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PPGI – ECOLOGIA APLICADA - ESALQ – USP

DISCIPLINA: CIÊNCIA, CULTURA E ÉTICA – ECO 5034


DOCENTES: Dra Maria Elisa Garavello / Dra Laura Alves Martirani
ALUNA: Mirian Stella Rother DATA: 05 de abil de 2011

Um discurso sobre as Ciências na transição para


uma ciência pós moderna.

Boaventura de Sousa Santos

Os progressos científicos das últimas décadas foram tão extraordinários, que


comparados aos do século XVI a XIX, nos dá a sensação que este período é história
longínqua. Entretanto, são justamente os cientistas desta época que mapearam o campo
teórico em que ainda hoje nos encontramos. Se por um lado, assistimos ao
desenvolvimento de uma tecnologia que nos possibilita traduções dos conhecimentos
acumulados, por outro, convivemos com o medo de uma catástrofe ecológica ou de uma
guerra nuclear. Como diz a teoria (sinergética) de Haken, vivemos num período em que
a mínima flutuação de nossa percepção visual provoca rupturas na simetria em que
vemos. Como noutros períodos de transição, é necessário voltar a formular perguntas
simples, aquelas que são capazes de trazer uma luz a nossa perplexidade, como as de
Rousseau: o progresso das ciências e das artes contribuirá para purificar nossos
costumes? Há relação entre ciência e virtude? Haveria de encurtar distância entre o que
se é e o que se aparenta ser? Entre teoria e prática? Século XVIII: iniciava-se uma
transformação técnica e social como nunca fora visto, somos hoje os produtos e
protagonistas dessa nova ordem, perdemos a confiança epistemológica e temos medos
e inseguranças diante do futuro. Estamos numa fase de transição, e nossas perguntas
continuam sendo as mesmas que as de Russeau, porém as respostas muito mais
complexas; temos que perguntar se a ciência e a tecnologia tem contribuído positiva ou
negativamente para nossas vidas. Estamos ao final de um ciclo de hegemonia de uma
certa ordem científica, e as condições epistemológicas de nossas questões estão
inscritas no contrário dos conceitos que utilizamos para respondê-las, além das
condições muito mais complexas e diferentes, em termos sociais e psicológicos.
O que seria esta ordem científica hegemônica? Quais os sinais da crise desta
hegemonia? E qual seria a nova ordem emergente? O percurso das repostas será
balizado por cinco hipóteses: desaparecer o sentido da distinção entre ciências naturais
e sociais, o polo dessa síntese há de operar no âmbito das ciências sociais, as ciências
sociais deverão recusar qualquer teoria oriunda do positivismo lógico e mecanicismo
materialista e revalorizar o humanismo, não deverá propor uma teoria geral unificadora,
mas que abranja linhas teóricas diversas, e por último, o desaparecimento da fronteira
hierárquica entre conhecimento vulgar e científico.

