Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
br 1
REFLEXOS NO ESPELHO PARTIDO
GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA
www.galenoalvarenga.com.br/contatos
Publicações do Autor
Transtornos Mentais
Testes Psicológicos
Medicamentos
Galeria de Pinturas de Pacientes
Vídeos / Programas de TV com participação de Galeno Alvarenga
Parei numa ficha. Depois, noutra: “esse aqui só veio uma vez; um caso
diferente; queria, a todo custo, transformar-se em mulher. Onde estará?
Essa separou-se do marido, poucos dias após ter-se casado: ele quase a
matou de tanto a agredir. Terá casado de novo? Como era bonita essa
moça! Tentou o suicídio várias vezes. E agora? Conseguiu o que que-
ria? Esse, canceroso, não quis tratar-se; morreu como desejava. Como
bebia o Alberto! Sofreu muito com a cirrose. Gostava das idéias do Dr.
Bernardo; era um homem inteligente; sempre tinha algo diferente para
dizer”.
Evito ler todas as anotações de uma só vez; torno a olhar seu nome no
alto da ficha; precisava me certificar: Lúcio M. L.; data da consulta: 23
de abril de 1970. Minha mente penetra, lentamente, com saudade, na
penumbra da primeira consulta, nosso encontro inicial. Gostei do seu
jeito. Era um caso difícil; o que sempre me excitou.
Era simpático, apesar da cara fechada e séria. Vestia uma camisa verde-
amarela da seleção brasileira, bastante justa, que permitia ver os ossos
das costelas estufados; dando a impressão de ser mais magro do que
realmente era. Em contraste, vestia uma calça branca, que parecia escor-
regar para baixo do abdome, presa à cintura por um cinto roto, amar-
rotada, mole, larga demais para cobrir suas pernas finas. O vinco desa-
parecera completamente e, em seu lugar, na altura dos joelhos, formava
um ovo saliente.
Lucinho, nas suas constantes idas aos terapeutas, aos poucos, se pertur-
bou, enterrou-se nas crateras cavadas por ele com a ajuda dos psicól-
ogos. Aprisionado nos dogmas das terapias, Lúcio não mais conseguiu
se encontrar; perdeu seu referencial, distanciou-se, cada vez mais, das
soluções que imaginava para si. Acreditando piamente nas interpre-
tações fornecidas pelos terapeutas, ele passou a buscar as supostas metas
ditadas pelos credos; ao dedicar-se às elucubrações fantasiosas dos que
imaginavam ajudá-lo, ele jogou fora sua individualidade, abandonou seu
próprio caminho. Assim, passou a canalizar energias, exclusivamente,
para se desvencilhar ou compreender, como ele imaginava, essa rede de
conceitos abstratos, que foram usados para salvá-lo.
Sua história teria sido perdida e não poderia ser contada, caso não
tivesse sido anotada, em grande parte, por ele próprio. Ele não fez um
diário clássico, como muitos jovens o fazem; escrevia suas observações e
pensamentos acerca do que lia, ouvia ou vivenciava.
Lucinho iniciou sua vida, como todos nós, tentando preservar suas
crenças mais profundas, evitando se perder no meio de tantas opiniões
diferentes. Foi um qualquer, gente como a gente. Seu nome não era con-
hecido, as roupas que usava jamais foram copiadas como modelos, nem
seu modo de andar, falar, pentear-se ou pensar; foi um anti-herói. Lutou
contra caminhos conflitantes. Tentou, obstinadamente, encontrar uma
saída digna no labirinto onde foi encarcerado. Seu sonho era converter-
se nele próprio, não desaparecer na mesmice, não se dissolver em certos
padrões sociais impostos, que impedem o crescimento individual; lutava
para construir seu próprio caminho. Infelizmente, apesar dessa luta em
Quando me procurou pela primeira vez, ele era jovem. Contou-me que
começou a freqüentar o pré-escolar muito cedo. Seus pais, Dr. Ad-
amastor e Rosária, desejosos de melhorar seu relacionaento com outras
crianças - ele era muito arredio e calado, pediram conselhos ao pediatra,
Dr. Lunardi, homem de princípios conservadores, que os aconselhou
a colocá-lo numa escola religiosa, onde havia, além do ensino de boa
qualidade, uma disciplina tradicional e rígida.
Dr. Adamastor, hoje, com sua mulher, Rosária, e seus três filhos: Agosti-
nho, Roberta e Lucinho, tem iguarias melhores do que o omelete. Pode
comer camarões ou lombo, mas não tem mais apetite, papilas gustati-
vas aguçadas e nem sensação para perceber odores - tudo aquilo que é
necessário para diferenciar a boa da má comida. Não mais sente o gosto
nem o delicioso cheiro de antes; não mais se alegra ao ver a clara mole e
feia se transformando na névoa bela, fofa e branca, e uma vez misturada
com a gema amarela, originando a casca cocrante do omelete.
Não foi fácil arrumar a mulher dos seus sonhos. Vivia isolado no can-
teiro de obras da companhia, o que dificultava a aproximação com as
possíveis candidatas a um casamento. Aconselhado pela família, pro-
curou a pretendente ideal entre as conhecidas e parentes de sua terra.
Mas a maioria das boas moças de Capão do Pinhal estava casada. Lá,
elas se casavam cedo. As que escaparam do primeiro cerco estavam
comprometidas com os conhecidos da cidade; todos, geralmente, pri-
mos das namoradas. Poucas haviam sobrado dessa peneirada; algumas
solteironas empedernidas e eternas, mais velhas do que ele, freqüenta-
doras diárias das igrejas e as outras, não classificadas nessas categorias,
eram jovens mal vistas, rebeldes, independentes demais, com as quais os
rapazes evitavam um namoro para casar. Mas Dr. Adamastor sabia que,
apesar dos falatórios difamadores, eram elas as mais cobiçadas. Diante
das dificuldades em encontrar, em sua cidade natal, a “moça dos seus
sonhos”, decidiu procurá-la em Belo Horizonte. Estava ciente dos riscos
Foi nessa época que Dr. Adamastor conheceu Rosária, durante as folias
de Momo. Ele freqüentava os bailes de carnaval do Diretório Central dos
Estudantes - DCE - mas evitava dançar, pois sua timidez não permitia
tal excesso. Ia aos bailes para paquerar uma ou outra moça, escolhendo
geralmente as mais tristes e desamparadas. Bêbado tornava-se corajoso,
sendo capaz até de tirar uma jovem para dançar. Na verdade, não dança-
va: marchava pelo salão, com seu corpo duro, dando a impressão de ter
engolido uma alavanca.
Ele, nesse momento, iniciava, ao lado do balcão do bar, uma dança de-
sajeitada, sinalizando conquista. Para ele, era ela a moça mais linda que
encontrara. Seus longos cabelos castanho-claros, quase louros, mesmo
amassados de um lado, davam-lhe uma aparência de santa francesa.
Para a mente apaixonada e bêbada de Adamastor, tudo nela o atraía...ela
o encantava.
O carnaval não tem regras; tudo vale. O rapaz que dançava com ela
carregando, em uma das mãos, um copo de bebida amarelada e insípida,
largou a parceira, como fazendo parte do jogo. Era um jovem magro
e inibido, com uma passividade que contrastava com Rosária, muito
disposta e despertada pelo novo pretendente. Diante dos olhos bêbados,
semi-abertos do “pierrot” apaixonado, ela, automaticamente, olhou para
ele, curiosa e cantarolou a melodia tocada. Sem nada dizer ao rapaz
comprido e triste, largou-o, rebolando em direção ao novo folião.
Quase sem perceber, ele foi transportado à mesa onde estava a família
dela e pôde observar, atraído, a fartura ali existente: cerveja, uísque,
refrigerantes, empadinhas, coxinhas e pastéis, ainda fumegantes, tão
cheirosos como os omeletes feitos na república. Assentados, sorrindo,
lá estavam o bonachão e obeso pai, ladeado por um senhora cheia de
badulaques, maquiada exageradamente, pronta para posar para o retrato
de casamento. Ficou encantado com a visão da família, principalmente
com o cheiro da manteiga queimada com cebola dos pastéis de quei-
jo; um perfume que trescalava pelo salão. Os pastéis estavam ali, bem
Ele engoliu, ali mesmo, o primeiro pastel, que desceu pela garganta,
queimando-a. Farelos do salgado, bem como um fiapo de queijo ficaram
presos no seu bigode preto. Isso a levou a limpá-lo com rapidez, com
um guardanapo retirado da mesa, antes que ele usasse o lenço marrom
para retirar os resíduos que permaneceram em torno da boca. Engolido
o primeiro deles, o apetite de Adamastor aumentou ainda mais. Após ele
ter se afastado da mesa e atravessado o salão, segurava, radiante de ale-
gria, com uma das mãos, outro pastel quente, examinando-o com avidez
e atentamente o recheio, antes de cada bocada. Em seguida, oferecia o
pastel, já pela metade, a Ela.
Nem uma coisa, nem outra. Quem decidiu tudo, como era a norma,
foi D. Gertrudes. Envergonhada, ela elaborou um plano para resolver,
Muitas vezes, eles se perguntavam o que foi buscado naquela união de-
vastadora. Sem respostas, em nome do amor, foram se adaptando às bri-
gas e ao sofrimento que um causava ao outro. Quando, ocasionalmente,
surgia um período de calmaria, por motivos inexplicáveis, alheios à von-
tade dos dois, um deles, prontamente, desafiava e agredia o outro e, no-
vamente, reiniciavam as desavenças. Com o retorno à estrutura-padrão,
brigas continuadas, conhecida de ambos - que eles compreendiam e com
as quais tinham aprendido a viver - eles navegavam satisfatoriamente.
Lucinho foi o último filho de Dr. Adamastor e Rosária, uma família que
teve um início de vida tumultuado, numa casa onde a desordem e o
sofrimento imperavam. Segundo consta, quando ela esperava Lucinho,
ele andou paquerando uma estagiária da firma de construção de Cla-
rimundo. Os boatos alcançaram os ouvidos de Rosária, que foi tomar
satisfação, no escritório do marido, com Silbene, que desmentiu tudo,
a princípio, com veemência; aos poucos, pressionada pelo tom de voz
e palavrões cada vez mais pesados de Rosária, cedeu e, praticamente,
confessou o crime. Há notícias de que ela teria tido um filho dele. A
partir dessa data, Silbene foi dispensada, vigiada, impedida de jamais se
aproximar de Adamastor.
Rosária, para punir seu marido, decidiu ficar sem ter relações sexuais
com ele, por uma temporada. De fato, usou a briga como pretexto para
ficar livre do que não gostava; nunca fora uma mulher entusiasmada por
contato sexual com homem algum. Tinha aversão pelo corpo masculino
e, mais ainda, pelos órgãos sexuais masculinos. Com respeito aos ho-
mens, ela seguiu a mãe, que não escondia o desencanto com eles, fossem
de qualquer espécie.
- Não tolero nem cheiro de homem. Homem tem cheiro de queijo ardi-
do, falava D. Gertrudes, dando boas gargalhadas, diante de Clarimundo
que, nesses momentos, abaixava a cabeça e ria sem graça.
Clarimundo, acostumado com a mulher, manhoso, já desistira de dis-
cutir com Gertrudes, há muito. Continuava a vida sexual, sem chamar
atenção de ninguém, com uma ou outra mulher que encontrasse, que
aceitasse suas cantadas melosas e demoradas. Geralmente, procurava as
mulheres pobres, incultas, sem ideais e planos. “Estas são fáceis”, assim
ele dizia, “não dão trabalho; não preciso gastar muito e nem de muita
conversa, que, de fato, não tenho”.
- Também, para quê? Uma chatura... Esse jornal não tem nada. São as
mesmas notícias... Você já conhece todas: desastres de pessoas descon-
hecidas; nunca é um nosso parente ou amigo, só uma vez aconteceu
isso; reuniões inúteis na Câmara; reclamações ao Procon e mais um
seqüestro...ela não parava de falar...
Uma fresta de luz medrosa e fria penetrava, com dificuldade, pela porta
semi-aberta do quarto, permitindo ver a cena desoladora e tétrica que
começava a ser representada naquela noite de tempestade. Lembrava
os espetáculos teatrais pobres das pequenas cidades do interior. Ela se
virou, na penumbra, pôs-se a examinar seu próprio corpo; olhava-o,
tocava-o, todo ele, na solidão da noite. A respiração foi se acelerando.
Com extremo cuidado e delicadeza, ela, após untar as mãos num creme
perfumado, deslizou as pontas dos dedos por todo o corpo, massagean-
do-se através de toques macios, lentos mas firmes.
Seus grandes seios, umedecidos pelo líquido leitoso e pelo suor que
nascia de seus poros, saíram do pequeno sutiã vermelho, espalharam-
se sobre o rosto do garoto, quase impedindo-o de respirar, deixando-o,
ainda, mais assustado e paralisado. Sufocado, ele escutava a respiração
ofegante de sua mãe, os gemidos retidos e profundos, os sons vindos
do seu agitado coração. Após alguns instantes, participou da convulsão
muscular que irrompeu em todo o corpo de Rosária.
Até então, as relações com sua mãe tinham sido admoestações, maltra-
- Acordou, filhinho?
Ele tornou a fechar os olhos, mas logo os abriu. Observou sua mãe,
certo de que iria receber um castigo. Imaginou ter cometido algum erro
grave, não sabia qual. Ela, assustada, afastou-se ainda mais. Mais serena
e racional, culpada e envergonhada, começou a soluçar. Ao se levantar,
caminhou pelo quarto escuro e abafado, vigiada pelos olhos aflitos do
filho e, só minutos depois, lembrou-se de que estava nua. Procurou,
apressada e desajeitadamente, suas roupas, custando a encontrá-las, uma
vez que, por instantes, desapareceram no quarto desmazelado.
Na manhã seguinte, ele acordou, com a mãe desperta a seu lado. Ela,
com os olhos empapuçados, continuava a lhe pedir, insistentemente,
desculpas, por tê-lo assustado, na noite anterior. Rogo-lhe, ainda, que,
aquele momento vivido por ambos, fosse um segredo entre eles.
Numa tarde, durante suas crises de euforia, ele, ao sair com sua mãe
para fazer compras, foi obrigado a esperá-la numa lanchonete, ao lado
A espera foi longa e cansativa. Por mais de uma hora, Lucinho ficou sem
o que fazer. Na saída, sua mãe ordenou-lhe, como sempre, nada dizer
acerca do passeio. Devia contar, caso seu pai perguntasse, que estavam
fazendo compras. Agora mais crescido, pôde notar que sua mãe, junto
ao pintor, ficava diferente do que era em casa: o semblante, o tom de voz
se transformava. Ela se tornava gentil e risonha. Ao se despedir do pin-
tor, ela o abraçou carinhosamente. Ele lhe deu um tapinha no traseiro.
Ela, em lugar de brigar, deu boas gargalhadas.
Aborrecido com o que viu, mas ainda sem decifrar seu significado, ele
resolveu não mais sair com sua mãe e também, não mais dormir no
quarto dela.
O que nunca mudava era seu gênio irascível. Numa ou noutra crise,
alegre ou triste, calada ou falante, ela sempre estava nervosa com tudo.
Bastava acontecer alguma coisa que a desagradasse, algo que ela não
desejasse.
Mas Rosária tinha seus momentos positivos. Nos momentos de lucidez,
preocupava-se com a casa, com Dr. Adamastor e com sua conduta em
relação a Lucinho e com o mal que causara ao filho. Para compensar o
sentimento de culpa, ela se dedicou mais a ele, deu-lhe mais carinhos e
presentes. Entretanto, essa estratégia pouco funcionou. Ele estava, cada
vez mais convencido, que sua mãe fazia algo errado, que não podia ser
comentado.
Para entrar na porta principal da casa era preciso descer uma escada
de três degraus, forrada pelos mesmos ladrilhos encardidos, imitando
âncoras pretas, existentes no chão do alpendre. Duas cadeiras e um sofá
simples, de ferro batido, com assento e almofadas de veludo marrom,
adornavam o comprido alpendre cercado por grades, formando desen-
hos sinuosos. Em cima das grades de ferro, assentava-se uma peça de
madeira roliça escura, já gasta.
