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Resumo
Neste texto pontuamos as contribuições de Lev Vigotski e Norbert Elias para o debate sobre a
exclusão/inclusão social. Adota-se como ponto de partida a noção de exclusão sob o senso
comum: o que é exclusão? Quem são os excluídos, para a maioria das pessoas? A seguir, situa-
se a problemática no contexto sócio-político-econômico atual, do Brasil e do mundo, na tentativa
de compreender qual o sentido de se falar em inclusão e/ ou exclusão numa sociedade
capitalista, neoliberal, globalizada. Busca-se, então, o concurso dos autores acima citados, por
acreditar-se que, apesar das diferenças fundamentais em suas matrizes epistemológicas, podem
iluminar certos aspectos essenciais acerca da questão tratada. Entre as principais contribuições
que trazem esses autores, destaca-se a compreensão do indivíduo como ser que se constitui nas
inter-relações sociais; e da exclusão como um problema que, estando além das individualidades,
não pode solucionar-se apenas através da elaboração alguns poucos documentos oficiais;
requer, por outro lado, profundas transformações na sociedade.
Introdução
O foco das análises, apenas indicadas neste texto, mostra a contradição entre o
discurso da inclusão social que fomos apropriando dos documentos oficiais e do que a
mídia tem veiculado e o que nos impõe o estudo mais aprofundado sobre os determinantes
históricos e sociais da vida dos povos e de seus grupos sociais.
Enquanto acreditarmos ingenuamente que basta alguns indivíduos, grupos ou
comunidades – que se colocam como possuidores de poder e decisão - assumirem o
discurso de que a escola é para todos, que os deficientes são legalmente respeitados em
suas peculiares necessidades, que as diferentes etnias e opções de vida têm os mesmos
direitos e que, para tanto, o Estado tem proposto resoluções e promulgado leis que os
garantam, não vamos caminhar muito em direção a uma efetiva conquista do que vem
sendo chamado de sistema democrático ou sociedade inclusiva.
Apesar de conseguirmos identificar facilmente certos aspectos ligados à
problemática da exclusão em suas variadas faces e nuances, é preciso ir além das
aparências e tentar compreender seus determinantes fundamentais. É essa a nossa meta
aqui. Ainda que não tenhamos a pretensão de esgotar plenamente o assunto, ao menos
tentaremos contribuir para os debates nesse campo.
Embora não seja uma tarefa fácil colocar lado a lado Lev Vigotski e Norbert Elias,
será o seu concurso que chamaremos em suporte a nossas reflexões, por entendermos que
ambos fornecem importantes contribuições para a compreensão da sociedade em geral e,
em particular, para a compreensão da posição dos indivíduos na sociedade e nas relações
de poder. Conquanto o objetivo aqui seja tratar da questão da exclusão, parece-nos
inevitável trazer algumas informações sobre as matrizes epistemológicas desses dois
autores.
Norbert Elias e Lev Vigotski viveram em tempos diferentes, apesar de terem seus
nascimentos tão próximos: Vigotski nasceu 1896 e morreu em 1934, enquanto Elias nasceu
em 1897 e morreu em 1990. Este último viveu muito mais e teve experiências mais
recentes, mais contemporâneas às nossas. No entanto, um e outro deixaram estudos e
conhecimentos que não podem ser desprezados por quem busca conhecer a sociedade do
ponto de vista sócio-antropológico; por quem quer compreender o homem em suas
relações concretas de vida social, no tempo e no espaço, portanto, na história da
humanidade.
Para Vigotski, judeu russo, cuja obra é marcada profundamente pela matriz
marxista, era preciso construir uma psicologia concreta do homem, ou seja, entender o
desenvolvimento humano mergulhado na história, no processo histórico. As funções
psíquicas são consideradas por ele de natureza social e cultural e o desenvolvimento dos
indivíduos caminha da socialização para a individualização de funções sociais. Perguntava-
se ele: como o coletivo cria as funções psicológicas propriamente humanas ou culturais? A
personalidade, segundo Vigotski, é o conjunto de relações sociais entre as pessoas como
membros de um grupo social definido e cria-se no coletivo (VIGOTSKI, 2000, p. 21-44).
