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2.

A exclusão e suas múltiplas faces

O tema “inclusão social” ganhou destaque nas últimas décadas e passou a


figurar em discursos, projetos, falas oficiais e da sociedade civil. Observando esta
tendência, somos conduzidos a uma proposição simples: se torna-se necessário
falar em inclusão social é porque há excluídos. Daí emerge então uma pergunta, já
não tão simples de responder: por que há excluídos?

Na busca de respostas, fazemos o caminho inverso, mapeando as origens


deste problema social e buscando compreender como ele se dá. Assim,
acreditamos, estaremos nos capacitando a pensar caminhos que possam favorecer
a inclusão, uma vez que a indagação que move nossa pesquisa é: que
transformações, no sentido de inclusão, estariam ocorrendo – no âmbito pessoal,
familiar, social, econômico – no cotidiano de indivíduos que têm participado de
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atividades culturais, especialmente ligadas ao cinema?

Como o objeto primeiro de nossa pesquisa não são os processos de exclusão


em si, mas investigar métodos para superá-los ou minimizá-los pelo acesso à
informação, à educação, aos bens culturais como um todo e mais especificamente
ao cinema e ao audiovisual, não nos propomos a realizar neste capítulo uma
análise profunda da questão. O que buscamos é lançar um olhar sobre as situações
de exclusão/inclusão, valendo-nos das perspectivas teóricas de pesquisadores,
bem como de relatos de jornalistas e escritores, e de nossas próprias observações
do cotidiano, especialmente dos dados observados no campo. Esses discursos
revelam diferentes pontos de vista, são tocados por diferentes percepções,
diferentes sensibilidades, muitas vezes inspirados e alimentados uns pelos outros,
gerando um diversificado e provocador universo de ideias, teorias e proposições.

2.1.
Exclusão, um processo multidimensional

Aldaíza Sposati considera que os conceitos de inclusão e exclusão se


caracterizam por sua fluidez, o que leva a diferentes interpretações. Deste
modo,ocorre com frequência uma banalização destes conceitos, minimizando sua
gravidade e escamoteando-se sob eles questões éticas, como o “aviltamento do
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estatuto universal da condição humana” (Sposati, 1998, p.3). Esta banalização,


segundo a autora, decorre de uma equivocada interpretação: os conceitos de
exclusão/inclusão estariam sendo interpretados como substitutos dos conceitos de
opressão, dominação, exploração, subordinação. Seria uma “mera modernização
da definição de pobre, carente, necessitado, oprimido” (Sposati, 2006, p.2).
Contudo, a questão envolve aspectos menos óbvios que sua relação com a pobreza
ou o desemprego.

Este caráter multifacetado dos processos de exclusão é também abordado


por Rogério Roque Amaro (2000). Amaro identifica seis dimensões principais nas
quais a exclusão se manifesta, considerando que estar excluído pressupõe não
participar plenamente da sociedade, em seus diferentes níveis de organização:
ambiental, cultural, econômico, político e social. Assim, segundo Amaro, se o
indivíduo é fragilizado em sua dignidade e autoestima, sofre a exclusão do “ser”;
se está apartado das “redes de pertença social”, seja família, vizinhança ou outras,
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sua exclusão se dá na dimensão do “estar”. Está excluído do “fazer” quando não


tem acesso ao emprego, ao trabalho (remunerado ou não), e do “criar” quando
impedido de concretizar projetos, inventos. A exclusão do “saber” ocorre pela
falta de acesso à informação (escolar ou não), que o capacitem a tomar decisões e
ter consciência crítica. Finalmente, a exclusão do “ter” refere-se ao aspecto do
consumo, inclusive à capacidade de estabelecer prioridades nessa área.

Amaro destaca que em todos estes níveis de exclusão, em decorrência da


importância que a dimensão econômica assumiu nas sociedades industriais,
encontramos fatores econômicos, sejam no âmbito global, sejam no âmbito local
ou nas trajetórias individuais. Sposati (1998) também aponta o modelo econômico
dominante após a segunda metade do século XX – o neoliberalismo (que
abordamos mais detalhadamente adiante)– como fator decisivo, embora não
único, para o recrudescimento dos processos de exclusão.

Giuliana Leal (2008) evidencia e analisa a existência de múltiplas


concepções acerca do que se entende por exclusão social e a aplicação nem
sempre adequada do conceito, por vezes transformado até mesmo num modismo.
Entretanto, observa que estas diferentes visões têm em comum a referência à
vulnerabilidade e à limitação de acesso às conquistas sociais. A autora vê a
15

exclusão social dentro de um “conjunto temático” do qual fazem parte


“desigualdade, pobreza, impedimentos à realização da cidadania” (Leal, 2008,
p.7). Leal menciona ainda teorias (especialmente as formuladas por autores que
vivenciaram os horrores praticados pelo nazismo, como Hannah Arendt) que vão
a camadas mais profundas, concebendo a exclusão num contexto extremo, quando
o indivíduo perde a identificação como um ser pertencente à Humanidade.

Algumas definições do problema da exclusão social e delimitações dos grupos


excluídos mostram o caminho percorrido da quebra de vários tipos de laços (mas
principalmente o econômico, dado pelo trabalho e, associadamente, pelo consumo)
até a ruptura desse laço final da humanidade, a qual permite, em última instância,
que pessoas passem a ser vistas como descartáveis. (Leal, 2008, p.100)

Jurandir Freire Costa também aborda esta quebra dos laços de


pertencimento à condição humana. Freire Costa observa que a exclusão não se dá
necessariamente pelo uso da força e destaca a existência de uma violência sutil,
não menos danosa, que também promove processos de exclusão. Trata-se do
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alheamento em relação ao outro, que assim deixa de ser reconhecido como um


semelhante. Embora não se caracterize por atitudes agressivas, pelo ódio ou
rivalidade, o alheamento é uma atitude de distanciamento que gera a
“desqualificação do sujeito como ser moral” (Costa, 2001, p.81), ou seja, não
merecedor de respeito. Esta atitude é de tal forma naturalizada que seu agente não
se vê como violento e enxerga o outro apenas como “suporte dos objetos ou
predicados desejados, e o que quer que lhe aconteça é igualmente irrelevante...”
(Costa, 2001, pp.81-82).

