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Sistema carcerário brasileiro

A ineficiência, as mazelas e o descaso presentes nos presídios


superlotados e esquecidos pelo poder público

Texto: Sande Nascimento de Arruda

A desestruturação do sistema prisional traz à


baila o descrédito da prevenção e da
reabilitação do condenado. Nesse sentido, a
sociedade brasileira encontra-se em momento
de extrema perplexidade em face do paradoxo
que é o atual sistema carcerário brasileiro,
pois de um lado temos o acentuado avanço
da violência, o clamor pelo recrudescimento
de pena e, do outro lado, a superpopulação
prisional e as nefastas mazelas carcerárias.

Vários fatores culminaram para que chegássemos a um precário sistema


prisional. Entretanto, o abandono, a falta de investimento e o descaso do poder
público ao longo dos anos vieram por agravar ainda mais o caos chamado
sistema prisional brasileiro. Sendo assim, a prisão que outrora surgiu como um
instrumento substitutivo da pena de morte, das torturas públicas e cruéis,
atualmente não consegue efetivar o fim correcional da pena, passando a ser
apenas uma escola de aperfeiçoamento do crime, além de ter como
característica um ambiente degradante e pernicioso, acometido dos mais
degenerados vícios, sendo impossível a ressocialização de qualquer ser
humano.

A superpopulação

A macrocomunidade nos presídios é de conhecimento do poder público, no


entanto, cada vez mais a população carcerária cresce e poucos presídios são
construídos para atender à demanda das condenações. A superpopulação nos
presídios representa uma verdadeira afronta aos direitos fundamentais. Nesse
aspecto, basta citar o art. 5º, XLIX, da Carta Magna (a qual assegura aos
presos o respeito à integridade física e moral), bem como lembrar que a
dignidade da pessoa humana é um dos princípios basilares da Constituição.

Impende salientar que a própria Lei de Execução Penal (LEP), no seu art. 88,
estabelece que o cumprimento da pena se dê em cela individual, com área
mínima de seis metros quadrados. Ademais, o art. 85 da LEP prevê que deve
haver compatibilidade entre a estrutura física do presídio e a sua capacidade
de lotação.

Nesse contexto, a superlotação tem como efeito imediato a violação a normas


e princípios constitucionais, trazendo como consequência para aquele que foi
submetido a uma pena privativa de liberdade uma "sobrepena", uma vez que a
convivência no presídio trará uma aflição maior do que a própria sanção
imposta.

A superlotação no sistema penitenciário impede que possa existir qualquer tipo


de ressocialização e atendimento à população carcerária, o que faz surgir forte
tensão, violência e constantes rebeliões.

No Brasil, a situação do sistema carcerário é tão precária que no Estado do


Espírito Santo chegaram a ser utilizados contêineres como celas, tendo em
vista a superpopulação do presídio. Tal fato ocorreu no município de Serra,
Região Metropolitana de Vitória. A unidade prisional tinha capacidade para
abrigar 144 presos, mas encontrava-se com 306 presos. Sem dúvida, os
direitos e garantias individuais que o preso possui não foram respeitados.
Dessa forma, os presos são literalmente tratados como objetos imprestáveis
que jogamos em depósitos, isto é, em contêineres. Afinal, para parte de uma
sociedade alienada, o preso não passa de "lixo humano".

A demora acentuada na concessão de benefícios aos condenados é um dos


fatores que contribuem para a evidente fragilidade do sistema prisional
brasileiro. Ademais, o abandono do preso após a condenação é gritante, seja
por parte do Estado, seja por parte dos demais operadores do Direito,
especialmente os advogados. Para alguns desses defensores, o trabalho já
fora cumprido na defesa até o trânsito em julgado da sentença, esquecendo
estes dos incidentes de execução ou, se não foram esquecidos, agora já
poderão ser tratados pelos advogados mais "simples", tendo em vista que a
tragédia maior já aconteceu, qual seja, a condenação, sendo o resto
suportável.

Nesse sentido precisamos avocar nossas próprias omissões, seja o magistrado


na aplicação da pena e demais procedimentos, seja o promotor na acusação,
seja o delegado na investigação criminal, seja principalmente o advogado que
deve cumprir o seu papel de acordo com os ditames da dignidade da pessoa
humana, atento ao seu primordial trabalho na administração da justiça.
Incluem-se também os profissionais da área de execução penal (agentes
penitenciários) que embora não tenham o reconhecimento de seu trabalho por
grande parte da sociedade são essenciais na busca de um futuro de
transformações na área carcerária.