Em seu texto “O significado histórico da crise da Psicologia: uma investigação
psicológica”, escrito em 1927, afirma que deseja aprender, na globalidade do método de
Marx, como é que se constrói a ciência, como se deve enfocar a análise da psiqué humana.
Deixa claro que não acreditava na possibilidade de construir uma psicologia concreta em
uma sociedade capitalista: “na futura sociedade, a psicologia será em realidade a ciência do
homem novo. Sem ela, a perspectiva do marxismo e da história da ciência seria
incompleta” (VIGOTSKI, 1991, p.406). Uma das marcas de Vigotski é o método por ele
adotado em seus estudos sobre o humano – o materialismo histórico-dialético.
Elias, também judeu, nascido na Polônia, que na época fazia parte do território
germânico, para a realização de sua tese sobre a vida na sociedade de corte francesa dos
séculos XVII e XVIII, foi orientado por Alfred Weber, irmão de Max Weber. Seria
possível dizer que Elias elaborou seus trabalhos em uma ampla perspectiva sociológica
sem deixar de admitir as influências que recebeu de muitos autores, entre eles: Sigmund
Freud, Alfred Weber, Karl Mannheim. Vivendo 93 anos, Elias escreveu obras que
caminham pela Sociologia, Psicologia, História, Ócio, Desportos, ou seja, por vias
interdisciplinares, adotando o método de análise histórica na elaboração de sua teoria, em
uma perspectiva de longa duração.
Trabalha as noções de indivíduo e de sociedade como processos interdependentes:
“a rede de interdependências entre os seres humanos é o que os liga. Elas formam o nexo
do que aqui é chamado configuração, ou seja, uma estrutura de pessoas mutuamente
orientadas e dependentes” (ELIAS, 1994a, p.249). E mais adiante acrescenta que o
conceito de configuração é mais apropriado e frutífero para esclarecer o que ele chama de
“sociedade”, exemplificando de forma um tanto poética: “as mesmas configurações podem
certamente ser dançadas por diferentes pessoas, mas, sem uma pluralidade de indivíduos
reciprocamente orientados e dependentes, não há dança” (p.250).
Voltemos agora para a nossa questão específica, objeto de reflexão neste texto: a
exclusão. Que contribuições trazem, se é que trazem, esses autores para o estudo e a
compreensão da problemática da exclusão e dos excluídos?
É preciso admitir, primeiramente, as diferenças fundamentais que caracterizam o
pensamento desses dois autores; por exemplo, as diferenças entre as fontes primárias
subjacentes às suas reflexões e elaborações e a natureza de suas abordagens na
compreensão do ser humano – em Elias, uma abordagem sociológica figuracional e em
Vigotski, uma abordagem histórico-cultural da psiqué – conforme se pode observar pelas
breves anotações que fizemos acima.
Também é preciso lembrar que Elias, apesar de não negar as contribuições de Karl
Marx para a compreensão dos conflitos de grupos, aceitando que um grande passo no
desenvolvimento da teoria sociológica foi dado com a constatação de Marx de que “os
conflitos não surgem da má vontade ou da fraqueza de caráter de um lado ou do outro, mas
de particularidades estruturais da sociedade em questão” (ELIAS, 2000, p.199-200), por
outro lado, não aceita que todos os conflitos sejam de classe e que as diferenças no jogo do
poder possam ser explicadas a partir do poder econômico. Essa é, em nossa opinião uma
diferença considerável entre o pensamento de Elias e Vigotski, uma vez que este não fazia
um uso esporádico dos pressupostos marxistas; pelo contrário, foi a obra de sua vida a
construção de uma psicologia marxista, a qual ele considerava que seria a “verdadeira
psicologia”. Não obstante, ambos podem sim contribuir para as análises sobre a questão da
exclusão. Senão, vejamos.
