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OW ensore me: 7 127.08 i | | ; Maria Célia Paoli 7 Maria Victoria Benevides- (xelt ORCTe eka acs POLICIA E CRISE POLITICA: CE ride [rele role M Talay ed De rend Marla emer Tey Copyright © Maria Célia Paoli, Maria Victoria Benevides, Pinheiro e Roberto da Matta. Capa: ‘Miguel Paiva Revisio: ‘Newton T. L. Sodré José E. Andrade Lay-out ¢ Diagramacao: ‘Jacob Levitinas Darece tref. EC e hee ; 6 saloy/are brasiliense editora brasiliense s.a. 01223 — r. general jardim, 160 so paulo — brasil 2 Paulo Sérgio Indice Apresentagao — Paulo Sérgio Pinheiro ...........4+ As Raizes da Violéncia no Brasil: reflexes de um antrop6- 16go social — Roberto Da Matta . 5 Violéncia e Espago Civil — Maria Célia Pinheiro Machado Paoli .. Policia e Crise Politica: o caso das policias militares — Paulo Sérgio Pinheiro : Linchamentos: violéncia e “justia” popular — Maria Vie toria Benevides . 7 ul 45 ST 93 fo 1 (pdgina 10) — A Policia Militar do Rio de Janeiro em acto (Ag. Foro 1 es (0 Globo). cma 2 (pdgina 46) — Violencia no estdio, durante o futebol (Coojomal, Fo? (eine 0 No Alves) s incidentes da Freguesia do O, em Sdo Paulo, em {Sab kancionaros do Estado em aco (Ag. JB, Jose Carlos Brasil). e = tentativa de fuga da Penitencidria Foto 4 (sécna 7 — Here Sao Paulo, em 1981 (fo, Mauricio Sio- neti). Foto 5 (pdgina 92) — Uma vit ° Ripper). Foto 3 (pdgina 36) — 1a do Esquadrio da Morte (Ag F4, J. R. Apresentacaio ““Ainda que consideravelmente melhorada, a poll- cia ndo goza de grande prestigio junto A populagio, sem divida por causa da lembranca de antigos abusos; 6 alids dificil conseguir que 0s policiais fagam uma dis- ‘ingdo perfeita entre a razdo e 0 erro, € sobretudo thes fazem falta 0 tato e a amenidade no trato.”" Essa era a imagem que um viajante francés, em 1912, registrava sobre a policia no Rio de Janeiro. Vinte anos depois outro observador insuspeito deixava entrever no ter havido grandes progressos: “A polfcia do Rio de Janeiro é indubi- tavelmente 0 elemento mais fraco dos servicos piblicos. ‘Mal pagos e sem preparagdo, o pessoal da forga policial € recrutado de maneira aleatoria. Como organizacio ela tem uma moral baixa, muitos de seus membros aceitam propinas quando oferecidas, ¢ recorrem a chantagem quando as propinas ndo so oferecidas. A situagio é sabi- da por todo o mundo desde o Ministro da Justiga ¢ In- terior, o Chefe de Policia até os chefes de servicos (...) No Brasil, certamente no Rio de Janeiro, 0 simples apelo & ‘protegao da policia’ é indtil — a ndo ser como prote¢ao contra a policia’’” Nao é nenhum difamador infiltrado (1) Paul Walle, Au Brésil de L’Uruguay au Rio S80 Francisco. Paris, E, Guilmoto Editeur, p. 34. (2) Harry'W. Broum, Q. M. Clerk, ‘Military Attaché, Brazil Absent", from M/A Brazil Report, n? 1335, october 11, 1934; Records of Department of State, RG 59,832.504/65, National Archives, Washington, D.C., USA. 8 Paulo Sérgio Pineiro no bom povo brasileiro ou um perverso intelectual, mas 0 proprio adido militar dos Estados Unidos da América do Norte, comentando a violéncia na represso a uma mani- festagio operdria pacifica em 1934. Para os dias de hoje no precisamos de nenhum abelhudo para nos convencer- mos de que a situag&o no mudou e, pior ainda, se agra- Seria, entretanto, ingénuo ¢ errado atribuir a ex- trema violéncia que caracteriza a sociedade brasileira & policia. Como se o aparelho de Estado fosse uma entidade ‘que pairasse descolada da populagto. A sociedade brasi- Ieira nao esta simplesmente submetida a violéncia: ndo & uma convivéncia incdmoda, mas, prética ¢ exigéncia. No basta também ficarmos nas excelsas alturas de uma so- hada homogeneidade dessa sociedade brasileira. Ja € tempo de, como diz. Roberto Da Matta, “‘discernir algu- ‘mas encarnagdes disto que chamamos de ‘violencia’, pois, ‘© fendmeno com todos 0s seus associados (e eu penso sobretudo na perversio, no pecado, no tabu, na crimina- lidade, no sagrado e na repressio) tem miltiplos aspectos e contornos, com facetas positivas e negativas”. Numa sociedade intensamente diversificada, como a brasileira, jé € hora de tentarmos dar conta dos diferentes signifi- cados e dos diversos contedidos da violéncia na estrutura de classes. regime autoritério instaurado em 1964, apesar de nao ter tido o dom da originalidade, levou ao paro- xismo praticas corriqueiras na hist6ria brasileira como & tortura, o desrespeito as garantias do cidado ¢ o enqua- : er, Konee Dias 6 Glen, A Vole como econo Dom voto e Estrategia de ‘yéncia'”: Edmundo Campos, "'Sobre Soc acto «Estate de ore so sobre Violénca Urbana no, Bra, eee Te Campus, 1980; OAB, Seminario sobre Criminalidade Violenta, abril de 1980. (1) Maria Célia Pool Violéncia e Espago Civil 49 dos. Neste caso, a violéncia se institucionaliza em todos os niveis da autoridade do Estado, tornando, nés todos, stiditos, sem direito de reivindicar participacao no poder. A violéncia urbana seria ai fruto do exercicio da violéncia institucional arbitraria, ¢ sua solucdo é fundamentalmente politica: a redefinicao das re- lagdes entre Estado e sociedade civil, via a luta partidéria. Para outros, a falta de cidadania comeca antes: 0 principal seria a auséncia de uma concepgdo efetiva da condig&o de cidadania, tal como ela deveria ser. Assim, seria menos um problema politico propriamente dito do que uma desmobilizaco ideolégica. Neste caso, tem prioridade um debate que, aglutinando interesses populares, construa a cidadania como horizonte de movimen- lagdio, substituindo o favor, o clientelismo, a subordinacao direta 4 autoridade e as solugdes desesperadas, entre as quais 0 recurso a violéncia. Finalmente, uma terceira posicao centraria o debate em torno dos atuais limites do funcionamento de um Poder Judiciério auténomo, tolhido como esta em uma estruturagdo burocratica e subordinada ao Executivo e incapaz, portanto, de ser um efetivo mediador dos conflitos da sociedade civil. O problema passa a ser, entdo, a necessidade de uma modificagao da ordem juridica, de modo a torné-la um poder atuante € proximo da defesa dos direitos da populacdo. A violéncia urbana ¢ seu florescimento seriam o maior testemunho dessa incapaci- dade da ordem juridica, seja pelo arbitrio policial que toma o seu lugar, seja pelas imperfeicdes legais que mais garantem impuni- dades e privilégios do que algo proximo a uma distribuigdo da justiga. A cidadania é, entdo, a questio-chave que dé sentido ao problema da violéncia, € a reproducao continuada da falta de participacao social, econdmica e politica estrutura o tema em um terreno préprio. Mas as trés concepcdes acima, com suas dife- rentes énfases (embora interpenetradas), refletem sobretudo a experiéncia daqueles que — seja em funcao de sua classe social, seja em fungdo de interesses sociais, profissionais e politicos — ja conhecem 0 contetido substantivo da cidadania como discurso € se sentem em condicdes de reivindicar sua promessa, isto é, 0 direito ao poder. O problema apontado pela questao da violéncia urbana, no entanto, € outro: refere-se aos que nao tém possi- bilidade de conhecer a cidadania desse modo. Assim, a deniincia do abafamento da sociedade civil no Brasil contempordneo e a 30 ‘Maria Célia Pinheiro Machado Paoli identificagdo de seus mecanismos deixam mo escury diferen- ciagdes e a extrema heterogeneidade no interior desta propria Shefedade civil, construindo mundos que perpassar 2 diferen- Siagao entre classes sociais. Se estas constituem, sua opo- sigao, um campo reconhecido de luta, sua fragmentacdo interna perde-se na invisibilidade de seus fragmentos: ‘hé alguns grupos ‘jo sao apenas desprovidos de poder, S80 também desprovidos de significacdo como possuidores de uma identidade cerativa reconhecida. Sao 0s trabalhadores pobres sem atividade fixa, as mulheres e seu espaco doméstico, os velhos, as criancas, os negros, 0s homossexuais, 0s 1oucos, OS criminosos, condigdes enfim variavelmente comuns que atravessam situagdes de classe dadas. Seu mundo de significacdes ndo emerge 1) plano piblico; pelo contrario, submerge no cotidiano, no privado, no imovel, no Tocal, Nesse plano se desenvolvem histOrias de conilitos ¢ paixdes soterradas, obscurecidas, que habitam apenas © privado e, por- tanto, nao fazem hist6ria. A violéncia de seus ajustes ¢ desajustes can Sncontra recurso formal na ordem juridica, pord’ é ai, iag do que nunca, que a mediacZo do direito se faz sobre um miter extrajuridico.? Nas pequenas mazelas do cotidiano, orga- nizadas por regras culturais que compoem 0 “popular”,? nao ha Tidadaos, mas pessoas. Pessoas que vive © seit desconheci vento da cidadania pelo reconhecimento de outras instincias Coletivas, universais, como uma ordem natural, uma ordem divina, uma garantia ética. Como pensar na articulagao deste svingo, eterno e cotidiano, violento € intimo, regido Dor cbdigos miturais de conduta privatizados, com. aquele ‘outro onde 0 Sadividual € pablico € 0 poder prometido, legalmente, como direito? ‘As pesquisas empiricas empreendidas