ficará sempre no homem a tendencia impulsiva
e irracional, para a qual a nudez há de ser sempre um aguilhao.
Jamáis se conceberá um ser humano que nao tenha impulsos
sexuais e que nao se veja exposto a sucumbir-lhes independen-
temente dos propósitos de sua razáo; o desnudamente, por
tante, será sempre um excitante para o instinto.

— 265 —
30 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 138/1971

5) As razóes pretensamente higiénicas alegadas em favor


do nudismo nao se impóem á evidencia: nao há dúvLda de que
o sadio metabolismo do organismo rejeita roupagem desne-
cessáriamente pesada e modas ou artificios deformantes; exige
também contato com o sol. Todavía a prática da helioterapía,
fora excegóes, nao requer total desnudamente. — Em qualquer
hipótese, a saúde física e mental da pessoa humana só pode
ser beneficiada pela observancia do pudor. Por mais evoluLdo
ou civilizado que se torne o homem, ele jamáis poderá dispen
sar autodominio, temperanga, fórga de vontade...; ora, estas
qualidades tém no nudismo um antídoto e um contra-testemu-
nho, como encontram num vestuario sobrio e digno o seu
fomento e a sua expressáo auténtica.

6) Observam, de resto, os estudiosos que a extingáo, ao


menos parcial, do interésse e da curiosidade sexuais (caso ela
fósse obtida pelo nudismo) poderia acarretar frieza e dimi-
nuigáo das disposigóes necessárias para a realizagáo conjugal;
em conseqüéncia, as pessoas interessadas poderiam ser induzi-
das a procurar novos e requintados estímulos para a vida
sexual, chegando mesmo a práticas aberrantes neste setor.

3. E o nu artístico?

A respeito do nu artístico já foi publicado um artigo em


PR 1/1958, pp. 31-33. A propósito observe-se:

Justifica-se a representacáo plástíca do corpo humano des


nudo, caso se torne educativa para o espirito, elevando-o a
Deus; o corpo pode, sim, elevar ao Serihor, pois é artefato do
Supremo Artista. Contado note-se que a confecgáo e a cbn-
templagáo de urna obra de arte nao sao valores absolutos; estáo
subordinados á adesáo do espirito humano a Deus.

Por conseguinte, para que algum pintor ou escultor possa


licitamente executar o nu, deve possuir sólida estrutura moral
e clara intuigáo dos valores que estáo em jdgo, de sorte a
poder confeccionar um artefato que realmente eduque o espi
rito, fazendo indiretamente ver e amar a Deus. Isto nao é
impossível; a experiencia, porém, ensina quanto é difícil. Mes
mo quando o artista executa urna obra apta a construir e
elevar, acontece nao raro que ésse objeto exposto ao público
vai provocar desordem nos espectadores. Por conseguinte, será
sempre necessário que o artista bem intencionado cuide de

— 266 —
NUDISMO NA ERA TECNOLÓGICA 31

que seus artefatos nao sejam entregues a um público incapaci


tado de os entender devidamente.

Á guisa de ilustracáo, pode-se ainda dizer. urna palavra


sobre

4. Repressóo á obscenidade

Em mais de urna das nagóes ocidentais tém-se empreendido


campanhas em favor da liberagáo da pornografía e da obsce
nidade, mediante a ab-rogacáo das leis que coibem ou restrin-
gem o obsceno.

Na Dinamarca, tal resultado já foi obtido.

Na Alemanha Federal, por maioria de um voto apenas, o


«Bundesrat» (Parlamento) rejeitou um projeto de lei que vi-
sava a cancelar o artigo 184 do Código de Direito Penal (re-
pressáo k obscenidade e ao lenocinio).
Nos E.U.A., a Comissáo Nacional referente & Obscenidade
e Pornografía publicou um parecer favorável & liberacáo de
ambas em notável escala:1 preconizava a aboligáo das leis que
limitam os direitos ele ler, obter ou ver material de conteüdo
explícitamente sexual. A ésse parecer respondeu em novembro
de 1970 o Presidente Richard Nixon nos seguintes termos:

"Há atgumas semanas, a ComlssSo Nacional referente á Obscenldada


e Pornografía apresentou o resultado do seu estudo. Examlnel atentamente
ésse relatarlo, e categóricamente rejeito as suas conctus6e3 moralmente
desfatecentes. Enquanto eu estlver na Casa Branca, n&o haverá afrouxamen-
to no esforco nacional para controlar e eliminar o obsceno em nossa vida
nacional. A Comlssao afirma que a proltferacfio de Ilvros e espetáculos
Indecentes nBo tem afeito duradouro, nocivo aos valores do ser humano.
Se Isto «sse verdade, tambóm deverla ser verdade que llvros, pinturas e
espetáculos de índole positiva n&o tem efelto nobllltante para a conduta
do homem. Ora, séculos de civilizado a dez minutos de bom senso nos
dtzem o contrario.

A Comlssfio recomenda a ab-rogacSo de todas as leis que controlan)


a pornografía para os adultos, mas recomenda que contlnuem as restrlefias
para as crlancaa. Numa socledade aberta, tal proposta é Insustentável.
Se a cota de lascivia sobe entre os adultos, a Juventude da nossa socledade
nSo pode delxar de ser acometida por essa InundacSo. A pornografía pode

1 Cf. "The report of the Commlsslon on Obscenity and Pomography",


publicado em "paperbook" com introduefio de C. Barnes do "New York
Times", Bantam 700.

— 267 —
32 ePERGUNTE E RESPONDEREMOS» 138/1971

corromper urna sociedade e urna clvlilzacao. Os representantes que o povo


escolheu, tfim o direlto e o dever de Impedir tal corrupcao.

A apresentacjo retorcida e brutal do sexo em llvros, espetáculos, re*


vistas e (limes, se n3o ffir detlda e neutralizada, poderá envenenar os
gérmens da cultura e da civilizado americanas e ocldentals. A contamina-
c3o da nossa cultura, a contaminacSo da nossa civilizado mediante porno
grafía e obscenldade constituem problema tao serlo para o povo americano
quanto a poluicSo do ar e da agua. A pornografía nem sequer deverla ser
mantlda na escala em que se acha. Deverla ser banlda de todos os Estados
da Uniao. Assembléias e Cortes legislativas, em todos os nivels do govérno
norte-americano, deveriam agir concordemente para attngir essa remocao.