Em seu livro “Os estabelecidos e os Outsiders”, Norbert Elias (2000), usando uma
pequena unidade social como foco da investigação, explora as minúcias do que chama “a
sociodinâmica da estigmatização”, adotando um olhar microscópico para construir um
modelo explicativo de uma figuração universal. Considerada uma pesquisa etnográfica,
descreve uma comunidade da periferia urbana, na Inglaterra – Winston Parva (nome
fictício) –, onde passam a conviver dois grupos distintos: o que já ali vivia há muito tempo
e o que chega posteriormente e é estigmatizado como sendo composto por pessoas de
menos valor. Segundo o autor, “a possibilidade de um grupo afixar em outro um rótulo de
inferioridade humana e fazê-lo prevalecer era função de uma figuração específica que os
dois grupos formavam entre si” (p. 23 – grifos nossos). É essa justamente a característica
distintiva das análises de Norbert Elias, no tocante ao problema da exclusão: as relações
interdependentes estabelecidas entre os indivíduos dos diferentes grupos (ou sociedades)
definem diferentes configurações (quadros) sociais. Tais relações são entendidas como
“relações de poder”, não só no sentido de detenção dos meios de produção (ou poder
econômico), mas sobretudo como “diferenças no grau de organização dos seres humanos
implicados” (p. 21). Em Winston Parva,
era graças a seu maior potencial de coesão, assim como à ativação deste pelo
controle social, que os antigos residentes conseguiam reservar para as pessoas
de seu tipo os cargos importantes das organizações locais, como o conselho, a
escola ou o clube, e deles excluir firmemente os moradores da outra área, aos
quais como grupo, faltava coesão. Assim, a exclusão e a estigmatização dos
outsiders pelo grupo estabelecido eram armas poderosas para que este último
preservasse sua identidade e afirmasse sua superioridade, mantendo os outros
firmemente em seu lugar (p. 22).
Segundo o autor, não havia diferenças outras entre os membros dos distintos grupos –
raça, credo, nacionalidade ou classe social etc – que pudessem justificar a segregação a que
eram submetidas as pessoas do grupo considerado inferior. Apenas os distinguia o tempo
de residência junto àquela comunidade e, conseqüentemente, em parte como decorrência
dessa associação anterior, o nível de organização coletiva, de coesão e identificação, maior
entre os integrantes do grupo mais antigo. Quanto ao impacto de processos estigmatizantes
na constituição da personalidade dos outsiders, afirma Elias, mais adiante,
afixar o rótulo de “valor humano inferior” a outro grupo é uma das armas
usadas pelos grupos superiores nas disputas de poder, como meio de manter sua
superioridade social. Nessa situação, o estigma social imposto pelo grupo mais
poderoso costuma penetrar na auto-imagem deste último e, com isso,
enfraquecê-lo e desarmá-lo (p.24).
O sentimento de ser inferior vai sendo apropriado pelos membros do grupo
excluído, pela mediação de palavras ou termos que são simbolicamente depreciativos. No
jogo do poder, a opressão se dá no mundo inteiro. Vale assinalar, por exemplo, os pobres,
os negros, os deficientes, os homossexuais, os detentos, os portadores do vírus HIV... que
são considerados como tendo menor valor e são, em várias sociedades, desprezados e a
eles são imputadas culpas.
Norbert Elias considera que a estigmatização social não pode ser entendida como
posição individual de desapreço e nem ser tratada como simplesmente preconceito social
buscado na personalidade de indivíduos. Em nossa opinião, é essa a maior contribuição
desse autor, no que tange ao objeto de reflexão aqui tratado: colocar o problema da
exclusão para além dos preconceitos individuais – concepção que muitas vezes é veiculada
nos meios de comunicação e mesmo em documentos e discursos oficiais (quer dizer, de
acordo com os termos de Elias, pelos grupos estabelecidos). Segundo o autor, “a chave do
problema [...] só pode ser encontrada ao se considerar a figuração formada pelos dois (ou
mais) grupos implicados ou, em outras palavras, a natureza de sua interdependência” (p.
23 – grifos nossos).