- A vida hoje em dia tá muito difícil, falou Rosária, sem grande entu-
siasmo, tentando iniciar a conversa, mesmo sabendo que este papo não
- Você tem razão minha filha, hoje tá tudo mudado, o mundo não é mais
o mesmo... resmungou D. Gertrudes, bocejando. Ninguém quer nada
com o serviço... com a dureza... Antigamente, as empregadas trabal-
havam até doze horas por dia. Levantavam ainda antes do sol nascer...
Eram dedicadas à patroa, gostavam da gente e, no entanto, ganhavam
menos do que agora e, além disso, quase não roubavam... Olhe a sujeira
no quintal. Elas não ligam prá nada... Deixam tudo por nossa conta...
- A gente vai vivendo, ele não é mau, trabalha muito, ganha bem, mas...
- Acho que sim. Não guardei bem o que falou; mas ele fala muito bem,
todo mundo sabe disso, além do mais, é um bonitão, alegre e falante,
com um homem assim é que eu gostaria de ter me casado. Já assisti out-
ros programas em que ele apareceu...
- Fala mesmo, mas tem umas idéias esquisitas... Não concordo com
elas... Não gosto dessas novidades de sexo...Fechou a cara D. Gertrudes
enquanto falava.
- Todos nós temos problemas. Que problema é pior do que ter que
mexer com essa gentinha, cada uma pior e mais safada do que a outra?
E mais ainda: ter que abraçar um homem quando a gente quer é dormir.
Que saudade de minha mãe, suspira D. Gertrudes...Para que consultar
com psiquiatra?
- Certas coisas... É... com relação a Lucinho. Coisa à toa... bobagens,
bobagens...Depois, eu te conto, continuou Rosária, evitando se expor e
desinteressada.
- Eu também tenho problemas com respeito ao seu pai. Minhas preocu-
pações não são apenas com as empregadas. Cuidar da casa dá trabalho:
verificar se a comida está bem feita, se a roupa foi bem lavada e pas-
sada. O pior é vigiar. Temos que vigiar sempre. Outro dia, uma camisa
nova de Clarimundo, ele tinha vestido poucas vezes, foi queimada, ficou
imprestável. Dá uma pena! E o ruim, você nem imagina... ela nada falou.
Eta gente à-toa. Ela colocou a camisa na gaveta, como se estivesse boa
para vestir. Ele é um bocó. Vestiu a camisa furada e nem notou. Imag-
ine só... ir trabalhar assim! Por pouco, saía com ela. Que vergonha! Não
gosto nem de pensar... Seu pai já não é mais o mesmo homem... nunca
foi lá grandes coisas, agora está um caco. Não serve pra nada. Você com-
preende o que quero dizer, não é? De certo modo até gosto.
- É sempre assim... Também, não sei em que um psiquiatra poderia
ajudar... continuou a falar sem prestar atenção nos comentários de sua
mãe...
- Aqui em Belo Horizonte tem médicos bons. Por que não procura um
deles? Muitos têm aparelhos para examinar as pessoas, alguns desses
vêem ou descobrem...não sei bem... me falaram... até o que nós pensa-
mos. Por meio de uns risquinhos no papel, os médicos descobrem como
está dentro da nossa cabeça. Deus me livre disso. Nunca irei fazer esses
exames... Completou assustada D. Gertrudes.
- Você rezando assim, vai para o inferno! Não sabe nada! Palerma! Fica
só no “Pai nosso, Pai nosso”... Parece um idiota.
Depois de recuperado, foi mandado para casa mais cedo, por ter “adoe-
cido”.
Em casa, como era o costume, foi repreendido pela mãe que não acredi-
tou na história contada e, depois, mesmo esforçando-se para aceitá-la,
colocou-lhe a culpa, xingando-o duramente, pois não podia tolerar uma
ignorância tão grande; um filho seu que não soubesse, uma reza tão
fácil.
Nervoso, ele queria sair rápido, antes que ela entrasse no quarto e desse
falta do revólver. Recusou firmemente o convite feito por ela para jantar,
alegando estar tarde. Não desejava que a avó o acompanhasse até o
portão. Entretanto, ela decidiu carregar um pouco mais os ovos, com
receio de que ele os quebrasse ao subir a escada para alcançar o passeio.
Esse fato o obrigou a deixar o embrulho escondido por mais algum tem-
po. Despediu-se e andou pelas ruas da vizinhança, sempre olhando para
trás, disfarçadamente, para ver se a avó já tinha entrado em casa. Depois
de caminhar não mais de cem metros, ele retornou, ofegante, como se
fosse realizar um perigoso roubo. Não havia ninguém no portão, nem na
varanda ou janelas da casa. Precisava completar o que iniciara. Pisando
nas pontas dos pés, levantando exageradamente cada perna antes de
abaixá-la, entrou no terreiro da casa e retirou, aliviado, o embrulho
debaixo dos espinhos.
- Idiota! Não aprende nada! Fica aí com cara de bobo, parece que está
sempre dormindo. Na sua casa não tem cama, não? Animada com o
próprio xingamento, ela foi mais longe, ao vê-lo se abaixar para coçar
as pernas e gritou: - Pare de coçar! Você precisa tomar banho, cortar e
limpar as unhas. Está até fedendo!
Uma aluna, que dizia ser parente da professora começou a soluçar, outra,
que se assentava perto da porta de saída, saiu sem ser vista pelo grande
corredor da escola, gritando:
- Meu filhinho, não faça isso. Sua tia gosta tanto de você!... Entregue essa
arma. Ninguém vai lhe fazer mal. Eu juro por Deus, que está no céu. Eu
sempre gostei do seu modo. Você é um menino muito bonzinho. Vou
fazer de você o melhor aluno da sala. Sua tia não vai te punir. Pode estar
certo disso. Todos estão aqui como testemunhas. Falo a verdade, meu
amor.
Lucinho foi conduzido à sala da diretora onde teve uma longa conversa.
Nesse dia, ela se mostrou mais cuidadosa e gentil. Poucos minutos de-
pois, Rosária chegou para buscar o filho. Ali mesmo, na presença da di-
retora, o repreendeu asperamente, imaginando que era isso o que todos
esperavam de uma boa mãe, mostrar como se dá ordens ao filho rebelde.
- Como vai meu menino bonito? Está com frio? Vou fazer uma blusa de
crochê para você.
Ele nada respondeu. Olhava para a porta, por onde entrara, imaginando
a hora de ficar livre daquele tormento. A senhora levantou-se e aproxi-
mou-se dele, quase tocando-o com as pontas dos dedos pontiagudos e
enrrugados:
Ao entrar na sala com a mãe, Lucinho se viu diante de uma jovem, alta,
até bonita. A psicóloga, tendo o semblante fechado, representava seu
papel de profissional. Quase sem busto, tinha os cabelos marrom-escuro,
presos por trás, formando um coque que quase não se via.
- Sim. Então, vou repetir a pergunta:- Por que sua mãe o trouxe aqui?
- Por nada, respondeu, irritada. - Sei que você não é meu filho. Eu nem
sou casada... Nesse momento, ela se lembrou do telefonema e mudou,
por segundos, o olhar e a voz: - Isso é um modo de dizer...Sou psicólo-
ga... trato de crianças. Gosto muito dos meninos, retornando ao tom
anterior de profissional.
- Não!
- Ainda é cedo. Você, hoje, não precisa ir à aula. Vou te dar um atestado
para mostrar à professora.
- Por que?
Ele, de má vontade, fez uns rabiscos, sem nexo, de um lado para outro
da folha. Depois, desenhou uma figura, tomando quase toda a extensão
da folha. Dentro dela, desenhou seres pequenos, disformes, sem rosto.
- Ela, apontou para a porta por onde Rosária saíra...Mãe... Eu não sei
desenhar, acrescentou Lucinho.
- Agora, vou-lhe mostrar estas figuras, uma a uma. Você vai examiná-
las...Poderá virá-las para um lado ou outro, de cabeça para baixo, do
modo que você desejar. Após olhá-las, deverá me falar o que você está
vendo em cada uma. Certo? Poderá dar uma ou várias respostas. Enten-
deu?
Ele, animado com o que via, dava diversas respostas, dezenas delas,
Nova alegria para Dra. Branca. Ele viu, em muitas delas, cores puras,
sem forma, órgãos sexuais diversos, sangue, pouco movimento nas
figuras. ”O diagnóstico está feito”, pensou, satisfeita. Preparava-se para
terminar a consulta e lembrou do encontro que teria, mais divertido do
que seu trabalho.
- Ludoterapia. Ele virá aqui duas vezes por semana - os dois dias que ela
atendia...- Eu vou ajudá-lo. Preciso, também, ter consultas com cada um
de vocês: você e seu marido, em separado, depois, juntos.
Nesse momento, Branca imaginou conseguir um cliente por algum tem-
po. Seria ótimo para aumentar seus rendimentos. Caso se casasse, iria
gastar mais e, além disso, ficaria umas semanas sem trabalhar. Precisava
ganhar um pouco mais, para gastar no futuro.
- Nós dois? Adamastor não tem tempo...Eu até que tenho... respondeu
Rosária, mostrando um certo interesse. Assim, poderia encher seu
tempo vazio.
- Seu marido precisa vir, senão, não dá certo. O menino - falava diante
de Ele, que se mostrava indiferente - não sendo tratado corretamente,
pode se tornar um louco! Um esquizofrênico! falou, acentuando bem o
“louco” e “esquizofrênico”, para impressionar Rosária e forçá-la a trazer
- Eu, uma vez tratei com cristais...Foi muito bom. Deu resultado. Ficava
sempre gripada. Agora...
- É mesmo? Ótimo! Sempre quis encontrar uma pessoa com esses con-
hecimentos...Gosto de interpretar meus sonhos através de almanaques...
Não igual à senhora, é claro... que interpreta como profissional... A
senhora é bem conhecida. Sonhei, essa noite com jacaré; eu estava numa
lagoa...
- Seu filho tem Carência Afetiva. Está preso à senhora. Os testes mos-
traram isso, com clareza. E os testes não mentem, minha senhora. Ele
tem desejos, inconscientes é claro, de matar o próprio pai para possuí-la.
Nesse momento, ela fez um barulho maior ainda com a boca, assustando
ele que ouvia tudo, sem nada entender. Ele, durante a conversa, só
prestava atenção aos movimentos da boca da psicóloga e aos minúsculos
pingos de saliva que saíam em profusão, espalhavam-se, dançavam no
ar iluminados pela fresta da janela onde entrava a luz do sol. Diante do
barulho, ele se aproximou de Rosária, segurando em sua saia. Branca,
indiferente, animada com a idéia do encontro e do cliente que teria,
continuou falando:
- Sim, tenho notado isso. Outro dia, ele quase matou a professora...
- Claro. Os florais, bem receitados, servem para quase tudo. Mas, cui-
dado! Tem que saber usar.
- Desculpe, não queria criticar. Ela é muito simpática, faz um crochê tão
bonito! Me mostrou uma blusa que está fazendo...por sinal linda, muito
bonita...
Agostinho a entendia e perdoava, julgava que sua mãe era uma sofredo-
ra, uma mulher educada de maneira equivocada e que, infelizmente, não
teve um marido forte e decidido para ajudá-la a crescer e, domá-la.
Há muito Dr. Adamastor havia entregado seu poder para ela, que passou
a dar ordens desordenadas.
- Não, respondeu, quase sem soltar a voz e com receio de que a cena
recomeçasse. “Bem que ela poderia tomar isso logo, dormir por umas
boas horas... Assim, todos poderíamos ter paz e descanso”.
- Procurei no armário e não achei! Você tem medo de que eu tome mui-
tos de uma só vez? Uma hora, vou fazer isso. Já fiz outras vezes. Não deu
certo...mas, um dia, irei acabar com minha vida. Um dia, vocês verão!
Ela falava e olhava ameaçadoramente para Roberta, que passava pela
sala.
- Eu ouvi! Tá bem! Eu ouvi! Sei que vocês todos, você também, até Cân-
dida, me detestam; querem me ver longe; morta. Vocês ainda terão essa
alegria! Eu não presto mesmo, não valho nada, sou uma merda! Para
que viver?
Entrou na cozinha, atrás da filha, para que essa não pudesse deixar de
ouvir o que ela desabafava. Enquanto Roberta pegava uma laranja na ge-
ladeira, sua mãe, aproveitando a porta aberta, tirou uma coxa de frango
gelado - sobra do jantar da véspera - e, de uma só vez, com sua boca
bem aberta, engoliu a carne, mastigando-a e falando ao mesmo tempo.
Ela, com seu vestido largo, de bolas vermelhas, mais parecia um palhaço
pronto para começar o espetáculo.
Assim corria a vida de Rosária. Nos dias de crises mais intensas, rasgava
as roupas do marido, quebrava objetos, cortava os pulsos. A família foi-
se acostumando...Nas primeiras vezes, Dr. Adamastor a levava, preocu-
pado, para o hospital de urgência. Ainda na ambulância, ela se acalmava,
voltava a agir e a falar como sempre, curada e pronta para entrar em
novas crises.
Não era um pedido, mas, sim, uma ordem, como as ouvidas, continu-
adamente, dos patrões dos que ali estavam. O balconista mal-humorado,
mistura de garçom e lavador de copos, embrulhado num avental com-
prido, odiando ter que servir e obedecer àqueles fregueses humildes,
decifrando a simbologia incorporada ao som, levava até à mesa o pedido
e abria a garrafa. Despejava vagarosamente nos copos, a cerveja, à espera
de uma provocação para iniciar uma briga, que, na maioria das vezes,
não vinha. Dos copos embaçados pela gordura das mãos do balconista
escorria uma espuma sonolenta sobre a velha toalha manchada com
restos de arroz seco. Nuvens de gordura quente subiam e se espalhavam
por toda parte, nascidas no enorme tacho, onde eram fritos os pastéis de
queijo. Aos poucos, eles iam se acostumando ao lugar.
Todo esse rito inicial se propunha eliminar ou, pelo menos, abrandar,
por instantes - sem resultado - os preconceitos moralistas, os senti-
mentos de culpa, adquiridos através da família e da Igreja, as falsas
informações acerca da maldade dessas mulheres decaídas e das terríveis
doenças que elas transmitiam para seus fregueses. Diante dessas infor-
mações, para enfrentar aquele mundo mal conhecido e perigoso, era
necessário estar entorpecido. Era essa uma das funções da terapia no
bar.
- Oh, que bom deve ser ter uma mulher que goste da gente, sem ter que
lhe pagar o serviço, ainda cooperando com meus gastos, comentou Zez-
inho, excitado com a possibilidade.
A coragem que faltava aos iniciantes ia, aos poucos, invadindo os or-
ganismos inocentes daqueles moços desajeitados que ousariam, daqui
a pouco, cantar “de galo”. Assim, lentamente, diminuída a ansiedade, os
ensinamentos recebidos eram aprendidos e decorados.
Como toda festa que se preze, a cerimônia do desmame tinha que ser
comemorada, também, antes de sua realização. Através dos comentários
acerca do que fariam no fim de semana, os jovens experimentavam, por
diversas vezes, poderosas emoções antes do encontro que não duraria
mais do que dez ou quinze minutos. Discussões carregadas de temor
cresciam à medida que o dia fatal se aproximava. Os jovens, em gru-
pos, teciam comentários, imaginando como seria o encontro e o que
fariam com a vendedora de prazeres. Cada um, dentro de suas fantasias,
sonhava com sua beleza e juventude, o corpo firme e escultural, a pele
sedosa, o delicado perfume. Esse modelo de mulher fora aprendido, não
da convivência com o grupo disponível, mas com os filmes americanos
da época: as freqüentadoras do “saloon” e amantes dos vaqueiros em-
briagados, com as formosas mulheres das novelas e das pornochancha-
das; todas mulheres lindas, limpas e atraentes.
- Abra mais a boca. É preciso ter cuidado, pois guaiacol é perigoso. Tem
que ser no lugar exato. Vai sarar logo. Deixe-me molhar mais o algodão.
Agora, abra. Pronto. A dor vai passar, repetiu.
- Por que? Sou diferente? Perguntou satisfeito por não ter sido confun-
dido com os tipos do lugar.
- Claro. Estou aqui há mais de vinte anos. Conheço os que vêm aqui...
Até seus dentes... Os seus estão bem tratados; não falta nenhum. Não é
que eu conheça cada um dos que por aqui andam ou conheça tudo. Não
chego a tanto, apesar de ser esse meu sonho.