Reconheco perfettamente a Importancia de protegemos a liberdade de


expressáo. Mas a pornografía é para a liberdade de expressao aqullo que
a anarquía é para a liberdade em geral. Como os homens livres sacrifican*,
de boa vontade, urna parte de sua liberdade, assim nó3 devemos tracar
urna linha contra a pornografía a fim de proteger a liberdade de expressao.
A C6rte Suprema Já há multo sustentou, e recentemente reafirmou, que a
obscenldade nSo ó enquadrada dentro do setor de protecSo da palavra e
da imprensa. Aqueles que procuran» abater os diques da obscenldade e da
pornografía, Infligem um golpe severo Justamente áquela liberdade de ex
pressáo que files professam propugnar. Além do mals, caso se adotasse'
urna alitude de tolerancia frente á pornografía, esta contribuirla para criar
urna atmosfera propicia a anarquía em todos os outros setores, e agravarla
a ameaca a nossa ordem social, assim como aos nossos principios moráis,
Alexis de Tocquevllle, observando a América há mals de um sáculo, escre-
veu: 'A América é grande porque é boa, e, se a América deixasse de ser
boa, ela deixarla de ser grande'. Nos todos temos a responsabilldade de
manter a América como urna nacao boa. A moralldade norte-americana nSo
seja concebida levianamente. A ComissSo referente á Pornografía e a
Obscenidade prestou um desservlco, e eu rejeito totalmente o seu relatório".

(Texto extraído de "L'Osservatore Romano" [ed. italiana] de 6/XI/1970).

Outra rejeicáo do relatório da Comissáo procedeu do Se


nado norte-americano, que, com 60 entre 65 votos, apoiou o
parecer do senador Me Clellan, onde se le: «Se o Congresso
tivesse psdido aos pornográficos escrevessem um parecer em
prol da pornografía, duvido <Je que tivessem chegado á temeri-
dade de formular recomendagóes táo ridiculas quanto as da
Comissáo». Alias, dentro da própria Comissáo que promulgou
o famoso relatório, a minoría dissidente declarou: «The Com-
mission's majority reports is a Magna Carta for the pornogra-
pher» («L'Osservatore Romano», ed. citada).

Poder-se-iam mencionar numerosos outros documentos so


bre a liberdade de costumes que vai penetrando cada vez mais
fundo na sociedade contemporánea. Parece, porém, que ñas
páginas precedentes as grandes linhas do problema do nudismo
estáo estocadas de modo a poder encaminhar seria reflexáo
sobre o assunto.

— 268 —
NUDISMO NA ERA TECNOLÓGICA 33

Bibliografía:

Revista de cultura "Vozes", ano 65, n<? 1, janeiro-feverelro 1971.

Apelo dos dirigentes cristáos belgas em favor da moralidade, em "In-


formations Cathollques Internatlonales", n? 377, de 1/11/1971, pp. 8-9.

A. Closs e R. Egenter, "Nacktheit", em "Lexikon für Theologle une1


Kirche" Vol. VI. Freiburg I./Br. 1962, cois. 772-774.

C. Scarpellinl, "Naturismo", em "Enciclopedia Cattolica' VIII. Cittá del


Vaticano, cois. 1961s.

P. Müller, "La vita all'aria aparta", Milano 1931.

H. C. Warren, "Social nudism and body taboo", em "Psychological


Review" 40 (1933), p. 160.

S. Lener, "La difesa pénale contro l'osceno, oggi", em "La Civiltá


Cattolica", qu. 2895, 6/11/1971, pp. 215-227.

(Continuando da pág. 21,6)

no mundo em que vivem. Ésses capítulos do Génesis tém em mira exprimir,


mediante llnguagem simples, um aconteclmento singular, decisivo para a
historia da humanldade: os prlmelros homens foram elevados por Deus a
um plano de vida sobrenatural; submetidos a uma opcSo (para que dissessem
Slm ou N3o ao designio divino), fecharam-se na autosuficiencia e na sobar
ba; em conseqüéncla, perderam os dons gratuitos que possulam originaria
mente. Os fllhos que déles nasceram e nascem, carecem conseqüentemente
dos dons que os prlmelros país possuiam e devlam ter transmitido. Essa
carénela é o que se chama "o pecado original" (pecado em sentido ampio,
sem responsabilldade pessoal para a crianca)ou "nódoa original". Esta n3o
Implica culpa na crlanca, mas é a ausencia de uma ordem de coisas e da
graca sobrenatural que devlam ser transmitidas pela geracéo a todos os
homens; Deus nSo se vlnga da crlanca nem a castiga, permltlndo que ela
nasca sem tais dons; Ele apenas delxa que se exarca a solldarfedade que
necessáriamente existe entre genitores e descendentes: todo filho herda, e
sói pode herdar, aqullo que seus país tém para Ihe transmitir. Nao se deve,
pols, reduzlr o "pecado original" (que ateta todo homem ao ser concebido)
á Inlqüldade reinante no ambiente ou no mundo em que vivemos.

A flm de corroborar estas aflrmacoes, note-se que a S. Escritura assocla


os conceitos de morte e seus precursores (a dor, a miseria, a nudez...)
á nocSo de pecado. A morte, na Bllblla, nfio é considerada slm plásmente
como algo de natural (embora ela o seja também), mas é tida, dentro da
concreta ordem de coisas em que estamos, como conseqüéncia do pecado
e de uma desordem introduzída Inlclalmente pelo homem neste mundo.
Vejam-se p. 17 [253], 28 [264] déste fascículo.

(Continua na -pág. 277)

— 269 —
"cávalo de tróia na cidade de deus":
um desafio!

Em sfntese: O livro ácima, da autoría do pensador católico alemao


Díetrich von Hildebrand, é urna tentativa de analisar desvíos e abusos que
se ¡ntroduzlram na teología e na vida de muitos católicos: conceitos defi
cientes de verdade, ■ autentlcidade, dinamismo da historia, lei moral, culto
sagrado, exegese bíblica, Tradlcáo, etc.