no assim cha- mado “mundo do crime” trouxeram duas importantes contri- Duigdes para se pensar nesta articulacdo entre violéncia cida- Gania _— ou seja, sobre o modo pelo qual o Ps sssoal se encontra sano institucional, © privado com o pablico. Em primeiro (@) Michel Foucault, Viiare Punit, Vores, Petropolis, 1977. G) Maria Licia Montes, ‘0 Discurso Populists o, Os Caminbos rune ner paputismo e Comunicagto,organizado por José Maraues de ‘Melo, Ed. Cortez, Sto Paulo, 1981 (4) Paolie outros, 1975, ¢ Ramalho, 1979, es Violéncia e Espaco Civil = 51 lugar, por se colocarem exatament ugar ‘ 0 exal te no solo discursiv. i simizavioncia com eriminalidade, Nao me refiro apenas a0 Sere tee a ideologia desta sinonimizagao ¢ raid far ohorrr deste mundo montadoa repress da fora mais a Mas | ‘a0 fato de estes estudos terem 0 Farts a interior da ordem juridico-epressi que 0 constituls ie, no intel do sew discus o de sue préen no cold popular. "to permiiy revelar a extrema importncia da itervengto isi. ja ordem juridica que, transformada Flo expected e mediate cnt ‘constrét um espaco Déblc ose para a expresso dese ida: repressdo. E Tevelaram que, para os grupos ¢ clases populares que sto os suetospreferencais da imposedojurdio-repressva, ste en- contro nd duas experiéncias distintas, uma retirando Hberdade que a oura promete. Hi algo de'comum na s foun Pdi) be ambas as ordens, que produz a estranha Bra do tabalhador criminalizrl:« profunda vlenia do ano, €: a cada di ti ea Perante a hostilidade do mundo ution tai e com ae ae casa, transporte, sadde, lazer —, ‘encontta « com wma experiéncia da ordem juridiea institucional que tam. _— obretudo policia, criminali: cepa, represto aries, desorennizago ds ecttaiglasar dsamente consequids, A vislnea do ctidiano & uma import coda desordem que asim se define poraueaordem eth es cue . ', € fora de suas categori; outrayerdade’Correlatamente, a experincia da ‘dem legal € Seen ee ae porque nao supe barganha a no s seu proprio poder.” Hi submeter a esies mundos que demorstram, cot eta ncn desu leitimidade, * colianamente, im segundo lugar, estas ji spundo my setinde Inear, estas pesqusns revelaramn jutidico-repressivo, montado sobre a prdtica legal, em msi, tsps pba sn a i a i ea eins ito tnico, que seria a formal d uma ilusdo sipuladora, Cf. Montes, op che, 1981 ae # (6) Paoli e outros, 1975. (7) Idem, 32 Maria Célia Pinheiro Machado Paoli significado de um arbitrrio organizado, insite © selvage™ i .. Assim que se é constituls para a sua clientela. e ea mo ” ,diu a lei sem éxito, comes oso", desde que se transgre oso pesadelo onde os signficados se produzem ¢ se destroem em direcao a afirmac’o real daquilo que 0 De aa at i ntre os individu‘ i ‘isto pela culpa. Muito poucos, entre 0s os crime i ynstancias, 0s rituais e os critérios nalizados, entenderam as inst a os cri ‘ 3 te nesta fantéstica linguage .y julgamento e so tomaram part ic mais tarde, quando se familiarizaram com 0 Codigo Dal tentatina praca debarganhar o tempo de encarceramenso, 1 instituci ‘ira O é, artigos e paré ordem institucional vira o que é. ar a ; intas; i, no entanto, é tao aleatéria que cm punigdes distintas; como lei, no entanto, a sae chegar ajulgar 0 que no se fez condenar sobre © aue N30 reat Real mesmo € a repressdo, que € inevitavel.E a pristo serra desas regras, da tepressio como Tei, do poder como I, © ma que se aprender esta linguagem porque dat em diane ¢ ot ‘i barganha possivel. A o1 que vai estruturar a e en institusonal i i i | se é privado de liberdade, significa aqui o meio pelo qual le near. signifi tago fisica ¢ o sent gerado, significa perder a movimentac ao 4 : i de do puro sentido da 0, aprender a conviver na ambighidade « sentido da ‘Gorerivencia,E sobretudo aprender a propria estratéyia dao, énci: i 1 liante, qualquer q Téncia do dominador: de agora em dian ‘ i ao), € neste mundo que i ae cae viver (dentro ou fora da prisdo), € neste mundo eda val se desenrolar. Esta constituido 0 cidadao invertice. aquele que tem absolutamente presente a ordem publica, come ressio. ae Impressiona aqui, neste caso extremo, algo Co no entanto a0 espago da vida cotidiana: 0 exercicio da cidadania transfigurada, existente nao s6na Hears er aaiaTaA i i legal. Todos os or da organizagao do discurso 8 direitos 32 transformados em obrigagdes, € para se poder viver fa Lei acndem coletiva énecessério provar, para varias instancias de qatoridade, a pertinéncia aestepablico. Exemplific-se a enxur- ada de documentos ecertiddes, alguns deles verdadeiras defesss ceases interferencia da repressio imediata — tipo carteira de trabalho, no dizer de Wanderley G. dos Santos, uma bit ic ae de nascimento civico”." Para nao se mencionar 0 caso extret a (8) Wanderley Guilherme dos Santos, Cidadania e Justca, Ed. Cam- pus, 1979, cap. 4, P- 76. Violencia e Espago Civit 3B do atestado de antecedentes, onde a ago do aparato repressivo se transfigura em culpa pessoal de seu portador, a lembrar-Ihe a todo o tempo que, de uma vez por todas, nunca mais sera cidadao, exatamente porque “pagou seus pecados” com a ordem vigente. E, noentanto, este quadro nao esclarece tudo. A relagao de arbitrariedade politica nao é apenas entre Estado e sociedade civil, tornando impotente a ago juridica, mas entre Estado e as desigualdades da sociedade civil. Desigualdades de classe, sem davida, mas também uma profunda heterogeneidade no interior delas. Como se definiria a conquista de uma cidadania genera- lizada, universalizante, que valesse para uma sociedade onde a diferenca se multiplica hierarquicamente ? Toda a importincia e © desafio da questio da violéncia urbana parecem ai desem- bocar. Afinal, por que esta diversidade pode ser proveitosamente utilizada na afirmagao de um poder autoritério e se torna proble- matica nas estratégias de uma luta democratica? Voltemos novamente a experiéncia conereta da cida- dania como repressdo, com base na exclusiva cobranca asfi- xiante das obrigacdes legais. Sem duivida, é isso que abre espaco para a repressdo violenta da politica, que afinal de contas per- petua a exclusio dos direitos de participagio, pela violéncia, em nome do disciplinamento da ordem. Mas seu sucesso especi- fico nao esté somente na ameaga, e sim no fato de privatizar este espaco ptiblico assim constituido, nao o tornando reconhecido como espago de experiéncias comuns. E isto o fundamental na experiéncia dos “‘criminosos": 0 que Ihes sobra, afinal, € uma experiéncia nao transmissivel coletivamente, fora da adesio pes- soal ao mundo dos ilegalismos (a reincidéncia). E espantoso como a sujeicio a uma justica e a uma punico que tem aber- tamente o cardter de classe, porque dirigida e exercida para as classes subalternas, ndo possa ser transmissivel como experiéncia de classe. E espantoso que esta histéria tragica nao encontre legitimaco ou reconhecimento coletivo nem entre as pessoas que sabem que seu destino pode ser esse. Afinal, a inferioridade da experiéncia dos criminalizados & exatamente esta: no poder transmiti-la como experiéncia coletiva, ser obrigado a perso- nalizé-la, no poder assumir em sua universalidade, ter que admitir, enfim, que é um saber sem legitimidade.? Que Ihes (@) Paolie outros, 1975 54 ‘Maria Célia Pinbeiro Machado Paoli ras resta sendo aceitar sua estigmatizagio € 0 lugar onde estas reg! oie & colidao na valer? pressio na ordem pablica; impoténcia ¢ solidae, W ordem ova Seo seuss an Saran dite cue i , ese na pratica atual ret | ante ceecaendigto define, men0s ainda 9 node de cidadani abe i ler hy " ilo que é diverso, desor« ic a lugar Pe ditos qe se passam neta efera pivatiza 299 n js, embora sejam escondidos nesta s : Senet ples, snlpla condioes subjeivas comuns: ara vmplo da condigao feminina é elogiente, Sua privatizagt ° a exempucde que emerjam como sujeitos em uma aco coli bois o que é sistematicamente destruido 6 ae een Poke nidade de lulas coletivas parceladas: nio hd, finaly a ridiad de organizagho e reconhecimento daquilo ave ne © considerado politizavel, ou seja, piblico. eras eas determinadas experiéncias € condicoes comuns eis” os giro dominio da sua invsbiidad: 20 0 ne i a0 fazem a.hist6ria, Sd0 c ae estérias mas Wipmaatengdo de uma socolona do desig inst Taal que tematiza sua aparigao desordenada em ondss Te a eevia nibita, De resto, a psiquiatria e a policia se oruPan racers conjugais, sexualidades anormais, menores abande dos, ethos desgostosos, pobres inconformados, tos. He sacttos, pretos insolentes, jovens contestadores, bébades, ro aac e bagunceiros. E, se toda essa gente for proletirin, bioe i aa Os conflitos do cotidiano proletario ‘so a os aancasitem fora do discurs0 politico legitimo, além do sou" por ader”, como 0 define Maria Liicia Montes: além do “espe fro dentro do qual ele é capaz. de exeeer sev pode de re Hzagao”",© Em outros termos, as si gue Tizact sy conflitos afinal coletivos, socials, comuns. sie frag” Shentadas ‘em seu proprio estigma; ¢ impoténcia, so igh fon mreeto preenchem a falta de um espaco civil que ‘como