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LUGARES COM HISTÓRIA

Janeiro de 2003
Situada no alto da colina da Nossa Senhora do Sardão, a Cidadela de Bragança é um dos
núcleos muralhados mais harmoniosos e bem preservados de Portugal

Texto de Ana Pedrosa


fotos de António Sá

Quem vem do centro de Bragança, a pé ou de automóvel,


precisa de atravessar duas portas flanqueadas por dois
torreões para ter acesso ao velho burgo muralhado: primeiro a
Porta da Vila, alguns metros depois a Porta de Santo António.
Se em tempos idos tal estrutura garantia uma dupla
segurança contra os invasores, agora o que se deixa para trás
são os ruídos do atarefado vaivém da urbe que continua a
crescer a ocidente. Aqui a atmosfera é de uma absoluta Porta da Vila, entrada na Cidadela
tranquilidade, apenas quebrada pelos ecos de uma conversa
de vizinhas, o som de um rádio que se escapa de uma janela
e a correria de uns poucos garotos que ainda habitam o
casario alvo. Nas pequenas hortas rodeadas de muros baixos
crescem figueiras, cerejeiras e legumes, mas a ânsia de
verdura dos seus moradores não parece satisfeita pelos
extensos contornos do Parque Natural de Montesinho que se avista do cimo das muralhas. Os
jardins prolongam-se nas vielas estreitas, em vasos muitas vezes improvisados onde crescem
flores de todas as cores. E, logo que chega a Primavera, cada
pedaço de solo bravio enche-se de papoilas e malmequeres,
sobrevoados por bandos agitados dae pardais.

Viver entre muralhas


Se em momentos de maior silêncio o pequeno núcleo de
cerca de sessenta habitantes parece deserto, basta procurar
os recantos soalheiros. É por aí que se reúnem os mais
idosos à conversa. Elas quase sempre de rendas no regaço,
Rua no interior das muralhas
eles com algum cão aos pés, deitando um olho às traquinices
dos netos que acabaram de chegar da escola. E todos com
muitas décadas de vida passadas dentro do núcleo muralhado
- um dos mais harmoniosos e bem conservados do país -, à
sombra de vetustos monumentos, que desde sempre se habituaram a ter como companheiros
de brincadeiras. O senhor Miguel, por exemplo, tem na memória os prolongados invernos, com
neve que chegava acima dos joelhos e o espectáculo que era ver dali a paisagem coberta por
um manto branco; mas também os tórridos estios quando se mergulhavam os melões dentro
da água gelada da cisterna da Domus Municipalis para os manter frescos.

Agora, em tempos de frigoríficos e para evitar actos de


vandalismo, a porta do monumento só abre a horas certas,
recebendo os turistas na sua atmosfera gelada, refrescante
oásis durante o Verão e um pesadelo nos meses frios, quando
o vento se insinua constantemente pelas janelas que enfeitam
cada um dos cinco lados do edifício. Com uma forma de
pentágono irregular, a sua singularidade não se limita à
arquitectura, de que é exemplar único em toda a Península
Campo florido perto da Domus Ibérica. De origem misteriosa, os historiadores não
Municipalis conseguem datar com precisão a época da sua construção.
Enquanto alguns autores a situam no século XII, outros
defendem a teoria de que terá sido erguido no século XV,
sendo o seu estilo românico civil tardio. Outras teses chegam
a atribuir-lhe uma raiz romana ou grega. Ao certo, sabe-se que
foi sobretudo um importante reservatório de água, com um
subterrâneo composto por uma cisterna abobadada - a "Sala d'Água" -, tendo o piso térreo sem
divisões e com uma bancada de granito ao longo das paredes - a Casa da Câmara" - servido
como lugar de reunião dos "homens bons" do concelho, a partir do século XVI. Poderá
igualmente ter albergado os peregrinos que rumavam a Santiago de Compostela, já que a
cidade era um importante ponto de passagem.

A seu lado, formando um harmonioso conjunto, fica a Igreja de Santa Maria, de fundações
românicas mas completamente reconstruída no século XVIII, na qual se misturam os estilos
renascentista e barroco. Enquanto no seu interior se destaca a pintura do tecto, o exterior
distingue-se pela bela fachada principal, com colunas decoradas por folhas de videiras e
cachos de uvas.

Junto à fachada oeste do castelo, abrigado agora por uma alameda de grandes plátanos,
encontra-se o velho pelourinho, onde eram castigados os criminosos da época medieval.
Curiosamente, a coluna está assente sobre uma figura suíno-
mórfica, a que os locais chamam de "Porca da Vila", e que
representa um berrão. Os berrões eram um ídolo pré-histórico,
sendo o seu culto uma prática característica dos povos
transmontanos. O monumento é encimado pelo escudo das
armas de Bragança e um capitel do qual partem quatro
braços, cujas extremidades são decoradas com carrancas.

De Brigantia a Bragança
Muralha e Cidadela
Da primitiva Brigantia,
fundada cerca de dois séculos
antes do nascimento de
Cristo, nada resta. Guerras
entre árabes e cristãos, com
os consequentes saques e
destruição, arrasam por completo a povoação que na
época se dividia em dois núcleos distintos: um situado no
lugar da actual cidadela e outro no vale onde agora se
encontra a Sé. Em 1130 volta a ser reconstruída por ordem de Fernão Mendes, cunhado de D.
Afonso Henriques. Cinco décadas mais tarde D. Sancho I concede-lhe foral mandando erguer a
fortificação, indispensável na zona de fronteira do jovem reino. O castelo surge então no lugar
de Benquerença, pertencente aos frades beneditinos do Mosteiro de Castro de Avelãs. Em
finais do século XIV a vila é oferecida como dote por D. Fernando I a uma das suas cunhadas,
irmã de D. Leonor Teles. Finalmente, Bragança torna-se ducado em 1422, tendo como primeiro
duque D. Afonso, filho ilegítimo de D. João I e genro de Nuno Álvares Pereira. Com o correr
dos anos, o burgo torna-se próspero e nove anos depois D. Afonso V eleva-o finalmente à
categoria de cidade, a pedido do segundo duque, D. Fernando. Ironicamente, nenhum dos
membros da Casa de Bragança alguma vez ali estabeleceu residência. Enquanto o primeiro
Duque preferiu construir o Paço Ducal nas suas propriedades de Guimarães, os nobres
seguintes escolheram o clima ameno do sul, habitando o Paço de Vila Viçosa.