A tarefa do autor é melindrosa. Como quer que seja, aponta realmente


erros que prejudioam grandemente a vida e o testemunho da Igraja em
nossos dias. Sem descer ao plano do panfletlsmo e da polémica sectaria,
D. v. Hildebrand a|uda o público a distinguir Jólo e trigo na hora atual.
Multo agrada ao leltor do livro observar a erudlcfio do autor, seu acume
filosófico e a serenldade com que encara os problemas. — Livro oportuno
e altamente recomendável nesta fase ambigua da historia.

Comentario: É freqüente dizer-se que vivemos numa época


confusa ou até em crise, dentro e fora da Igreja. Certos auto
res, de vez em quando, tentam catalogar os indicios da crise,
alertando o público para os motivos e os respectivos perigos.
Tal é o caso de Dietrich von Hildebrand no livro ácima (cujo
título parece, á primeira vista, panfletário, mas na verdade
designa urna obra serena e construtiva). O autor é um fiel
católico leigo, benemérito por obras de filosofía e teología. De
origém alema, vive atualmente nos E. U. A., onde exerce o
magisterio.

Como o título do referido livro insinúa, o autor tende a


mostrar que dentro da Igreja se tém infiltrado idéias e com-

— 270 —
«CÁVALO DE TR6IA...» 35

portamentos que, longe de exprimirem o auténtico pensamento


do Evangelho e do Concilio do Vaticano II, so contribuem para
o deteriorar. D. v. Hilctebrand evita linguagem agressiva; re
corre a ampia cultura filosófíco-teológica e dá provas de eleva
do espirito de fé. O autor procura apontar os limites entre a
verdade e o erro, entre o genuino e a contrafagáo em setor.es
melindrosos, alias mais de urna vez focalizados pelo S. Padre
Paulo VI (progresso e evolugáo da Igreja, liberdade moral,
ecumenismo, liturgia, interpretacáo da S. Escritura, fé e su a
perenidade, secularizagáo.. .)•

Abaixo procuraremos focalizar alguns dos tópicos mais


significativos do livro de D. v. Hildebrand:

1. RenovagSo da Igreja

1. O autor reconhece «os muitos elementos positivos que


caracterizam o nósso tempo» e professa nao querer «louvar
exclusivamente o passado por ser passado». Julga, porém, que
devemos «assumir urna atitude critica e objetiva com relacáo
ao nosso próprio tempo». Hoje em dia há quem queira «adaptar
a religiáo» (p. 89; cf. p. 176). As mudangas a ser introduzidas
na Igreja nao podem significar alteracáo radical, mas supera-
gáo de nossas imperfeigSes. Em relacáo ao passado, ésse desen-
volvimento significa «eliminacáo das infidelidades que invadi-
ram o santuario» (p. 200), abrandamento do espirito demasia
damente jurídico ou juridicista de outros tempos, exercído de
autoridade que cuide de nao despersonalizar o súdito obediente
(cf. p. 45), conceituagao tranquila de amor conjugal, o qual
nao significa necessáriamente impureza moral (cf. pp. 35s. 43),
preocupado com as neosssidades concretas do próximo tanto
no plano material como no espiritual, em lugar de urna concep-
cáo talvez individualista da piedade e da vida cristas (cf. pp.
36-43).

Após catalogar tais pontos, que sao objeto de legítima re-


visio em nossos días, Dietrich von Hildebrand faz questáo de
observar que essa revisáo só pode consistir em nevigoramento
do espirito do Evangelho, sem ruptura brusca ou violenta com
os valores do passado.

2. O autor considera de modo especial a opiniáo de que


chegaremos finalmente ao reto equilibrio, nos satores do pen
samento e-do agir, passando por erros; outrora foram cometidos

— 271 —
36 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS* 138/1971

erros ou omissóes (decorrentes da fragilidade humana); hoje


vivemos a reacáo violenta a essas fainas, a qual também é
errónea; por fim, ésse movimento pendular nos dará a síntese
ótíma (tal seria a interpretado popular da idialética de Hegel:
tese, antítese, síntese). Por exemplo, outrora era fortemente
acentuada a autoridade; nossa época enfatiza a liberdade; em
tempo oportuno, porém, ¿negaremos á síntese ideal.

A tese hegeliana pode, em certas casos, corresponder á


realidade (os alimentos nao devem ser nem muito salgados
nem insulsos; a temperatura de um quarto nao deve ser nem
multo quente nem muito fría). Mas D. v. Hildebrand lembra
que o movimento pendular nao exprime sempre o roteiro pelo
qual chegamos á verdade. A sintiese nao está necessáriamente
mais próxima da verdade do que a tese e a antítege. A verdade
pode estar ácima dos dois extremos, e nao no mesmo plano
entre éles; mesmo que os dois extremos paregam completamen
te antagónicos um ao outro, participam de um erro fundamen
tal, de sorte que a verdade difere de ambos os extremos muito
mais do que estes diferem um ido outro.

Assim, por exemplo, até o século passado ignoravam-se,


de certo modo, os valores da comunidade. Sobreviera mos cole-
tivismos marxista, fascista, nazista... Ora, o individualismo,
supervatorizando a pessoa, nao é simplesmente urna verdade
incompleta ou exagerada, mas urna distorcáo do conceito de
pessoa. Esta tem necessidade de entrar em comunháo com os
seus semelhantes. De outro lado, o coletivjsmoí reduz a pessoa
á qualidade -de piáo de xadrez — o que também é erróneo.
A posigáo verdadeira nao poderá ser a síntese das duas distor-
gdes, mas há de pairar ácima de urna e outra. Pessoa individual
e comunidade se acham táo vinculadas entre si que é imposível
fazer justica a urna ou a outra sempre que se enfatize urna
em prejuízo da outra; individualismo e coletivismo perdem de
vista a verdadeira esséncia e a dignidade tanto da pessoa como
da comunidade. Posigóes extremas nao sao verdades incom
pletas, mas, sim, desfiguragóes.

2. Verdade e autentidcfade

Eis dois valores que em todos os tempos, máxime em


nossos días, gozam de profunda estima.