Outro ponto de vista que deve ser analisado é o exposto pela socióloga Julita
Lemgruber, que aponta uma solução. Para ela, uma maior racionalidade na
imputação das penas alternativas e o empenho do Estado na melhoria dos
presídios existentes e na construção de novos são fundamentais para resolver
o problema.
Nesse sentido, a racionalidade da imputação das penas deve ser observada
por todos os operadores da sistemática penal, pois algumas penalizações só
fazem aumentar a população carcerária e estimular a fábrica de delinquentes.

Podemos vislumbrar na prática tal pensamento nos casos em que pessoas


ingressam no sistema carcerário após terem cometido um crime famélico (ex.:
furtar uma lata de leite). O crime de furto caracteriza crime contra o patrimônio,
apenado com reclusão de 1 a 4 anos e multa (art.155, CP) e nos casos
qualificados a sanção é de 2 a 8 anos. Eis a indagação: mas até onde existe o
animus dolandi quando fica evidente a singular pretensão de saciar o grande
legado da pobreza, ou seja, a fome? Tal reflexão coaduna com o
seguinte verbete necessitas facit justam quod de jure non est licitum (a
necessidade faz justo o que de direito não é permitido). Tal fato ocorre tendo
em vista grande parte da população ainda sobreviver abaixo da linha da
pobreza. Cabe ressaltar que não convém àquele que furta alimentos a
pretensão de aumentar seu patrimônio. Nesse sentido, incide o que a doutrina
penal chama de necessitas inevitabilis.

Para ela, uma maior Enfim, a superlotação e suas nefastas


racionalidade na consequências encontram-se visíveis a todos da
imputação das penas sociedade, não sendo preciso ser um expert em
alternativas e o empenho sistema prisional para concluir o evidente déficit de
do Estado na melhoria vagas existentes nos estabelecimentos penais. A
dos presídios existentes título de exemplo podemos destacar os dados
e na construção de fornecidos pelo Departamento Penitenciário
novos são fundamentais Nacional, que indicam um déficit de mais de
para resolver o 180.000 vagas em todo o País. São quase 500 mil
problema. presos no país, em um sistema prisional que só
tem capacidade para 260 mil detentos.

Privilégios e corrupção nas prisões

Um fenômeno rotineiro nas prisões é a corrupção, em que alguns agentes


públicos recebem vantagens indevidas (propinas) oferecidas pelos presos para
a obtenção de certos privilégios. Isto acontece ora por parte da população
carcerária privilegiada com determinadas vantagens pessoais, ora porque as
relações existentes na prisão celebram-se com o envolvimento de dinheiro e do
tráfico de drogas. A corrupção é verificada pelos órgãos de segurança quando
realizam vistorias e operações internas em busca de objetos proibidos.

Em 21 de agosto de 2002, o Batalhão de Choque da Polícia Militar de


Pernambuco realizou uma grande operação no Presídio Professor Aníbal
Bruno, bairro Curado, em Recife, onde encontrou 3.450 detentos, basicamente
presos aguardando julgamento. Nessa operação foram encontrados em poder
dos reclusos telefones celulares, barrotes de madeira, filmadora, cachimbos
para o uso de crack, maconha e "chunchu" (facas artesanais), além de dois
aparelhos de telefones convencionais, segundo noticiou à época o jornal Diário
de Pernambuco
Tal fato comprova o poder de comunicação dos detentos com as pessoas que
se encontram fora dos presídios, culminado muitas vezes em sequestro,
comando do tráfico de drogas e em extorsões, além da corrupção efetiva dos
agentes de segurança prisional no tocante à entrada de entorpecentes e
objetos escusos que indubitavelmente adentram aos presídios durante as
visitas familiares e íntimas.

Em decorrência dessa rede de corrupção surgem alguns privilégios para os


detentos. Contudo tais regalias só são oferecidas aos que podem pagar por
elas, uma supremacia do mais forte sobre o mais fraco. O Diário de
Pernambuco denunciou no ano de 2006 as mordomias que alguns presos
tinham no Presídio Professor Aníbal Bruno: os detentos chegavam a pagar até
três mil reais para ter privilégios e para reformar a própria cela, podendo assim
usufruir de suítes de luxo, com direito à luz de neon, toda em cerâmica,
equipada com aparelho de televisão de tela plana e home theater. Além disso,
acesso à TV por assinatura e chuveirões para se refrescar do calor, sem falar
no serviço de entrega de pizza "em domicílio" e plantação particular de
maconha. Na contramão dos que dispõem de tanto luxo, alguns reclusos são
obrigados a conviver em celas apertadas e alguns chegam a dormir até no
banheiro por falta de espaço nas celas.