Em síntese, Elias, no livro ao qual vimos nos referindo, localiza o problema da
exclusão no âmbito mais amplo das relações inter grupais e não no âmbito das relações
inter individuais. Esse é um ponto fundamental a ser considerado quanto se quer atingir o
entendimento dessa questão em sua essência.
Passemos agora às possíveis contribuições de Lev Vigotski ao nosso assunto. Esse
autor não escreveu um livro dedicado à exclusão, mas deixa marcada sua posição a esse
respeito em sua perspectiva histórico-cultural do desenvolvimento humano, cuja matriz
marxista determina sua luta política contra os problemas da sociedade soviética, no seu
tempo, após a Revolução de 1917.
Vigotski propôs-se a reformular a psicologia de sua época a partir dos fundamentos
marxistas e a desenvolver caminhos para superar as dificuldades que enfrentava a União
Soviética pós-revolução: alta taxa de analfabetismo; orfandade; diferenças culturais entre
nações com distintos graus de desenvolvimento em seus modos de produção; carência
absoluta de serviços para atender aos cegos, surdos, deficientes mentais e físicos
(BLANCK, 1984). Cremos ser possível afirmar que, coerente com os pressupostos do
marxismo, Vigotski considerava que o acesso de todos aos bens materiais e culturais da
humanidade só poderia acontecer em uma nova organização da sociedade: prevista,
planejada, almejada sob um outro ponto de vista – o da sociedade socialista. Ou seja, que a
superação da exclusão viria, não pela via da inclusão das pessoas excluídas no modelo
capitalista, mas pela via das transformações sociais mais profundas.
Não é possível compreender a possibilidade desse nosso raciocínio sem recorrer a
uma análise do conceito de exclusão na obra de Marx, trabalho que encontramos
minuciosamente realizado no livro “Marx e a exclusão”, de Avelino da Rosa Oliveira
(2004). De acordo com esse autor, embora o termo exclusão conste já nas primeiras obras
de Marx, como conceito está mais finamente elaborado nos seus últimos escritos,
sobretudo n’O Capital. Diz Oliveira:
a leitura sistemática e aprofundada da teoria de Karl Marx tem a capacidade de
desocultar os determinantes da exclusão, demonstrando que a exclusão está
incluída na lógica do capital, ou ainda, dizendo de outra maneira, que o círculo
entre exclusão e inclusão subordinada é condição de possibilidade dos
processos de produção e reprodução do capital (p. 23-24 – itálicos do autor).
Vemos, desse modo, porque Oliveira diz que “exclusão e inclusão subordinada são
as duas faces da mesma medalha, ou melhor, da mesma moeda” (p. 97 – itálicos do autor).
Podemos ver, também, o fenômeno da exclusão revelado em sua essência, desmistificado,
desvelado da aparência que, no senso comum, era entendida como essencial. E ainda,
podemos entender porque afirmamos anteriormente que, a julgar pelos pressupostos
marxistas que embasam as reflexões de Vigotski, para esse autor, a superação da exclusão
não se dará pela inclusão dos excluídos no modelo social capitalista – pois, como nos
mostrou Oliveira, isso já ocorre, de acordo com a lógica da reprodução do capital – mas
pela superação dessa sociedade - através de profundas transformações.
Últimas palavras
Abstract
In this paper we point to the contributions of Lev Vigotski and Norbert Elias for the debate about
social inclusion/exclusion. As a starting point, we consider the commonsense notion of exclusion:
What is exclusion? Who are the so called excluded? Then, we place the discussion in the present
economic, social and political context, in Brazil and in the world, in an attempt to understand the
issue of inclusion and/or exclusion in a capitalist, neo-liberal and globalized society. Next, we
allude to the two authors, with the belief that, despite differences between their epistemological
assumptions, they can illuminate certain aspects of this issue. Among the main contributions that
they bring, we emphasize the understanding of the individual as a being constituted in social
interrelationships, and the approach to exclusion as a problem that is located beyond the
individualities; thus it cannot be solved through the elaboration of a few official policies, on the
contrary, it demands deep transformations of society.
Key words: Social exclusion; Lev Vigotski; Norbert Elias
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