- Não sou um homem culto, mas sou bom observador. Os que vivem
aqui, os que vêm muito aqui, neste lugar, repetiu, eles adquirem certos
cacoetes que os identificam. Em todos os grupos há certos sinais; infor-
mações comuns que as pessoas emitem ou mostram. Eles indicam que a
pessoa pertence a um ou outro grupo. Cada um tem um modo de falar,
de ver as coisas e tecer comentários a respeito delas. Não vê os médi-
cos? Eles se vestem de branco; muitos carregam no bolso, bem visível, o
estetoscópio.
- Lúcio.
- Eu sabia! Não é nome desse povo daqui. Os nomes aqui são outros.
Nesse momento, franziu a testa, mostrando aversão aos moradores do
lugar. Lúcio é um nome de gente importante. O nome vem de luz, que
dá a luz, clareia o céu e a terra. Como esse pessoal aqui se chama? João
da Silva, José de Souza, Margarida, Teresa, Maria da Consolação ou
das Dores. Achei um Apolônio e um Dorval. Este foi por causa de um
jogador de futebol, mas é raro. Na zona, não há nomes bonitos como
Lúcio, Eduardo, Roberto, Otávio. Isso sim, é nome de gente. Não dessa
gentinha daqui. Mas, voltando ao que estava dizendo: também, na zona,
as prostitutas seguem um padrão de conduta, como os médicos, advoga-
dos, eu e você. Ninguém escapa. Todas as novatas chegam, inicialmente,
Certa noite, foi convidado, insistentemente, por Surdina, para dar uma
volta na zona. Surdina era um operário de seu avô, carregador de tijolos,
telhas e sacos de cimento. Ele era quatro anos mais velho do que Lucin-
ho, bem mais experimentado para lidar com aquele comércio esquisito.
Um ano a mais de experiência naquele lugar fazia uma grande diferença.
Por isso, Surdina caminhava pelas ruas da região com mais desenvoltu-
ra, mais relaxado.
Lucinho, mais tímido, preferia olhar para um lado e outro, examinar
cada uma daquelas mulheres, certificando ou negando os ensinamentos
de Goulart. Ele pensava no que tinha escutado dele: “O mundo des-
sas mulheres e seus protetores vai além dos fatos que presenciamos”.
Era esse porão, abaixo dos fatos, que, realmente, lhe interessava. Ele já
conhecia muito acerca dessas mulheres; desde cedo teve sua experiência
catastrófica com o sexo.
- Tá com medo! Vai ver que você nunca foi...ah, ah, É virgem ainda?
dizia Surdina, brincando, para forçá-lo a ir.
A conversa continuava nesse tom, até que, num certo momento, cha-
tiado, para provar sua virilidade e coragem, ele decidiu gozar os prazeres
do sexo com a mesma mulher com a qual o amigo tinha encontrado.
Enquanto isso, seu amigo ria, do lado de fora, junto à janela do cômodo,
onde se dava o encontro. Ele imaginou que, para se ver livre daquilo, era
mais fácil entrar que ficar ali, discutindo um assunto desinteressante.
Voltou para casa envergonhado de ter agido contra sua vontade. Buscava
ser ele próprio e não um simples seguidor de idéias alheias. Na verdade,
Surdina, como a maioria dos seus amigos, pouco ou nada conhecia dele.
Talvez, ninguém. Ele próprio tinha dúvida acerca dos seus objetivos e
valores. Naquela noite, custou a dormir. Via, diante de si, aquele zumbi
tristonho, tossindo, que pronunciou, no máximo, duas ou três palavras.
Lembrava, com pesar, o rosto da criança adormecida, o bico amarelo em
sua boca. Isso lhe fazia pensar, mais ainda, que estava na hora de parar
de ir àquele lugar, onde havia muito mais sofrimentos do que prazeres.
Entretanto, continuava a voltar, apesar das próprias críticas, atraído por
aquele mundo diferente do aprendido em casa e na religião, que detesta-
va, mas que o atraía e o fazia lembrar de sua mãe.
- O que aconteceu? Não veio aqui para refletir. Estamos na putaria. Aqui
não é escola.
Muitas eram as histórias que se contavam sobre cada uma. Várias, num
tempo longínquo, apaixonaram-se por jovens que lhes prometeram
Elas brigavam por qualquer motivo; jamais levavam desaforos para casa.
Por que tudo aquilo? Seria uma obrigação carregar pela vida afora a
marca ruim, para que todos soubessem identificar sua nódoa estigma-
tizante, mesmo depois de muitos anos? Seria um castigo imposto por
Deus?
Ali por perto, na mesma rua, mulheres um pouco mais bem cuidadas
dançavam sonolentas, cansadas e deprimidas, com homens tímidos,
que furavam um cartão para cada dança recebida. Os donos delas as
esperavam às três horas da manhã, na porta do Montanhês, do Rádio,
do Chantecler. Nessa hora, gigolôs, de sapatos pretos e terno de linho
- Como vai? Mora aqui há muito tempo? Nunca te vi... Até que não sou
um freqüentador assíduo deste lugar... apressei em explicar-lhe, com
receio de ela pensar que eu era constante na zona.
Sua voz soou encantadora, adocicada e sonora, deslizando por sua boca:
- Sim. Comecei a trabalhar cedo. Tenho oito irmãos. Sou a mais velha.
Meu pai bebe; quase não ganha nada. Minha mãe trabalha como faxi-
neira no Grupo Escolar de Salinas. Por isso, estudei até a sétima série.
- Até a sétima! E não arrumou outro emprego? Não é que penso mal
disso, mas tem coisas melhores. Trabalhar numa loja comercial, por
exemplo.
- Já fiz isso. Mas ganhava meio salário mínimo e, além disso, o patrão
tentou me forçar a transar com ele. Nessa época, só tinha treze anos,
ele, cinqüenta. Era gordo, parecia estar sempre engordurado, com mau
cheiro.
umava sem parar, por onde passava ficava um cheiro de queimado saído
de suas roupas e cabelos. Mandou-me embora, por não ter aceitado seu
convite.
A chuva ia, aos poucos, aumentando. O barulho era enorme sobre nos-
sas cabeças, fazendo desaparecer, por instantes, o som das canções do
velho rádio e até nossas conversas lentas, medrosas, que buscavam um
contato, que desconfiávamos poder construir. Alguns pingos de chuva
atravessavam as velhas telhas remendadas com plástico, penetravam no
forro de madeira carcomida, misturavam-se com restos de excrementos
dos cupins que habitavam o forro do barracão, e caíam.
- Então, está tomando meu tempo, para quê? Depois, não vai querer me
pagar, alegando não ter feito nada. Estou à sua disposição.
- Não.. Agora, não! Não se preocupe, não sou tarado. Pode ficar calma, à
vontade. Não me incomodo com sua nudez. Acho você bonita. Seu
corpo, sem roupa, é mais atraente. Além do mais, você tem outras coi-
sas, mais interessantes do que seu corpo, para mim...
- Lúcio. Nunca conheci ninguém com esse nome... Acho bonito. Nesse
instante, ela olhava fixamente para mim, examinando-me pela primeira
vez, sob a luz opaca. Às vezes, escurecia todo o quarto, devido aos
relâmpados e trovoadas.
- Você acha que meu corpo é feio? Quase não tenho bumbum. Eu não
lhe agrado. Gostaria muito que você se sentisse atraído por mim, disse,
acostumada a ver o amor somente por esse prisma, imaginando que se
um homem não a desejasse, como imaginava, não a desejaria de forma
alguma, pois somente assim uma mulher pode agradar aos homens.
- Deve ser Olegário, meu homem. Não se assuste. Vou falar com ele que
estou com um freguês. Ele volta depois.
- Não se preocupe. Vou-me embora. Volto outro dia. Vai atrapalhar sua
vida. Quanto lhe devo?... A batida mais intensa levou Sefira a abri-la,
mesmo sem se vestir. Diante dela, assustado, estava um homem forte,
branco como cera, vestido com um terno de linho surrado e ensopado.
Sem olhar para mim, que estava paralisado, sentado na cama, segurou-a
pelos braços, gritando:
- Está bêbada! Não ouviu uma barulhada nas ruas? O rio Arrudas está
enchendo! Começou a inundar tudo! A água está vindo para cá! O
hospital está cheio de policiais, do Corpo de Bombeiros. Entrou água
no porão do hospital, onde dormiam algumas mulheres... Disseram que
algumas delas morreram afogadas. Saia depressa. Vista-se!
- Você chega tarde, faz um barulho daquele, acorda todos, levanta com
essa cara, arranca o jornal que seu pai está lendo e, além disso, reclama...
- Não tenho nada a falar com a senhora. Não lhe devo nada. Você é que
me deve. O que me fez... ela, amedrontada com o que ele poderia con-
tinuar a dizer, decidiu ser mais cautelosa e mudar o tema da agressão.
- Estou lhe falando agora a respeito do jornal. Seu pai estava lendo. Você
o tirou, sem ao menos pedir licença. Isto é uma grosseria!
- Não estou bem. Deixe-me em paz. Estou nervoso. Não dormi essa
noite, estou chateado.
- Não quero nada, não! gritou, enfurecido, jogando ao chão dois ovos
que se espatifaram, deixando um rastro branco-amarelento.
Ela sentiu um calor subindo pelo corpo, não por estar sendo descoberta
- seus encontros, que não eram raros, não foram segredos bem guarda-
dos, mas sim pelo desafio dele, diante de todos. Isso era intolerável.
Uma vez mais calmo, após ter sido sedado pelos tranqüilizantes e,
principalmente, olhares, palavras doces e abraços da mãe, Lucinho foi
conduzido até o hospital. Ao ser internado, ainda na portaria, ele já
havia melhorado. Despediu-se da mãe com um forte abraço, e olhou
sem rancor, para o pai. Abraçou, com ternura, o irmão, que, nesse mo-
mento, não suportando a situação constrangedora, tinha os olhos cheios
de lágrimas.
Esse devia ter não mais de quarenta anos. Era um pouco gordo, cabe-
los curtos, quase raspados, assentados num rosto redondo e simpático.
Parecia inteligente. Gustavo, assentado na cama, encostado no traves-
seiro, lia o conto “O Marido Enganado”, de Tchekov. Marcou o liv-
ro, fechou-o e continuou:
- Sim, mas você parece bem... É, não sei bem... Tem gente que parece
são e não é. Eu, por exemplo, não tenho nada e estou aqui. Tudo
perseguição. Vim parar no hospital porque descobri que minha mulher
estava me traindo. Traindo não só com um: com vários homens. Ela,
muitas vezes, disfarçadamente, saía de fininho para encontrar com os
namorados. Vieram até para dentro de minha casa...
- Sim. Essas coisas não são fáceis de explicar... É o que quero entender.
Só pode ser negócio de comunista.
- Não! Eu. Eu já fui. Falando baixo: - Até hoje me perseguem por causa
disso. Certa vez, fui internado aqui mesmo... A perseguição foi grande:
mensagens no rádio, nos jornais. As notícias eram claras: “Ele será pu-
nido”; “A polícia fará tudo para prender os culpados”; “O governo não
permitirá arruaças”; “A família do criminoso se acha desestruturada”, e
outras parecidas. Tudo feito para mim, para me colocar doido. Ora, é
fácil descobrir que tudo aquilo tinha um alvo. Mostrar para todos que
eu ia ser pego e punido. Eu torço para o Cruzeiro. Até aí nada de mais.
Entretanto, quando meu time perde, basta um jogo, os atleticanos sol-
tam foguetes na porta de minha casa ou nas imediações. Tudo para me
gozar. Os automóveis buzinam estridentemente; os atleticanos berram:
bicha, bicha, até o desespero. E não param aí. Uma revista - acho que foi
a Manchete - publicou uma reportagem acerca de Gustavo, que é o meu
nome, colocando-me como homossexual; mostrando meus possíveis
parceiros e tudo o mais. Coisa que eu jamais fui. Uma mentirada da-
nada. Foi uma vergonha. Sofri meses. Até hoje, quando passo nas ruas,
as pessoas olham para mim e me gozam. Alguns falam às claras : bicha,
bicha, bicha. Como me defender? Já briguei com um e outro, fui à Polí-
cia Federal e dei parte. Quando entrei para falar com o policial, esfriei...
- Por que?
- Fui. Estou aposentado. Trabalhei, por uns tempos, como repórter poli-
cial. Vi muita injustiça e agressão, mas nunca fiz nada contra ninguém,
muito menos contra os policiais. Não gosto deles, mas os respeito. Não
sei por que os delegados e detetives me perseguem. Sei de muita coisa.
Tudo guardado aqui, oh, na cabeça. Trabalhei, depois, na política. Mais
problemas, pois vi mais coisas, ainda que não se podem escrever nos
jornais. Fui atropelado, provavelmente por algum deputado. Devido
as fraturas, tive que ficar internado vários meses. No hospital conheci
minha mulher que é enfermeira. Ela é culta e inteligente mas, como lhe
falei, tem o tal cheiro estranho. Será de capeta? Sei lá. Eu não acredito
nisso, mas tem gente que fala que eles podem se incorporar nos seres
humanos, até em alguns animais; bode, por exemplo. Tenho que suspei-
tar dela, pois veja: ela usa, determinadas horas, um cabelo formando um
chifre. Tudo para me gozar. Penso que ela quer me espantar, para que eu
fuja e, assim, fique livre para andar com todos os homens que deseja.
- Leio muito, também, comentou, sem saber o que falar... Vou tomar o
lanche.
- Dr. George.
- Mas ficou!... E fica sem mais nem menos. Tomará, também, um antide-
pressivo para as depressões...
- Quem sabe sou eu, não você! Eu faço os diagnósticos. Você me fornece
os dados ou pistas e deve obedecer. Esse é o seu papel.
- Mas, uma história dita por minha mãe... Não é diferente da minha?...
Eu gostaria de contar-lhe a minha versão...
- Claro que é! Mas também, não! Sempre são versões, suposições acerca
de fatos. Ela é tão confiável quanto você; e quer o seu bem. Para dormir,
vou te receitar um ansiolítico, que poderá ser tomado, caso esteja ner-
voso, durante o dia. Tudo certo?
- Mais um ponto - continuou o Dr. George - se não der certo essa medi-
cação, daremos eletrochoque.
- Até segunda.
- Mas, precisa?
Parece que, num ambiente com poucos estímulos, sem objetivos im-
portantes - como ocorre nas pequenas cidades do interior - qualquer
acontecimento ganha destaque e diverte as mentes ávidas por notícias:
um cão que foi atropelado, uma vaca que dá muito leite, o casamento
da solteirona. No hospital acontecia a mesma coisa. À noite, em torno
de um paciente que estava internado no hospital há mais de dez anos,
reunia-se um grupo para jogar truco. Aristeu, um verdadeiro “rato de
hospital”, sabia de vários casos ali acontecidos. Todos, ao se reunirem
em torno de Aristeu, estavam mais interessados em ouvir as histórias
contadas por ele, primo do diretor, ex-alcoólatra, jogador de pôquer e,
constantemente desempregado. Suas longas histórias começavam sem-
pre com a pergunta:
Não foi contestado. Deixavam que ele ganhasse o truco, sem se impor-
tarem, pois os casos pareciam mais interessantes. Para outros, já do-
pados pelo excesso de medicamentos, as histórias eram um excelente
sonífero.
- Está procurando o Dr. José Porto? Ele me avisou, teve que sair e pediu-
me para ajudá-lo. Entre aqui.
- Sim. Vim me encontrar com ele, confirmou o senhor, que vestia uma
calça de brim amarela e uma camisa azul celeste.
Ele quase não falava de tanta timidez. Foi seguindo o Dr. Josué Costa, o
gentil plantonista, até uma sala sombria, onde estava uma maca.
- Está procurando o Dr. Porto? Ele saiu. O que deseja? Falou um pouco
trêmulo.
- Sim. Procuro. Ele saiu? Como assim? Ele me pediu para vir aqui...
Não foi fácil achá-la. Procurou-a na velha casa. Mas o pequeno quarto
tinha nova moradora: uma mulher bem mais velha que mal conversou
com ele.