A ociosidade do recluso

A falta de ocupação ou de trabalho dos presos vem sendo um grande problema


no sistema penitenciário, visto que o detento ocioso tem tempo para arquitetar
as suas maquinações delinquenciais. Diz a sabedoria popular que "cabeça
vazia e mãos desocupadas são as melhores oficinas do diabo". A ociosidade
faz com que os presídios sejam transformados em base de comando para os
detentos, uma vez que eles comandam o crime dentro e fora da prisão. Desse
modo, o Estado gasta dinheiro público, não consegue reabilitar o apenado, e a
sociedade continuará sem segurança quando esse recluso voltar ao seio
social. Importante acrescentar que aproximadamente 82% dos detentos no
Brasil não trabalham.
Nesse sentido, tem toda razão o professor Roberto Porto quando afirma que o
preso ocioso é caro, inútil e nocivo à sociedade. No Brasil, o custo mensal do
preso é três vezes maior do que a manutenção de um aluno na escola pública
do ensino fundamental.

Organizações criminosas

O surgimento das facções criminosas tem sua origem mais conhecida em


1860, nos Estados Unidos, com o sindicato do crime - ou máfia, formada
basicamente de imigrantes italianos, uma das mais antigas e conhecidas
facções criminosas. Essas embrionárias facções criminosas são as raízes do
crime organizado de hoje, uma vez que suas finalidades se confundem entre
elas. Desse modo, atuam com fortes investimentos ilegais, narcotráfico,
prostituição, jogos ilegais e contrabando de armas.

No Brasil, o primeiro registro de facção criminosa é com o Comando Vermelho


(CV), criado em 1979, no Presídio Cândido Mendes, na Ilha Grande, localizado
no Rio de Janeiro. Tudo começou a partir da convivência entre presos comuns
e militantes de grupos armados, que na época combatia o outro mal que era a
ditadura militar. A formação de facções criminosas ganhou mais força com o
nascimento do Primeiro Comando da Capital (PCC) no Estado de São Paulo,
precisamente na Casa de Custódia e Tratamento Dr. Arnaldo Amado Ferreira,
de Taubaté, em agosto de 1993. Tal facção ganhou mais notoriedade após a
rebelião simultânea ocorrida em 2001, no Estado de São Paulo. Cabe salientar
que essas organizações criminosas tendem a se disseminar principalmente
pela constante transferência de presos para outros estabelecimentos penais.

Diante de uma síntese exemplificativa de algumas facções criminosas, está


comprovado que tais organizações proliferam por todo o País. Cabe salientar
que agora de fora para dentro dos presídios. A formação de grupos mafiosos
em um sistema marcado pela macrocomunidade prisional é uma das mazelas
derivadas da superlotação.

A proliferação dessas facções criminosas também é resultado da má


administração e da precariedade dos sistemas prisionais estaduais. Nessas
facções sempre emergem líderes e liderados, organizando grupos para
comandar as penitenciárias brasileiras.
Saúde pública

A saúde pública no sistema prisional é inexistente. O Censo Penitenciário


Nacional, realizado em 1994, indicou que 1/3 da população carcerária é
portadora do vírus HIV. Isto se deve às instalações precárias, grande
circulação e migração de pessoas, insalubridade, falta de atendimento médico,
além das práticas de risco existentes nos presídios brasileiros - por exemplo, o
uso de drogas e as relações sexuais sem a devida prevenção.

A situação da saúde pública nos presídios é tão degradante que na maioria das
vezes o preso tem que sair da unidade prisional para receber o tratamento
médico adequado. Os ambulatórios que sobrevivem à má administração não
possuem as mínimas condições para a devida assistência médica. Dessa
forma, os presídios são um importante meio de transmissão da tuberculose e
de desenvolvimento de formas resistentes da bactéria causadora da moléstia.
Impende salientar que as doenças não ficam restritas aos muros dos presídios,
pois muitas são levadas para a sociedade pelos servidores penitenciários, bem
como pelos parentes dos presos, e com as visitas íntimas a sua propagação só
faz aumentar.

Segundo o Ministério da Saúde, as principais doenças verificadas nos presídios


do País são tuberculose, doenças sexualmente transmissíveis (DST), hepatite
e dermatoses. As doenças infectocontagiosas saem dos presídios pelo
contingente de cerca de 200 mil servidores prisionais, que têm contato direto
com a população carcerária, pois são funcionários que passam oito horas no
serviço e voltam à sua comunidade.