Não só os conceitos acerca do que é exclusão, mas a própria expressão


“exclusão social” tem sido objeto de diferentes interpretações e de
questionamento. O professor Jailson de Souza e Silva, fundador e membro do
Observatório de Favelas1, num texto em que analisa a cobertura jornalística sobre
a violência e o olhar da mídia sobre os moradores de favelas, diz:

1
Criado em 2001, o Observatório de Favelas é desde 2003 uma organização da sociedade civil de
interesse público (OSCIP), com sede na Maré (RJ), mas sua atuação é nacional.
http://www.observatoriodefavelas.org.br/observatoriodefavelas/home/index.php - acesso em
10/01/11
16

Outra expressão depreciativa é o termo exclusão social. Existe a exclusão adjetiva:


do mercado de trabalho formal, dos cursos mais procurados das universidades, do
acesso ao computador. Mas quando se fala em exclusão social, mais uma vez
transforma-se em substantivo o que é adjetivo. Como se o cidadão pobre estivesse,
na sua totalidade, excluído da ordem social e dos seus direitos. Esta denominação
retira do pobre a sua condição de cidadania, desvaloriza as suas estratégias
cotidianas para se inserir e viver na cidade. Não partilho dessa visão. Concebo a
cidadania como ponto de partida e não como ponto de chegada. Todos somos
cidadãos, a partir de nosso ingresso no mundo, na realidade social, ainda que o
Estado não seja capaz de atender às necessidades do conjunto social, em função de
sua estrutura socioeconômica e da forma com que se organizou historicamente.
(Silva, 2007, pp.94-95)

Esta reflexão casa-se com um ponto crucial abordado por Aldaíza Sposati: o
significado que a exclusão tem para o sujeito. Segundo a autora, a exclusão social
caracteriza-se pela discriminação e atribuição de estigmas e, sendo assim, “seu
exame envolve o significado que tem para o sujeito, ou para os sujeitos, que a
vivenciam” (Sposati, 2006, p.2). Pode-se, a partir daí, pensar algumas questões:
Sentem-se os “excluídos”, excluídos? Que dimensão têm dessa classificação?
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Consideram-se cidadãos? Valorizam suas “estratégias cotidianas para se inserir e


viver na cidade”?

Tais concepções e possibilidades nos posicionam num outro ângulo, ao


olharmos os processos de exclusão. É fundamental, por exemplo, observar as
transformações ocorridas no mundo na pós-modernidade. Ainda que não se trate
de um fenômeno social típico da contemporaneidade, já que acompanha o modelo
de produção capitalista desde seus primórdios, foi nas últimas décadas que a
exclusão social assumiu novas formas, novas dimensões e se fez presente de
modo mais contundente. Aldaíza Sposati, observando que o conceito de exclusão
social surge reforçado quando da ocorrência de uma recessão econômica e social,
afirma que “a lógica excludente, inerente à produção capitalista, ganha novos
contornos e se torna uma questão social, cultural e ética” (Sposati, 2006, p.2). A
autora vê a exclusão social, ao final do século XX, assumindo o caráter de um
“conceito/denúncia” (Sposati, 1998, p.2), em função da configuração de uma
sociedade onde o papel do Estado é enfraquecido.

Este apagamento ou enfraquecimento do Estado transfere a outras


instâncias parte do seu papel de traçar e administrar os rumos da sociedade, o que
implica dizer, o poder. Segundo Michel Foucault (1979), o poder é um exercício
17

que requer uma correlação de forças, está infiltrado mesmo nas relações pessoais.
Não é uma realidade que possua uma determinada natureza e não é caracterizado
por regras universais. O autor vê o poder para além do “esquema economicista”
(Foucault, 1979, p.176), não estando, portanto, necessariamente associado ao
Estado nem restrito às relações entre os donos dos meios de produção (capital) e a
massa trabalhadora (como na concepção marxista). Foucault entende também que
as relações de poder vão além das relações de força, das guerras. E não cessam
com o fim dos conflitos armados. Diz ele:

E se é verdade que o poder político acaba a guerra, tenta impor a paz na sociedade
civil, não é para suspender os efeitos da guerra ou neutralizar os desequilíbrios que
se manifestaram na batalha final, mas para reinscrever perpetuamente estas
relações de força, através de uma espécie de guerra silenciosa, nas instituições e
nas desigualdades econômicas, na linguagem e até no corpo dos indivíduos.
(Foucault, 1979, p.176)

O pensamento de Foucault é, de certo modo, a releitura de um status


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definido pelo escritor russo Leon Tolstoi, quase um século antes:

O poder governamental, mesmo que faça desaparecer as violências internas,


sempre introduz na vida dos homens novas violências, cada vez maiores em razão
de sua duração e de sua força. De modo que, se a violência do poder é menos
evidente do que a dos particulares, porque se manifesta não pela luta, mas pela
opressão, ela, não obstante, existe, e com maior frequência num grau mais elevado.

E não pode ser diferente, porque além do fato de que o poder corrompe os homens,
os cálculos ou a tendência constante daqueles que o detêm terão sempre por
objetivo o máximo enfraquecimento possível dos violentados já que, quanto mais
estes estão fracos, menos esforços são necessários para dominá-los. (Tolstoi,
[1894], 1994, p.172)

Foucault (1979) propõe dois sistemas para analisar os mecanismos do


poder: um representado pelo esquema “contrato-opressão” e outro pelo esquema
“guerra-repressão” ou “dominação-repressão”. No primeiro, o poder é
considerado como “direito originário que se cede” e que, ao se exceder, ao romper
os limites do contrato que o rege, pode tornar-se opressivo. No segundo, já não se
tem mais a violação de um contrato, um abuso dos limites do poder, mas a
“continuação de uma relação de dominação” ou, nas palavras de Foucault, “a
repressão seria a prática, no interior desta pseudo-paz, de uma relação perpétua de
força” (Foucault, 1979, p.177). Este último mecanismo caracteriza-se, segundo o
18

autor, pela oposição entre luta e submissão, onde se descortina a tentativa de um


controle social.

Tanto Tolstoi como Foucault falam de distintos tipos de violência no


exercício do poder e as palavras e expressões usadas pelo filósofo francês nos dão
pistas para o entendimento dos processos de exclusão social que vimos analisando
neste Capítulo. O autor faz referências a situações como: “guerra silenciosa”,
“desigualdade econômica”, “desequilíbrio”, “dominação”, “relação perpétua de
força”, “luta e submissão”. De fato, pode-se afirmar que os processos de exclusão,
sejam quais forem, articulam-se com o exercício do poder, este poder de que nos
fala o autor, que é imanente e que ele classifica como “microfísico” (Foucault,
1979).

Esses processos de exclusão tanto podem estar assentados em práticas


violentas, como no alheamento citado por Jurandir Freire Costa (2001, p.81), mas
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também na apropriação do discurso e das “verdades” por meio dele proferidas, ou


seja, no poder que emana de e que realimenta o discurso. Analisando
procedimentos de controle e delimitação do discurso (como a interdição),
Foucault (1996, p.21) os associa a sistemas de exclusão e considera ainda que “o
discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou os sistemas de
dominação, mas aquilo por que, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos
apoderar” (Foucault, 1996, p.10).