- Boa noite, respondeu com voz pastosa e grossa a feia mulher que veio
recebê-lo, mancando da perna direita, imaginando ser um freguês. -
Hoje, não estou trabalhando; tomei um tombo, destronquei esta perna,
dói muito. Volte outro dia.
- Não conheço. Moro aqui há quinze dias... O que você quer com ela?
- Sou um amigo... Preciso encontrá-la. Não sabe onde ela está morando?
- Não sei para onde ela foi. Sei que ficou doente; acho que foi pneumo-
nia. Tomou muita chuva naquela enchente. Foi internada na Santa Casa.
- Miréia, quero lhe pagar pela informação, sou amigo dela, preciso
encontrá-la.
- Não sabe onde está? Para onde foi? Preciso encontrá-la! Sabe se tem
parentes, amigas, em algum lugar?
- Sei que é comum às mulheres de nosso grupo, as que não têm dinheiro,
quando estão passando dificuldade, procurar um abrigo, aqui perto. Ele
fica na rua Paquequer. Lá, tem cama e comida, muito ruim, mas melhor
do que nada... Ah! Ela tem uma amiga; estavam sempre juntas. Mora no
Hotel Maravilhoso, é logo ali, nesta mesma rua mais para cima. Eram do
mesmo lugar. Ela deve saber onde ela está morando...
Ele ficou preocupado com o que ouviu. Sentia-se culpado por não ter
feito algo por ela.
- Não! Bem...Não tire a roupa. Vim aqui por outros motivos. Não te
conheço; nunca transei com você.
- Uai, então o que estou esperando? Saia logo. Tenho o que fazer. Como
sabe meu nome?
Ainda não foi dessa vez que conseguiu seu objetivo. Após essas expli-
cações, Lisa amansou e foi mais gentil. Entretanto, mostrava pressa em
despachá-lo, frustrada com o encontro imaginado.
Lisa apenas sabia o nome do bairro; não sabia o nome da rua nem seu
número. Disse-lhe, para ajudá-lo, que era perto de uma padaria e que a
prima era conhecida por Tina.
No dia seguinte, cedo, ele pegou o ônibus para o Bairro Tirol. Era
procurar agulha no palheiro. Desceu numa praça onde encontrava-
se uma padaria. Perguntou ao caixa, depois, a alguns empregados e
fregueses, se conheciam Tina. Ninguém conhecia. Entretanto, descobriu
- Certo! Tenho te procurado... Fiquei uns dias fora; é... é... viajei; fui à
minha terra.
A conversa continuou nesse pé: ele, frustrado, ainda tentava manter uma
alegria não mais existente. Sefira, por sua vez, mostrava-se indiferente,
queria se descartar dele, o mais depressa possível. Ela, possivelmente
mais acostumada às frustrações, evitava ter mais outra; tinha medo,
desconfiava, perguntava-se: “O que deseja um homem bonito e limpo,
que deve ter dinheiro, educado? Jamais estará interessado em mim, que
nada tenho.” Ela gostaria de saber a razão dessa procura: “Vir de longe
para me procurar, depois de mais de um mês sem me ver, após um único
encontro, que nem transa teve. Tem alguma coisa estranha nisso”.
Como o passar dos dias, principalmente nos fins de semana, ele passava
a maior parte do tempo no barracão de Tina.
Uma noite, como outras, ele foi encontrar a amada. Estava animado,
cheio de planos, pois combinara com o pai trabalhar mais tempo na
loja. Imaginava ganhar um salário maior, desse modo poderia viver
com Sefira como pretendia. Chegando ao barracão, percebeu que estava
fechado. Espantou-se. Procurou o vizinho, o mesmo com o qual, antes,
ele tinha discutido, por causa do gasto excessivo de água.
- Sim. Sei quem é. Tenho uma estima pelo senhor. Aquela briga, pra
mim, tá encerrada.
- É... Oh... Eu não queria falar, não. Não tenho nada com isso...Eles não
Nesse momento, Lucinho estava aflito, suando, sem entender nada. Pre-
via má notícia. Roberto, lentamente, para pensar melhor, tirou do bolso
um pedaço de fumo de rolo, abriu o canivete. Com muito custo, tirou
uma palha de milho cortada e a abriu com cuidado. Alisou-a bem, pas-
sando o corte do canivete, de um lado a outro. Olhava unicamente para
a extremidade do pequeno pedaço do rolo de fumo, que ia cortando
com a mão direita. Farelos do fumo cortados caíam sobre a palma da
mão esquerda, em concha, impedindo-os de ir ao chão. Cortada, reu-
nida, colocou-a dentro de duas palhas já preparadas para fazer o cigarro.
Enrolou-a com calma irritante. Passou a saliva nas bordas de cada uma
e, só então, voltou a falar, após oferecer a Lucinho um dos cigarros pre-
parados. Diante da negativa, aconselhou com sua voz fanhosa:
- Como já disse, não me falaram, não. Mas, você sabe, mulher fala muito
e fica sabendo de tudo, né? Assim, Donana me contou que Sefira estava
apaixonada por um cara aí: um antigo namorado, sei lá quem ele é. Eu
sei, isso eu vi com meus olhos, que ele vinha aqui de vez em quando. Um
homem de branco...Ele também é muito branco, parece que não toma
sol...de nome Olegário.
- Oh, não, não, nada! Nada mesmo! Deixaram algum recado para mim,
com alguém?
- De nada. Engraçado, né? Agradecer uma notícia ruim. Pelo que sei, a
gente devia agradecer coisas boas. Mas não te apoquente, mulher é assim
mesmo: são todas iguais, trai a gente à toa, por nada. Você é novo. Tá
- Até logo. Mais uma vez, obrigado, despediu-se aborrecido com a con-
versa.
Lucinho saiu dali como se tivesse levado um violento soco na face. Não
foi fácil levantar-se do velho banco, caminhar pelas ruas escuras do
bairro, até o ponto do ônibus. Devia ter aceito o café de Sô Roberto. Pen-
sava, atordoado, no que acabara de ouvir; parecia ser verdade. Agora ele
rememorava e começava a perceber o que Sefira sempre mostrara e ele
não notava, pois a paixão o cegara: o pouco interesse por ele.
Olhava para fora, para longe, para as fracas e pequenas luzes, que pouco
iluminavam os casebres da vila por onde passava. Em cada casa, ele
imaginava estar vivendo, descansando, dormindo uma Sefira, bela, son-
hando e sorrindo, como naquela noite saudosa da rua Guaicurus.
- Não foi ao meu casamento! Senti sua falta. O meu médico, também,
nada! Psiquiatra é assim mesmo... Apenas me mandou um telegrama.
- Não faz mal. Irá no próximo. Tenho tanta coisa para te contar.
- Não vai me dizer que está pensando em casar com outro, brincou.
- Ainda, não. Antes de me casar fiz o curso para casamento. Esses que
a Igreja exige, tem um nome...é Preparação para o Casamento. Não
importa... eu e Erotides. Você não acredita! O padre Teófilo, responsável
pelo curso, apaixonou-se por mim.
- Não diga! O padre? É brincadeira sua. Nunca sei quando está falando
sério.
- Que nada! Você não entende disso! Ele não tem cancha, já lhe falei. Ele
está acostumado a cantar velhas beatas, que nada exigem. Encantam-se
facilmente, principalmente com os padres.
- É... Não sei, não sou bom nisso. Deve ser fácil conquistar beatas...
- Interessante. Existem frases que a gente sabe como elas vão terminar...
Todos completam as frases dos gagos, interrompeu Lucinho, achando
graça e começando a ficar interessado no caso.
- É uma delícia ser cantada e observar como esta é feita. Ficar ouvindo,
presente ao ato e, ao mesmo tempo, ausente... Olhei para ele com olhos
apaixonados, usei uma voz mais rouca e melodiosa - dá mais tesão. É
bom dominar os homens, principalmente, os por quem tenho antipatia...
- Antipatia? Como? Você não aceitou seu convite? Exclamou, sem en-
tender.
- Não gosto e nem tenho atração por ele. Se fosse inexperiente iria logo
para a cama...ou, quem sabe, choraria de emoção pelo encontro quase
divino. É bom tê-lo em minhas mãos... como ele gosta de ter as ovel-
has presas. Quando puxou a linha, certo de que o peixe estava fisgado,
levantei-me tranqüila, sorridente pela trapaça... Mudei a voz e os gestos,
- Isso mesmo. A cada dia, tenho mais raiva dos homens. Perdoe-me.
Você também é homem, mas tenho raiva deles, no geral... não, de cada
um, do particular...Ele, depois...procura-me sempre. Dei-lhe até um
presente.
- O que aconteceu?
- Quando entro num jogo desses, não sei seu final. O alvo inicial imagi-
nado pode ser mudado durante o processo, por outro muito diferente do
pretendido...concluiu Virgínia.
- Criticar eu sempre quero. Mas, eu mesma não sei tudo o que queria...É
possível que buscasse duas metas. Mas uma coisa eu sei...Ele não me
agradou. Tinha mau hálito, um suor gosmento na testa, tremia. Só faltou
correr ao banheiro. Tive pena...Parei: o importante já tinha acontecido...
- Você não sabe de nada! Queria tê-lo preso a mim. Sinto-me bem
quando faço isso, mesmo com um estúpido e incompetente, tanto na
área religiosa como na sexual. Para a maioria das mulheres, ir para a
cama não tem grande significado...Desejamos dominar a fera...
- Deve ser bom ter alguém preso a você, como um gatinho no seu colo,
esperando o próximo carinho... ele lembrava-se de Sefira no quarto, nos
seus braços.
- Claro que não. Compro os chocolates que desejar, tenho dinheiro para
isso. A emoção emerge com a loja cheia, com guardas por todos os la-
dos...diante do risco. Só assim sinto-me atraída. No momento do roubo,
qualquer objeto sem valor algum serve.
- Estranho...
- Não sei bem. Acho que por ter-me habituado...do mesmo modo que as
pessoas, numa cidade, resolvem suicidar-se, pulando de um certo prédio
e não de outro, e os comícios acontecem numa praça. É um prédio,
um espaço que atrai; cada um tem sua simbologia. Talvez pelas dificul-
dades...
- Eu não tenho essas certezas. Ora fujo dos riscos, ora os procuro...
- Certo. Não atrai pichar um prédio fácil de ser pichado, todos podem
fazê-lo. Pichar prédios não é uma tarefa, por si só, que traga grandes
emoções. O prazer está no desafio, no risco. Tudo é assim. Estamos,
constantemente, tentando superar-nos. Portanto, que graça teria namo-
rar um homem facilmente conquistável... que nada nos acrescenta...
Seria como pichar o muro de nossa casa. Precisamos sentir que estamos
crescendo. Se tenho êxito numa empreitada difícil, se me supero - quan-
to mais rápido melhor - fico feliz e animada comigo; aumento minha
auto-estima. O prazer vem dessa caminhada em busca dos objetivos
desejados e alcançados. Uma vez nascidos, fabricamos nossos caminhos
buscando superar o que éramos antes, sempre tentando ir além. Mar-
chamos em direção ao não vivido, mas, inexoravelmente, amarrados
e direcionados pelo já vivido, pelos antigos valores. São eles que dão o
significado às nossas ações. Viver é caminhar, expandir-se, preso ao eixo
de cada um, completou Virgínia.
- Não me diga que ... vai roubar em outra loja? falou baixo Lucinho.
- Exato! O que mais nós buscamos durante nossa vida? Todas as nossas
ações, desde a simples à mais complexa, são inventadas para produzir as
emoções prazerosas. Elas podem ser geradas pelos mais diversos meios.
Usamos bebidas ou drogas quando não conseguimos usar as estraté-
gias corretas para alcançar esse estado desejado. As drogas nos levam
ao prazer sem ser preciso alcançar nada ou, com sua ajuda, ficamos
insensíveis ao desprazer. Uma pessoa mata a outra para sentir emoções
prazerosas. Outra, se assim o fizer, sofrerá.
- Desde que seja uma necessidade interna, que traga alívio emocional ou
prazer. Vivemos egoisticamente: ou na busca de emoções positivas, ou
fugindo das negativas. As metas procuradas variam de pessoa para pes-
soa. Por isso achamos estranho o objetivo do outro, a ação que o anima;
para seu crítico, a ação pode provocar o desânimo.
- Essas tarefas são procuradas porque seu executor acredita que elas
sejam corretas, por serem elogiadas e valorizadas pela sociedade ou as
evita por serem criticadas. Mas elas têm o mesmo fim das outras: pro-
duzir um estado emocional agradável, uma ligeira alegria, bem-estar,
energia, escapar do mal-estar. Uns roubam, outros fazem penitência,
alguns trabalham incessantemente, diversos compram sem parar, uns
transam e transam, tudo tem o mesmo fim: promover o equilíbrio
biológico, arrancar-nos do vazio, do tédio, aumentar a produção das
“cocaínas”, dopaminas e endorfinas produzidas pelo nosso organismo.
- Muitos só lêem isso, fatos e fatos, sem comentário algum. Fico imagi-
nando: o que será que leva essas pessoas a devorarem apenas esses fatos
e nada mais?
- Acho que é o mesmo que leva muitas a ficar o dia todo num bar,
bebendo cerveja, ouvindo músicas barulhentas, batendo papo. Outros
poderiam estar melhores na luta contra o câncer de útero ou no combate
ao colesterol e, por que não, investindo contra os acidentes nas estradas,
no combate aos seqüestros, contra os perigos de comer carnes...Todos
estão à procura da animação, como te falei...
- Uma pessoa passa anos estudando para fazer um concurso. Ela está
buscando o sofrimento? Não! Busca alcançar uma meta a longo prazo:
passar no concurso, ter, talvez, uma vida melhor no futuro. Do mesmo
modo, o penitente “sofre”, como o estudante, para obter prazer no
futuro. O estudante, durante os estudos, está se sacrificando, mas sabe
que poderá chegar aonde deseja: ser classificado. O filho imagina ser um
bom filho, caso siga as idéias, tidas, numa época, como absurdas, ensi-
nadas por seus pais. Portanto, todos os que buscam o sofrimento estão
gozando; eles alcançam metas mais importantes do que o sofrimento
aparente, visto pelos olhos do observador externo. É sempre uma outra
meta, não muito clara, mais importante, que predomina e coordena as
aparentes ações estranhas. Veja meu caso: com minhas ações, alcanço o
que desejo. Explicou Virgínia.
- Você, por acaso, é normal? Sabe o que é um louco? Pode parecer lou-
cura você, ao mesmo tempo, amar e odiar a pessoa. Mas nós todos so-
mos parecidos. Quantos ficam vigiando uma barata, às vezes, por muito
tempo, depois correm atrás da coitada, quebram uma coisa e outra, com
a idéia fixa: ”vou matá-la”… É a ordem interna que manda. Se as pessoas
Nessa noite de orgia, posso comer todos: um, mais outro, outro mais,
dez, vinte, até o último. Em nada alterarão meus planos de não engordar.
Como o máximo possível. Algum tempo depois, sinto-me como se fosse
estourar. Entretanto, estou animada, cheia de vigor, de poder. Dentro
de minha alma, imperam a calmaria e a segurança. Sinto-me como se es-
tivesse orando numa igreja, sozinha, diante do altar, em comunhão com
Deus. Como você vê, sou magra e detesto engordar. Após comer todo o
chocolate que consigo, eu sei que o ritual da comilança está se aproxi-
mando do fim.
- Você é mesmo uma louca! Agora, compreendo melhor por que você foi
internada para tratar de sua bulimia. Não é este o nome?
- É...Deixe-me contar o resto: nada mais faço do que praticar meu ritual
particular. Todos os têm. Você já participou de procissões, aniversários,
casamentos e outros rituais? Não há diferença. Todas essas cerimônias
cumprem as mesmas funções: ligar-nos a algo, relacionar-nos, fazer com
que nos tornemos um todo. Na comilança, ligo-me a dois propósitos:
comer e emagrecer. Escapo, por momentos, do mundo confuso e com-
plexo em que vivo. Terminada a cerimônia orgiástica, restam os papéis
sem vida, pois perderam seu conteúdo. Sem mais algum para degus-
tar, caminho, ao som dos últimos acordes da música, direto ao banheiro.
Enternecida e pesarosa, diante do vaso, faço uma reverência, abaixo a
- Como?
- Vão ao bar e bebem até não poder mais; gastam o que não podem, para
depois vomitarem ou desmaiarem. Dias depois, repetem o mesmo ritual.