Portanto, fica evidente a urgência do poder público em se movimentar para ao


menos diminuir o contágio das doenças, bem como fiscalizar e criar meios que
forneçam assistência médica nos presídios, garantindo, dessa forma, a
dignidade da pessoa humana.

A morosidade processual e os erros do Judiciário


A falta de agilidade processual tem sido umas das mais cruéis e desumanas
mazelas, uma vez que tortura os criminosos não perigosos e concorre para a
degeneração dos presos provisórios. Muitos desses detentos costumam passar
anos nas cadeias do Brasil sem ao menos terem sido condenados.

Tal morosidade ainda é pior quando se trata de erro judiciário, como foi o caso
de Marcos Mariano da Silva, ex-mecânico, que foi preso em 1979, acusado de
ter praticado um homicídio. Ele ficou preso - sem sequer ser julgado - por 19
anos. Parte desse tempo no Presídio Professor Aníbal Bruno, onde, em 1992,
durante uma rebelião, policiais invadiram o presídio e detonaram bombas de
efeito moral nas celas e pavilhões. Recolhido na cela cinco do pavilhão B,
Marcos Mariano da Silva foi atingido no olho esquerdo por estilhaços de uma
granada e perdeu a visão depois de seis meses. O olho direito também foi
afetado e, em 1997, o ex-mecânico ficou cego. Interessante ressaltar que o
erro só foi detectado em 1998, durante um mutirão judicial para a avaliação de
processos no presídio. O erro judicial foi ocasionado por conta de um quase
homônimo do ex-mecânico Marcos Mariano da Silva, o verdadeiro criminoso,
Marcos Mariano Silva.

O fato é que a morosidade processual e o erro judiciário influenciaram para que


um inocente fosse depositado em um presídio com celas superlotadas,
acompanhado de criminosos de alta periculosidade. Tenho a certeza de que
não é difícil encontrar pessoas presas nos presídios brasileiros sem ao menos
terem sido julgadas, além daquelas que passam meses e até anos presas por
furtarem pão e margarina porque tinham necessidade de se alimentar e não
tinham dinheiro para tanto. Por isso, se faz necessário acelerar a máquina
processual para que pessoas não sejam depositadas em prisões por causa de
erros judiciais ou por furtos famélicos. Claro que devemos punir quem furta,
mas com a medida certa. Tanto é assim que temos em nosso ordenamento a
previsão das alternativas legais (penas restritivas de direito).

Perspectivas e soluções

Ex positis, pode-se concluir que o sistema prisional brasileiro não possui


mecanismos que assegurem o objetivo primordial da pena privativa de
liberdade, qual seja, a ressocialização do apenado, tendo em vista que a
realidade do sistema carcerário encontra-se representada pelo sucateamento
da máquina penitenciária, o despreparo e a corrupção dos agentes públicos
que lidam com o universo penitenciário, a ausência de saúde pública no
sistema prisional, a superpopulação nos presídios, a convivência promíscua
entre os reclusos, a ociosidade do detento, o crescimento das facções
criminosas dentro das unidades prisionais, dentre outros os efeitos
criminógenos ocasionados pelo cárcere, bem como a omissão do Estado e da
sociedade.

A crise carcerária só poderá ser resolvida quando a sociedade e os políticos


tiverem vontade de solucionar o problema. Para tanto, é preciso a erradicação
dos preconceitos em relação ao preso e ao ex-presidiário por parte da
sociedade.
Assim sendo, é preciso criar políticas públicas e sociais para erradicação da
pobreza, gerar empregos, reestruturar a educação fundamental, investir em
estudos atinentes à prevenção da criminalidade, avaliando, desta forma, os
fatores que condicionam o indivíduo a praticar crimes e posteriormente garantir
a possibilidade de ressocialização. Não é suficiente o tratamento das
patologias criminais após o cometimento do delito, se faz necessário um
comprometimento das autoridades públicas e da sociedade antes mesmo de o
delito acontecer.

Sande Nascimento de Arruda 


Bacharel em Direito pelas Faculdades Integradas Barros Melo - Aeso; pós-graduado em Direito Público pela Escola de
Magistratura de Pernambuco; advogado e assistente do 1º Juizado Especial Cível de Olinda/PE; sócio-fundador do escritório
Arruda, Cavalcanti e Sousa Advogados e Consultoria Jurídica. 

http://revistavisaojuridica.uol.com.br/advogados-leis-jurisprudencia/59/
Fonte:
artigo213019-1.asp

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