Essa perspectiva de poder e controle articulados ao domínio do discurso


aplica-se particularmente às sociedades contemporâneas, que marcham ao ritmo
dos tambores da globalização e do neoliberalismo e que têm acesso a uma
avançada tecnologia dos meios de comunicação. Há uma profusão de “discursos
verdadeiros” e as possibilidades de estimular, induzir desde determinados
comportamentos cotidianos (“O que cantar, como andar, onde ir, o que dizer, o
que calar, a quem querer”, como na música de Gilberto Gil)2, até modos de ver o
mundo, estabelecer parâmetros, escalas de valores, são cada vez maiores. Vemos
aqui a submissão de que fala Foucault, em oposição à luta, num ambiente de
“pseudo-paz”.

2
Preciso aprender a só ser - http://www.gilbertogil.com.br/sec_disco_interno.php?id=51 – acesso
05/09/11.
19

É inquestionável que não há apenas cumplicidade e passividade por parte


daqueles que recebem as mensagens, os receptores. Há também “resistência e
réplica”, como afirma Jesús Martín-Barbero (2002, p.112), mas para que esta
resistência e esta réplica ocorram, é necessário haver acesso à informação, à
cultura em sua diversidade, à educação, enfim, àquela dimensão da vida em
sociedade que Amaro chama de dimensão do “saber”. E tendo este repertório de
respostas, a partir de suas próprias vivências e de seu aprendizado, é necessário
ainda que o receptor tenha espaço para se manifestar, constituindo-se também
como emissor. Neste aspecto, as novas tecnologias vieram contribuir
grandemente, e mesmo viabilizar a produção e compartilhamento de conteúdos
gerados por coletivos organizados que agregam representantes de diferentes
setores, como líderes comunitários, moradores, agentes culturais, profissionais do
meio acadêmico, permitindo troca de experiências e saberes3.
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2.1.1.
Os processos de exclusão e a pós-modernidade

No mundo pós-moderno, a liberdade, a garantia dos direitos civis, a


despeito dos avanços sociais e políticos, mesmo nos países mais desenvolvidos do
Ocidente, parece estar em permanente tensão ou permanentemente ameaçada por
essa “guerra prolongada e silenciosa” de que fala Foucault. Vemos na mídia
notícias cada vez mais frequentes sobre manifestações populares protestando
contra o desemprego, a perda de garantias previdenciárias, os altos preços dos
alimentos, as deficiências na saúde, na educação, no transporte. Por outro lado, o
mundo vem sendo sacudido por sucessivas rebeliões, líderes são derrubados,
novos grupos, geralmente assessorados por interesses externos, tomam o controle

3
No capítulo 2 abordamos mais detidamente a questão do acesso ao discurso, da posse da
linguagem e a mídia alternativa, representada por blogs, websites, rádios comunitárias, revistas e
jornais impressos, etc,, no contexto das novas relações sociais e das novas tecnologias.
20

de nações4. Os mapas vêm sendo modificados para acomodar novas configurações


das fronteiras que separam os países, os grupos étnicos5.

A passagem do século XX para o XXI apresenta-se não como uma época de


mudanças apenas, mas como uma mudança de época, tal o impacto que o avanço
tecnológico – em todas as áreas, da informação à indústria bélica - vem
provocando no cotidiano dos indivíduos. Além dos discursos dos teóricos e
pesquisadores, obras de ficção na literatura, teatro e cinema, repercutem a
fragilidade das relações humanas e das instituições, a fragmentação das
identidades, a vida migrando de um plano real para um plano virtual. As novas
tecnologias trazem indiscutíveis benefícios, como a capacidade de informar,
educar, divertir, mobilizar pessoas em torno de causas humanitárias e lutas pela
democracia6, contudo, elas são frequentemente vistas como um fim em si mesmo
e não como meios para a construção de uma vida mais solidária, mais
compartilhada, mais produtiva. Paradoxalmente, aproximam quem está longe e
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não raro distanciam quem está perto.

Não se trata de demonizar os avanços tecnológicos, especialmente na área


de comunicação e informação, ignorar as inúmeras vantagens que trazem, e a eles
imputar a causa de todas as mazelas sociais da contemporaneidade, mas estar
atentos para que seu uso se dê de modo consciente. O que é passível de crítica não
é a tecnologia em si, mas quando é usada, por exemplo, para a criação de
necessidades que levam a um consumo compulsivo, com consequências danosas
não apenas para o indivíduo, mas também para o meio ambiente, seja pelo uso
irresponsável dos recursos naturais, seja pela produção cada vez maior de
resíduos.

A criação de avatares, múltiplos perfis em redes sociais, os canais de chat,


vídeos, geram uma intensa movimentação no mundo virtual. Se por um lado há

4
Diversas manifestações populares ocorreram em 2011: no Oriente Médio e norte da África, o
movimento batizado de Primavera Árabe resultou na deposição de antigos regimes. Em vários
países da Europa a população também foi às ruas protestar contra o modelo econômico.
5
Exemplos dessas mudanças são a divisão da Iugoslávia (um processo marcado pela violência,
que se estendeu de 1990 a 2003) e da Tchecoslováquia (1993), que deram origem a outras nações,
repúblicas, territórios autônomos.
6
A revolta civil no Egito (fevereiro/2011) conseguiu mobilizar milhões de pessoas usando a rede
mundial de computadores - http://www.revistaforum.com.br/blog/2011/02/17/internet-foi-
fundamental-na-revolucao-contra-mubarak/ - acesso em 21/02/11
21

maior facilidade de comunicação entre as pessoas, não importa quão distante


geograficamente estejam umas das outras, ocorre também que, para muitas delas,
a vida passa a fluir mais intensamente nas telas dos aparatos tecnológicos do que
no próprio cotidiano. Compelido a ficar conectado com o “mundo” 24 horas por
dia, o sujeito pós-moderno frequentemente mergulha numa “vida online”,
enquanto a “vida offline” acontece à sua volta. A velocidade passa a ser um
elemento valioso: privilegia-se a quantidade - de horas conectado à internet, de
minutos necessários para um download ou os oferecidos pelo plano de telefonia
celular -, deixando em segundo plano a qualidade do que é trocado, conversado,
informado, apreendido, durante a conexão.