Outros chegam em casa para descansar após um penoso dia. Ao entrar,
começam a discutir e xingar os familiares. Muitas vezes, espancam-se
mutuamente. Depois, exaustos das brigas, terminam o ritual e dormem
aborrecidos. No dia seguinte, recomeçam o sofrimento. Tudo como faço.
- Estou descobrindo que você se parece comigo, com minha mãe e com
todas as pessoas que conheço, comentou Lucinho. Pensando assim, to-
dos nós, ricos e pobres, inteligentes ou idiotas, estamos ligados a certos
rituais que visam à execução de objetivos; todos buscamos prazeres
particulares. Cada um crê que seus objetivos são mais elevados do que
os outros. Será isso?
- Eu acho que sim. Sei que você não pensa assim! Expressou Lucinho.
- Tanto ele como o padre. Eu amo Erotides porque ele contribui, sem
reclamar, para o nosso bem comum. Acha-me a melhor das mulheres,
coopera para que eu alcance meus caprichos secretos. Isso ocorre com
todos os pais: trabalham duro, gastam pouco com eles mesmos; com o
dinheiro economizado, imaginam, com alegria, qual presente irão dar ao
querido filho: uma bicicleta, um video-game, uma viagem aos Estados
Unidos da América. Podem, até, depois, ficar devendo e queixando da
dura vida que levam. Mais tarde, o filho faz outra exigência. Mais uma
vez os pais se esforçam para realizá-la, fazem o possível e impossível,
só ficarão felizes quando cumprirem esse compromisso. Mesmo que
tornem a se queixar. É preciso que haja esse jogo, no qual, cada um faz
um papel que ajuda o outro, tudo bem ajustado. Se, por sorte, encontrar-
em-se, a vida correrá tranqüila, expressou Virgínia.
- Vou pensar melhor sobre isso. Suas idéias têm uma certa lógica. Não
sei se concordo...
- Mas você não inventou esse modo de agir... Você segue as idéias de
quem?
- Jamais terá essa alegria, debochou Lucinho. - Sempre você estará presa
a elas. Você nunca as deixará, jamais será outra, diferente da Virgínia,
acorrentada à sua própria história, à história de todos os homens que
nos precederam, de todos os animais que vieram antes do homem.
- Não foge ao que todos somos: o padre, seu marido e todos os demais
homens do planeta Terra. Você é tapeada pelas suas teorias, mais do
que os outros, pois crê não estar sendo. Todos pensam ser capazes de
- É essa procura que vale... Que mais podemos fazer além disso? Eu ap-
enas imagino que dirijo minha vida, que sou livre... Sei que minto para
mim mesma, mas eu, também, preciso disso. Não quero discutir, pois
não chegaremos a lugar algum, não há meios de saber se estou ou não
certa; suspeito, apenas isso. Também, para quê as certezas?
- Não sei... vou pensar mais. Hoje devo beber um pouco, para me im-
pedir ir mais a fundo nessas divagações dolorosas. O poder...
Neste instante, ela olhou-os com seus olhos azuis brilhantes, sem nada
falar. Era o sinal de que estava na hora da visita ir embora. Eram oito e
meia da noite, ela ia assistir a novela e queria a sala livre. Lucinho, desa-
jeitado, levantou-se, convidando Virgínia para entrar no seu quarto. Ela
preferiu se despedir. Também, para quê continuar?...
Sua análise com o Prof. Pinelli, que durou meses, teve várias fases e a
ajuda de outros profissionais interessados na teoria, discípulos e ex-
Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 173
alunos.
- Inicialmente, você deverá fixar os olhos nessa caneta que estou balan-
çando diante de você. Daqui a pouco, vai se sentir sonolento, bastante
sonolento. Quando isso acontecer, você irá fechar os olhos e prestar
atenção às minhas palavras; apenas nelas, não deverá ter sua atenção
despertada para mais nada. Entendeu? Olhe para a caneta. Ela irá balan-
çar de um lado a outro, você prestará atenção à minha voz. Certo?
- Relaxe todo o corpo, dos pés à cabeça. Você está inteiramente con-
centrado na minha voz. Só preste atenção a ela. Bem relaxado... muito
calmo… o mais tranqüilo possível. Certo? Agora você está bem calmo,
relaxado e se sentindo muito bem; prestando sempre atenção à minha
voz... concentrado nela… somente nela… você começará a sentir uma
onda de calor agradável, que vai se iniciar no alto da cabeça. Essa onda
de calor irá, pouco a pouco, descen...do... vaga...rosa...mente... bem
lenta...mente; ela começa na cabeça, depois... des...cerá para a testa... aos
Após esse preâmbulo, que durou uns dez minutos, repetido mais de uma
vez, Lucinho ficou ligeiramente hipnotizado. Ao lado dele, assentado,
estava o Prof. Pinelli. Entretanto o professor adormeceu mais depressa
e mais profundamente que Lucinho; após se debruçar sobre a mesa de
trabalho do Dr. Walter ele começou a roncar. Preocupado com o ocor-
rido, sem fazer barulho, o professor foi acordado pelo hipnotizador para
que assistisse ao interrogatório.
- Você, agora, está regredindo para uma idade anterior a que você tem
no momento. Aos poucos, você vai retornando a um período de vida,
quando você era um adolescente. Vamos voltar no tempo que já se foi,
que ficou para trás, quando você foi se matricular no segundo grau do
colégio Dom Silvério. Lembre-se da escada em frente ao colégio... Agora
você vai subir a escada, um degrau, mais outro...
Diversas outras instruções foram dadas. Ele ia, aos poucos, regredin-
do, conforme as instruções do doutor. Visualizava a sala de aula do
primário, onde estudou no grupo escolar Barão do Rio Branco. Depois,
regredindo mais ainda, alcançou o tempo de criança, antes de entrar
para a escola. Era o momento mais esperado da regressão. O professor,
nesse instante, mostrava-se não só mais atento e ansioso, como também,
- Você, agora, está entrando no quarto de sua mãe. Deita-se, ela abre a
porta, etc. etc.
Irado, o Prof. Pinelli continuou, ali mesmo com o inquérito. Nesse mo-
mento, como ocorre nas delegacias de polícia, o professor pressionava o
réu para confessar o que era desejado. Lucinho, teimosamente, continu-
ava calado e, a cada minuto mais, recusava-se a falar sobre fatos, para
ele, dolorosos e, para o professor, excitantes e intrigantes.
Por outro lado, as melhoras esperadas com a teoria fantástica não ac-
onteceram. Diante da falha da hipnose, diversos medicamentos impor-
tantes foram receitados e tomados pelo paciente obediente, dentro do
esquema teórico do Prof. Pinelli. Após uma série de contratempos, Lu-
cinho, abandonado pelo seu gênio salvador, foi enviado para um outro
terapeuta, mais desocupado e com idéias menos mirabolantes.
É sabido que todos nós, diante das incertezas e dos grandes sofrimentos,
das barreiras intransponíveis e impossíveis de serem vencidas, passa-
mos a usar crenças fantásticas, mágicas, que resistem a qualquer lógica.
Quase todos nós, em alguma fase de nossa vida, nos ligamos, com
entusiasmo e muita fé, a uma idéia filosófica, a uma ideologia política
ou religiosa, acreditando estar ali a salvação da humanidade. Mais tarde,
decepcionados, percebemos que nos enganamos. Ele, apesar dos fracas-
sos, continuou acreditando que a teoria do professor seria sua salvação
e com ela seus problemas estariam descobertos e resolvidos. Ele era seu
Messias. Imaginava que, a partir de então, não só teria uma idéia precisa
de si, como também, poderia dar asas a sua grande inteligência, uma
inteligência de gênio, como afirmou o professor.
Dr. Erasmo era baixo e um pouco gordo. Os poucos cabelos que tinha,
dos dois lados da cabeça, eram grisalhos e ralos. Usava, desde os tempos
de rapaz, um pequeno e fino bigode. Suas maçãs do rosto, muito vermel-
has, pareciam ter sido pintadas com ruge. Andava rapidamente como
se estivesse dando pulinhos. Ele evitava fitar o paciente de frente, mas
estava sempre atento a qualquer gesto ou palavra dele.
- Então, não sabe? Meu analista, Prof. Pinelli. Foi ele quem, após longos
estudos, descobriu que sofro de um mal, por sinal, raro; sou um caso
quase único no mundo. Os profissionais poderão aprender com meus
problemas e meu comportamento.
- Fui indicado pelo Prof. Pinelli, disse, falando alto, ligeiramente agres-
sivo, esperando uma resposta. Desgostoso com o silêncio do médico,
continuou, falando alto: - Você o conhece, não é?
Dr. Erasmo ficava cada vez mais apressado; seu tempo ia se esgotando
com aquela conversa inútil. Lucinho rodeava, rodeava, não entrava no
assunto.
- Você é apressado, hein? Agora mesmo irei lhe contar. Desejava ap-
enas colocá-lo a par dos meus tratamentos anteriores, principalmente
- Tudo bem! Espero não fazer parte dessa sua listinha, ironizou Erasmo.
- Tudo começou há muitos anos; a primeira vez que fui a uma psicóloga,
eu era uma criança, tinha em torno de cinco anos...não me lembro
mais...
Ele foi contando seus problemas, desde o dia em que deu uma dentada
na prima, depois quando pegou o revólver do avô para matar a profes-
sora, D. Francisca. Contou, também, sobre as crises e internamentos.
- Muito bem. Creio que poderei ajudá-lo, apesar dos problemas que
enfrentou. Você está bem, apenas um pouco ansioso... ligeiramente mi-
nucioso, obsessivo. São problemas simples, semelhantes a muitos... Não
graves... Já tratei de muitos outros parecidos.
- Sim, respondeu Erasmo; sei. Isso é...não sei...É muito difícil..., desani-
mado e desinteressado por todas essas considerações indigestas, repetiti-
vas, que não levariam a nada e que detestava.
- Pois bem. Aos poucos, foi penetrando mais nos meus problemas, na
minha vida mental e emocional, principalmente, no meu inconsciente,
no ID. Ele pesquisou todo meu passado, antes e depois dos três anos,
quando começaram meus problemas. As idéias importantes que sur-
giam eram muitas e precisávamos de mais tempo. Ele, bem como seus
assistentes, estava altamente interessado no meu caso. O grupo, por
ele chefiado, extraía os conhecimentos básicos, da teoria que construía
através de minhas análises. Essas idéias foram transmitidas para os
grandes cientistas deste planeta. Ele descreveu, com minúcias, como
funciona uma mente distorcida. Penso que o senhor, como estudioso
- Não... Sim, já estudei todas. Nunca fui muito preso a uma teoria es-
pecífica. Critico-as todas. Cada uma tem suas virtudes próprias, seus
ensinamentos, mas também, suas falácias, os resíduos inaproveitáveis.
- É a Lei. Você, como todos, tem de se adaptar a ela. Alguns, não forma-
dos, podem ser julgados por uma comissão de professores universitári-
os e receber o título de “ Notório Saber”. O candidato a esse título deverá
possuir um grande conhecimento na área na qual é candidato, mesmo
não tendo o curso superior. Por que você não tenta isso?
- O Prof. Pinelli falou-me acerca disso. Penso nisso. Mais tarde, darei
conferências ou aulas acerca das minhas descobertas sobre o compor-
tamento humano. Fui convidado por uma amiga, que tem problemas
semelhantes aos meus para, juntos, darmos cursos para os que não têm
acesso a essas informações que consegui penosamente. Nós, clientes,
sabemos mais do que os terapeutas a respeito das doenças, apenas não
possuímos o vocabulário apropriado para explicá-las. Já me convidaram
até para fundar uma nova religião, eu seria o teórico, ela seria a pastora;
ela é mais desinibida, eu não falo bem. Lucinho pára um pouco e dá um
suspiro profundo e retoma a conversa. - Adquiri conhecimentos com
grande sofrimento. Penso, se tudo der certo - em dar cursos, como mui-
- Exato. O senhor sabe. Não precisa falar mais. Um outro fez tomografia
computadorizada, um exame moderno, caro, para ver se tinha lesões
cerebrais. Nada encontrou. Um deles, famoso que, às vezes, costuma
aparecer em programas na TV e cobra muito caro - até escreveu livros
bonitos para um público imbecil...é melhor não falar devido a ética...
achou que eu tinha que fazer um mapeamento cerebral para verificar se
a circulação estava correta. Disse-me que havia um pequeno problema
nas ondas cerebrais, que me impedia de pensar com exatidão e cautela,
de planejar, o que me levava a agir impulsivamente. O tratamento, por
sinal muito caro, não seria demorado: pouco mais de dois anos. Você
conhece esse tratamento? É famoso.
- Mais ou menos.
- Não conhece? Todo mundo sabe de que se trata. Então, não vê TV?
- Também, não. É claro, às vezes, quando não tenho coisa melhor a fazer,
passo os olhos.
- Não sei se devo prosseguir; imagino que eu não serei entendido. Acho
que você deve entender, não é possível! Falaram tão bem a seu respeito!
Deve estar troçando de mim, falando que não sabe dessas coisas tão ba-
nais, comparadas com o meu caso que é muito mais complicado. Talvez
isso seja um jogo seu. Os psiquiatras são mestres nisso, falam uma coisa
e fazem outras. Está fingindo, troçando e isso não é ético.
- O senhor é casado?
- Para que quer saber? Falou rápido Dr. Erasmo, muito espantado.
- Como?
- Isso mesmo. Muitas vezes, dormi lá! Foi um modo que ele arrumou
para estudar meu caso melhor. Ele queria anotar meu sono e, princi-
palmente, meus sonhos, no momento de sua realização. Além disso, ele
estava muito deprimido com a morte da mulher; quase não dormia e,
assim, pude ajudá-lo um pouco, também. À noite, ele ficava à beira da
minha cama, observando quantas vezes eu virava o corpo, o que falava,
se meus olhos mexiam e quantas vezes isso ocorria. Fazia centenas de
anotações acerca do meu sono e sonho. Aprendi com ele, mas sei que o
ajudei muito, acredito que mais do que ele me ensinou.
- Você é do tempo antigo. Acha que um psiquiatra não pode ter esse tipo
de intimidades com seus pacientes. Por que não?
- Concordo; é complicado...
- Você fala duas idéias ao mesmo tempo. Concorda com quê? O quê é
complicado?
- A cada hora você troca de assunto, ainda estou pensando, meu raci-
ocínio é mais lento do que o seu... replicou Dr. Erasmo, desanimado
com o andamento da sessão.
- O senhor tem medo de dar opiniões, perdoe-me, mas sou capaz, agora,
com meus conhecimentos atuais, de afirmar que o senhor tem, também,
o complexo de “Delirius Mater”, não é?
- Não sei o que está querendo dizer. Meu tempo, como já disse, ter-
minou. Estou atrasado, conversaremos mais acerca disso no próximo
encontro, certo?
- Eu pago outra consulta, assim, fico mais tempo, vai ser melhor para o
senhor.
- Dr. Erasmo não disse claramente o que pensa. Você sabe como são os
psiquiatras, falam por rodeios, como você. A gente nunca sabe o que
estão querendo expressar; muito menos pensando, retrucou Lucinho.
- Eu? Falo claro. Não afirmo coisas de que não tenho certeza. Possivel-
mente não tenho certeza de nada! falou, orgulhoso, Agostinho.
- Ah, ah... Acho uma graça. Mudou de drogas: trocou maconha por
cocaína ou vice-versa; não sei bem. Usava as drogas excitantes de D.
Rosária, de Dr. Alberto, Pedro, Antônio, agora, passou a usar os calman-
tes do Prof. Pinelli. É difícil descobrir qual é a pior.
- Você estrila à toa, todas as vezes que alguém fala com você... Não foge
ao padrão maternal, puxou a mãe, aquela fil... ela continuava a xingar,
enquanto ele permanecia deitado.
- Nada disso! Deus me livre! Você, muito mais do que eu, a puxou.
Parece muito com ela, nunca abandona suas idéias...Eu, nem a considero
minha mãe...Tenho idéias diferentes. Minha mãe está morta, enterrada,
há muito tempo; encontrei outras. Nem sei mais se, para mim, ela exis-
tiu, algum dia. A sua, essa megera toda-poderosa, habita todos os pontos
do seu reduzido mundo, invadiu, dominou e escureceu todos aposentos.