O Paradigma Dominante
O modelo de racionalidade que domina a ciência moderna constitui-se a partir da
revolução científica do século XVI e só no século XIX é que se estende às ciências
sociais emergentes; é quando podemos falar num modelo global de racionalidade
científica, que mesmo admitindo variações internas, promove distinção ostensiva entre o
conhecimento científico (racional) e o não-científico (irracional), potencialmente
perturbador (senso comum e estudos humanísticos, como históricos, filológicos, literários
e outros). Assim sendo, é um modelo totalitário, na medida em que nega o caráter
racional de todas as formas de conhecimento que não se pautarem por seus princípios
epistemológicos, que é também a característica que melhor representa a ruptura com o
paradigma científico que o precede. Para compreender esta confiança epistemológica,
olhamos para os protagonistas (como Galileu ou Descartes) deste novo paradigma, que
cientes que detém uma melhor observação dos fatos, e sobretudo uma nova visão de
mundo e vida, e constatamos sua luta contra as formas de dogmatismo e autoridade,
que pressupõe distinções fundamentais entre o conhecimento científico e o de senso
comum, entre natureza e a pessoa humana. Ao contrário das ciências aristotélicas, a
ciência moderna desconfia sistematicamente das evidências de nossa experiência
imediata, que têm base no conhecimento vulgar. É total a separação entre o ser humano
e a natureza, esta passiva, eterna e reversível, mecanismos cujos elementos podem
desmontar, e depois relacionar sob forma de lei, que é desprovida de qualquer outra
qualidade que nos impeça de revelar seus mistérios ou de dominá-la. As idéias
matemáticas que presidem a observação e a experimentação. A matemática não é só
um instrumento de análise, mas um modelo lógico de representação da própria estrutura
da matéria, o que acarreta duas conseqüências principais: conhecer significa quantificar,
ou seja, o que não é quantificável, é cientificamente irrelevante; e o método científico
assenta na redução da complexidade, conhecer significa dividir e classificar e depois
determinar relações sistemáticas entre o que se separou. Assim, as leis da natureza são
o reino da simplicidade e da regularidade, onde é possível observar e medir com rigor.
Privilegia ainda a causa formal, ou seja, o funcionamento das coisas em detrimento de
seu agente ou finalidade, sendo esta a via principal de seu rompimento com o senso
comum, em que causa e intenção convivem em harmonia. É este tipo de causa formal
que permite intervir na realidade e manipulá-la.
A mecânica de Newton, em que o mundo da matéria é uma máquina cujas
operações se podem determinar por meio de leis físicas e matemáticas, um mundo que
pode-se conhecer pelo racionalismo cartesiano, a idéia de um mundo-máquina vem a ser
um dos pilares da idéia de progresso e marca a ascensão da burguesia, mas a verdade
é que a ordem e a estabilidade de mundo são a pré-condição da transformação
tecnológica do real.
É neste cenário, que no século XIX assistimos à emergência das ciências sociais,
que assumem o modelo mecanicista de duas formas diferentes: a primeira, dominante,
positivista, consistiu em aplicar todos os princípios metodológicos das ciências naturais
do século XVI no estudo da sociedade; e a segunda, que antes marginal e agora em
fortalecimento, constituiu em buscar-se um estatuto epistemológico e metodológico
próprio, com base nas especificidades do ser humano. A última, livre do jugo positivista,
mas ambas reivindicando para si o monopólio do conhecimento científico social.
Para Durkheim (pai da Sociologia) é necessário reduzir os fatos sociais às suas
dimensões externas, observáveis e mensuráveis. Como nem sempre é possível esta
redução sem um alto índice de distorção, há de enfrentar inúmeros obstáculos, mas não
insuperáveis, como aponta Nagel: as ciências sociais não têm teorias explicativas que
lhes permitam abstrair do real para depois voltar nele, de modo metodologicamente
controlado, e encontrar a prova adequada; as ciências sociais não podem estabelecer
leis universais porque os fenômenos sociais são historicamente condicionados e
determinados culturalmente; não podem produzir previsões, porque o homem modifica
seu comportamento na medida em que adquire conhecimento sobre ele, os fenômenos
sociais são de natureza subjetiva; e as ciências sociais são subjetivas, pois o cientista
social não pode furtar-se da observação, dos valores que norteiam sua prática e sua
própria prática. São nesses obstáculos que residem um atraso no progresso das ciências
sociais quando comparadas às naturais. Para Kuhn, o atraso é fruto de seu caráter pré-
paradigmático, estas sim paradigmáticas. Afirma que não existe consenso paradigmático
nas ciências sociais, assim o debate tende a atravessar todo o conhecimento adquirido
com desperdício de esforços.
A segunda vertente tem como argumento fundamental que a ação humana é
radicalmente subjetiva, e o comportamento humano, ao contrário dos fenômenos
naturais, não pode ser descrito ou explicado com bases nas suas características ex-
teriores e objetiváveis, já que uma ação externa pode ter inúmeras sentidos diferentes.
As ciências sociais serão sempre de natureza subjetiva, e pressupõe métodos
qualitativos, que buscam um conhecimento intersubjetivo, descritivo e compreensivo,
diferente das ciências naturais (objetivo, explicativo e nomotético), o que torna esta
vertente antipositivista. Também aponta um sinal de crise e alguns componentes de
transição para um novo paradigma.