Gilles Lipovetsky (2007) aborda esta fragilidade nas trocas, esta


efemeridade, e vê no comportamento compulsivo desses indivíduos a busca de
uma “felicidade paradoxal”. Observando criticamente novos hábitos consumistas
que, segundo algumas teses (para ele equivocadas), estariam provocando uma
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mudança radical na lógica de consumo, o autor acredita que está cada vez mais
arraigado o princípio da individualidade:

O efêmero recua? O ciclo de vida dos produtos não cessa de diminuir. O fato de se
desenvolverem os setores da educação, das viagens, da comunicação, do bem-estar
corporal e mental significa que o fútil ficou para trás? Não é o que realmente
sugerem os jogos de vídeo, os chats, os disfarces eletrônicos do Eu, a necessidade
de comunicar-se por comunicar-se...(Lipovetsky, 2007, p.125)

Vemos um panorama em que o efêmero substitui o permanente, o mutável


substitui o estável. Contudo, paradoxalmente, a efemeridade dos laços,
instituições, relacionamentos associa-se ao sentimento de uma juventude eterna,
um eterno presente. Deste modo, numa sociedade que cultua a aparência e o vigor
físico como fatores essenciais à felicidade, facilmente erguem-se muros que
segregam as pessoas também em função da idade, revelando uma nova face da
exclusão. Assim, ser um veterano pode significar estar fora do “clube”, ser
ultrapassado, antiquado, sem valor e passível de descarte. Para ser aceitável – e
neste ponto entra o interesse econômico, já que o segmento de idosos aumenta a
22

cada dia e detém considerável poder de compra - é preciso dar novos nomes à
chamada terceira idade, é preciso criar eufemismos, como “melhor idade”7.

Este é um ponto também abordado por Lipovetsky, que lança um olhar


crítico sobre a suposta inclusão dos idosos na sociedade contemporânea.
Referindo-se ao mercado consumidor representado pela terceira idade, ao qual são
oferecidos mais e mais produtos, o autor alerta para a necessidade de não se
confundir a lógica comercial com a vida cotidiana, ou seja, “se é verdade que a
época do ostracismo dos ‘velhos’ está terminada, isso não significa de modo
algum que o juvenilismo se desvanece” (Lipovetsky, 2007, p.124). Ou seja, como
num mundo que gira em ritmo frenético não se valorizam mais as experiências
vividas, o saber acumulado, a memória, o idoso será bem vindo ao “clube” desde
que venha na condição de consumidor.

A pós-modernidade apresenta-se, assim, como um universo tecnológico


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onde o ritmo veloz de textos, imagens, dos relacionamentos, não favorece a


criação de espaços para a reflexão, para aprofundar, lapidar as relações. Mesmo a
notícia vira entretenimento, uma encenação da realidade, e a opinião privada
assume o papel de opinião pública, como descreve Marilena Chauí. Segundo a
autora, os noticiários de rádio e TV mais desinformam que informam e “as
notícias são apresentadas de maneira a impedir que o ouvinte e o espectador
possam localizá-la no espaço e no tempo” (Chauí, 2006, p.45). Embora o volume
de informação veiculado pelas diversas mídias seja infinitamente maior do que há
algumas décadas, essa massa de dados caracteriza-se pela atopia (ausência de
referência espacial) e pela acronia (ausência de referência temporal) (Chauí,
2006, pp.45-46). Deste modo, a noção de proximidade é deformada, fazendo com
que tragédias acontecidas em outros países (como o ataque às torres gêmeas)
causem grande comoção quando mostradas na TV, enquanto tragédias cotidianas
(como os sem-teto, nas grandes cidades) passem despercebidas. Do mesmo modo,

7
Para Pierre Bourdieu, somos sempre o jovem ou o velho em relação a alguém e estas categorias
historicamente estão relacionadas à transferência de poder. Juventude e velhice seriam construções
sociais decorrentes da disputa entre os jovens e os velhos. A ‘juventude’ é apenas uma palavra é o
título de um artigo de Bourdieu, que gerou, em resposta, o texto A juventude é mais que uma
palavra, no qual os autores Mario Margulis e Marcelo Urresti questionam a abordagem do
sociólogo francês. http://pt.scribd.com/doc/16677551/Pierre-Bourdieu-A-Juventude-e-apenas-
uma-palavra e http://www.n-a-u.org/pontourbe01/PEREIRA-a-2007.html - acesso em 05/01/12
23

a relação com acontecimentos anteriores é ignorada, como se os fatos noticiados


não tivessem uma trajetória no tempo, origens e consequências.

Guy Debord (2003) definiu essa sociedade como “A Sociedade do


Espetáculo”, onde já não se busca tanto ser e nem apenas ter, mas parecer; onde a
representação substitui as vivências num jogo de faz-de-conta que ultrapassa os
limites do lúdico. Segundo Debord, “Toda a vida das sociedades nas quais reinam
as condições modernas de produção se anuncia como uma imensa acumulação de
espetáculos. Tudo o que era diretamente vivido se esvai na fumaça da
representação" (2003, p.8).

Este cenário irá impactar particularmente o jovem, não apenas por sua
condição biológica/emocional – um ser ainda em construção, em processo de
amadurecimento – mas por ser ele o principal alvo da mídia. Campanhas
publicitárias investem em segmentos cada vez mais jovens8, por motivos óbvios:
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além de mais suscetíveis aos apelos da propaganda, eles continuarão consumindo


por muitos anos. Assim, as estratégias de marketing buscam criar hábitos de
consumo, sedimentar um padrão de comportamento direcionando-o para
determinados produtos diante dos milhares oferecidos à sociedade. Neste ponto, é
relevante destacar que, ao contrário do que o senso comum crê, exclusão e
pobreza não andam necessariamente de braços dados. Assim, às dimensões de
exclusão/inclusão analisadas até aqui, acrescenta-se outra, observada num
segmento social insuspeito à primeira vista: as classes média e alta.

Sandra Korman Dib, em sua pesquisa Juventude e Projeto Profissional: a


construção subjetiva do trabalho (2007), traça um painel onde se pode observar
como mesmo as classes mais favorecidas (o universo pesquisado é de jovens
universitários de classe média e alta) estão sujeitas a processos de exclusão –
ainda que sob outros nomes - decorrentes principalmente das transformações e das
novas relações que se estabeleceram no mundo do trabalho nas últimas décadas.

8
Restrições na publicidade para crianças vêm sendo discutidas, com Projetos de Lei tramitando no
Congresso -
http://alinecorrea.com.br/noticias/101/2010/08/30/Deputada_Aline_Correa_sugere_proibir_propag
anda_para_crianca (matéria de 30/08/10) acesso em 05/08/11.
O Instituto Alana realiza pesquisas sobre a influência das propagandas sobre as crianças:
http://www.alana.org.br/banco_arquivos/arquivos/docs/educacao/palestras/a-ilegalidade-da-
publicidade-dirigida-a-crian%C3%A7a.pdf - acesso em 05/08/2011
24

Tais transformações exigem uma revisão de conceitos, como avalia a


pesquisadora:

Nesta nova configuração das relações sociais e de produção torna-se necessário


contextualizar alguns conceitos-chave e também atualizar os parâmetros de
reconhecimento dos seus possíveis impactos, especialmente no caso do
desemprego, sobre diferentes grupos de sujeitos. Se há uma patente desigualdade
em relação ao acesso aos bens, aos recursos educacionais, às informações e às
oportunidades nas diferentes classes sociais, cabe questionar se os jovens “em
vantagem” podem ser considerados incluídos. Pode o efetivo acesso a bens e
recursos, por si só, traduzir as possibilidades de inclusão de jovens que, com o
passar dos anos, deixam de questionar como conseguir emprego e trabalho e
passam a adotar a postura do não saber o que desejam? Para tanto, o conceito de
exclusão, fortemente vinculado a essa questão, necessita ser atualizado, dado que
não parece abarcar os jovens “em vantagem” social (Korman Dib, 2007, p.99).