dominios coletivos. (G0) Montes, 1981 TT Violencia e Espago Civil wD © que estou chamando aqui de espaco civil se situa a meio caminho do dominio compreendido pela nogdo de cida- dania no sentido estrito — a igualdade juridica de cada indi- viduo perante a lei na defesa de seus direitos e no cumprimento de suas obrigagdes — e a aco politica propriamente dita, en- quanto estratégias organizadas de reivindicagdes coletivas. Situa- se no terreno do reconhecimento da legitimidade das experién cias coletivas, ou seja: que 0 conjunto de experiéncias comuns a grupos sociais diversos, vividas no seio da dimensao privada, possa se expressar na esfera piblica de modo autOnomo e orga: nizado. A existéncia de um espaco civil implica a legitimagao das regras culturais que organizam a reproducao da vida cotidiana, aquilo que os antropélogos chamaram de “cultura popular”; implica a apropriagdo, pelas pessoas a eles sujeitas, dos discursos normativos que Foucault chamou de “ © que traria a possibilidade de sua contestacdo; implica pessoas com uma condigao subjetiva comum se apropriarem da esfera piblica controlada normativamente pela autoridade ea transfor- marem, pelo debate, em critica que se exerce contra o poder do Estado, aquilo que Habermas chamou de “espago piiblico”: a formagao de uma opiniao ptiblica critica." E implica final- mente a sua garantia pela ordem juridica, de alguma forma tornando licita a reivindicagao coletiva da diversidade. A falta de um espaco civil constituido, que pudesse efe- tivamente mediar as relagdes entre Estado e sociedade, parece ter tido como efeito politico mais importante que os conflitos cotidianos encontrem apenas duas saidas: a privatizacdo e a repressao. Entre elas, as formas de violéncia se instalam: a vio- léncia das relagdes pessoais contidas na determinacdo historica da sociedade encontra disciplinamento na violéncia legal da repressio politica do Estado, Esta nao é, certamente, uma si- tuac&o apenas propria ao Brasil contemporaneo. Mas, nele, 0 importante € que passa por uma reavaliagdo estratégica: a diver- sidade passa a ser reivindicagao enquanto dominios coletivos e se uta pelo seu reconhecimento no plano civil. Ai estao 0 debate, @ publicidade, os movimentos sociais, a coletivizar espacos escondidos, (11) Cf. Foucault, Microfisica do Poder, Ed. Graal, Rio, 1979, e Jur- gen Habermas, L'Espace Public, Payot, 1978. Policia e Crise Politica: O CASO DAS POLICIAS MILITARES Paulo Sérgio Pinheiro Introdugio O criminoso é uma besta selvagem que se esté auto rizado a abater; se fosse feito um plebiscto logo ‘estariaconsagrado esse hébito — de resto inqualif: civel — que tem a policia de abrir fogo ao menor protest “Hans Magnus Enzensberger, Politica e Terrore, 1964 As ténues barreiras que, em regime democratico, isolam a repressio criminalidade comum da propriamente politica vém abaixo nas situagdes de arbitrio. As avenidas entre uma e outra forma de repressdo se tornam facilmente comuni- caveis, com a incorporagio reciproca das técnicas e das moti- vacdes.' Quando, em vez de cessagao plena do arbitrio, ocorre, como a partir de 1974 no Brasil, um processo de transigdo lenta para a democracia, esse interedmbio das duas praticas nto se interrompe. O caso das policias militares no Brasil pode oferecer (D) A esse respeito ver Paulo Sérgio Pinheiro, ‘‘Violéncia ¢ Cul tara", p. 31-63, in B. Lamounier, F.C. Weffort e Maria Victoria Bene vides, Direito, Cidadania e Participacio, S, Paulo, T. A Queiroz, 1981 58 Paulo Sérgio Pinheiro um exemplo privilegiado para examinar essa continuidade entre co combate a subversdo e a guerra contra ‘ocrime. pans Bvidentemente, 0 papel politico das antigasforcas mili- taresestaduais nfo foi criado peo regime implantado pelo At ria elas tiveram, ‘itucional n° 5, Durante toda a sua hist fuplementarment ao sparetho poli, oencargo de asegurar 8 tstabilidade do poder em cada um dos estados. Em Sto Paulo no Rio de Janeiro, que sero os casos a que nos referiremos aqui elas sempre serviram para a manutengio da or ares ia pelas classes dominantes: a repressio as greves operirias ¢ 2s manifestacdes populares foi uma de suas ativi mental i issfio Francesa (1906), a =f jalmente depois da Missio Forga Puithea paulista fot articulada com as foreas armadss, como um exército contra rebelides urbanas, com armamento pesado e soldados, & espreita de qualquer movimentagdo que ificada como subvertendo a or , con Se oro ’a violencia que Ihes competia freqiéncia provocando nas ruas que Ines competia iminar.’ As proprias criticas que acomp: am, na im- sara vinda da Missio Francesa € a progressive militar blica pareciam antever os zach, Ses ors a 1963 \denar o exagero do enqua- mentos posteriores a 1969: ao con 0 do engue: militar da guarda urbana e do corpo de bombeiro: treme hoje), @ imprensa declarava nfo saber “qual a intengto rs orca publica paulista ver Helotsa R. Fernan- des, Polen Sept feat ‘AlfcOmegu, 1974; Dino de Abreu i Exército Paulista, Perspectiva, 1977; Robe vie i a el a ry i Manchester and ¥ , Sta ion ret sire uformagto aa poiea no Ro de Teneo ate 1930, ver Burenice Cavalcante Brandio etal. A Police 4 Firs Po no io de io, Departamento de Historia, , 1981, Sobre 0 Tense, Res Padlo sob uma perspeciva historia ver Bors s Fausto, ‘Urban Gone in Brazil: The Case of Sdo Paulo, 1860-19247; Working Panes, SS eee ome onbecimento do etud sobre « PM de hore Mota Moraes, ‘Policia: Problemas e Sougbes", requis da Por ficia Civil, it. "Sem formacdo e sem discipline aumentam PMs", OFstado deS. Paulo, 17. 1.1982, p. 32. sing ( incesa que inspirou a missio, ver 10 Te Sie the Gromtval Came, New York, Base ‘Books, 1977, p. 163 Policia e Crise Politica 59 do governo, querendo que tenha cardter militar toda a forga do Estado". Com o golpe de estado de 1969, por meio do decreto-lei n? 667, todas as policias estaduais passaram a ser centralizadas sob 0 controle e coordenacao do exército. Essas forcas militares, que sempre estiveram submetidas A manipulacdo dos governos estaduais, passam ao controle do aparelho de estado central. Desse modo o contetido politico implicito a misao dessas forcas estaduais — defender o governo e as classes dominantes contra eventuais manifestagdes de protesto das classes populares — ganha uma definicdo mais clara, gragas A sua subordinagdo aos objetivos das forgas armadas que naquela crise assumiram o controle direto do poder. Essa “politizacdo” foi uma decisto motivada pela inca- Pacidade das antigas forcas militares estaduais de darem conta das tarefas de implantagéo do regime autoritério, As policias militares, além de enfrentar as modalidades tradicionais de dis- senso, passam a funcionar no dia-a-dia como forga eminente- mente militar no enfrentamento da guerritha urbana, poupando as forgas armadas a inconveniéncia de uma presenga ostensiva € Prolongada nos grandes centros urbanos. Além de as policias militares continuarem voltadas como um todo para o enfrentamento do “‘inimigo interno” nas cida- des, foram criadas no interior delas unidades de choque espe- cializadas nesse combate, mais geis: “Agora, entretanto, 0 inimigo era outro, mais dificil de combater porque, nao podendo agir ostensivamente, insuflando povo nas ruas e pracas contra as institui¢des, agia covarde e violentamente, procurando derru- bar aquelas mesmas instituigdes pela via do terror. A impoténcia da policia em prevenir e reprimir as ages terroristas, princi- palmente as de assalto as organizagdes bancérias, era flagrante (...) Foi nesse clima que surgiu a ROTA. Foi para combater aquela nova ordem de inimigos da sociedade que aquele pugilo de homens foi preparado”.’ Essas tropas de choque, como a ROTA, formada por grupos de quatro homens armados com grande poder de fogo, mobilidade e comunicacio, foram a van- (4) Dallari, op. cit.,p. 44. (5) Batalhao Tobias de Aguiar em revista, s.n., 5. Paulo, 1980, P. 10. A PM em Sto Paulo conta com 44000 homens (sendo 24000 na capital). Eno Rio de Janeiro com 23 000 bomens. 