A Crise do Paradigma Dominante


A crise do paradigma dominante é o resultado interativo de uma pluralidade de
condições sociais e teóricas. Teóricas: a identificação de limites, das insuficiências
estruturais do paradigma científico moderno é resultado do grande avanço no
conhecimento que ele proporcionou, que permitiu ver a fragilidade de seus próprios
fundamentos. O primeiro grande impacto foi o causado por Einstein, e seus conceitos de
relatividade e simultaneidade, ao demonstrar que a simultaneidade de acontecimentos
distantes não podem ser verificada (medida), mas apenas definida, é portanto arbitrária.
A idéia de que não conhecemos do real, senão aquilo que nele introduzimos, ou seja, se
interferimos nele, está bem demonstrada no princípio da incerteza de Heisenberg, que
demonstra a inferência estrutural do sujeito no objeto observado. O rigor da medição
posto em causa pela mecânica quântica, expressa na matemática: o teorema da
incompletude (Gödel), que expressa a impossibilidade, em certas circunstâncias, de
encontrar dentro de determinado sistema formal a prova de sua consistência. Os
avanços da microfísica, da química e da biologia, com destaque para Prigogine, com a
teoria das estruturas dissipativas e o princípio da ordem através das flutuações, que não
só contraria definitivamente a concepção de matéria e natureza que herdamos da física
clássica (história no lugar da eternidade, imprevisibilidade no lugar de determinismo,
interpenetração ao invés de mecanicismo, evolução no lugar de ordem e assim por
diante), como recupera conceitos aristotélicos de potencialidade e virtualidade, que a
revolução científica do século XVI simplesmente excluiu da história.
Estes cientistas e suas teorias aqui destacadas, e tantos outros, como Haken,
Eigen, Maturana e Varela, Thom, Jantsch, Bohm, e Chew, nos chama a atenção para um
fato de importância sociológica, em dois aspectos: primeiro que a reflexão sobre a crise
dos paradigmas parte dos próprios cientistas, que adquiriram competência e interesse
filosófico para questionar sua própria prática científica; e segundo que esta reflexão era
deixada para sociólogos, a agora passa a ocupar papel importante na reflexão
epistemológica. As idéias de autonomia e neutralidade da ciência colapsaram perante o
fenômeno global da industrialização, e passou a ocupar papel decisivo na definição das
prioridades científicas. Paralelamente, modificou a organização do trabalho do cientista,
alterando relações de poder e igualdade: de um lado, o cientista-operário, trancado num
laboratório qualquer e sem acesso a recursos, e do outro, o cientista instrumentalizado e
sua pesquisa intensiva mantida pelo poder do capital, situação que acentuou ainda mais
o abismo entre o crescimento científico e tecnológico entre os países ricos e pobres.