Sua deusa, essa desgraçada, objeto de sua devoção, controladora de to-
dos os seus pensamentos e ações, é que lhe dá direção, sossego e amparo.
- Ela tem feito todas as suas vontades, todas elas. Ao por no mundo esse
imbecil, ao construí-lo, exigiu de sua cria uma fidelidade estrita ou a
morte. Você preferiu a proteção, suas velhas idéias, em lugar de pensar e
decidir por si mesmo.
- Eu te mato! Gritou. Não gosto de falar sobre isso, nem mesmo com
os psiquiatras. Detesto certos assuntos, esse é um deles. Já discuti isso,
muitas vezes, com quem entende melhor do que...
- Não! Já lhe falei. Não! Não quero ouvir nada de você! Eu te odeio! ber-
rou Lucinho.
- Isso eu já sei. Não precisaria ser dito. Dei muitas cabeçadas, usando
as velhas idéias. Agora, estou, depois do Prof. Pinelli, acertando meus
passos, sabe? Nem devia te responder. Essa sua conversa me enoja... Não
preciso dela. Tenho orientadores melhores, gemeu Lucinho.
- Oh! Isso é óbvio; não posso ter uma idéia das coisas, das pessoas, em
geral, como você tem; como não posso usar sua maneira de ver o mun-
do...ou dessa puta - olhando com os olhos brilhantes para a irmã. - Cada
um imagina a realidade a seu modo. Uma coisa eu sei: a idéia que tenho
de mim e das coisas não tem funcionado. Ao agir, percebo que esbarro
em situações intransponíveis, não tem dado certo...Espero uma coisa e
acontece outra, estou encurralado no labirinto resmungou.
- Mas, como? O que mais venho fazendo, desde que nasci? Tento desco-
brir e incorporar uma idéia mais bem adaptada para viver, uma melhor
idéia de mim mesmo, tudo para poder acertar mais. Você pensa que a
realidade que você enxerga é mais correta do que a que percebo? Que
as suas representações e suposições do mundo são as certas? Que a vida
que você leva é melhor do que a minha? Você, também, está querendo
me crucificar com suas certezas! Sei muito bem disso, depois, é claro,
das análises com o professor...Tudo está mudando; vejo-me e compreen-
do-me, agora, de modo diferente; entendo melhor o mundo ao meu
redor, incluindo vocês.
Roberta dá uma gargalhada e caminha para o canto do quarto à procura
do livro que não é encontrado. Agostinho vira-se para Lucinho e arre-
mata:
- Oh, coitado! Não imagina que a realidade, olhada sob a ótica ensinada
pelo professor, pode ser mais inadequada, mais inexata ainda do que a
existente na sua mente, imposta pela nossa mãe.
- Acertou! Paz, sim. Alegria, sim, mas, infantil, tola; alegria dos bobos,
continuou Roberta. A busca da paz, que você tanto procura, só é al-
cançada através do falso conhecimento, pela imposição de dogmas que
descrevem o falso, o imaginário e ilusório. Você só terá paz durante os
sonhos ou nas idéias utópicas. Estes sim, tranqüilizam, a realidade, não!
- Quem disse que essa sua afirmação é verdadeira? Pode, também, ser
mais uma besteira...
- Como?
- Você não vê isso: “o cliente é que deve descobrir seu caminho!” Isso é
uma teoria, uma bússola do terapeuta, na qual nem ele mesmo acredita.
Quem falou que isso é que é o certo? O que é isso: “descobrir seu camin-
ho por si” ? Nesse caso, para quê os cursos que todos fazem? Para quê
as escolas ou as terapias se cada um aprende por si mesmo? E, se pen-
sarmos assim, os pais não deveriam ensinar nada aos filhos, estes dever-
iam ser deixados para que aprendessem sozinhos, sem ninguém, possiv-
elmente com as baratas. Isso tudo é um modo de pensar, uma crença dos
que paradoxalmente, ordenam o cliente a ser livre. Ouviu ? Ordenam!
- Ora, você sempre acha que pensa melhor, os outros estão errados. Só
você sabe - ironizou.
- Continua a usar sua mente distorcida para dar ordens - reclamou Lu-
cinho.
- Não estou entendendo o que você está querendo dizer; largamos algu-
mas idéias, as mais adequadas, em benefício daquelas sem valor? Isso é
um disparate! Você me perturba...
- Não disse nada de mais, cada idéia ou cada raciocínio é realizado desse
modo: ligo uma idéia à outra já existente; isso Agostinho já disse mil
vezes. Ligo minha idéia a uma na qual acredito ou desejo combater...
Uma serve de apoio à outra...comentou com calma, Lucinho.
- Você está louca! Precisa ser internada! gritou com raiva Lucinho. Basta
de palpites; essas são as idéias mais idiotas que já ouvi. Você só fala
asneira! Como criticar, com sua mente, as crenças dos outros! Além do
mais você não é uma profissional em nada. Você fala acerca do que vai
dentro das aspirações de cada um, sem nada compreender, sem nunca
ter pesquisado. Sem saber, inventa, para combater certas teorias e inter-
pretações seguidas pela maioria, você cria suas próprias interpretações
acerca dos teóricos. Além disso, com suas teorias, agride a todos. Só
você está certa? Oh, meu Deus! Tenha piedade dessa pobre de espírito,
argumenta, já sem força e desanimado.
- Você tem razão, Lucinho; ela está falando de modelos, está expondo
seu meta-modelo, isto é, uma interpretação sua das teorias interpreta-
tivas, das maneiras de enxergar o mundo. Mas, não sei se ela está exag-
erando ou brincando; a gente não sabe quando ela ironiza ou não...
- Você sempre tentou me deprimir. Não estou bem, estou confuso e des-
animado...Você percebe, principalmente depois das descobertas que fiz...
Imagino, às vezes, que não tenho mais motivos para me alegrar...Nem
mesmo para viver. Relembrei coisas desagradáveis nas sessões terapêu-
ticas, de coisas que não gosto nem de pensar e de falar. Às vezes, penso:
para que ir atrás da salvação, de arrumar uma saída para minha vida, de
me cuidar? Seria para viver bem ou escapar da morte? Estou chegando à
conclusão de que é exatamente do viver que fujo...Como quase todas as
pessoas. Evito construir meu próprio caminho; ocasionalmente, busco o
dos outros; que é a não-vida; a morte. De quando em quando, entrego-
me às diversões, tudo para não pensar na minha própria existência. Mas,
em vão. Poucas vezes consigo fingir que estou bem, mostro, somente por
fora, um vigor que não tenho; que nunca tive...Noto que, muitas vezes,
represento bem, outras, nem tanto. No fundo da alma, quando converso
comigo, vejo que tudo está mal, não gosto do que sou, das idéias que
grudaram em minha mente...Idéias dos outros que não me largam...
Corpos sinistros que estão incrustados às outras idéias. Não consigo
diferenciar as que são úteis para mim, as que podiam me levar a alcançar
minhas metas, das que me atrapalham...Nem bem sei, atualmente, o que
quero; não mais sei quais são meus objetivos. Além disso, não sei como
me liberar desses invasores maléficos. Entendeu? Não quero discutir,
muito menos brigar com você, tenho problemas demais para pensar.
- Oh! Não vê que isso é o que estou tentando fazer há anos? O que as
idéias dos terapeutas fazem? Nada mais do que criticar nosso modo de
vivenciar ou de interpretar o mundo, lamentou Lucinho, continuando
com sua voz triste: - Parece que querem me dizer que todas estão erra-
das... Agora, estou preso à última que encontrei, à do Prof. Pinelli. O quê
fazer? Se essa, também, estiver errada, como as outras, se for sem sen-
tido, estarei sem rumo. Além do mais, para executá-la, terei um trabalho
absurdo. Será que a cura valeria o custo dela? Não sei... Seria bom se eu
pudesse...
- Não existe homem puro, feito dele próprio; isso é uma ilusão, pon-
derou Agostinho. Todos nós somos uma mistura de homens, algumas
partes não têm nada a ver com o que pretendemos ser. Você não tem
nada de genuíno; é fabricado pela mistura de corpos estranhos, que for-
maram sua individualidade; no fundo, todos somos extra-terrestres.
Daí, o sucesso dessa ficção, pois eles são examinados através dos nossos
extraterrestres internos.
- Então, para que falamos em seguir o que nós somos, em sermos espon-
tâneos? Todos nos incentivam a sermos naturais, a buscar nossa indi-
vidualidade. Mas, se somos uma mistura de outros, ponderou Lucinho,
tenso: onde encontrar essa espontaneidade? Qual individualidade
usarei?
- Você? É o que mais procura pessoas para receber deles suas idéias para
ouvir, com imenso interesse, o que elas pensam de você; se conhece
através do espelho das idéias dos outros, não das suas. Além do mais,
um lugar cheio de pessoas interessantes, agradáveis, honestas, de con-
vivência fácil...esse paraíso todos querem, mas, meu irmãozinho que-
rido, jamais esse lugar existirá... na realidade, todos sonhamos com ele,
mas, depois de Adão e Eva, ele implodiu...
- Não gosto de você. Olhando com rancor para ela, continuou: não gosto
das pessoas em geral... Ah! como é triste! Pior é perceber que me pareço
- É péssimo nos observar através das imagens refletidas dos outros. Isso
é triste, meu irmão, eu sei disso...
- Não entendi...
- Você faz isso sem parar e não compreende? Como é burro! continuou
Roberta: - Como não há solução certa e segura, como não há garantia,
todos nós agarramos a primeira bandeira que nos aparece para escapar-
mos das incertezas e desgraças. A fé é fundamental, a direção pode ser
qualquer uma. Uma vez acreditando na via salvadora, passamos a nos
sentir bem, confortáveis e seguros. Examine a vida das pessoas: cada
uma se agarra a um ideal, a uma meta, mais acertadamente, a uma
mentira: uma crença religiosa, um trabalho, uma ligação afetiva, ideo-
logia ou, naturalmente, uma teoria psicológica, do Prof. Pinelli, por
exemplo. Devemos nos prender a essas atividades com bastante fé para
termos a ilusão - ilusão compreende? - de estarmos salvos, livres dos
perigos, tranqüilos, para não mais nos preocuparmos com as outras pos-
síveis soluções...Não devemos, jamais, discutir o valor dessa. Somente
assim escapamos da maldita incerteza! Entendeu agora?
- A sua é me criticar para esquecer das próprias críticas que faz sobre
- E, daí? Cada um faz o que pode ou dá o que tem, como afirma nossa
mãe. Você lamenta a vida, eu rio dela...Debocho da vida e da morte...
Não me preocupo se ela vier mais cedo ou mais tarde. Já vivi bastante.
Cada um gosta de uma coisa; segue seu ideal, sua mentira atraente, que
é examinada através de outras inverdades, muitas delas, pouco a pouco,
ganham o “status” de verdades. Isso não importa; precisamos disso.
Talvez você se sinta mais feliz, pois tem mais companheiros, o número
dos lamentadores é bem maior do que o daqueles que não se queixam,
dos que riem.
- Pode ser ... gemeu Lucinho. Como não queixar? Todos se queixam, a
vida é ruim para todos.
- Não é bem isso, discordo do seu modo de fugir delas; todos fugimos,
eu também. Penso que há fugas mais nobres. É melhor viver longe da
realidade... Não é Agostinho?
- Ótimo! Chegou onde queria. Não quero ouvir outras idéias além das
- Ora, ora, quem está falando! Nunca mais tire minhas coisas, tá ouvin-
do? gritou Roberta, que estava ao lado dele. Não mexo nos seus objetos.
Precisa continuar imbecil, você só tem esse pensamento. Se largá-lo, es-
tará perdido; é perigoso. Sem a ajuda desses alicerces de mil anos, ficará
mais idiota, se é que tem jeito de aprofundar mais na imbecilidade, que
já possui em alto grau. Sem as idéias da mamãe querida ficará sem nada
para apoiar seus pensamentos. Só tem eles.
- Temos a mesma mãe. Foi ela quem deu origem a todos os pensamen-
tos primitivos que possuímos, tudo parido da mesma puta..., concebido
da mesma semente. Nesse caso, concordo com você; desde que nasci,
considero-me uma filha da puta; nossa mãe, mandona, chata, histérica;
talvez tenha nos atrapalhado mais que ajudado... Isso é o que penso dela,
posso um dia mudar. Não sei...
- Não precisa xingar tanto. Posso, se permitir, não desejar conhecer além
do que conheço e não adotar suas idéias. Fico mais feliz com minha
pobreza e limitação... Penso que é melhor viver satisfeito com minha
ignorância, com a crença de uma teoria psicológica correta e eterna, do
que viver como você... Morrerá desesperado com sua sabedoria acerca
dos problemas insolúveis. Deve haver soluções mais simples para essa
Imaginando o pior, após ter engolido um pequeno lanche, foi direto para
o hospital. Decidiu caminhar em lugar de usar o carro, conforme seu
hábito, principalmente nos momentos de maior tensão. Essa técnica lhe
acalmava.
Uma chuva miúda e enjoada caía há quase uma semana sobre a cidade
cinzenta; um vento frio fustigava a face contraída e tristonha do Dr.
Erasmo, tornando mais vermelha ainda as maçãs do seu rosto. A água
escura e suja, de mau cheiro, que escorria pelas ruas, era lançada sobre
os pedestres desprotegidos e encharcados. Todos andavam depressa,
alguns corriam, desejosos de escapar daquela balbúrdia. Ora ele se
desviava de um transeunte, ora de outro. Os carros presos no trânsito
caótico buzinavam histericamente. Ele atravessou uma rua, esperou um
sinal abrir, cumprimentou um conhecido; agia como um autômato. Seu
olhar, aparentemente dirigido para os acontecimentos da rua, examinava
o interior de sua mente. “Como estará ela agora? Estará viva?”
Dr. Erasmo sentia, mais do que nunca, o desespero e o tédio das pessoas.
Caminhava cabisbaixo e, automaticamente, pensava no sofrimento que
teria que enfrentar após a morte da mulher.
Após se preparar para entrar - o que tomava alguns minutos e era uma
cerimônia realizada no mais profundo silêncio, na qual todas as fisio-
nomias mostravam-se muito sérias - o visitante da morte caminhava
até uma grande pia. Ali, suas mãos eram lavadas com um sabão líquido
especial e secas no ar quente, aberto pela atendente. Era aconselhado,
após a colocação da roupa especial e de ter lavado as mãos, a não tocar
em nada, inclusive no paciente visitado. Apesar de ali não ter espelhos,
não era difícil para o visitante imaginar como ele estava estranhamente
vestido; bastava olhar para os que ali transitavam: médicos, enfermeiras,
visitantes, todos usavam a mesma vestimenta.
Yeda permanecia esticada no seu leito, nua e com o rosto voltado para o
teto, como quase todos ali. Agonizava. Era difícil saber se ela estava viva
ou morta.
- Ai! Aiiii! Ouvia-se um grito, que se iniciou forte mas, pouco a pouco,
tornou-se lento e fraco. Uma enfermeira, que não devia ter mais do que
vinte e cinco anos - deslizou até o leito e, imediatamente, olhou para
Quem gritava era uma senhora, diferente das que ali estavam: além
de bem nutrida, forte, conseguia respirar sem ajuda dos aparelhos e
pronunciava bem as palavras. Havia tomado uma grande quantidade
de comprimidos para morrer. Pela terceira vez tentou esse meio para
terminar com seus sofrimentos; uma técnica geralmente ineficiente para
acabar com a vida. Foi amarrada no leito, pois, quando se levantava,
andava pela enfermaria, criando problemas para todos. Uma injeção a
fez dormir rapidamente, por instantes. Possivelmente, tentaria durante
uma nova briga com o marido, o suicídio. Um dia seu esforço poderá ser
coroado de sucesso; havia falhado novamente. A enfermeira mais forte
sussurrou nos ouvidos da mais nova:
- Devíamos deixá-la morrer, se é isso que ela quer. Até que não é feia...
Seu marido deve ter razões para não a querer.
Uma mulher de mais de sessenta anos jazia despida num leito, tendo
ao lado, possivelmente, uma filha aflita, que orava e segurava as mãos
cadavéricas da paciente.