0 Paulo Sérgio Pinbeiro guarda do enfrentamento ostensivo da dissidéncia armada ¢ da repressio politica durante os dez anos desde a sua constitui¢io até a revogacao do AI-S. Depois de a dissidéncia armada ter sido dizimada, esses grupos de choque perdem a motivac&o que havia presidido a sua constituicdo. E se voltam para o combate a criminalidade co- mum. Tém ampliado o seu papel “politico” tradicional as anti- gas forgas militares estaduais, sem, entretanto, abdicar do estilo e dos métodos que desenvolveram durante o periodo de arbitrio. ‘A andlise do caso da ROTA permite desvendar claramente ‘aquela heranga que sempre cabe a repressio A criminalidade apés os periodos de arbitrio. Aos métodos convencionais de maus-tratos e de tortura, as policias militares, especialmente as unidades especiais como a ROTA, conservaram o poder de abater © inimigo sem riscos penais. O inimigo nao é mais 0 “terrorista” mas o criminoso comum infiltrado nas massas populares, no “povao", como carinhosamente a essas se referem os policiais militares. Nessa atuacao das Policias Militares houve um alarga- mento extraordindrio das tradicionais “‘razdes de seguranga” da esfera da pratica politica para o crime comum. E da mesma forma que no enfrentamento da luta armada nas cidades, a lei para a Policia Militar no confront com o crime continua sendo um enorme estorvo. Em si isso ndo constituiria nenhum fato novo, pois o aparelho policial em muitas situagdes, como vere- mos, tende a pretender definir a sua propria lei. Como afirmou Walter Benjamin num texto memoravel, ‘a ‘lei’ da policia real- mente marca o ponto no qual o Estado, seja por impoténcia ou pela conexdo imanente dentro do sistema legal, nao tem mais condigdes de garantir através do sistema legal os fins empiricos que ele se propde a qualquer preco atingir. Em conseqiiéncia a policia intervém ‘por razdes de seguranga’ em situagdes incon- taveis onde nao existe nenhuma situacdo legal, quando aquelas nao esto simplesmente, sem a menor relagdo com fins legais, cerceando 0 cidadao como um brutal estorvo através de uma vida regulada por ordenamento, ou simplesmente vi oA antiga impunidade de fato na luta contra as dissidéncias poli- (6) Walter Benjamin, "Critique of Violence"’, p. 287, inReflections, Peter Demetz, ed., Nova lorque, Harcourt Brace, Jovanovitch, 1978. Policia e Crise Polttica 61 ticas armadas continua a ser julgada necessdria na luta contra a criminalidade na transicio para a democracia. Através da Emenda Constitucional n? 7, de 1977 (0 “pacote de abril”), de outros decretos e de interpretacdes aparentemente inconstitucio- nais do Supremo Tribunal Federal, as policias militares se véem asseguradas uma justica interna corporis. O que Ihes d& plenas condigdes de construir e implementar a sua propria “lei”. A visio de senhores protetores ¢ arbitrérios “por razdes de segu- ranga” foi superposta pelos mitos da ideologia de seguranca nacional, transpostos para a luta contra a criminalidade comum. Nao é a doutrina de seguranca nacional que muda o cardter da antiga forga publica: a novidade é a transposi¢ao de seus prin- cfpios para fungdes da policia civil e sua sobrevivéncia em tempos de construgdo da normatidade democratica. _ Ao mesmo tempo em que prolongava para a luta contra a criminalidade métodos de repressdo politica, a Policia Militar incorporava e ampliava as praticas do “vigilantismo"? que pre- dominaram em toda a histéria republicana no aparetho policial 0s maus-tratos, a tortura e as execugdes género “‘esquadrdo so praticadas com desenvoltura nunca antes imagi- nada. HA assim uma conjugacdo de tipo novo entre “politi- zacao”’ ¢ “vigilantismo” nas policias militares que nao pode ser analisada simplesmente através do Angulo juridico, que pode permitir novas perspectivas para 0 exame das relagoes entre a violéncia e a politica, ___ Cada vez tem menos sentido afirmar que cada pais tem a policia que merece. Melhor considerar que a policia é como é, no Brasil, porque est enraizada numa tradico, e por refletir o curso ¢ as resolugdes de conflitos — no s6 do presente como do passado. A explicagao para a diferenca entre os estilos de poli- cia, niveis de violéncia, incursdes além da lei, somente pode ser histérica. E © proprio estilo da policia é din&mico ¢ sujeito a mudancas apesar das aparentes continuidades.* Ao se analisar 0 caso das policias militares, deve-se perder a ilusdo de que seu (7) Incorporamos agui o conceito de "‘vigilantismo carac- tea als dos speci da aua poli al de como foi elabo- rado por Tom Bowden, Beyond the Limits of the Law, Harmo Penguin, 1978, p. 93-112. nan (8) Daniel Singer, Prelude to Revolution, Secker ond Warburg, p. 121, cit. Bowden, op cit. p. 141 eae a Paulo Sérgio Pinbeiro padrio de atuagio é inexoravel, totalmente determinado pela estrutura social e econdmica que somente se alteraria com a transformagao revoluciondria da sociedade. Como convida E.P. ‘Thompson, nds precisamos cada vez. mais resistir a todo redu- cionismo estrutural, especialmente nas questdes que dizem res- peito ao direito e a justiga. Ndo mais satisfaz postular uma relagdo mecdnica (lei = poder de classe), mas restaurar uma rela¢ao complexa e contraditéria entre as classes sociais e a lei, entre as classes sociais e a policia.’ Seria uma conclusio sim- plista, por exemplo, fazer decorrer do interesse de todas as classes dominantes o arbitrio e a impunidade das policias mili- tares. Nao ha como negar que a lei serviu sempre como um magnifico instrumento para as classes dominantes imporem novas definigdes do direito em vantagem propria. Mas também nfo hé divida de que a lei, ao mediar as relagdes de classe através de formas legais, impds repetidamente inibigdes sobre os proprios governantes. O poder arbitrario do Estado ndo é igual 20 estado de direito, como tantas leituras marxistas pretenderam fazer crer: ““o estado do direito ele proprio, a imposigao de ini- bigdes efetivas sobre o poder e a defesa do cidadao de pretensdes abusivas do poder, parece-me ser um bem humano inestimavel. Negar ou diminuir esse fato, nesse século perigoso no qual os recursos € as pretensdes do poder cada vez mais sao alargadas, seria um erro desesperador de abstracao intelectual. Mais do que isso, € uma previsio negativa inibidora, que nos encoraja a desistir de lutar contra leis iniquas e procedimentos de classe, € desarmar-nos diante do poder”."” Para esclarecer 0 que ha de continuidade e de inovagao na pratica das policias militares, especialmente desde a sua centralizagdo em 1969 até o presente, propomo-nos a ressaltar trés niveis de questdes. Num primeiro nivel descreveremos os contornos da relagao entre a policia e a politica, especialmente nos momentos de crise. A instrumentalizagao das policias mili- tares no bojo de uma crise politica fornece um caso privilegiado (9) E. P. Thompson, Whigs and Hunters, Harmondsworth, Pen- ‘guin, 1977, p. 274. Para uma andlise da transigdo e do estado de direito ver ‘Raymundo Faoro, Assembléia Constituinte, a Legitimidade Recuperada, S. Paulo, Brasiliense, 1981, p. 25-55. (10) Thompson, op. cit., p. 266. Policia e Crise Politica a para se examinar essa relagdo. Em seguida, perguntar-nos- tem que condigdes a policia militar regride & condigao de grupos armados ilegais, regride a etapa de bandos de vigilantes, assu- mindo 0 padrao “esquadrio da morte”. Finalmente analisa- remos um conjunto de eventos precisos, as 129 execugdes quase legais realizadas por um contingente dos 720 homens que com. p&em a ROTA, durante o perfodo de janeiro a setembro de 1981 situando-as dentro de uma anélise comparada das mortes provo- cadas por policias em outros paises e épocas. Policia e Crise Politica “Yes, it it possible to govern with SO% inflation... Of ‘course, you need a good police force.”" Declaragao atribulda a um ministo de Estado brai- leiro numa reunido financeira internacional, 1975, ____O desenvolvimento da policia nas sociedades modernas {oi sempre provocado pelo temor as ameagas de desordem. Mais do que para combater o crime, a policia foi criada para enfrentar as “classes perigosas”, controlar as manifestag6es das classes baixas e desse modo preservar o status quo. Assim foi desde os despotismos esclarecidos na Europa do século XVIII, os pri- meiros a descobrirem as enormes vantagens de forgas policiais nacionais e Profissionai ' até as décadas que correm. A docu- mentagao hist6rica indica que os momentos de erise politica sempre foram pretexto para o alargamento do poder de policiae sua instrumentalizagao direta pelos grupos no poder." Qualquer andlise hist6rica que nao questione as condigdes de surgimento da policia e de sua existéncia esta condenada a se limitar a tratar de questées triviai 's policias militares, que aqui enfocaremos, no podem ser tratadas como uma instituicdo inexordvel e neces. saria cuja pratica exige somente pequenos reparos, mantida a iscussao dentro dos limites de seu atual papel.” (U1) Bowden, op. cit., p. 16-23 (22) Erie H. Monkhonen, Police in Urban America, 1860- Cambridge, Cambridge University Press, 1981, p. 24. a8, 64 Paulo Sérgio Pinbeiro Quando falamos de crise queremos nos referir a uma nnog&o no processo politico que permite dar conta ao mesmo tempo da permanéncia e da mudanca, implicando a contin dade de determinados processos mas nado 0 equilibrio estavel, © conflito decisive mas nao a revoluco. Uma interpretacao de crise que ocupe a zona intermediaria entre a “revolucao” ea “continuidade"."' E a crise politica a que estamos nos referindo, a do golpe da junta militar em 1969, é uma etapa a mais da disputa pelo controle, pelas classes dominantes e setores do aparelho do Estado, das instituigdes politicas do proceso poli- tico. A partir desse momento o principal instrumento para o controle do Estado passa a ser a coergo direta e a repressao justificadas como necessarias 4 defesa da “‘seguranca nacional”, do desenvolvimento e dos interesses do modelo brasileiro." Era natural que nesse contexto as forcas militares esta- duais fossem submetidas a uma subordinagéo mais rigida por parte das forcas armadas que assumem 0 controle direto do governo, Nao se trata de atribuicdo de um novo papel as forgas policiais das varias unidades da federagao, mas de sua submis- so as diretrizes de seguranga nacional que organiza o regime desde 1964. As policias militares do Brasil em 1969 foram reor- ganizadas pelo decreto-lei n° 667 de 2 de julho de 1969, que atribuiu ao ministério do Exército 0 controle e coordenagao por intermédio do Estado-maior do Exército em todo o territério nacional, pelos Exércitos e Comandos militares de areas nas respectivas jurisdicdes e pelas regides militares nos territérios nacionais, cabendo ao Inspetor das Polfcias Militares o cargo exercido por um general-de-brigada da ativa." (13) Randolph Starn, *'Metamorphoses d'une Notion", p. 14, Com: munications, 25, Paris, 1976 (14) Peter Flynn, Brazil, a Political Analysis, Londres, Ernst Benn, 1978, p. 519-520. 