O Paradigma Emergente
Pela caracterização do paradigma vigente, temos o perfil do emergente. Assim, a
revolução científica que estamos enfrentando é de natureza diferente da ocorrida no
século XVI. Ocorrendo numa sociedade convulsionada pela própria ciência, o paradigma
por vir não deve ser científico (de um conhecimento prudente), mas social (o paradigma
de uma vida decente).
Todo conhecimento científico-natural é científico-social: a distinção dicotômica
entre as ciências naturais e as sociais perdem seu sentido. As contribuições da física,
química e biologia nas figuras exponenciais de Bohm, Prigogine, Chew, Wigner, Capra e
outros fazem repensar a concepção mecanicista da matéria e da natureza, em con-
traposição com conceitos de ser humano, cultura e sociedade. O conhecimento do pa-
radigma emergente tende a ser não-dualista, superando deste modo as distinções
consideradas por nós insubstituíveis até agora, como natureza / cultura, vivo / inanimado,
animal / pessoa, coletivo / individual e tantos outros. Para superar estas distinções é pre-
ciso ainda descobrir qual será o novo parâmetro de ordem, e se vão ocorrer no âmbito
das ciências sociais ou das naturais. Alguns lêem neles a emergência de um novo
naturalismo, centrado num privilegiamento dos pressupostos biológicos do compor-
tamento humano, e portanto sob a égide das ciências naturais, entretanto, a emergente
inteligibilidade da natureza é presidida por conceitos, metáforas e analogias das ciências
sociais, neste caso, estariam sob o domínio das ciências sociais, com indicativos que
ocorra no seu modelo (vertente) filosófico complexo, fenomenológico, de vocação
antipositivista. A concepção humanística das ciências sociais enquanto agente
catalisador da fusão das ciências naturais com as sociais, coloca a pessoa como autor e
sujeito do mundo, no centro do conhecimento. A ciência pós-moderna é assumidamente
analógica, que conhece o que conhece pior através do que conhece melhor. Todo
conhecimento é local e total: na ciência moderna, o conhecimento avança na
especialização, ao mesmo tempo que reconhece ser seu dilema básico, ou seja, o seu
rigor aumenta na proporção direta da arbitrariedade com que divide o real. A excessiva
especialização e parcelização do saber científico, acaba por transformar o cientista num
ignorante especializado, com visíveis efeitos negativos. Os males desta parcelização do
conhecimento e do reducionismo arbitrário que carrega, ainda que reconhecidos,
acabam criando gerando mais especializações e reduções. Assim, no paradigma
emergente, o conhecimento é total, tem como horizonte a universalidade. A
fragmentação pós-moderna é temática, e não disciplinar. Os temas são vias por onde os
conhecimentos vão ao encontro uns aos outros para resolução de determinada questão
localizada, em pluralidade metodológica. Todo conhecimento é auto conhecimento: a
mecânica quântica anunciou o regresso do sujeito, ao demonstrar que o ato de
conhecimento e o produto do conhecimento são inseparáveis. Os conceitos de mente
mais ampla ou mente coletiva de Bateson anunciavam ainda a possível volta de Deus,
sem nada de divino, senão o nosso desejo de comungarmos (religarmos) com a
natureza. Pode-se afirmar que o objeto é a continuação do sujeito por outros meios
(Clausewitz), assim o conhecimento científico é auto-conhecimento. A ciência não
descobre, cria, e o ato criativo de um cientista e da comunidade científica no seu
conjunto, tem de se conhecer intimamente antes que conheça o que com ele se conhece
do real. Todo conhecimento científico visa constituir-se num novo senso comum: se a
ciência moderna faz do cientista um ignorante especializado, faz do cidadão comum, um
ignorante generalizado, a ciência pós-moderna sabe que nenhuma forma de conhe-
cimento é em si, racional, mas só a configuração de todas elas o é. Tenta pois dialogar
com outras formas de conhecimento, e em especial, com a do senso comum, conhe-
cimento vulgar e prático com que orientamos nossa vida cotidiana. A ciência pós-
moderna reconhece no senso comum, algumas virtualidades que podem enriquecer
nossa relação com o mundo, como, por exemplo, sua dimensão utópica e libertadora,
(que pode ser ampliada através do diálogo com o conhecimento científico), o fato do
senso comum fazer coincidir causa e intenção, o seu lado pragmático, transparente,
indisciplinar e imetódico.
A ciência pós-moderna não despreza o conhecimento que produz tecnologia,
assim como o conhecimento deva traduzir-se em conhecimento, a tecnologia deve
traduzir-se em sabedoria de vida.
Nesta fase de transição e revolução científica nossa reflexão episte-
mológica está muito mais avançada e sofisticada que nossa prática científica, e ninguém
pode neste momento, visualizar projetos concretos de investigação que possam cor-
responder inteiramente ao paradigma emergente.

Questões:

1.Poderíamos nos dias de hoje pressupor a aceitação de projetos multi-


disciplinares, interdisciplinares e transdisciplinares em dissertações e teses como uma
tentativa acadêmica de prática de uma ciência pós-moderna ?
2. Se afirmativo, em que casos ?

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