- Aprendi mais uma coisa: não há justiça nessa vida; dei alta, esta tarde
a um malandro, alcoólatra, que nunca trabalhou, que sempre viveu às
custas da exploração de pessoas, inclusive do hospital...Ele já foi interna-
do por diversas vezes, voltará outras tantas. Entretanto, Otávio, que era
sério, bom estudante, tinha um grande futuro, é acidentado de maneira
tão rara e morre. Este mundo não tem mais comando...Ocorre o que a
natureza injusta escolhe...
- Professor Erasmo, como vai? Sua voz custou a sair; ainda estava choca-
do com o fracasso ocorrido antes e continuou: - o quadro de sua esposa
continua estável, nada mudou, o prognóstico é sombrio...
Procurava os termos médicos, se possível sem conotações emocion-
ais e evitava mostrar a gravidade do estado de Yeda; tentava falar sem
provocar emoções desnecessárias. Ele fixou seu olhar nos olhos do Dr.
Erasmo; esperava iniciar um diálogo...
Agora Yeda dava-me seu último adeus, através do único sinal de vida
visível: sua respiração barulhenta. Estava prestes a abandonar tudo; não
mais dava resposta para nada... Ela, como uma planta criada sem terra
e sem sol, ainda vivia, devido ao adubo e à luz artificial. Olhava-a com
pesar e, ao mesmo tempo, ouvia o Dr. Juarez usando frases e palavras
contaminadas pelo sofrimento:
Minha mulher, indiferente a tudo, estava alcançando o que ela mais de-
sejava, a paz, a ausência de sofrimento, o nirvana, uma vida diferente da
experimentada por ela. Possivelmente, nesse momento da agonia final,
ela estivesse sonhando com o outro mundo, um mundo que ela sempre
desejou. Ele existe? Não sei. Sinto-me confuso. Como é difícil enfrentar
tudo isso; tão próximo da morte. Sinto-me atordoado, às vezes atraído
por aquele descanso. Como gostaria de sumir. Virava meu rosto para
outro lado, olhava para cima, para os lados, para o crucifixo, principal-
mente em direção a janela, para a vida que lá fora continuava, corria,
sem ligar para meus sofrimentos. Naquele salão, ao contrário do mundo
externo, o fim rondava e impregnava todos os cantos, a morte estava em
todos os corpos. A vida no CTI era percebida com mais lucidez, pois ela,
todos sabiam, podia terminar a qualquer momento.
O que leva um problema a ser percebido como sendo mais grave do que
Já caí demais nisso, espero não mais ser enganado. Quem sabe estou
sendo enganado agora? O único mundo que posso entender, a cada mo-
mento, é o meu; jamais penetrarei no mundo do cliente.
Hoje, sei que também os fatos vistos, ouvidos por nossos órgãos dos sen-
tidos, são percebidos de outro modo, pelos órgãos dos sentidos de out-
ros animais: os olhos da águia vêem mais movimentos e cores do que os
nossos; o focinho do cão sente mais o cheiro do que o nariz humano; os
órgãos sensoriais da formiga percebem movimentos de luz com maior
sensibilidade que nosso pobre organismo. Pergunto-me: qual é o mundo
verdadeiro, o meu ou o da águia? Tudo isso me leva a pensar que não
somos animais superiores; somos, apenas, diferentes. Só temos acesso ao
mundo humano e, por isso, o julgamos superior; talvez os pernilongos
ou as bactérias, nas suas tertúlias, também pensem que seu mundo é
Dr. Erasmo foi despertado do seu devaneio pela atendente fria. Esta lhe
pediu para entrar no CTI.
O Dr. Juarez, chegando até à porta, veio lhe dizer, agora num tom de voz
mais firme, que sua mulher acabara de falecer. Não houve susto nem
decepções, como tudo que é esperado.
Soprava uma brisa agradável, própria dos dias chuvosos, que tornavam
a temperatura quase fria. O céu estava parcialmente escuro; viam-se
fendas azuis no horizonte: tufos de nuvens, colorida pelo sol, formavam
cachoeiras avermelhadas...Isso dava àquela tarde um colorido calmo.
A tarde era boa para reflexões, que se desenrolariam naquela velha sala,
palco de grandes e pequenas confissões, de momentos de profundas
tristezas, mas também de alegres comemorações.
- Mais ou menos... Saí daqui insatisfeito. Não falei o que queria, quase
nada, ou melhor, nada! Não lhe expliquei como sinto agora, tentando
me compreender após as interpretações do professor.
- Eu sei, mas o tempo aqui é tão pouco; acaba não dando para contar as
coisas importantes. Além disso, às vezes penso que o senhor acha que é
bobagem o que falo e não acredita em mim...Assim, fico em dúvida se
devo ou não falar acerca de meus problemas, do que agora descobri a
meu respeito... Essa última frase foi dita com ênfase e bem lentamente.
Dr. Erasmo, por mais que evitasse, comparava os fatos da vida de Lu-
- É penoso entrar direto onde quero. Preciso lhe dizer, antes, coisas im-
portantes para que compreenda por que a teoria do professor se encaixa,
melhor do que as outras - dezenas delas - no meu modo de ser.
- Hum...
- Sim.
- Eu fugi do assunto, é sempre assim... quero falar uma coisa e falo outra.
O que eu ia mesmo dizer? O senhor se lembra?
- Você falou várias coisas: criticou-me e sentiu culpa; falou dos rótulos
que adquiriu de sua mãe, lembrou que queria descrever alguns fatos de
sua vida, os quais foram analisados pelo professor e deram origem às
interpretações sobre você, das quais você tanto gosta...
- Gosto não, elas são reais... elas mostram o que eu sou. O senhor fala:
“que eu gosto”, como se fosse uma simpatia a uma teoria... mas, é uma
realidade. As interpretações que agora tenho a meu respeito retratam
o que sou. Elas são aceitas por todos, o único que parece discordar é o
senhor. É uma teoria científica, ouviu?
Nesse instante, sem querer, ele lembra das noites que passou junto à
mãe; dos abusos sofridos. Lembrava, com ódio, essas cenas. Pára e olha
para Dr. Erasmo, perguntando-lhe, timidamente:
- Sim.
- Não quero ouvi-las! Ouviu? Já as conheço! Andei por toda minha vida
à procura de minha identidade; tentando escapar do labirinto onde
entrei; busquei saídas usando idéias ora de um ora de outro... Sei que a
explicação do professor também é falha. Sei disso, mas gostei dela. E daí?
Tudo bem! Vejo, com claridade, que ela não revela tudo. Não mostra o
que minha mãe fez comigo para que eu ficasse com pavor dela...Quais
idéias tiveram maior peso, me dominaram e me paralisaram... ? Não
consigo abandonar essas sujeiras... Elas me fazem tão mal...
- Como? É...bem... a “Erasmista”. Ela resume tudo que já li, vivi e pensei
acerca da conduta humana. Procuro ser um pouco mais livre...
- Agora, por exemplo, posso lhe dar uma interpretação baseada na Teo-
ria dos Sistemas! “Você precisa se manter doente para viver, para você
seria perigoso sarar”. Ela é certa?
- As teorias psicológicas que você tanto adora - sempre viveu atrás delas
- são esboços grosseiros da conduta das pessoas em geral. O indivíduo
particular não pode ser entendido por essas generalidades. Esse é o
grande erro das interpretações.
- Não é bem isso! - retruca Lucinho espantado: - Fiz análise com ele,
aprendi muito; penso que o que ele me ensinou; ajudou-me mais do que
essas interpretações desconexas. O senhor está me enlouquecendo...
Dr. Erasmo, cansado e abatido deixava fluir sua própria fala desorde-
nada, perguntando-se: “Por que teria de ser diferente? Para que ser
coerente? Tenho o direito de deixar, num dia desses, de ser o psiquiatra
controlado, como o exigido pelas bobagens inventadas pelos sábios-
- O senhor está criticando tudo! Até sua própria profissão, seu trabalho!
Onde quer chegar?
- Estou lhe ensinando; quero ajudá-lo. Veja: uns e outros usam as mes-
mas palavras, os mesmos chavões, todos falam do mesmo modo, de
acordo com a linguagem popular. Ouvimos sempre: “na minha opin-
ião”, de um lado e de outro, onde cada um tira, do fundo da cartola, as
crenças que defende, confundindo-as com a descrição da realidade que
é muito mais complexa. O que diferencia, muitas vezes, o profissional do
amador é que um afirma ter o título de psicólogo e o outro não chega a
tanto; um se assenta na cadeira principal; o outro, na secundária. Ouço
interpretações belíssimas acerca das condutas humanas, que me fasci-
nam. Mas, é uma pena, pois, mais tarde, ouço outra, acerca do mesmo
assunto, de outra escola mais bonita que a anterior; afirmando o con-
trário da primeira, mas que se diz, também, absolutamente certa.
- Sim e não!
- Como?
- Estou falando acerca das teorias e não acerca da validade das idéias de
uma delas. Certas teorias se aproximam mais da realidade psicológica
que tem sido aceita atualmente como razoável; outras se afastam mais
dessa realidade. Nem uma nem outra descreve a “realidade” psíquica,
esta é inalcançável, como ocorre nas descrições propostas no campo de
qualquer ciência: Física, Química, etc. Umas descrevem melhor o seu
campo e usam instrumentos teóricos mais viáveis; outras ainda não
alcançaram este estágio. Não existe teoria verdadeira ou certa, pois não
temos referenciais do que seja absolutamente correto. Por isso, é fácil
e difícil ser psicólogo. Como é fácil e difícil viver. Vivem juntos sábios
e imbecis e ninguém sabe quem é quem. Esse é um grande problema
para os considerados sábios. Serão eles os inteligentes? Quais os crité-
rios usados para afirmar isso? O critério usado é melhor do que outros,
nos quais os sábios poderiam ser considerados imbecis? Portanto, quem
ocupará a cadeira de juiz ou examinador? Ninguém, em sã consciên-
cia, poderá afirmar quem está mais próximo da verdade. Quem sabe,
os mais desadaptados ao nosso mundo atual, os que mais se afastaram
dele, são os mais ajustados à verdadeira natureza humana? Acredito que
os homens mais adaptados seriam os que mais longe estão do homem
moderno; aqueles que mais se parecem com as vespas, baratas ou formi-
gas, animais altamente adaptados ao seu mundo, continuou, possesso,
Dr. Erasmo.
- Boa tarde.
- Vai beber cerveja a essas horas? São nove horas da manhã! Gritou
Rosária.
- Honestidade! gritou. “Não sei qual! Como pode mentir assim? Ainda
mais para mim, que o conheço totalmente”, ela dizia para si lembrando-
se de Silbene, a secretária com quem ele teve um caso. Continuou a falar
para ele ouvir:
- Você sabe que é mais velho do que eu. Nessa idade nossa - sua, prin-
cipalmente - é preciso ter cuidado com a saúde. Olhava e examinava
o marido: “Ele está mais velho; os cabelos já caíram, quase todos; os
últimos existentes estão totalmente brancos. Está encurvado; antes, ele
parecia ser mais alto, suas bochechas estão caídas, seu andar está, a cada
dia, mais lento e desequilibrado, mesmo abrindo as pernas o mais que
pode. E, ainda, bebendo desse jeito, todos os dias... Não vai viver muito...
penso que o melhor, para mim e para ele, é morrer. Ele não mais faz
falta. Para que quero um homem desse?” lamentava para si.
Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 244
Dr. Adamastor se embriagava facilmente, não precisava mais tomar
muitas garrafas de cerveja. Já na segunda, passava a falar com língua
enrolada, repetia a mesma frase várias vezes. Estranhamente, quando a
quantidade de cerveja excedia seu limite ele começava, em lugar de criti-
car, a elogiar Rosária; abraçava-a e beijava-a; principalmente confundia
a Rosária atual com a antiga, a ex-namorada que era bonita e jovem,
pela qual se apaixonou, no baile do carnaval. Para piorar, algumas vezes
trocava-a também por outras mulheres, com as quais já tinha tido en-
contros. No dia seguinte, ele mal se lembrava das cenas por ele vividas.
Naquela manhã, após ter tomado duas a três garrafas de cerveja, en-
quanto a mulher dirigia os trabalhos da casa, ele começou a persegui-la.
Olhava para cima, com sua cabeça grande, examinando-a, cuidadosa-
mente. Começava a imaginar estar conquistando uma bela jovem e
para conseguir o que desejava, recitava frases açucaradas, decoradas no
tempo de estudante. Alucinado pelo espectro, observava a moça bonita
do diretório, dançando, cheia de vida, à sua frente; agora relacionava-se
com a antiga mulher que se transformou numa outra, completamente
diferente; velha, gorda e cheia de trejeitos desagradáveis. Através do
físico desta, que ele detestava, ele conquistava, inebriado de amor, a
atraente mulher que um dia ele adorara.
- Meu bem...
De quem seria aquela voz? Ele confuso, imaginava estar, naquele mo-
mento, num prostíbulo, frente a uma prostituta que finge amar seu
freguês.
Aos poucos, ele foi levado até seu quarto, amparado por Rosária e
Cândida, para dormir um sono reparador, após o qual, tomaria bastante
sopa para cortar a ressaca da bebedeira daquela manhã. Depois, a vida
normal do casal recomeçaria a ser o que sempre foi. Ele seria tratado por
ela como um cão e escorraçado de sua presença.
- Não é essa que eu quero. É nova e aperta. Quero aquela velha que ando
sempre com ela.
- Devem estar na gaveta. Olhe aí. Vou levar a toalha. Espere! Não de-
moro.
- Que merda! É sempre assim. Nunca acho as coisas que desejo nos lu-
gares certos, resmunga, enquanto deixa um filete de água fria cair sobre
o corpo, que ainda conserva os últimos traços de beleza, que teima em
continuar, como o nariz bem feito. Sai do banho andando nas pontas
dos pés, muito levemente, elegante, andar que passa a ter quando está
terminando a embriaguez. “Não me lembro de nada que fiz...vou per-
- Sim, mas tem hora que aborrece... Como, curioso? Ela é repetida! Eu,
até você, já sei como terminará...
- Que isso! Não acho tão boa assim. Sinto sono...como lhe falei.
Olhando para ela, Dr. Adamastor refletia com pesar: “á medida que o
tempo passou, o meu esforço para viver bem com Rosária foi em vão. A
relação amorosa, que antes imaginei existir, transformou-se em brigas e
mais brigas, discussões inúteis, pirraças, desencontros, traições de am-
bos os lados; tudo do que antes eu tinha pavor. Como somos outros!”
- Não vai ficar aí, parado o dia todo! Ontem ficou o dia todo deitado,
hoje, depois que saiu da cama, encostou na cadeira-do-papai. Que
preguiça! É isso. Aposenta; não quer fazer mais nada. Fica deitado como
morto.
- Vire essa boca prá lá. Que idéia idiota. Você, de vez em quando, tem
essa mania de ficar pensando acerca da vida... do significado... A vida
foi feita para ser vivida, quanto mais sem sentido melhor; não para
ser pensada. Se filosofarmos muito, não agiríamos, pois cada ato seria
criticado antes de sua realização, já dizia um filósofo. Faça como eu: em
vez de pensar, mexo em coisas; arrumo uma mesa, lavo um copo, dou
um telefonema, assisto a uma novela, vou à loja. Não sigo uma linha
invisível que coordena tudo; tudo para mim tem o mesmo valor. Se não
tenho nada para fazer, nada mesmo, discuto sobre qualquer coisa. Fico
boa logo.
- Vamos, tome seu café antes que esfrie e eu tenha que arrumar outro.
Tenho muito que fazer! voltou a reclamar.
- Bom dia para todos, dormi demais; tive sonhos estranhos. Sonhei que
estava num lugar diferente daqui, parecia um grande e poderoso mar.
Tentava realizar um trabalho e não sabia como era nem como fazê-
lo. Não podia pensar sobre minha atividade pois não tinha conceitos,
símbolos, para denominar cada fato e os processos do trabalho. As ações
eram feitas ao acaso; como um cego eu não sabia que caminho deveria
tomar. Vocês já imaginaram um mundo diferente, no qual teríamos que
agir sem essas bússolas: as idéias que aprendemos; um mundo onde só
existissem imagens não interligadas, que ainda não receberam nomes
ou classes e estão soltas no tempo e espaço, precisando ser organizadas
- Não tem importância, o sonho é meu e deve ser entendido por mim.