15) Viretlio Luiz Donnici, '"A Politica de Repressio e a Crise do sien Siti is mi, Paes eR i como Profissdo"”, p. 212-214, in Seminario sobre Criminalidade Violenta, Rio, Ordem dos Advogados do Brasil, 1980; Gilberto Velho, Simon ‘Schwartzman, Ruben George Oliven e Edmundo Campos, artigos reunidos ‘no “‘Semindrio sobre Violéncia Urbana no Brasil", Dados, vol. 23, 2 3, Rio, 1980; J. B. de Azevedo Marques, Democracia, Violéncia e Direitos Humanos, S. Paulo, Cortez/Autores Associados, 1981 Policia e Crise Polttica 6 A centralizac&o das policias militares através da subor- dinac&o direta ao exército foi uma decisio, como j4 dissemos, ligada diretamente & dificuldade das policias civis de lidarem com as tarefas de controle impostas pela consolidaco do regime autoritdrio ¢ das antigas policias estaduais de darem conta do enfrentamento da luta armada desenvolvida por alguns setores da oposigao. Deve ser lembrado que essas técnicas de confronto militar do dissenso precederam a luta armada da oposicao: éa guerrilha urbana, entretanto, que justificara sua expansdo € maior visibilidade. As novas policias militares, além dessas inter- vengdes especificas na luta armada, ndo abandonaram, entre- tanto, seu papel de forca de contengdo das manifestagdes de descontentamento urbano, de dissenso civil, enquadrado ou nao por organizagdes politicas, como passeatas, greves, comicios, protestos. A novidade na constituigdo das policias militares a atribuigio de enfrentamento do crime convencional, numa atua- 40 competitiva com a policia civil, praticamente auténoma do poder judicidrio civil (como veremos mais adiante) apesar de uma subordinagao formal. O que estara em curso ndo seré uma politica de combate ao crime, mas a consolidagao de uma certa concepgao do Estado e da sociedade. Essa atribuigdo confunde 0 que tradicionalmente o regime republicano sempre buscou man- ter separadas, a repressdo politica (a contengao da ordem) ea Tepressio comum (combate ao crime). No momento em que se interrompe o enfrentamento da guerrilha urbana, as policias militares vao desenvolver sua guerra contra o crime, utilizando ‘as mesmas técnicas e se valendo da mesma impunidade. A distingdo que ha entre as operagdes de uma policia civil e as atividades de uma policia abertamente politica foi curto-circuitada com o formato da atuac&o da policia militar depois de 1969. Essa observacdo go quer dizer que as policias estaduais anteriormente nao tivessem nenhuma fungdo que pu- desse ser definida como politica. Como jé mostramos, até 1969 as forcas militares estaduais eram legalmente consideradas como auxiliares das forcas armadas. Uma das argumentagdes apre- sentadas para a extingdo dos “exércitos” estaduais é que dessa maneira se impedia que essas forcas pudessem ser utilizadas como instrumento politico do poder local: “seu principal obje- tivo foi o estabelecimento de obstéculos a qualquer eventual 6 Paulo Sérgio Pinbeiro tentativa de utilizacdo das policias militares como armas poli- ticas dos Estados”."" que ocorreu na verdade foi uma sobrepolitizagao das policias militares pelo aparelho de Estado, no caso as forcas armadas, 0 exército, sob a justificagdo da coesdo requerida pelo enfrentamento da “guerra permanente’. Assim, se por um lado se eliminava a possibilidade de atuacao das policias militares como instrumento politico eventual por parte das situagdes poli- ticas locais, transformava-se as policias militares num instru- mento politico articulado com 0 Poder Executivo ¢ de inter- vencdo permanente, Formalmente a Policia Militar est su- jeita a Secretaria de Seguranga de cada governo, mas como seus titulares sio escolhidos com o prévio assentimento do go- verno federal ¢ dos érgios de seguranga, essa articulago com 0 poder central é reiterada. Nos diltimos anos, os métodos ¢ o equipamento empre- gado nas operacées policiais militares apagaram a linha de sepa- ragio que havia entre operacdes policiais e operacdes militares (por exemplo, os cercos recentes a invasores de terras nas ci- dades) ¢ reduziram ao absurdo a divisdo de poderes — agora pouco mais do que uma simples formalidade — entre 0 Executivo oJudicidrio."” Como as politicas piblicas nao tém condigdes de encontrar solugdes para a criminalidade, o crime é resolvido através de métodos militares sob a inteira responsabilidade do aparelho militar do Poder Executivo. | Mas a politizagao nao se da simplesmente pela articu- lagao formal com 0 Executivo. A utilizacdo das policias militares que se amplia no enfrentamento do crime comum, especialmente depois do “'pacote de abril”, cria um foro privilegiado para as policias militares. A “guerra contra o crime” das policias mili tares vai ser beneficiada com as mesmas garantias que gozava no enfrentamento da luta armada: passa a nao ter fronteiras com a guerra “permanente. Permanece, na etapa de transigao para a democracia, a mesma unificacdo entre repressao politica e re- pressio comum que caracteriza as etapas de arbitrio, Vai pelos ares a distine&o formal entre a violéncia poli (26) Dallari, op. cit., p. 80. (17) Sebastian Cobler, Law, Order and Politics in West Germany, Harmondsworth Penguin, 1978, p. 136. Policia e Crise Politica 0 cial estrita e a violéncia politico-repressiva. Na guerra contra 0 crime as policias militares se comportam como se estivessem enfrentando um “inimigo interno” que precisa ser liquidado. A atuacdo das policias militares torna invidvel 0 mito dessa dis- tingdo: “nao existe, na realidade, ago policial que seja estri- tamente policial em seu limite; a ago policial é sempre, tam- bém, uma a¢do politica que traz gravada no seu cerne uma ideologia que a racionaliza e justifica”." Essa ideologia nesse caso é uma adaptagao da teoria da seguranga nacional ao crime. A iinica solugdo para 0 crime é 0 enfrentamento armado. Os criminosos sio agentes do mal, infiltrados no povo, que natu- ralmente é pacifico e ordeiro. As outras abordagens sociolégicas, Psicol6gicas, antropoldgicas, econdmicas ou até religiosas s&o consideradas como ilusorias e mal-intencionadas.” O criminoso (0“bandido") bom é o criminoso abatido, se possivel. Nas sociedades politicas democriticas 0 envolvimento politico aberto da policia é€ minimo ou controlado: além da fungao politica implicita em sua propria existéncia, a policia é mantida firmemente dentro da lei. A implantac4o do regime autoritério no Brasil em 1964 subverteu as tradicionais garantias do cidadao que o aparelho policial na legalidade democratica obrigado a respeitar. Apesar de essas garantias, no que diz res- peito a criminalidade comum e As classes populares, nunca terem sido estritamente observadas no Brasil, foram abando- nadas de vez pelo regime autoritario. Os principios de direito, as garantias do cidadao, foram suspensas como empecilhos 4 eficiéncia do aparelho militar na guerra contra a subversio. E essa a visto que prevalece hoje na “guerra contra o crime”. Aquela funcdo implicita, politica, mas delimitada, contida pela lei € pela fiscalizagto do Poder Judiciério, é superposta por outra, articulada diretamente com a manuteng&o militar do poder autoritario no controlada pelo Judiciério. E impossivel entender a atuac%o do aparelho policial no regime autoritério sem levar em conta essa articulagdo, que se mantém apesar da Tevogacio do AI-S. O que caracteriza essa “politizag&o” da policia? Em si- (18) Eurico de Lima Figueiredo, ''A Questto da Violéncia Policial ¢ da Hegemonia Politica’’, Jornal do Brasil, Caderno Especial, 25.05.81, p. 3. (19) “*Cerqueira fax Critica a Imprensa'’, JB, 1.6.81, p. 12. 