No tocante ao conceito de verdade, observa-se o seguinte:


o homem contemporáneo descobriu a dimensáo histórica da

— 272 —
«CÁVALO DE TR6IA...» 37

realidade. Por conseguinte, verifica que as maneiras de expri


mir a verdade sao, muitas vézes, condicionadas pelas circuns
tancias de determinada época; é necessário reformular tais
maneiras. — Eis, porém, que ésss afá envolve o perigo de se
relativizar a própria verdade ou de se julgar que é táo volúyel
quanto os quadros de cultura e civilizagáo em que os homens
vivem. Cf. «Cávalo de Troia» pp. 159-162.

Por autenticidade entende-se, ás vézes, o comportamento


espontáneo, livre de qualquer coagáo externa. O conceito é vá
lido; é para desejar que o homem aja por convicgáo e nao por
coagáo. Nao se pode, porém, deixar de apontar o perigo de
que o sujeito faga de seus sentimentos pessoais a tónica deter-
minagáo do seu comportamento; cairia entáo na arbitrariedade.
Existem normas objetivas de comportamento, porque existem
realidades em torno de nos que nao criamos, mas encontramos,
e que nos interpelam. Em conseqüéncia, é necessário que todo
homem faga um esfórgo para adaptar seus ssntimentos (muitas
vézes, cegos ou volúveis) á realidade objetiva e, assim convicto,
proceda espontáneamente. Esta observagáo tem aplicagáo es
pecial no setor dos deveres religiosos e moráis: é preciso que
eu ore,... que eu me arrependa de meus pecados, aínda que
me sinta satisfeito comigo mesmo, pois na verdade sou cria
tura pecadora. É necessário que participe da S. Missa, aínda
que minha piedade subjetiva nao o pega, pois a Missa é a
obra da Redengáo perpetuada sobre os altares para cristiani
zar os nossos dias e as nossas semanas. É preciso também que
eu saiba respeitar o próximo e, em particular, a integridade
física e moral de meus semelhantes, ainda que meus sentimen
tos espontáneos me sugiram violentamente o uso e o abuso
do corpo. A autenticidade ou espontaneidade que nao atendesse
a valores extrínsecos e objetivos, redundaría em capricho ou
mesmo degradagáo do ser humano.

3. Os «slogans»

Nao é raro dizer-se hoje em dia: «Finalmente o homem


alcangou a maioridade».

Nao é esta, porém, a primeira fase da historia em que


isto é afirmado. No período do Duminismo (séc. XVII/XVIÜ)
já os filósofos asseveravam isto com muito garbo, e olhavair.
para os tempos anteriores como sendo de trevas e imaturidade.
Hoje em dia os filósofos do século XVIH parecem ultrapassados,

— 273 —
38 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS? 138/1971

de sorte que se julga estantíos realmente agora na maioridade


do género humano.

D. v. Hildebrand comenta ésaas fatos, comparando-os com


o que se dá na vida de cada individuo: na crise da puberdade,
o jovem julga poder olhar com desdém para o passado e se
mostra cioso de afirmar a sua independencia; está convicto ¡de
sua maturidade. Um belo dia, porém, langando um olhar para
os anos de puberdade, o mesmo individuo toma consciéncia de
quanto entáo se iludía. Ora parece, segundo v. Hildebrand, que
o género humano está sujeito a incidir, vez por outra, nessas
crises de pubendade, que revelara demanda de maturidade, nao,
porém, a presumida maturidade.

O autor ilustra suás afirmacóes, observando que «a per-


centagem de livros e artigos sem valor... parece mais elevada
hoje do que em qualquer outro período da historia» (p. 134).

Os «slogans», as palavras repetidas sem contaúdo ou com


conteúdo vago sao outros tantos síntomas de quanto o homem
hoje, apesar de tudo, é dependente e sujeito a «ir na onda».
O próprio vocábulo «Deus» tornou-se «slogan» ou palavra de
moda gue os homeñs podem ter interésse em utilizar. É v.
Hildebrand quem escreve:

Certa fella contou-me um professor Italiano a conversa que tivera


com Hltler. Ao perguntar-lhe que objecoes fazia ao comunismo, recebeu a
seguinte resposta: "A objecao que fago a essa gente, 6 o fato de serem
ateus". Comecou entáo a gritar: "Nada plor do que um povo que Jé n§o
acredita em Deus". Mas, quando o professor Indagou se "Deus", para Ste,
slgnificava um Deus personificado!, repllcou: "Preferirla nao responder a
essa pergunta".

A razSo, é claro, é que "Deus", para ele, nada significava; o termo


era urna arma empregada para tmpressionar a um professor católico (p. 134).

D. v. Hildebrand lembra também os «slogans» mediante


os quais se propagou o nacional-socialismo e se difundem outras
ideologías. «O princípio-mestre, em tudo isto, é o conselho de
Hitler: repetir urna mentira até que se creía nela... Muita
gente engolirá qualquer contra-senso desda que possa ser con
siderado como homem moderno... alguém que atingiu sua
maioridade» (p. 135s).

1 "Deus personificado" nfio é Deus com figura humana, mas Deus que
é Sabcdoria e Amor.

— 274 —
«CÁVALO DE TRÓIA...» 39

O babeo nivel intelectual e a falta de originalidade de nu


merosas producóes de nossos dias lembram a D. v. Hildebrand
os dizeres de Kierkegaard: «Tendo-se os homens recusado a
usar sua liberdade de pensamento, reclamam como compensa-
cáo a liberdade de expressáo» (p. 135).

4. O passado da Igreja

A historia da Igreja é a manifestagáo de Deus que através


das criaturas humanas (iracas e (deficientes como sao) procura
elevar os homens ao consorcio da sua vida eterna. Por isto a
historia do Cristianismo nao pode deixar de trazer as marcas
sombrías dos seus atores humanos. A propósito escreve D. v.
Hildebrand:

"Mullos católicos... crém que, destacando o lado sombrío da historia


da Igreja — isto é, a falha de mullos em seguir o apelo de Cristo —
estSo sendo multo oblativos e humildes; alias, estSo ó acusando sua próprla
Igreja. Mas esta atltude nfio ó, de tato, o humilde mea culpa do Confíteor;
é o arrogante vestra culpa, pois 6sses católicos abrlram mSo de sua soli-
darledade á Igreja de hoje. Daf ser farisaica a sua condenacSo do passado
& guisa de auto-acusacSo.