A autora sinaliza a existência de diferentes posições teóricas acerca desta


questão: enquanto para alguns autores há um novo tipo de exclusão, outros
entendem que se trata da mesma exclusão, apenas estendida a outros segmentos
da sociedade. Antes resguardados por uma ordem sócio-econômica, que já não
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tem hoje os mesmos alicerces, estes segmentos encontram-se numa situação de


vulnerabilidade social.

Entendendo a exclusão como um processo, podemos dizer que, em certos


casos, a vulnerabilidade é o primeiro estágio, ou o primeiro degrau de uma
descida rumo a patamares mais baixos na sociedade. Sandra Korman Dib e
Giuliana Leal têm opiniões convergentes neste aspecto. Leal acredita que a
vulnerabilidade social é “uma noção importante na temática da exclusão, seja
como elemento participante da configuração da noção de exclusão social, seja
concebida em destaque...”. (Leal, 2008, p.139). Para a autora:

Ao se pensar a exclusão social como quebra e principalmente como fragilização de


laços sociais, o que está em questão são sobretudo processos [...]. Nesses
processos, as pessoas, famílias e/ou grupos sofrem vulnerabilização, isto é, vão se
tornando mais frágeis frente aos riscos de descenção e isolamento social, e cada
vulnerabilidade as torna mais suscetíveis a novas outras. (Leal, 2008, p.139)

Korman Dib, por sua vez, vê o conceito de vulnerabilidade social como uma
alternativa ao de exclusão, configurando-se numa zona intermediária, de caráter
movediço, onde não há fronteiras rígidas, entre a exclusão e a integração:
25

... o entendimento da noção de vulnerabilidade social pode ser apresentado como


um importante condutor para a apreensão do conjunto de significados e sentidos
envolvidos no processo de inserção e desenvolvimento profissional dos jovens no
contemporâneo.

No Brasil a vulnerabilidade social, segundo Cunha et al (2003), tem na


precariedade e na instabilidade do trabalho as suas principais fontes. A essas fontes
se juntam o retraimento do Estado e o enfraquecimento das instituições sociais.
Para o autor, a vulnerabilidade social pode ser identificada na debilidade dos
mercados de trabalho; no trabalho assalariado precário; na quantidade de
trabalhadores sem seguridade social e empregos de baixa qualidade; na pobreza e
indigência crescentes; na deteriorização dos indicadores distributivos; no processo
incompleto na equidade de gênero; e as classes médias também são atingidas pela
queda no bem-estar. (Korman Dib, 2007, p.118).

Nos relatos dos jovens entrevistados pela pesquisadora, é recorrente a


referência à perda de um certo padrão de vida, um rebaixamento econômico e
social, em decorrência de problemas associados ao trabalho dos pais. Este
“deslocamento social” (Korman Dib, 2007, pp. 109-110) gera uma instabilidade
na família, uma situação de vulnerabilidade que irá impactar duramente a postura
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do jovem diante da vida profissional que se descortina ao fim de seu curso


universitário, e mesmo seu posicionamento no mundo adulto. As incertezas
diante do futuro, reforçadas pela mídia, tornam este jovem um “incluído
provisório” (Korman Dib, 2007, p.106). A exclusão passa a ser uma ameaça, um
perigo à espreita.

Reportando-se ao pensador Gilberto Dupas, a autora faz referência a um


caráter disciplinador do desemprego, já que corroi a força reivindicatória dos
sujeitos, ameaçados pela instabilidade do mercado de trabalho. No caso dos
jovens pesquisados, a autora crê que “poderia se aventar que o que estaria em
risco não seriam as suas reivindicações propriamente ditas, mas sim o apagamento
delas, ou seja, dos planos e ensejos de realização futura” (Korman Dib, 2007,
p.86). Olhando desta perspectiva, cabe indagar se para esse jovem - sujeito a um
sentimento de vulnerabilidade diante do perigo iminente de se ver excluído da
classe social na qual se reconhece - o presente eternizado no mundo virtual
poderia estar se convertendo num meio para fugir de (ou ao menos ignorar) um
futuro nada promissor, onde não se descortinam vivências que justifiquem
comprometimento, experiências pelas quais valha a pena se engajar.
26

Esta renúncia a planos e desejos de realização profissional e pessoal, seja


qual for a classe social do indivíduo, não fica impune. Frequentes são os relatos,
científicos ou não, que dão conta de um aumento de doenças da psique, como
ansiedade, pânico e depressão, entre jovens e adolescentes. O psicanalista Esio
dos Reis Filho analisa estes estados de desconforto e a dificuldade de lidar com
eles, na atualidade, referindo-se a uma situação marcada pelo desamparo e falta de
garantias:

Esse "mal-estar", não podendo ser curado, deverá ser permanentemente gerenciado
pelo sujeito. A cultura de cada época e de cada lugar fornecerá o instrumental,
tanto extra como intra-psíquico, para que o sujeito realize esse gerenciamento.
Penso que o surgimento na atualidade, tanto de quadros depressivos quanto de
pânico, está na dependência do gerenciamento desse "mal-estar" constitutivo da
civilização.

A pós-modernidade [...] não tem sido pródiga em propiciar ao sujeito da atualidade


um instrumental eficaz para esse gerenciamento, dificultando a estruturação de um
aparelho psíquico bem integrado, com boa capacidade de simbolização. A vivência
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de desamparo e de falta de garantia vai, então, tomando corpo de forma


avassaladora: basta vermos as manchetes dos jornais, nestes tempos tenebrosos de
obscurantismo, fundamentalismos, violência predatória dos mais fortes sobre os
mais fracos, paroxismos de destrutividade estremecendo o planeta. (Filho, 2001)

Para Korman Dib, a insegurança dos jovens e mesmo seu desencanto com
relação a uma carreira que traga realização profissional e pessoal originam-se
desse panorama atual e também da trajetória do estudante na instituição
universitária. Se nas sociedades modernas o trabalho está associado ao sujeito de
tal forma que se cola à sua identidade, a integração desse sujeito no meio social
passa por seu papel na cadeia produtiva, por seu sucesso profissional, pelo êxito
em seus empreendimentos. Daí, o comportamento demonstrado pelos jovens
pesquisados, evidenciando dúvidas quanto à carreira a escolher, apontar para
situações mais graves do que apenas uma insegurança ou mera acomodação
juvenil. Como se sentir confiante se mesmo o grau de instrução já não é garantia
da obtenção de emprego seguro? Como saber o que quer se todos os caminhos se
mostram instáveis?