68 Paulo Sérgio Pinheiro tuagdes normais as atividades da policia sto especialmente de- fensivas (preventivas) e n&o ofensivas. A policia se apresenta como um aparelho apartidérig defendendo a lei piiblica, a ordem piiblica e a justiga, como “protetores da comunidade”. Ora, no regime da seguranga nacional, 0 aparelho policial, tanto 0 mili- tar como o civil, passa da defensiva — de uma atuacdo eminen- temente preventiva — para a ofensiva. A aco preventiva da policia é relegada para segundo plano ¢ os policiais estao em permanente “combate”. A polfcia no vai desenvolver esquemas de prevencdo ao crime: o fundamental € aumentar 0 policia- mento ostensivo fardado, prerrogativa das policias militares, e desbaratar 0 crime através da eliminacdo (mesmo fisica) dos criminosos. Ha uma mania em colocar “mais policia nas ruas”. O secretirio de seguranga de Séo Paulo preconizou como pana- céia dois soldados por quarteirao. O comandante da Policia Militar de Sao Paulo, em depoimento 4 Comissio Especial de Inguérito da Assembiéia Legislativa, mostrando indiretamente © delirio de tal proposta, caleulou que “se pudéssemos empre- gar, em cada oito horas, um PM em cada quarteirdo, S40 Paulo tendo 48 mil quarteirdes, teriamos, no final das 24 horas, um resultado espantoso de 144000 homens aplicados s6 no policia- mento ostensivo da Grande Sao Paulo, coisa completamente impossivel para um efetivo autorizado no momento de 60 123". ® Pesquisas recentes tém indicado ndo haver nenhuma relacdo, a partir de um certo limite, entre aumento do mimero de policiais na rua e decréscimo nas taxas de criminalidade. O aumento do policiamento no parece ser uma opcdo séria, se seu objetivo é diminuir a criminalidade.* Como j4 vimos anteriormente, a preocupagao da policia com a ordem ndo Ihe foi atribuida pela junta militar que tomou de assalto 0 poder em 1969 ou deduzida da doutrina de segu- ranga nacional. Todas as forcas policiais estao preocupadas em manter a ordem simplesmente pondo em vigor a lei. Mas desde que um antagonismo fundamental exista entre a ordem e a lega- (20) Depoimento do coronel Arnaldo Braga, comandante da PM de ‘Sto Paulo, a CElda Assembleia Legislativa de Sto Paulo, 9.9.81. (21) Roy Carr-Hill e Nicholas Stern, ‘‘More Police, More Crime"”, New Statesman, 181, 1980, p. 85-86 Policia e Crise Politica Cc) lidade, todas as forgas policiais correm o risco de, perseguindo a ordem com exclusao de tudo o mais, avangarem muito além de seu limite legal.” O regime de seguranga nacional exacerbou essa nogdo de ordem ao exaltar os valores de unanimidade, da unidade, da coesao nacional. O conflito (ou a transgressao penal) € encarado como um mal que deve ser debelado. O conflito representado pelo crime é uma manifestagdo que deve ser enfren- tada através da confluéncia entre politicas publicas e repressio pois “todos os sistemas politicos oscilam entre a ordem e varios graus de desordem; todos os sistemas politicos existem num equilibrio essencialmente instavel; todos os sistemas politicos experimentam graus variados de violéncia politica e de desafio ao dominio da lei e a autoridade de regimes legitimamente eleitos"’.® Como o regime autoritério exprime uma visdo pre- tensamente estavel da historia, segundo a qual a ordem, a paz social imposta de cima, a harmonia, a tranqilidade decorrem de um dominio irresistivel do Estado, a atuacao da policia nao tem condigdes de conviver com qualquer ameaga a essa estabi- lidade forgada. Em conseqiiéncia, o emprego do uso arbitrério da autoridade discriciondria, potencial em qualquer policia, transforma-se em regra. E a policia passa a considerar a lei como incompativel com a manutencao da ordem. “Vigilantismo”: o Poder da Policia ‘A gente prende hoje, ¢ amanki a justca sola, As vezes tenho vontade de dar um pontapé neste Cdigo Penal, Mata pena de morte ainda vrd Declaragéo de um tenente da Policia Militar de Séo Paulo, da guarnigio da ROTA que provocou mais ‘mortes, 1981, ‘Criminals are treated far too softly by the courts Because criminal break rules, the police may and ‘must do so as to be a jump ahead... Force is justified ‘25a lest method of detection when normal methods failed... a beating isthe only answer to turn @ rim ral from a life of crime. Depoimento de um policial de Sheffield, Gri-Breta nha, 1963 (22) Bowden, op.cit.,p. 13, (23) Bowden, op. cit., p. 14 70 Paulo Sérgio Pinheiro Essa autoconfianga de o aparelho policial poder agir “além da lei” é transposta do enfrentamento com a guerrilha e 0 terrorismo urbano diretamente para o crime comum. Nas situa- des de contra-insurreicao o aparelho policial argumentava que contra a guerrilha 0 respeito ao direito era uma limitagao inad- missivel. Ontem, para o guerrilheiro considerado um fora-da-lei, ‘as garantias normais do cidadao eram um luxo, uma limitagao a que o Estado nao poderia se permitir. Hoje, como o criminoso também é um fora-da-lei, se a policia militar observar fielmente as regras da lei na luta contra o crime, estara prejudicada. Em termos gerais, o “vigilantismo” policial pode ocorrer quando a polfcia percebe a auséncia de controles legais ou quando o regime encoraja abusos ou quando pretende ignoré- los, de modo a manter o status quo, preservar um regime auto- cratico ou debelar rapidamente uma crise politica.” Qualquer que scja a motivacio, uma dessas trés, e geralmente é uma mistura delas, o resultado é sempre a pratica do justicar brutal e efetivo que desconhece cleméncia ou moderagao. O caso do “Esquadrao da Morte” se enquadra nessa descrigao: alguns policiais, visando manter alto o prestigio da policia civil — que comecaria a ser concorrenciada pela policia militar —, resolvem provar sua eficiéncia através da eliminag4o pura e simples de marginais, contando para isso com o apoio da cipula policial e até mesmo do governador do estado.* Em breve essa iniciativa espontanea passaria a ser ins- trumentalizada na luta contra as dissidéncias politicas, sob a supervisio dos érgaos de informacao. A OBAN (Operagio Ban- deirantes) refinaria, e ao mesmo tempo especializaria na repres- so politica, as praticas do Esquadrao da Morte (seqiiestro, tor- tura, eliminagdo), agregando membros dos servigos de informa- do das trés armas e da policia, apoiada por fundos de empresas nacionais ¢ multinacionais.* Os “esquadrdes”, por sua vez, progressivamente se confundiram com o proprio crime, com as (24) Bowden, op. cit., p. 95. (25) Hélio P. Bicudo, Meu Depoimento sobre o Esquadrio da Morte, Sto Paulo, Pontificia Comissto de Justiga e Paz, 1976, p. 24-25. (26) ‘Torture Techniques at Operacdo Bandeirantes’', Amnesty International Report on Allegations of Torture in Brazil, 1973, p.61-69. Flynn, op. cit., p. 435. Policia ¢ Crise Polttica 11 quadrilhas de t6xicos, de furto de automéveis, de contravengdes (como 0 jogo do bicho) e a prostituicao. O “vigilantismo” do “esquadrao da morte” se desen- volve num momento de crise politica, no periodo que precede o ato institucional n° S e dai em seguida. Pode também ser consi- derado uma resposta a percepcao do aumento da criminalidade, diante da vaga de acusagdes de incompeténcia de que a policia civil era alvo. O aparelho policial, mesmo nos periodos consti- tucionais, jamais interrompeu as praticas que caracterizam 0 “vigilantismo”: as torturas; 0 “pau” durante o interrogatério de suspeitos de crimes comuns é pratica consagrada na policia do Brasil sem nenhuma interrup¢do. Em todas as delegacias brasi- leiras sempre se torturou e se continua a torturar: muitos pol ciais diante dos crimes de furto nao véem outra saida senao 0 “pau”. No proprio relacionamento entre os policiais e os crimi: nosos ja se estabeleceu um cédigo segundo o qual o criminoso que nao apanha esta colaborando com a policia e traindo seus companheiros, arriscando-se depois a ser justigado pelos pré- prios companheiros. No Brasil, para as classes populares, pre- ceitos rigorosos e respeitados para a detengao, guarda de sus- peitos, direito a defesa de advogado, tomada de depoimentos e prisdo nunca foram postos em vigor e sempre ficaram ao arbitrio de cada policial. O desrespeito a qualquer garantia do cidad&o é a regra na relacdo entre a policia e as classes populares. Deve ser também lembrado que a tolerncia que as autoridades piblicas tém diante desse “‘vigilantismo”, farta- mente conhecida, tem suas raizes nas grandes expectativas sobre 08 efeitos de controle que essas praticas pretensamente tém, Espera-se que esses abusos e arbitrariedades estejam servindo em tiltima instancia para preservar as relagdes de propriedade existentes, apoiar os valores conservadores na politica econd- mica, valores sociais e morais, assegurar uma justica retaliatéria e preservar a leie a ordem. “vigilantismo” nao se inaugura no aparelho policial com a crise politica e 0 golpe de estado de 1969, mas propici que um novo padrdo de impunidade venha se somar larga tra- dicdo de violéncia a que estiveram sempre submetidos todos os suspeitos e criminosos egressos das “classes perigosas”. Depois do golpe de estado de 1964 e especialmente depois da institu- cionalizago do arbitrio com 0 AI-5, houve uma confluéncia 2 Paulo Sérgio Pinheiro entre o que ja era pratica consagrada ¢ tolerada no aparelho policial e 0 projeto autoritério do Estado: em conseqiéncia, 08 zelos do policial individual de como garantir 0 Estado e 0s interesses do Estado passaram a ser vistos como um s6. O “Es- quadrao da Morte” e, na sua sucesso, o “‘vigilantismo” da PM. sdo 0 resultado da atribuigao de poderes discricionArios a policia