Nfio estamos negando que a historia humana da Igreja — tal como


tfida a historia humana — encerré páginas negras. Slmplesmente estamos
Inslstlndo em que, se alguém deseja olhar com objetlvldade para a historia,
terá de reconhecer que a doutrlna de Cristo Implícitamente sempre conde-
nou os abusos Introducidos por seus fllhos. Pecadores houve na Igreja de
ontem e os há na Igreja de hoje. Mas a Igreja, em seu divino magisterio,
emerge gloriosamente ¡libada na historia maculada pela fraqueza humana,
por erros, imperfelcSes e pecados. E o que distingue sua historia da
historia de outras instltuicSes humanas e testemunha a favor de sua orlgem
divina, é o milagre da pldlade de santos que formou ao longe da sua his
toria" ("Cávalo de Trota...", p. 219).

Em poucas frases o autor lembra assim verdades grande


mente oportunas.

5. Belezo e pobreza

Outro tópico significativo no livro de Dietrich von Hilde


brand é o que se reitere «á funcáo da beleza na religiáo» (cap.
XXVI, p. 203-211).

Beleza nao significa riqueza, aparato e luxo; tais elemen


tos nao sao necessários para que algo possa passar por bslo.

— 275 —
40 «FERGUNTE E RESPONDEREMOS» 138/1971

Beleza também nao implica esteticismo, ou seja, o desmedido


culto das belas linhas que leve a menosprezar o culto ao
próprio Deus («nao vou á igreja, porque é feia e a música
mediocre»).

A beleza consiste en uso das devidas proporgóes, em linhas


sobrias, mas bem tragadas (na arquitetura de um templo, na
configuragáo de paramentos, cálices e demais alfaias da Igre
ja), em atitudes dignas, compassadas e comedidas (sem arti-
ficialismo). Em outras palavras: a beleza consiste em que o
corpo humano e os elementos materiais que ele usa, se tornem
transparentes para os valores espirituais ou auténticos espelhos
das verdades da fé e da sabedoria de Deus.

Ora, a prática da Religiáo auténticamente compreendida


está íntimamente associada á beleza. O culto pessoal e comuni
tario realizado em estética é a oferta a Deus do que o homem
tem de mais nobre em si. Dai a inconveniencia de se banaliza-
rem a arquitetura sacra e os oficios litúrgicos, introduzindo-se
nestes certos ritmos que, longe de levar a Deus, só ooncorrem
para distrair o espirito (cf. p. 209). Naturalmente, a beleza e
o bom gósto da Liturgia nao implicam seja celebrada em latim,
segundo cerimoniais que já nada simbolizan! para o homem
de hoje. O culto sagrado tanto deve ser adoracáo de Deus
quanto mensagem para o homem; ora, tais objetivos nao se
obtém plenamente se á beleza da Liturgia é concebida á seme-
lhanca da arte barroca e rococó ou das óperas teatrais, que
muitas vézes só encontram exiguo eco no homem contempo
ráneo.

6. Reflexao final

Um livro como «Cávalo de Troia...» é naturalmente apto


a dividir os leitores, provocando ora aplausos, ora indignagáo.
Pretende analisar a realidad» teológica e eclesial de hoje no
intuito de despertar as consciéncias para erros que, sa persisti-
rem, seráo mortíferos para numerosos católicos.

Urna tal análise está sempre sujeita a exceder os seus


limites ou a exagerar. Dietrich von Hildebrand, num ou noutro
ponto, pode ter sucumbido a posigóes unilaterais: referiu-se,
por exemplo, a urna só das varias accepgoes de secularizayao
(cf. pp. 194-202).

Como quer que seja, o autor chama a atengáo para genui-


nos perigos que ameagam a fé e a vida da Igreja de hoje;

— 276 —
«CÁVALO DE TRÓIA.. ■> 41

argumenta sólidamente, sem saudosismo nem errónea estrei-


teza de vistas. O leitor pode ponderar as razóes que v. Hilde-
brand propóe, pois inegávelmente o autor se revela lógico e
culto (evidentemente marcado pela cultura da Alemanha e
dos E. U. A.).

Aceitando o grande contingente de vendade que há na


obra de D. v. Hildebrand, o leitor terá naturalmente que se
precaver contra o pessimismo ou a tendencia a fazer prognós
ticos sombríos sobre o futuro da Igreja; esta tem a garantía
da indefectível assisténcia de Cristo até o fim dos sáculos (cf.
Mt 28,20). O leitor acautelar-se-á também contra o possível
acirramento de posigóes e contra a eventual propsnsáo a des
confiar de .tudo que se faga de novo na Igreja contemporánea.
Nesta há realmente movimentos inéditos, descoberta de valo
res latentes, expressóes de vitalidade e entusiasmo admiráveis;
estes sao sinais da presenga de Cristo em seu Corpo Místico,
que a fragilidade humana sempre (desde Judas) desfígurou,
desfigura e desfigurará. Seria falso apontar apenas problemas
e nuvens nos horizontes do catolicismo contemporáneo.
Procuremos nao dividir os membros da Igreja, mas, antes,
respeitar a áurea norma de Joáo XXKC e do Concilio do Va
ticano II: «Ñas coisas essenciais, haja unidade; ñas coisas ati-
dentais (ou dúbias), liberdade; em tudo, caridade» (Constitui-
gáo «Gaudium et Spes» n« 92).

(Continuaído da pág. 269)

2) Existen) declaracdes do magisterio da Igreja sobre a elevagüo á


graca e o pecado dos prlmeiros país: afirmam que o pecado inicial da
humanldade nSo é um pecado como outro qualquer, que se tenha engros-
sado á semelhanca de urna bola de nevé, mas fol um ato cometido em
circunstancias singulares e Irreversivels. — De resto, note-se que o assunto
abordado por Gen 2-3 nfio é de aleada da filosofía nem das ciencias natu-
rals (escapa ao alcance destas); ó estrltamente um assunto de RevelacBo
Divina e de fé; ora, neste setor a prlmelra fonte a ser consultada é a
Tradlcfio (oral e escrita) da Igreja, auténticamente professada pelo magis
terio da Igreja. Por Isto é que, na exegese de G6n 2-3, nSo se podem
deixar de levar em conta fiel as dertsSes conciliares relativas ao pelagianlsmo
(Concillo de Cartago em 418 e de Orange em 529), ao luteranlsmo (Concillo
de Trento em 1545-1563) e ao jansenismo (séc. XVII/XVIII), assim como os
documentos do Vaticano II e de Paulo VI. Na ConstituicSo "Gaudium et
(Continua na pág. 285)

— 277 —
tolerancia traidora?