A autora acredita que a os diferentes discursos sociais, entre os quais estão


os discursos midiáticos, não contribuem para ajudar esse jovem a definir seu
posicionamento diante da vida profissional. Segundo Korman Dib, estes discursos
não apenas levam informação, mas frequentemente também naturalizam as
27

mudanças, como se estas fizessem parte de um processo natural, que não precisa
nem deve ser questionado. Ao contrário, o que se deve fazer é seguir as
prescrições para lidar com elas, pois apesar das dificuldades, “ainda assim haverá
emprego para determinados sujeitos que atentarem para algumas recomendações”
(Korman Dib, 2007, p.115).

Jurandir Freire Costa descreve esta aparente normalidade reportada pela


mídia como fruto de uma sucessão de fatos históricos que jogaram por terra
alguns conceitos e ideologias. Segundo o autor, com o fracasso de regimes
totalitários de esquerda, o povo e a elite que detém o poder (político e econômico)
passaram a compartilhar ideias neoliberais:

As elites desfrutam de uma tranquilidade ideológica que não tinham antes. Livres
da oposição política de esquerda, dos combates dos sindicalistas e da contestação
de jovens e intelectuais, elas, por fim, respiram. Tudo parece em ordem, na paz do
mercado e do consumo. O desemprego, o aumento da miséria, a decadência da vida
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urbana ou a situação no campo e dos sem-terra são definidos como etapas infelizes
porém provisórias no inevitável e correto rumo do desenvolvimento. (Costa, 2001,
p.83).

Esta situação de “normalidade”, sem alternativas, é, afirma Freire Costa,


continuamente reforçada pelos meios de comunicação.

2.2.
O caso brasileiro

Os processos de exclusão, no contexto brasileiro, assumem uma feição mais


grave, com mais barreiras a superar, em virtude das particularidades de nossa
história. Acompanhando a análise de Aldaíza Sposati, que parte dos países do
Primeiro Mundo para chegar ao caso brasileiro, observamos que a Grande
Depressão dos anos 1930 levou a uma nova postura, por parte do Estado, diante
da ocorrência de enormes contingentes de excluídos do mercado de trabalho.
Embora a lógica excludente do modelo capitalista, com a formação de reserva de
mão de obra, não fosse novidade, a gravidade da situação exigia uma ação forte
do Estado, com a adoção de políticas contundentes, visando ao bem estar social
(Welfare State). Assim, a depressão econômica daquela década “provocou a
solidariedade e o modelo social do welfare” (Sposati, 2006, p.1).
28

Décadas depois, numa sociedade em que o sistema capitalista já alcançava


outro patamar (neoliberalismo/globalização), observa-se uma reação diferente. Na
análise de Sposati, a segunda depressão econômica, nas últimas décadas do século
XX, “contraditoriamente mediada pelo avanço científico-tecnológico, descentrou
não só o social como a ética e propôs um modelo de Estado de responsabilidades
mínimas” (Sposati, 2006, p.1). O Estado, assim, esquiva-se de sua
responsabilidade social perante o cidadão, transferindo, em muitos casos, este
papel para outras empresas, por meio de privatizações, e para entidades
filantrópicas. Vê-se o fortalecimento das instituições financeiras e o assentamento
da economia mundial em bases fluidas, cambiantes, intangíveis9, num cenário que
levou Boaventura de Sousa Santos (2011) a comparar o sistema financeiro global
ao monstro Adamastor, figura mitológica que aterrorizava os antigos navegadores.
O “Adamastor” contemporâneo, segundo Boaventura Santos, é controlado pelos
grandes investidores, por instituições como o Banco Mundial e o FMI, pelas
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agências de avaliação de risco, que “têm o poder de distribuir as borrascas e as


bonanças a seu bel-prazer, ou seja, borrascas para a grande maioria da população
do mundo, bonanças para eles próprios” (Santos, 2011), numa lógica que promove
a concentração de renda nas mãos de uma minoria.

Percebe-se então que, enquanto nos países do Primeiro Mundo houve a


perda de conquistas sociais já assimiladas pela sociedade, no Brasil “este patamar
de universalidade da cidadania não foi ainda consagrado nem na sociedade nem
no Estado” (Sposati, 1998, p.4). Ou seja, o neoliberalismo levou a sociedade
brasileira se distanciar de um estágio de bem-estar que ainda buscava alcançar. O
modelo de Estado mínimo se consolidou, ocorrendo, especialmente nos anos
1990, a privatização de setores estratégicos, como energia e telecomunicações 10.
Serviços como educação e saúde, ainda que garantidos pela Constituição, também

9
Ver pesquisa do Instituto Federal de Tecnologia de Lausanne, Suíça, que revela como se
estrutura o poder global das empresas transnacionais, sobretudo os bancos. Matéria disponível em
http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=18798&boletim_id=103
8&componente_id=16627 – acesso em 16/12/11.
10
Entre 1990 e 1994, o Governo Federal desestatizou 33 empresas. A partir de 1995, inicia-se uma
nova fase da privatização, e os serviços públicos (como transporte, rodovias, saneamento, portos e
telecomunicações) começam a ser transferidos ao setor privado. Fonte: BNDES
http://www.bndes.gov.br/SiteBNDES/export/sites/default/bndes_pt/Galerias/Arquivos/conhecimen
to/especial/Priv_Gov.PDF - acesso em 10/02/2011
29

passam a ser oferecidos em larga escala por empresas privadas (planos de saúde e
escolas particulares).

O estudo desenvolvido por Giuliana Leal (2008, p.136) também faz


referência a este descompasso na trajetória do País rumo a um patamar de
cidadania plena, ou próximo disso. A autora destaca os avanços obtidos no pós-
guerra (anos 1950), como crescimento industrial, urbanização e acesso à escola, e,
posteriormente, com a Constituição de 1988, que veio assegurar uma gama de
direitos aos cidadãos. Contudo, observa Leal, a crise econômica, com a inflação
corroendo os salários, comprometeu este processo. Assim, percebemos que, como
num jogo de dados, o processo de crescimento e socialização foi obrigado a
retroceder várias casas, resultando no aumento da pobreza e das desigualdades
sociais e, deste modo, deslocando o “país do futuro” para um futuro mais distante
e incerto.
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Ao trazer para a realidade brasileira o tema da exclusão, torna-se necessário,


portanto, lançar um olhar ao passado e ter em mente que estamos falando de uma
sociedade colonizada, marcada desde seus primórdios pelas desigualdades.
Percorrendo a história dos países colonizados no Novo Mundo, vemos, década
após década, século após século, desde a chegada dos europeus ao continente
americano, a gestação de um processo que colocou um grande contingente de
indivíduos à margem das conquistas sociais. Autores diversos, em textos
literários, jornalísticos e acadêmicos, refizeram e refazem essa história, como o
escritor uruguaio Eduardo Galeano. Em As veias abertas da América Latina,
escrito em 1971, Galeano relata como, além da rapinagem praticada pelas Coroas
européias, as riquezas que permaneciam nas colônias eram destinadas ao luxo de
alguns, utilizadas para ostentação, aquisição de latifúndios, construção de prédios
suntuosos. Deste modo, alimentava-se uma ciranda em que os que já tinham bens
mais enriqueciam, em detrimento do desenvolvimento local, do bem estar comum
(Galeano, 1996, p.42).