Entretanto, os séculos XV e XVI vêem surgir na cidade um


importante centro de manufactura de tecidos de luxo como
veludos e damascos. A sua fama era tal que se comparava "a
doçura das carícias femininas ao toque dos veludos de
Bragança". Simultaneamente, a fortaleza situada no alto da
colina da Nossa Senhora do Sardão, ia sofrendo constantes
restauros. No reinado de D. Afonso IV (1325-57), são
atribuídas à vila as terças das igrejas da região "para
Domus Municipalis e Igreja de Sta. Maria
repairamento dos muros". Este facto é confirmado numa carta
escrita por D. Fernando, onde afirma que a cerca está
deteriorada e a requerer muitos trabalhos, finalmente levados
a cabo em finais desse século. A Torre de Menagem é então
construída, numa obra que demora 30 anos a concluir. De
arquitectura gótica, distinguindo-se pela elegância as janelas
em ogiva, ameias e seteiras, as suas linhas apresentam semelhanças com alguns castelos
ingleses, do mesmo período.

Histórias de guerreiros e princesas

Ainda dentro do recinto da fortaleza, mas encostada ao pano de muralha, ergue-se a


enigmática Torre da Princesa, de base quadrangular e linhas simples. Era aí que habitavam os
governadores e alcaides do castelo, não sendo utilizada para fins militares. O seu nome, de
origem desconhecida, deu azo a diversas lendas e histórias populares. Os relatos estendem-se
no tempo, tendo como protagonistas as personagens históricas de Dona Brites, Dona Sancha e
a bela Leonor, infelizes vítimas de amores não correspondidos, maridos ciumentos ou intrigas
da corte. Talvez por ter um final feliz, a mais conhecida é a que relata o amor secreto entre
Diana, sobrinha do senhor do castelo, e Ricardo, cavaleiro que partiu para as cruzadas em
busca de glórias que o tornassem digno de esposar a jovem. Dez anos se passaram e vendo
que a sobrinha recusava todos os pretendentes e que nenhum
argumento a demovia de esperar, toda a vida se necessário
fosse, D. Hermenegildo resolve utilizar um último estratagema.
Disfarçando--se de fantasma, aparece uma noite no quarto
dizendo que é a alma de Ricardo, morto em combate, e que a
liberta da sua promessa. No mesmo instante uma luz intensa
ilumina a alcova, assustando o pretenso espírito que desiste
dos seus intentos. Dias depois, Ricardo regressa vitorioso e o
casamento realiza-se.
Sala da 1ª Grande Guerra, no castelo

O castelo que assistiu a ferozes batalhas,


se insurgiu ao lado do povo contra o
domínio filipino, viu chegar bravos
soldados empunhando a primeira águia
napoleónica que os franceses perderam
em território peninsular, vive agora em merecido descanso. Extinto em
1958 o Batalhão de Caçadores n.º 3 que o ocupava, alberga actualmente
o Museu Militar, nos cinco pisos da Torre de Menagem. Percorrê-los é
ficar a co-nhecer um pouco mais da nossa História e ter oportunidade de
reflectir como todo o equipamento bélico usado era afinal tão inofensivo,
se comparado com as novas armas de destruição maciça. Vale a pena
começar pela cripta para descer a acanhada escada de caracol até às
antigas masmorras. O primeiro piso, além da cisterna, apresenta, na Sala
do Gungunhana, interessantes artefactos utilizados por diversos povos africanos e a história do
célebre chefe tribal que ousou desafiar o poder colonial em África. A partir do segundo piso, as
exposições sucedem-se por ordem cronológica, num total de 14 divisões, desde a Sala D.
Afonso Henriques até à Sala da Primeira Guerra, estando patente em cada uma delas o
armamento utilizado na época correspondente. Assim, às cotas de malha medievais seguem-se
as bestas e armaduras quinhentistas, as espadas e mosquetes do século XVII, as carabinas e
sabres do século seguinte. O primeiro conflito mundial termina a extensa colecção, com uma
série de fotografias e postais mostrando soldados portugueses na frente da batalha.

A Torre de Menagem, gótica, distingue-se pela elegância das janelas em ogiva, ameias e seteiras. As
A suas linhas apresentam semelhanças com castelos ingleses
A muralha que cerca a Cidadela é recortada por ameias e acompanhada pelo caminho da ronda,
B possui 15 torreões em forma de cubo e duas portas
Fachada da Igreja de Santa Maria, cujo portal barroco é ladeado por colunas salomónicas e quatro
C nichos
A Domus Municipalis, exemplar único da arquitectura civil em toda a Península, foi utilizada como
D cisterna, lugar de reunião e abrigo de peregrinos
O pelourinho medieval assenta sobre uma escultura pré-histórica a que os locais chamam de Porca da
E Vila. Além das Armas de Bragança, é enfeitado por quatro carrancas com uma figura humana, um cão
e uma ave

In Rotas e
Destinos

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