Em sínlese: A S. Congregado para a Doutrina da Fé (antigo Santo


Oficio de Roma) publicou em. 15/1/71 um novo Regulamento para o exame
de doutrinas suspeitas de erro na fé ou de heresia.

£sse novo Regulamento visa, de um lado, a garantir a incolumtdade da


mensagem crista, intocável aos homens porque revelada por Deus. Visa
outrosslm a evitar acusacSes precipitadas e julgamentos falsos contra os
autores Indlgltados. Desde que alguém seja suspeito de professar erros na
fé, suas opinides sao sujeltas a exames e debates na S. CongregacSo para
a Doutrina da Fé: concede-se ao mencionado autor a ocasiSo de se defen
der mediante um quase advogado; o próprlo autor pode ser chamado a
Roma para propor mals claramente o seu pensamento. Sómente depols de
averiguados evidentes erros doutrlnárlos, a CongregacSo para a Doutrina
da Fé, tendo pedido a aprovacáo do S. Padre, toma as medidas necessárias
para evitar que tais erros se alastrem e pre]udiquem o povo de Deus. As
sanctos a ser aplicadas ao autor nao sao estipuladas pelo Regulamento
mesmo, mas flcam a criterio do tribunal eclesiástico respectivo.

Besposta: Em fevereiro de 1971 apareceram na imprensa


internacional noticias que deram ensejo a equívocos.

Com efeito, os jomáis proclamaran! que a Igreja refor-


mulou o seu modo de proceder diante de publicacóes suspeitas
ou pouco ortodoxas. Á margem da Instrugáo que determina o
novo trámite, Instrugáo datada de 15 de Janeiro de 1971, Mons.
Giuseppe Tomko, da Congregagáo para a Doutrina da Fé (an
tigo «Santo Oñcio») deu urna entrevista portadora das seguin-
tes declaracóes: <cA Igreja nao pretende excomungar os teólo
gos que adotarem posigóes consideradas erróneas pela Con-

— 278 —
EXAME PE DOUTRINAS SUSPEITAS 43

gregaclo. A pena mais sevsra será urna declaragáo pública da


Santa Sé, dizendo que seus ensinamentos estáo errados e de-'
terminando sua expuMo do magisterio, no caso de serem
professóres» («Jornal do Brasil» 5/II/71). Diz aínda a impren
sa que, em vez de se usar o termo heresia, se preferiría a
expressáo «erros doutrinais» para designar os ensinamentos
contrastantes com a fé católica.

Será que, adotando suas novas normas, a Igreja está


traindo a verdade ou aceitando semiverdades? Estaría ela se-
guindo padróes meramente mundanos, quase com vergonha de
comunicar integralmente a sua mensagem ao mundo?

Para desfazer qualquer mal-entendido a respeito, vamos


abaixo apresentar 1) o conceito de heresia, 2) o teor do novo
Regulamento para o exame das doutrinas. É na base déste
Regulamento, documento oficial, e nao na base de comentarios
colhidos de segunda máo, que se deve julgar a recente atitude
da Igreja.

1. Que é heresia?

A palavra «heresia» vem do vocábuk) grego haíresis, que


significa «escolha». Heresia religiosa vem a ser, pois, a escolha
arbitraria ou subjetiva que alguém faca entre as verdades da
fé, aceitando urnas e recitando outras; dessa escolha resultam
semiverdades ou erros na fé, como se compreende.
Em sentido preciso ou formal, heresra é, por parte de um
cristáo, a negagáo consciente e voluntaria de verdades de fé
ensinadas pela Igreja. O Código de Direito Canónico declara
hereje formal «o cristáo batizado que, embora queira guardar
o nome de cristáo, negué obstinadamente alguma das verdades
de fé divina e católica, que devem ser acreditadas, ou a ponha
em dúvida» (can. 1325,2). Supóe-ss sempre, por parte de um
hereje formal, má vontade e obstinagáo contra o magisterio
da Igreja.
Em sentido material, heresia é um erro objetivo em ma
teria de fé, erro, porém, que nao é professado em oposigáo
consciente e voluntaria ao magisterio ida Igreja.
Como exemplo de heresia, podem-se citar a negagáo da
real presenga de Cristo na S. Eucaristía, a negagáo da Divin-
dade de Jesús, a recusa de ressurreigáo corpórea do Senhor, a

— 279 —
44 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 138/1971

rejeicáo do primado de Pedro e seus sucessores... Há também


proposigóes próximas á heresia ou semi-foeréticas.
É de notar que o «Novo Regulamerito para o exame das
doutrinas», promulgado aos 15/1/1971, nao menciona o termo
heresia. Daí sería temerario, se nao falso, concluir que a Igreja
nao admite mais a existencia de hernias; estas sao, e seráo
sempre, um fato na Igreja. A Esposa de Cristo sempre distin
guirá entre verdad© e erro em materia de fé; a mensagem
crista, em suas linhas esseneiais, nao é criacáo dos homens,
mas Palavra de Deus; por isto vem a ser intocável aos homens,
por mais inteligentes ou evoluídos que sejam.
Vejamos agora os

2. Precedentes do «Novo Regulamento»

1. Em 1542 foi fundada em Roma a Congregacáo do


Santo Oficio, que se destinava a zelar pela integridade da fé
católica e a proscrigáo de doutrinas erróneas ou heréticas.
Esta Congregado nos séculos subseqüentes julgou numerosas
obras teológicas e literarias, inscrevendo-as no Índice dos Li-
vros Proibidos.