civil e 4 policia militar através dos quais o sistema burocratico- militar pretende consolidar seus poderes. No Rio de Janeiro foram atribuidas 1 000 mortes ao Es- quadrao da Morte desde 1968; no mesmo ano ainda houve 182 mortes.” Entre janeiro ¢ setembro de 1981 somente a ROTA, uma corporacao de 720 homens, matou 129 suspeitos e crimi- nosos. Comparando os métodos eo enorme niimero de cadaveres parece que estamos diante da institucionalizagao, em bases mais amplas ¢ organizadas, do “‘vigilantismo” do “Esquadrio da Morte”. O objetivo de fazer justi¢a com as préprias maos, su- prindo as “fraquezas” do sistema judiciério, parece ser comum ao “Esquadrao da Morte" e a PM. Mas para melhor caracterizar esse “vigilantismo” é indispensdvel analisar as diferencas: as mortes sdo assumidas, ainda que muitas vezes dissimuladas por uma legitima defesa mal fundamentada. A corrupgio, o envol- vimento com os circuitos do crime comum organizado, apesar de casos individuais de soldados (alias expulsos da corporagao com freqiiéncia), nao parece estar muito difundida: o que permite envolver com uma renovada aura moral o “‘vigilantismo”. A PM, a0 contrario do “Esquadrao da Morte”, nao corre hoje o risco da apreciacao de seus atos pela justiga: ““o Supremo Tribunal Fe- deral, mal interpretando as dltimas emendas constitucionais, permitiu que os tribunais de milicias passassem a julgar os poli- ciais militares que cometam qualquer tipo de crime. Hoje a ROTA mata impunemente”.™ Apesar de todos os obstaculos e hesitagdes por parte do Poder Judicidrio e do Poder Executivo, as investigagdes e as condenagdes contra os policiais integrantes do “Esquadrao da Morte” interromperam essas praticas na poli- p42? 1: 2-4.1970, ct, Pon, op. cit, p. 469 ¢ Bowden, op. ct, pl (28) Bicudo, '*Hoje a ROTA Mata Impunemente’’, Folha de S. Paulo, 25.8, 1981, p. 25, Policia e Crise Politica 3 cia civil. Entretanto, antes de examinarmos numa segdo em separado o mais grave abuso do “vigilantismo” da PM, as quase execugdes paralegais, no Rio de Janeiro e em Sao Paulo, apro- fundaremos alguns tragos desse “‘vigilantismo” importado da policia civil para a pritica da policia militar. O vigilantismo da PM nao se restringe 4 acdo contra criminosos individuais ou quadrilhas. Tem a pretensio de enquadrar toda a populagao, que até provar & suspeita. Uma das principais técnicas utili- zadas é 0 “arrastao”, “rondao", “pente-fino”: operagdes de re- vista e detengdes ilegais realizadas no centro da cidade e nos bairros. Numa das maiores operacdes de estardalhaco do ano, a policia militar do Rio de Janeiro mobilizou 3600 homens de todos os batalhdes da cidade e da Baixada Fluminense e a batida se estendeu desde a zona Sul passando pelo centro até os subtir- bios, sendo presas algumas dezenas de pessoas.” Na impossi- bilidade de “ocupar” militarmente a cidade para prevenir 0 crime, regularmente a PM desaba sobre a cidade com esses controles sobre o cidadao. Absolutamente ineficazes: tamanha ingenuidade esperar que os criminosos, apesar do estardalhaco, caiam nas “redes” da policia. Na verdade, esses “‘arrastdes” tém objetivos maiores do que as detencdes, em sua maioria ilegais e insignificantes, que tealiza. O primeiro é demonstrar as classes possuidoras que a policia esté a seu servigo, zelando pela sua paz e tranqililidade; mas as operagées so to atrabilidrias que comecam a provocar sérias dividas nessas mesmas classes quanto a sua eficdcia. O segundo € aterrorizar as “‘classes perigosas” para que nao caiam no crime, Os arrastdes tm um forte colorido pedagégico: seus estrategistas créem piamente que aquele que for detido ou levado para as delegacias, espancado, torturado, ameagado de morte, até levaré a boa palavra para seus companheiros, alertando-os do risco que correm se delinqtirem. Terceiro, decalcam as mes- mas operacdes feitas nos periodos de arbitrio para detectar os “agitadores do movimento comunista internacional” infiltrados nas massas. Naquele mesmo més o comandante-geral da policia litar no Rio de Janeiro, coronel Nilton Cerqueira, assegurava que (29) * Batida com 3 Mil 600 PMs Ocupa a Zona Sul"’, JB, 14.2.1981, Policia e Crise Politica 75 as batidas realizadas no centro da cidade iriam continuar, pois sua intengdo era que houvesse policiais na rua durante 24 horas, proferindo “‘a obrigagio de 0 cidadio se identificar quando solicitado pela autoridade”.” Chamou a atengao para as dificul- dades de os policiais identificarem os marginais, ja que na sua ago tém que resolver uma série de problemas, ¢ 0 que devem fazer os policiais quando ao solicitarem os documentos recebem uma resposta agressiva: “E preciso entender que o policial nao trabalha s6 com gente boa, mas com marginais também". Numa entrevista,”’ o mesmo coronel explicava seus métodos: “Que critérios a PM usa para deter alguém nessas ope- rages? A observacdo pessoal € a falta de documentos, embora este segundo caso suscite controvérsias juridicas. O poli- cial aprende a conhecer um bandido. O sujeito baixa os olhos, fica tenso. Raramente ocorrem equivocos. Nas operagées ‘pente-fino’, a esmagadora maioria de pessoas detidas é formada por negros e pobres. Naoseria uma forma de discriminagio? Nao ha discriminacdo alguma. Se houvesse, nenhum bandido louro seria preso. Nem ocorreriam prises de estrangeiros. Ossenhor tem acompanhado pessoalmente algumas des- sas operagdes? Tenho. Regularmente, depois de terminar meu expe- diente aqui no comando, fago inspecdes de surpresa. Gosto de ver de perto o trabalho de meus comandados.”” Registre-se o eufemismo “‘controvérsias juridicas”: 0 co- ronel deve-se referir a flagrante ilegalidade desses ““pentes-finos”” realizados sob sua coordenagdo ¢ em sua prazerosa presenga. Apesar da evidente ineficdcia dessas operagdes de ocu- pagdo militar da cidade, a policia militar nao as interrompe, demonstrando que os objetivos implicitos de “contrale social” da (30) JB, 22.2.1981 (BD) Veja, 29.4,1981, '"O Duro Xerife do Rio". 16 Paulo Sérgio Pinheiro populacao sdo maiores do que os explicitos (enfrentar a crimi- nalidade). Numa operac&o “‘arrastéo" que levou trés horas, com quatro equipes do 13° batalhao da PM carioca, ndo se conseguiu deter ninguém, com trés caminhdes, uma kombi, trés cambu- roes, duas patrulhas, armados de revélveres e pistolas automa- ticas, na rua das Laranjeiras, no Rio. Mesmo assim o coronel Orlando Oscar Couto, comandante do 13° BPM, disse estar satisfeito porque, ‘na medida em que nés ocupamos todos os espacos, 0 inimigo nao tem espaco para se movimentar”. ini- migo, no caso, para 0 coronel, sdo os criminosos e 0 espago € a lade. Mas 0 coronel nao desanimava: a blitz tinha como principal objetivo “‘desestimular qualquer tipo de ilicito””® pois, mantendo as classes populares (e médias) aterrorizadas, acre: dita-se que o crime diminuir4. Somente dezessete anos de autoritarismo, somados a um tradicional ¢ permanente descaso da sociedade e relaxa- mento do controle judicial ao qual o aparelho policial teorica- mente esta submetido, podem explicar esse descalabro. Leiam-se 0s relatérios e as estatisticas sobre a criminalidade e se podera constatar que a criminalidade jamais se abalou com essas razzie. Asestruturas do crime organizado resistem impavidas ao carna- val brutal dos “‘arrastes”, sem nenhum risco. Apesar do alto sentido de profilaxia moral que cerca suas ages, a policia mili- tar no Rio de Janeiro, por exemplo, pouco consegue fazer contra © crime organizado disfargado sob as contravengdes do jogo (0 “bicho”). Mais escandaloso do que sua ineficacia, deve ser Tepetido, é 0 fato de esses “‘arrastées” serem realizados ao arre- pio de qualquer determinacao legal. Por preceito constitucional, as prisdes somente podem ocorrer por flagrante delito ou por ordem judicial. As policias militares se auto-atribuiram 0 papel de con- troladores do mercado de trabalho sob a alegagdo de combate- rem a vadiagem: o documento principal exigido as classes popu- lares € a carteira de trabalho. Num momento em que as taxas de desemprego nos grandes centros urbanos atingem niveis de 10% e conhecendo-se os altos niveis de desemprego disfar- ¢ado, controlar a populagdo através desse documento € sub- (32) **Arrastdo Ocupa 4 Equipes da PM durante Trés Horas mas nao Prende Ninguém'’, YB, 23.1.1981, Policia ¢ Crise Polttica ” meter as classes populares ao puro terror. Os “arrastdes”, “faz. de conta” do enfrentamento da criminalidade, sio um claro instrumento de aterrorizagdo das classes populares, uma parte integral da estratégia de controle das policias militares sobre a sociedade. Além das detengdes ilegais realizadas no contexto desses “arrastdes", Virgilio Donnici jé chamou a atengdo para o espan- toso niimero de detencdes que as policias militares fazem. Em 1977, a policia militar do estado do Rio de Janeiro prendeu 160000 pessoas: dessas, somente 20795 processos foram distri- buidos ao Judicidrio: “Com as 160000 prisdes, tivemos entio 129 205 prisdes arbitrarias, no velho conflito entre ‘lei e ordem’ ‘principio da reserva legal’. De janeiro a setembro de 1981, segundo as estatisticas iais da ROTA, seus 720 homens detiveram para a averigua- &o 5327 cidadaos, dos quais somente 71 foram presos conde- nados (vide anexo 1). Em Sao Paulo, no primeiro semestre de 1981, foram “detidos para averiguagdo”, na capital, 40 264 cida- dios; no interior, 21956, perfazendo o total de 62220." Os objetivos dessas prisdes, em tal mimero, sem abertura de pro- cesso judicial, so os mesmos do “‘arrastdo”: demonstrar servigo, aterrorizar, acdo pedagégica, detectar os “infiltrados”. Mas sem nenhum efeito duradouro contra a ctiminalidade comum. Ne- nhuma criminalidade, em nenhuma parte do mundo, em ne- nhuma época, foi baixada a forca. E estamos nos referindo aqui somente a criminalidade “op¢ao preferencial pelos pobres”, como ironicamente lembra o promotor piiblico Joao Benedito de Azevedo Marques: a policia militar esta preocupada fundamen- talmente com os crimes praticados pelas classes populares (furto, roubo, homicidios), deixando totalmente de lado o crime organi- zado e os crimes de “colarinho branco” (peculato, desfalques, operagdes financeiras ilicitas), que transformam em brincadeira o montante dos crimes comuns contra o patriménio. Apresenga do “vigilantismo” na atuacao da policia mili- tar, além das mortes e dos “‘arrastdes”, pode ser constatada pela incorporacao de outros abusos, comuns ao conjunto do aparelho policial, como a tortura, a retaliagdo, agressdes e invasdes de (33) Donnici, op. cit., p. 230-231 (34) Depoimento. 78 Paulo Sérgio Pinbetro domicilio ilegais. Em julho de 1981, um casal de vizinhos de um policial da PM suspeito de assalto a um carro-forte foi levado Para o quartel do 189 Batalhao da PM em Jacarepagua e espan- cado: os soldados da PM queriam a todo custo que eles confir- massem a participagdo do soldado no assalto.* Em setembro, © soldado do regimento de policia montada Ademir Ferreira Feital confessou ter seqiiestrado, com sete soldados da Policia de Atividades Especiais da policia militar, trés pessoas, invadindo a residéncia sem mandado de prisio em 1977, tendo a ordem partido de um coronel e sido transmitida por um sargento do ba- talhao.” No més de setembro em Sao Paulo, um grupo de poli- ciais militares, na tentativa de localizar um carro cujos ocupan- tes estavam sendo apontados como autores de um tiro que havia ferido mortalmente um tenente da PM (mais tarde se apurou que fora um soldado que disparara acidentalmente), seqiiestrou e torturou duas pessoas, disputando entre si a quem caberia 0 direito de mata-los para vingar a morte do tenente.-” Em agosto ficou-se sabendo que uma jiboia de aproximadamente dois me- tros estava sendo mantida em uma jaula no grupo de recursos especiais da delegacia geral de investigacdes especiais, instalada nos fundos do prédio onde funcionam o batalhao de policia de atividades especiais da PM e a delegacia de roubos e furtos de automéveis em Benfica, usada para coagir presos a assinarem confissdes. Segundo as dentincias, os presos so colocados num cubiculo e a jibéia se enrola em seu corpo. * O noticiario também & farto quanto a acusagdes de agressdes ¢ furtos por parte das PMs: como amidde acontece com o aparelho policial, o “esbirrismo" sempre da lugar ao banditismo.” As freqientes expulsdes podem ser um indicador (35) “Tortura na PM", Veja, 22.7,1981, p. 24 (36) “‘Soldado da PM Diz que um Coronel Ordenara a Invasto Prisdo sem Ordem Judicial"’, JB, 4.9.81, p. 20. (37) “"Para Vingar Tenente PMs Ameacam Matar Inocentes"’, FSP, 4.9.81, p. 12, (38) “Policia Mantém em Jaula Jibdia para Intimidar Presos"’, JB, 15.881, p. 5. (39) Antonio Gramsci, “A Delingiéncia'': 433, in Maquiavel, a Politica € 0 Estado Moderno, Rio, Civilizado Brasileira, 1978, p. 43 Policia e Crise Politica 79 dessas praticas.” H& muitos indicios que grandes assaltos te- nham a colaboracao de antigos PMs e antigos membros do apa- relho policial."" A violéncia do crime comum esta hoje infiltrada por grupos que pertenceram a repressdo politica: “Esta nao é uma afirmativa graciosa, Basta que nés prestemos atencdo para ficacao de alguns assaltos levados a efeito em Sao Paulo ¢ no Rio de Janeiro, para verificarmos que eles nao sao fruto das classes populares, de homens pertencentes as classes populares. Eles sdo praticados por pessoas altamente treinadas nesse métier de invadir domicilio para subtrair, antigamente documentos ou provas contra as pessoas, hoje dinheiro e pertences de cada um de nés".” | Involuntariamente, por um deslize semi6tico, essa conti- nuidade entre as praticas do “‘vigilantismo” do “Esquadrao da Morte” e da policia militar foi indicado pelo distintivo que o proprio comandante da PM carioca, coronel Nilton Cerqueira, determinou que fosse usado por seus oficiais e soldados que con- cluissem o curso de “operagdes especiais". O emblema se asse- metha macabramente aos cartazes deixados sobre as vitimas do “Esquadrdo da Morte” e a caveira-simbolo dos SS nazistas: uma caveira transpassada por um sabre, de cima para baixo, sobre pistolas entrelagadas, cercadas por uma guirlanda de louros, segundo a descrigao da portaria publicada no Diario Oficial. > ““Mecdnico Acusa PM por Agressdo ¢ Furto"’, O Estado de S. Paulo, asp 3 Pte € Agree por PM's SP, 988,928 “'Tenenty da PM é Autuado por Tentar Matar Detetive'', JB, 6.6.81, . 20. (4p), “Delegado Admite que Ex-Tenente da PM Assaltou a Brinks", JB, 13-681, p.7. (42) Bicudo, "Debate: Violéncia nao ¢ Privilégio das Classes Popu lares'", FSP, Folbetim, 1°.2.1981, p. 5. (43) “Policia Terd que Estudar Novo Distintivo"', FSP, 13.8.1981, pls 80 Paulo Sérgio Pinheiro 129 Execugées: “No Estrito Cumprimento da Lei” Igual cagador de onga (Que arma sua tincheira Esperando na emboscada ‘Aquelaferatraigoeira Despede de seus parentes ‘Nao sabe se volta mais ‘Avancande mato@ dentro E munca deiva snais Fosoldado da Rota Que luta com lealdade Arriscando sua vida Para. bem da humanidade Deixa a familia em casa Rezando por sua sorte Rezando e pedindo a Deus Quendo the mande a morte ‘Malandro treme na base Por ver tamanha brevura (Os caranguejeiros somem De medo da sepultura Ele va sempre em frente Defende atociedede Deizando os queso humildes ‘Namaior rangiilidade, ‘Aldo dos Santos, "O Soldado da ROTA in Batalhto Tobias de Aguiar em Revista, 1980 ‘A acdo do meu polcial sempre em revide: ee no ‘age — ele reage. Entio, a totalidade desses elementos ‘ram elementos que resstram, de armas na mao, 4 ‘do legal da minha Policia Militar. (..) Repito, fentdo: a atitude anti-social do elemento que fo atin- {ido pela minha poeta € que determinow a reagéo da Polite Coronel Arnaldo Braga, Comandante da Polleia Mi liar é CEL Assembléia Legislative, Sdo. Poul, 99.198. Dois policiais dinamarqueses acabam de ser conde: rnados a quarenta dias de priséo absoluta por terem ‘ortado os cabelos de um jovem manifestante (..) ‘Seus superiores ndo protesiaram contra exea conde: Inagdo que atinge dois de seus agentes apesar de seus bons e leas servicos (eles tém quarenta anos de idade mais de vinte anos de servico cada um). LeMatin, Pars, 12.981 Policia e Crise Polttica 81 Seria interessantissimo que ao lado das curvas de au- mento da criminalidade (muitas vezes manipuladas pelo governo € por alguns meios de comunicago para aterrorizar a popula- ¢&o), as autoridades divulgassem claramente os nimeros de mortos em combate com as forcas policiais. Até o més de no- vembro de 1980, a ROTA havia matado 110 pessoas. Nenhum pais que viva sob um regime de direito e onde esteja (ou tenha estado no passado) em vigor a pena de morte pode apresentar tal saldo de executados. Nenhum pais onde 0 aparelho policial es- teja submetido ao controle democratico é capaz de apresentar tal saldo de cadaveres sob a alegaco do estrito cumprimento da lei. E uma politica deliberada de exterminio de “criminosos” que conta com a proteco das autoridades do Executivo e com a impunidade assegurada pelo Judicidrio, como veremos a seguir. A policia militar faz vista grossa do direito dos cidadaos, crimi- nosos ou nao, ¢ da Constituigdo, que nao atribui a nenhum corpo do Estado ou a seus agentes a faculdade de exarar sentencas de morte ¢ executé-las sem nenhuma defesa dos acusados. A policia militar tornou-se seu proprio juiz, jiiri e carrasco. A razio apre- sentada para esses abusos pode ser resumida na expressio “lei ¢ ‘ordem”. Mas a lei que procuram aplicar nao respeita a exigéncia de haver proceso judicial: “nao deve haver nenhum engano para 6 fato de que a lei para a policia vigilante esté na ponta do cassetete ou no cano do revélver"”. De janeiro a setembro de 1981, a ROTA matou, se- gundo suas proprias estatisticas, conforme quadro anexo, 129 pessoas. Examinadas as versdes oferecidas para essas mortes, divulgadas pela propria ROTA, através do acompanhamento diario na Folha de S. Paulo, a versio, com pequenissimas va- riagdes, € sempre a mesma: foi dada ordem de prisio a um suspeito perseguido,

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