Não é difícil concluir que a partilha, o sentimento de fazer parte de uma


comunidade, de um povo, de uma nação, ficaram adormecidos ou foram
ignorados. Daí, alguns teóricos terem definido o Brasil como uma nação sem
povo, como analisa o professor Fábio Konder Comparato:
30

Quando Tomé de Souza desembarcou na Bahia, em 1549, munido do seu famoso


Regimento do Governo, e flanqueado de um ouvidor-mor, um provedor-mor, clero
e soldados, a organização político-administrativa do Brasil, como país unitário,
principiou a existir. Tudo fora minuciosamente preparado e assentado, em oposição
ao descentralismo feudal das capitanias hereditárias. Notava-se apenas uma lacuna:
não havia povo. A população indígena, estimada na época em um milhão e meio de
almas, não constituía, obviamente, o povo do novel Estado; tampouco o formavam
os 1.200 funcionários – civis, religiosos e militares – que acompanharam o
Governador Geral. Iniciamos, portanto, nossa vida política de modo original:
tivemos Estado, antes de ter povo. Quando este enfim principiou a existir,
verificou-se desde logo que havia nascido privado de palavra. (Comparato, 2010)

Arbitrariedades, conceitos particulares sobre o “fazer justiça”, também


fazem parte de nossa história. Durante a escravidão, o Estado não controlava os
atos violentos cometidos pelos senhores de escravos. As fazendas tinham suas
próprias milícias e essa polícia/justiça paralela era tolerada. Ainda no século XX,
disputas entre famílias no interior, geralmente em conflitos por propriedade de
terras, não raro se resolviam sem a participação das autoridades11.
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Seguindo nosso percurso pela história do Brasil, vemos uma sucessão de


fatos que, se por um lado contribuíram para o crescimento do país, foram muitas
vezes reforçando as desigualdades: a adoção de um sistema de exploração de mão
de obra escrava (indígena e principalmente oriunda da África), a transferência da
Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, a tardia abolição da escravatura que, na
prática, não libertou os escravos da pobreza e dependência, a “importação” de
imigrantes europeus em substituição à mão de obra escrava, a proclamação da
Independência por um membro da Família Real. Seguiram-se a proclamação da
República, revoluções, regimes ditatoriais. Nas últimas décadas, depois dos
avanços econômicos e sociais com que os anos 1950 acenavam, temos o
neoliberalismo e as privatizações.

Jailson Souza e Silva identifica uma hierarquia social brasileira, construída


ao longo da história do país:

11
O filme Abril Despedaçado (Walter Salles, 2001), inspirado no livro homônimo de Ismail
Kadaré, retrata esta realidade, onde famílias rivais cometem assassinatos mutuamente.
31

Durante séculos, a principal distinção hierárquica foi estabelecida entre os escravos


– que não custa mencionar terem sido os negros, em geral ‐ e os homens livres; de
forma secundária, mas relevante, se colocava a distinção entre os homens com
posses, em geral propriedades e/ou títulos de nobreza, e os despossuídos. Outros
níveis hierárquicos eram sustentados nas distinções sexuais (em prejuízo das
mulheres) e etárias (em prejuízo das crianças e adolescentes, vistos como seres sem
direitos), além de diversas outras formas de transformação da diferença em
desigualdade. Assim, a sociedade brasileira foi se forjando através da construção
de formas diversas de relacionamentos sociais e de noções de cidadania baseadas,
principalmente, no capital econômico; no cerceamento dos direitos sobre o corpo e
da vontade soberana da grande maioria da população. (Silva, 2010a, p.2)

As migrações e o crescimento desordenado dos centros urbanos constituem


um outro aspecto da exclusão social no Brasil. A seca no Nordeste e a falta de
trabalho nas cidades do interior durante décadas deslocaram milhares de pessoas
para as áreas urbanas, migrantes que em sua maioria não conseguiram colocação
no mercado de trabalho e acabaram engrossando o contingente de favelados,
subempregados, marginalizados. São Paulo e Rio de Janeiro, por exemplo, são
metrópoles com forte presença de nordestinos. Para Miguel Carter, professor da
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American University, em Washington, uma reforma agrária menos tímida do que


a realizada até agora pelos sucessivos governos teria evitado, em grande escala, a
formação de segmentos excluídos nos centros urbanos e “a manutenção de um
apartheid social que sempre caracterizou o Brasil” (Carter, 2010). Em entrevista
ao Núcleo Piratininga de Comunicação (NPC), quando do lançamento de seu livro
Combatendo a desigualdade social12, o professor afirma que:

O inchaço das metrópoles brasileiras é porque não se fez reforma agrária. Grande
maioria das pessoas veio do interior do Nordeste, Minas Gerais e outras regiões
empobrecidas onde coronéis dominavam. Oligarquias fortes que não davam chance
de o povo progredir. Imagina se tivesse ocorrido a reforma agrária no tempo do
Jango (década de 60). Hoje teria muito mais gente morando no campo, nas cidades
pequenas do interior, teria tido muito mais agroindústria, teria tido um patamar de
desenvolvimento que aconteceu em partes do sul do Brasil onde teve a presença de
pequenos agricultores que logo geraram indústrias e capitalizaram essas regiões. A
história urbana do Brasil teria sido muito diferente se tivesse ocorrido uma reforma
agrária na década de 60 (Carter, 2010).

Os números do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)


confirmam as palavras do professor Carter. Conforme dados do censo 2010, a
concentração de habitantes nos centros urbanos, que já era excessiva, aumentou

12
CARTER, Miguel (org.). Combatendo a desigualdade social: o MST e a reforma agrária no
Brasil. São Paulo: Editora UNESP, 2010
32

13
nos últimos dez anos, passando de 81,25% para 84,35% . Ainda que isso
signifique que houve maior urbanização no interior do país – e não apenas a
migração para as grandes cidades – a questão preocupante é que a demanda por
emprego nas cidades cresce, enquanto que no campo faltam mãos para plantar.
Como revela o referido censo, das mais de 190 milhões de pessoas que constituem
a população brasileira, menos de 30 milhões vivem em situação rural. É
interessante aqui destacar que há uma crescente demanda por alimentos orgânicos
no mundo e que a agricultura familiar é responsável por grande parte do
abastecimento das populações urbanas14. Neste contexto, a reforma agrária, como
observa Carter, seria uma forma de reduzir a desigualdade e a exclusão social,
gerando empregos diretos e indiretos no campo.