Seria arriscado reconstruir o já construído, o conhecido. Já nos acostu-
mamos com esse modo de organizar os acontecimentos. A maioria não
suportaria a confusão de um mundo diferente.
Sentia raiva de Roberta mas, ao mesmo tempo, tinha por ela simpa-
tia; via seu esforço para esconder a tristeza, a dificuldade de encontrar
seu próprio caminho. Ela se parecia muito com ele, todos se pareciam,
concluía. Pensava nas saídas possíveis para escapar do labirinto onde
se aprisionara. Algumas vezes pensou em se matar, acabar com o tor-
mento que o dominava, outras em abandonar a busca. Refletia acerca
do conselho de sua irmã: “ através da fé, poderia, como muitos, se sentir
em paz, ficar imune às amolações do dia-a-dia.” Mas, as terapias às quais
se submeteu, todas foram assimiladas com muita fé, entretanto nenhum
resultado tiveram. Sua vida talvez tenha piorado.
“Será que sempre terei que usar idéias dos outros? Ando cheio delas...
Mas não consigo ter as minhas. Aceito as idéias dos outros como se elas
fossem melhores do que as minhas. Eu não tenho capacidade para fazer
boas escolhas, minha mente está cheia de idéias negativas a meu res-
peito!
Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 266
Cada um dos terapeutas que procurei acreditava possuir a verdade.
Demorei para encontrar um que parecia saber mais que os outros, caio
no Dr. Erasmo, que imagina saber mais do que todos juntos. Ao mesmo
tempo que não quero ser comandado por ninguém, mas, lamentavel-
mente, não acredito no meu próprio comando. Ora, continuadamente
endeusando raciocínios que seus donos não seguem e nem mesmo neles
acreditam! Como saber qual será o melhor para mim? Sei que a clareira
que abri não tem me levado aonde quero. Essa é uma certeza, uma das
poucas que tenho.
Não sei se foi bom aprender ou se seria melhor ignorar o que vai pelo
mundo; continuar a ser, eternamente, criança. Por que fui crescer? Que
saudades da irresponsabilidade! Que lembranças ternas e saborosas do
tempo de menino. Lembro-me do calor do leite sugado da mamadeira,
Estou plantado no lamaçal que deu origem ao que sou. Deste nasceram
muitos espinhos, poucas flores. Em certa época, aparecem espinhos,
noutra, flores...Todos brotaram das mesmas sementes...Por que uma
produz mais espinhos, outra mais flores, mais idéias saudáveis do que
doentias? Seria, como no alfabeto, conforme a distribuição das letras? As
letras do alfabeto são poucas em número...mas com elas formamos todas
as palavras, feias e bonitas, boas e más, frias e quentes. Mas o que dirige
ou determina essa distribuição? Ela acontece aleatoriamente? Talvez o
número de idéias armazenadas seja, mais ou menos, semelhante para
todos nós... Mas sua coordenação, numa certa ordem, é que faz a difer-
ença... Meu azar foi estar organizado defeituosamente. No meu cérebro
as letras criaram mais pesares do que alegrias.
Para o professor, sou um homem de valor; tenho tudo de bom. Mas ess-
Todos afirmam que a verdade tem que vir de mim. Mas essa afirmação
não é uma verdade dos outros? Devo segui-la? Gostaria de ser outro.
Quem garante que com algumas de minhas idéias eu conseguirei ex-
aminar as outras? Ninguém! Sempre busquei certezas... A cada dia mais
percebo que estas, de fato, não existem. Ou existem? Tudo está escuro...
Estou mal...Acho que vou ter uma crise...Não me controlo”.
Lucinho se levanta da cadeira, caminha pela sala e, por onde passa, joga
ao chão tudo que está à sua frente, tudo muito rápido. Não se altera
diante do olhar crítico da irmã, que chega apressada da cozinha ao ouvir
o barulho. Agostinho tenta agarrá-lo. Roberta sai da sala, rindo, desani-
mada.
Ele, correndo, enfia as mãos onde estão guardadas as louças usadas para
as visitas e joga-as longe, quebrando tudo num só tempo. Entra Dr.
Adamastor, xingando e ordenando-lhe parar; Lucinho não dá importân-
cia. Diante do barulho, Rosária sai do banheiro, arrumando, desajeita-
damente, suas roupas mal colocadas. Pára diante dele, séria e sem nada
dizer. Olha fixamente em sua direção. Neste instante, como por milagre,
seus olhos, até então, furiosos, tornam-se dóceis. Há uma pausa, um
momento de silêncio; magicamente, Lucinho se transforma; paralisa-se,
abaixa a cabeça diante dos olhos azuis brilhantes de sua mãe, como se
examinasse os cacos de vidros de cores, formas e tamanhos diferentes,
que se espalharam. Mostra uma mistura confusa de emoções, ira, amor,
- Está com uma cara de mau! Parece furioso... Hoje, está mais encur-
vado... fungando; até seu cheiro mudou...Pelo que vejo, a terapia não está
funcionando...somente a dela dá resultados...
Que pistas eu dou? Que sinais brotam do meu corpo, dando origem às
conclusões que cada um forma a meu respeito? Notava que uns sele-
cionavam trechos da fala, outros isolavam aspectos visíveis da conduta.
Alguns iam mais longe, descobriam os “traços” por trás da conduta,
o motor gerador de várias condutas, “ele é dependente”; “ ele procura
riscos e novidade”. Através desses traços - abstrações, puras abstrações,
jamais percebidas, meu interlocutor e observador atento ia mais longe,
imaginava outras possíveis condutas não observadas: “se é dependente
ele procura seguir as opiniões a respeito das roupas que deve usar, dos
lugares onde se divertir...” Do mesmo modo como os fatos eram sele-
Visite nosso site! www.galenoalvarenga.com.br 271
cionados aleatoriamente, as interpretações também o eram, seguiam a
mesma desordem lógica. Mas todos acreditavam nas suas profecias, com
muita fé...
Tornava-se claro para mim que fornecia pistas às pessoas, sinais que
lhes indicavam meus objetivos, emoções, até minhas idéias, tudo que
julgava estar bem escondido. Mostrava, ora um corpo mais encurvado,
ora a testa franzida, também um tom de voz mais alto, uma mudança na
cor da pele, uma inquietação nas pernas, uma tosse seca, um suor que
escorria. Tudo me exibia, escancaradamente, para os olhares e mentes
atentas. As pessoas me conheciam mais do que eu imaginava. Não eram
apenas os psicólogos que faziam interpretações acerca da conduta ou
do modo de pensar e reagir, eram todos... Todos me interpretavam, de
vários modos...
Notei que eles, como eu, possuíam e eram possuídos por algumas teorias
leigas vulgares, o que permitia o entendimento e a comunicação de-
lirantes ou alucinatórias, entre elas. Nós éramos capazes de decifrar e
interpretar, as pistas exibidas, usando as mesmas idéias e palavras, que
faziam parte do corpo do esquema delirante comum. As noções falsas,
os óculos embaçados de cada um, serviam de fundamentos para decifrar
os fatos ocorridos. Não foi difícil descobrir que ser mineiro, belo-hori-
zontino, andar encurvado significava, conforme essas suposições: medo,
reserva e timidez. Todos concordavam, pois todos tinham a mesma
teoria, a mesma lógica; tudo sustentado nas mesmas crenças infundadas.
Mas fungar e cheirar mal? Nunca havia prestado atenção a isso, tam-
bém nunca havia sentido odores diferentes no meu corpo, quando fico
nervoso. Sua interpretação era um enigma para mim. Roberta devia ter
maior sensibilidade, ou a dedução dela poderia ser singular e falsa? Já
me falaram que as mulheres têm olfato mais apurado do que os homens,
um maior número de receptores no nariz. Seria verdade?
Lucinho lembrava dos rótulos recebidos... “O que fiz para ser tachado
de tímido? Que fiz para ser xingado de burro? E aquela moça que foi à
Ao classificar a bola dada pela moça, que aspecto julgado excitou e ofus-
cou a mente de Surdina? O que o levou a não examinar outros atributos
exibidos por ela? Que poder teve essa cor forte para predominar e domi-
nar sua mente predisposta. Seria o mesmo que ocorre quando muitos
dizem: “é uma negra, formada em Engenharia”; focalizando, primeira-
mente, o que mais lhe chamou a atenção - a cor da pele - e só depois
completou, com o segundo aspecto; “que se formou em Engenharia”.
Num outro caso, poderia ter dito: “é uma engenheira”, quando sua cor é
branca; a cor “natural”, não é notada nem enfatizada. Nesse último caso,
o que chamou a atenção foi a profissão. Mas o que estou a fazer? Classifi-
cando Surdina e outros, do mesmo modo como os estou criticando.
“Se minha irmã tem suas idéias acerca do meu modo de ser, cada um
deve ter outras diferentes das dela, observando algumas coisas, não
percebendo outras. Ouvi muito frases como: ”Os paulistas são trabal-
Fui tendo algumas “certezas”: uma delas é que não havia certezas e nem
Que orientação interna teria que usar para chegar onde desejava? Onde
encontrar a verdade verdadeira? Começava a me desanimar, pensava
que era chegado o momento de parar a procura... Cada um tinha a sua
verdade, provisoriamente, por instantes e ela mudava rapidamente. A
mentira tornava-se verdade e a verdade mentira. Começava a duvidar de
minha dúvida...
Sem lugar para se alojar, Antônio procurou o abrigo que mais conhe-
cia: o bar que freqüentava. Ali, com ajuda do proprietário, conseguiu
um lugar para dormir e seu primeiro e provisório emprego. Sua função
seria limpar o restaurante, após a saída do último freguês, geralmente
de madrugada. Essa limpeza diária, cansativa e desagradável, só termi-
nava quase pela manhã. Nessa hora, Antônio ia se deitar no seu pequeno
quarto onde se acumulavam engradados vazios de cerveja e material de
limpeza. Às dez horas, ele se levantava; nesse horário, o restaurante já se
preparava para servir o almoço popular que começava às onze.
Apesar das dificuldades, ele a princípio não abandonou seu vício de be-
ber, apenas o diminuiu, nos primeiros dias. Dormindo e alimentando-se
mal, emagreceu e enfraqueceu. Durante esse tempo, passou a se queixar
de dores gerais, gripes e outros sintomas, próprios das pessoas desnutri-
das e maldormidas.
Não foi fácil localizar a família do médico obstetra, Dr. Paulo César
Bezerra, que fizera o parto. Lamentavelmente, ele havia morrido há
anos. Entretanto, através de telefonemas diversos, foi possível localizar
e falar com seu filho, também médico em Maceió, que sabia que seu pai
trabalhara, durante toda a vida, no Hospital Previdência de Alagoas,
onde fizera a maioria dos partos. Os pedidos e as pressões foram mui-
tas, o trabalho grande. Com ajuda de advogados e, principalmente, de
funcionários do hospital, foi feita uma busca nas antigas anotações do
ano de nascimento de Antônio. Após mais de seis meses de procura, fi-
nalmente, descobriu-se que os pais dele eram Adamastor e Rosária e que
eles moravam em Belo Horizonte.
- Alô!
- Ela, quando tá vendo novela, já te falei, quando tá vendo novela ela não
atende o telefone, não. Telefone mais tarde. Nesse momento, sem esper-
ar, Cândida desligou o telefone. Antônio ficou decepcionado e furioso.
Tornou a ligar.
- Sou eu, novamente. Eu preciso muito falar com ela. Chame-a, por
Ele, nesse instante, quase despejou em cima de Cândida tudo que tinha
na garganta. Respirou fundo, segurou um pouco e tentou falar, fingindo
calma:
- Filho dela? Os filhos dela moram aqui. O senhor tá doido. Agora, estão
todos em casa...Por causa da chuva que cai; ninguém saiu hoje; Agostin-
ho tá no quarto lendo, como sempre faz; Roberta, ouvindo música; Lu-
cinho, deitado na cama, pensando; ele gosta de ficar sozinho. Eu acho
que você está passando um trote, ou discou errado.
- Não. Não, por favor. Fale com ela. Sou filho dela e de Sô Adamastor.
- Não é, não. Estou falando sério! Falou firme: Fale com ela, pelo amor
que você tem à sua mãe, implorou novamente Antônio, desesperado, e
conclui, quase chorando: Pelo amor a Deus.
- Mas, D. Rosária, isso eu falei. Ele pediu até pelo amor de Deus e pelo
amor à minha mãe...
- Ele disse que é... Cândida custou a falar; - tenho vergonha de te dizer;
acho que ele é doido...
- Ele disse...é, falou que é seu filho... A senhora me desculpe, mas foi o
que ele falou.
- Filho! Assustou-se.
- Por que você não me chamou logo? Um assunto sério desses! Falando
com a voz embargada pela emoção e medo, quase chorando, correu ao
telefone acompanhada do marido:
Antônio não parava de falar, explicava tudo o que sabia a respeito de sua
origem. Do outro lado, Rosária chorava, amparada por Cândida e Dr.
Adamastor, que ainda não tinham entendido o que estava acontecendo
e, a todo momento, perguntavam, sem obter uma resposta satisfatória.
- Meu filho! Que alegria! Você está em BH? Vem para nossa casa... Penso
sem parar em você. Como você é? Bonito? Como são seus olhos? Claros
como os meus?
- Saia! gritou, Lucinho. Meus irmãos são os que viveram comigo; saia,
vamos, rápido.
- Tudo está diferente hoje em dia; no meu tempo os homens eram mes-
mo homens, Gertrudes tem razão, concluía Clarimundo, após dar uma
bebericada na cerveja gelada. - Uma vez, um cabra lá de Alagoas veio
tomar satisfação comigo, por causa dumas telhas que ele comprou no
meu depósito. As telhas estavam boas, umas poucas estavam quebradas
e tortas, defeito de fabricação e não fui eu que as fabricou; ele queria que
eu trocasse todas, a maioria boa; eu falei grosso para ele: “ num tenho
medo de bicho como você não; pra um desvalido de sua marca, tenho
aqui o 38, pronto... e querendo ser usado” Ah, ah! o homem deu uma
olhada por debaixo da minha blusa e viu o bichão lá; foi saindo de
mansinho, feito um cordeirinho, sem falar mais nada. Tenho, até hoje,
essa arma...
- Deixo sempre faltando uma bala, se cair o primeiro disparo não sai.
Eta, revólver bom!
Lucinho, afastado da mãe, quase não saía do quarto. Não mais conver-
sava com ninguém, a não ser com Cândida, para pedir-lhe o necessário.
Emagrecera, desde a chegada do irmão, vários quilos. Roberta, fazendo
agora desenhos, quando passou a trabalhar com modas, não tomava
conhecimento do que ali ocorria. Agostinho, preocupado com suas aulas
e preparando sua tese de mestrado, estava absorto e cada dia mais ocu-
pado com seus problemas.
Lucinho, cada dia mais distante se perturbava com tudo a que assistia.
Sentia ódio dele, dela e, também, de si próprio. Lembrava-se dos abusos
sofridos por ele quando criança, mas, ao mesmo tempo e desgraçada-
mente, sentia inveja do irmão e sentia-se culpado por sentir inveja.
Percebia que poderia ter uma nova crise e sentia medo dela, mais do
que das outras vezes. Ensimesmado, sem outra coisa a fazer a não ser
pensar sobre o que observava, via aumentar sua desconfiança. Cada dia
tornava-se mais sensível a qualquer olhar ou som que escutasse. Estava
sempre pronto a reagir a qualquer provocação. Para piorar, ele se afastou
de quem ele mais amava em casa, que era Agostinho, acusando-o de
estar sendo omisso, pois deveria fazer alguma coisa para impedir aquela
catástrofe. Começou a sentir falta dos xingamentos de Roberta; era
com ela que ele constantemente brigava, mas na realidade essas brigas
o excitavam. Tentou provocá-la várias vezes, para discutir sobre o as-
sunto, mas, ela, como os outros, desanimada, não reagiu às provocações,
apenas sorriu para ele, afastando-se.
- Ele devia estar querendo mesmo morrer, pois é quase impossível enfor-
car-se numa cama, sem a altura necessária para tal.
O que ele fez parecia mentira... Como foi toda a sua existência: uma con-
stante busca da identidade; uma luta constante para escapar do labirinto
onde fora aprisionado.