Eis, porém, que, em conseqüéncia do Concilio do Vaticano


II (1962-1965), o Santo Padre Paulo VI houve por bem re-
formular os estatutos do Santo Oficio, atendendo a legítimas
sugestóes apresentadas pelos Padres Conciliares. A carta apos
tólica dita «Integrae Servandae», aos 7 de dezembro de 1965,
mudava o nome da referida Congregacáo, que passaria a cha-
mar-ss «Congregagáo para a Doutrina da Fé». A esta nova
entidade foi dado finalmente, aos 15 de Janeiro de 1971, um
Regulamento Interno, inspirado tanto pelo desejo de fidelidade
á reta doutrina como pela compreensáo das circunstancias em
que sao escritas e publicadas as obras teológicas em nossos dias.

2. E quais seriam as circunstancias e notas próprias que


inspiram o «Novo Regulamento»?

a) É preciso levar em conta que o Concilio do Vaticano


n pediu aos teólogos procurem exprimir as perenes verdades
da fé em termos inteligiveis ao homem moderno. Ora, nesta
procura tem havido tentativas muito felizes, ao lado de outras
ambiguas: urna serie de livros bivalentes ou polivalentes, in
completos e imprecisos tém sido publicados. Consciente disto,

— 280 —
EXAME DE DOUTRINAS SUSPEITAS 45

a S. Igreja houve por bem nao se pronunciar sobre éles sem


observar previamente um trámite mais completo de indagagóes
e audiencias.

b) O exame de urna doutrina de fé nao versa apenas sobre


idéias e teorías mas também de muito perto atingía pessoas e
comunidades humanas: mestres, pastores e todo o povo de
Deus... Com efeito, um livro langado ao público comega ime-'
diatamente a exercer a sua influencia entre os homens; exerce-
-a independentemente do respectivo autor. O leitor lé-o e tenta
compreendé-lo segundo o texto e o contexto respectivos, dei-
xando de recorrer ao próprio autor (que multas vézes fica
distante do grande público). Ora, as idéias e doutrinas podem
ser portadoras de vida e estímulo, como também de veneno e
desmantelamento ou morte. Daí a importancia toda especial
que tém as doutrinas e as respectivas publicacóes, principal
mente em materia de fé. O povo de Deus tem o direito de
receber dos seus teólogos a doutrina sadia e genuina; nao basta
que os mestres tenham a boa intencáo de ajudar os fiéis a
compreender e viver a sua fé; é necessário também que lhes
proporcionem o auténtico alimento espiritual, ou a Palavra de
Deus fielmente interpretada. Do seu lado, os teólogos tém a
obrigacáo de ensinar em consonancia com o magisterio da
Igreja ou, ao menos, sem confuto com éste; éles arcam com
serias responsabilidades perante o povo de Deus, a autoridade
da Igreja e o próprio Deus.
É inegável, porém, que também todo escritor tem os seus
direitos, entre os quais o de nao ser julgado segundo precon-
ceitos que falsifiquen! o seu pensamento, e, conseqüentemente,
o de nao ser falsamente acusado ou precipitadamente denun
ciado.

Estes fatóres tornam, como se compreende, especialmente


delicado e ponderoso o exame de doutrinas na Igreja.

c) Note-se ainda que a análise de urna opiniáo ou doutrina


a luz da revelagáo e dos ensinamentos católicos nao é um
processo criminal, mas pertence as fungSes normáis do magis
terio da Igreja. Portante, vé-se que nao se lhe devem aplicar
todas as regras do direito processual.

No exame de urna opiniáo ou de um escrito, a S. Congre-


gacáo para a Doutrina da Fé deve levar em apréco todos estes
aspectos, seguindo um trámite que garanta, de um lado, a
incolumidade da mensagem revelada por Deus e, de outro lado,
a justica do processo e da respectiva sentenca final.

— 281 —
46 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS» 138/1971

3. A fim de assegurar a reüdáo dos julgamentos de dou-


trina, alguns Padres conciliares do Vaticano II apresentaram
duas condicóes que passaram a ser as vigas-mestras do novo
Regulamento:

— nunca se deve condenar uma doutrina teológica sem se


ter previamente ouvido a opiniáo do Bispo ou dos Bispos da
regiáo a quem o caso possa interessar particularmente;

— também se deve ouvir o autor posto em julgamento,


dando-se-lhe a ocasiáo de explanar mais ¡exatamente a sua
sentenca e de a defender, antes que eventualmente venha a ser
condenado.

A reflexáo sobre estas duas exigencias levou finalmente a


Congnagagáo para a Doutrina da Fé a conceber o seu

3. Novo Regulamento

Nao estáo sujeitas a exame as teorías que possam ser


livremente debatidas na Igreja: opinióes de escolas tomista,
escotista, suareziana, agostíniana, portante, nao vém ao caso.
Trata-se apenas de doutrinas que parecam entrar em conflito
com a Revelacáo Divina e o Magisterio da Igreja.

Distinguem-se dois modos dis proceder: um extraordinario


e outro ordinario.

3.1. O processo extraordinario

Admita-se que determinada opiniáo proposta por um autor


católico esteja evidentemente em contraste com a fé e seja
difundida no povo de Deus com perigo eminente de prejuizo
espiritual ou mesmo com real daño para os fiéis. Desde que
os membros do Conselhd (ou o chamado «Congresso») da Con-
gregagáo para a Doutrina da Fé reconhecam essa realidade,
compete-lhes dirigir-se ao Bispo (ou ordinario) do autor em
foco ou também a outros Bispos interessados, intimando-os a
que convldem o autor a corrigir o seu erro. Feita esta intima-
cao, a Congregacáo para a Doutrina da Fé deve aguardar a
resposta do(s) Bispo (s) interessado(s); essa resposta dirá,
dentro do prazo preestabelecido, se o autor aoeitou retratar seu
erro ou nao. Caso tenha aceito, cessa o processo contra ele;

— 282 —
EXAME DE DOUTRINAS SUSPEITAS 47

caso nao aceite nsm se aprésente a coloquio (desde que convi


dado para isto), a Congregagáo para a Doutrina da Fé decide
sobre o modo como há de ser publicado o laudo negativo ou
a censura da doutrina nociva.

3.2. O proeedimento ordinario

a) Desde que um livro ou urna opiniáo se apresentem ao


público como algo de suspeito, a S. Congregagáo para a Dou
trina da Fé nomeia urna comissáo de dois peritos, que deveráo
examinar a materia independentemente um do outro e redigir
finalmente o respectivo parecer.

Se a materia em foco parecer, desde o inicio, dotada de


importancia e gravidade, o Bispo ou os Bispos interessados
seráo logo informados a respeito do exame iniciado, a fím de
poderem enviar eventuais iriformagoes ou agir a propósito. Se
a gravidade do tema nao fór táo evidente, nao se interpelaráo
os Bispos nem o respectivo autor.

b) Ao serem nomeados os peritos que examinaráo o livro


em questáo, designar-se-á também um relator «pro auctore»,
ou seja, um defensor da opiniáo do autor em exame. A figura
désse defensor é mirito significativa dentro do Novo Regula-
mento. Faz eco talvez a um desejo do Papa Bento XIV, jurista
famoso e cheio de equidade, que pela sua Bula «Sollicita et
Provida» de 1753 previa que um consultor fdsse sempre desig
nado para patrocinar e defender as obras controvertidas no
Tribunal do S. Oficio.

A tarefa désse defensor, segundo a nova legislagáo, é apre-


sentar os aspectos positivos das opinióes sujeitas a exame,
responder 'as obsérvaseos dos dois peritos examinadores e dos
demais consultores, restabelecer, se fdr necessário, o verdadei
ro sentido dos escritos, situándolos no seu contexto próprio.
Desempenhar-ss-á dessa tarefa com espirito de veracidade e
objetividade. Nao será um advogado como as vézes ocorre no
foro civil; antes funcionará como membro qualificado de um
colegio (ou de urna comissáo), interessado exclusivamente em
apurar o verdadeiro sentido de um escrito ou urna teoría, posto
a servigo da verdade no desempsnho de um cargo oficial.

c) Os peritos examinadores e o defensor do livro ou da


opiniáo controvertida exporáo e confrontaráo os seus parece
res em sessáo da Congregagáo. Findos os debates, cada um dos

— 283 —
48 «PERGUNTE E RESPONDEREMOS> 138/1971

consultores da assembléia redigirá a sua respectiva saitenga


sobre o assunto, dando-lhe a forma de um voto.

d) Urna vez concluida esta etapa, a documentagáo toda


(votos dos consultores, defesa do autor e resumo dos debates)
é enviada aos Cardeais membros da chamada «Congregagáo
Ordinaria», que se reúne todas as quartas-feiras e na qual
tém pleno direito de participar também os sete Bispos mem
bros da Congregagáo residentes fora de Roma. O assunto é
entáo mais urna vez debatido e as oonclusóes fináis sao subme-
tidas á aprovagáo do Santo Padre. — Se no decurso désse
último exame se tiver averiguado a existencia de opinióes
erróneas e perigosas em curso, será informado a respeito o
Bispo do autor e, eventüalmente, outros Bispos interessados.

e) Suposta a verificagáo de erros na materia em questáo,


a Congregagáo para a Doutrina da Fé entrará em diálogo com
o autor, oferecendo-lhe a possibilidade de explicar melhor o
seu pensamento, reconsiderar as suas opinióes erróneas e estu-
dar a maneira de prevenir ou reparar o daño relativo á difusáo.
dos ditos livros no povo de Deus. O diálogo poderá fazer-se
por correspondencia postal ou por comparecimiento do autor
em Roma, onde o coloquio é empreendido com mais eficacia.
Caso se faga uso da correspondencia postal, o autor tem um
mes de prazo para responder, a partir da data em que recebeu
a comunicagáo.

f) Depois de examinar a resposta ido autor, a Congregagáo


Ordinaria toma as decisóes fináis, as quais seráo apresentadas
ao S. Padre. Desde que éste as aprove, as decisóes sao comu
nicadas ao Bispo do autor e ao respectivo autor.

g) A Congregagáo Ordinaria decide também sobre a ma


neira como deva ser publicado o resultado .do exame.

h) Se o autor se recusa a responder aos convites da S.


Congregagáo para o diálogo, compete a esta tomar as resolu-
góes oportunas.

Sao estas as normas que constituem o «Novo Regulamen-


to para o exame das doutrinas» na S. Igreja.

Como se vé, o documento visa estritamente a atender tanto


á fidelidade doutrinária como á justiga para com os homens,
evitando acusagóes impensadas e julgamentos incorretos. A
S. Igreja continua consciente de que é Máe e Mestra. O fato

— 284 —
de nao se aplicar a excomunháo e nao se falar de heresia no
Novo Regulamento nao significa, em absoluto, que a Igreja
esteja inclinada a confusóes doutrinárias, mas apenas quer
dizer que a sua maneira de proceder contra as heresias e os
erros na fé se tornou diversa, sem se tornar traidora ou co-
vardemente tolerante.

Veja-se a propósito "L'Osservatore Romano" (edlcSo portuguesa) de


14/11/1971, pp. 9 e 10.

Esteváo Betteneourt O.S.B.

(Continuafáo da pág. S77)

Spes", o Concilio do Vaticano II falou sobre "a morte corporal, da qual o


homem estarla livre, se nao tlvesse pecado" (n? 18); também Paulo VI
no Credo do Povo de Deus (30/VI/1368) referiu-se ao estado de justlca e
santidade "em que o homem desconhecia o mal e a morte'.

Alias, os dons origináis nao Impllcam que os prlmelros fossem física


mente formosos ou habitassem em parque ameno, mas eram dons Interiores
que se espelhariam na face do homem, caso éste tlvesse permanecido fiel.

O próprio "Catecismo Holandés" em seu Apéndice reconsidera a dou-


trlna exposta no corpo do livro e ressalta a doutrlna dos Concilios e do
magisterio da Igreja sobre o assunto. Dal a Importancia de recorrer a ésse
opúsculo na presente questSo (ed. Herder, SSo Paulo 1970, pp. 7-32).
Veja-se também PR 86/1967, pp. 56-57 [501-5141; 112/1969, pp. 160-168
[518-529].

E. B.

285 —
NO PRÓXIMO NÚMERO :

Ressurreicao de Cristo : novas interpretac,6es

„.- Ressurreicao de Cristo e homem de hoje

Horóscopo sempre em foco

«A Danca dos Orixás»

Johrei : nova religiáo

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1971 [ porte aéreo Cr$ 30.G0

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