Outro ponto que emerge dos processos migratórios (especialmente do sertão


nordestino) em direção aos centros urbanos (principalmente do Sudeste) e que
alimenta as situações de exclusão, é a discriminação pelo racismo. Em seu texto,
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Aldaíza Sposati observa a existência de uma rigidez na transição da exclusão para


a inclusão social que é “conhecida pela sociedade mundial pelos agravados
conflitos étnicos concretizados em guetos de judeus, ou no apartheid sul-
africano” (Sposati, 2006, p.2). Trazendo esta reflexão para o universo brasileiro,
não raro observamos a existência de comportamento discriminatório, depreciativo,
em relação à aparência, hábitos, sotaque dos brasileiros oriundos do norte e
nordeste do país15. A autora afirma ainda que aquela rigidez ganha uma nova
versão, mundializada, a qual “tem os muros individuais sutilmente construídos no
cotidiano das relações que se dão na escola, no restaurante, no trabalho, no clube,
etc.” (Sposati, 2006, p.2).

13
Dados disponíveis no website do IBGE - acesso em 04/02/11.
http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=1766&id_pagi
na=1
14
Segundo dados do Ministério do Desenvolvimento Agrário-MDA, no caso do Estado do Rio de
Janeiro, 92% dos produtores da região serrana são agricultores familiares que respondem por
28,5% do PIB rural do estado. http://www.mda.gov.br/portal/noticias/item?item_id=6873890 e
http://www.mda.gov.br/plano-safra/ – acesso em 11/02/11
15
Um exemplo é a declaração de uma estudante de Direito de São Paulo, após as eleições
presidenciais de 2010 Ver entrevista do Presidente da OAB-PE:
http://terramagazine.terra.com.br/interna/0,,OI4770733-EI6578,00-
Discriminacao+a+nordestino+nao+e+fato+isolado+diz+OABPE.html - acesso em 10/02/2011. No
cinema, vários filmes abordaram o choque do nordestino com a cidade grande, entre eles “O
homem que virou suco” (João Batista de Andrade, 1981) e “A hora da estrela” (Suzana Amaral,
1985).
33

Esses “muros” colocam os indivíduos em espaços delimitados, agrupando-


os em categorias, conforme sua “identidade social” (Goffman, 2008). A sociedade
confere rótulos às pessoas e espera que se comportem dentro de padrões definidos
a priori. Verifica-se então, com frequência, a atribuição de estigmas aos
indivíduos. Na definição de Erving Goffman, estigma é a “situação do indivíduo
que está inabilitado para a aceitação social plena” (2008, p.7). Numa sociedade
como a brasileira, onde historicamente florescem a discriminação e a
desigualdade, é frequente a aplicação de estigmas aos indivíduos considerados
“diferentes”. Aos portadores de estigma – seja em função de sua aparência física
ou de fatores não perceptíveis visualmente - não serão conferidas as mesmas
oportunidades, a mesma credibilidade que àqueles que se encaixam nos modelos
pré-determinados. Os estigmatizados têm sua individualidade eclipsada pelo
interesse social, a fim de manter a “normalidade”.

Goffman faz a distinção entre o que denomina “identidade social real” e


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“identidade social virtual”, em função de serem atendidas ou não aquelas


expectativas criadas em relação a determinado indivíduo:

... quando um estranho nos é apresentado, os primeiros aspectos nos permitem


prever a sua categoria e os seus atributos, a sua "identidade social" - para usar um
termo melhor do que "status social", já que nele se incluem atributos como
"honestidade", da mesma forma que atributos estruturais, como "ocupação".

Baseando-nos nessas pré-concepções, nós as transformamos em expectativas


normativas, em exigências apresentadas de modo rigoroso.

Caracteristicamente, ignoramos que fizemos tais exigências ou o que elas


significam até que surge uma questão efetiva. Essas exigências são preenchidas? É
nesse ponto, provavelmente, que percebemos que durante todo o tempo estivemos
fazendo algumas afirmativas em relação àquilo que o indivíduo que está à nossa
frente deveria ser. Assim, as exigências que fazemos poderiam ser mais
adequadamente denominadas de demandas feitas "efetivamente", e o caráter que
imputamos ao indivíduo poderia ser encarado mais como uma imputação feita por
um retrospecto em potencial - uma caracterização "efetiva", uma identidade social
virtual. A categoria e os atributos que ele, na realidade, prova possuir, serão
chamados de sua identidade social real. (Goffman, 2008, p.12)

Substitui-se o sujeito por uma “representação circunstancial de certas


características típicas da classe do estigma, com determinações e marcas internas
que podem sinalizar um desvio, mas também uma diferença de identidade social”
(Melo, 2005). Reverter esta ordem, ou seja, abrir brechas naqueles muros
34

simbólicos, significa instaurar uma nova dimensão nas trocas sociais e,


principalmente, afetar as relações de poder.

Os estigmas, assim, são uma das faces da exclusão em nossa sociedade.


Uma exclusão que decorre de diversos fatores, de uma sucessão de eventos que,
camada por camada, foram se sobrepondo, tal como numa rocha a ação do tempo
se sedimenta, formando um desenho onde se pode ler a sua história. A existência
de um contingente de excluídos, em diferentes dimensões, é assim fruto de um
processo histórico, político, social.

2.3.
O Estado do Rio de Janeiro e a Cidade Partida

Caminhando para o final do século XX e tornando-se as desigualdades


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cada vez mais evidentes, vemos surgir a expressão Belíndia16 para designar um
Brasil de duas faces opostas: uma exibindo a riqueza de uma minoria – a Bélgica
– e outra com pobreza semelhante à existente na Índia. Trazendo esta dicotomia -
um corpo social mutilado por um corte que separa os cidadãos, dividindo-os em
duas categorias - para nosso universo de pesquisa – o município do Rio de Janeiro
e a macrorregião chamada Grande Rio – temos uma metrópole que foi,
apropriadamente, batizada de Cidade Partida, pelo escritor e jornalista Zuenir
Ventura. De sua análise, vemos surgir uma cidade que, já nos anos 1950 – tidos
como dourados, pacíficos, de grande efervescência cultural – gestava as sementes
da violência urbana que explodiria nas décadas seguintes. A segregação que
marca nossa história, no Rio de Janeiro não permaneceria silenciosa, inerte. Sobre
a ocupação dos morros e o crescente domínio, dentro das favelas, de facções
criminosas, diz o autor:

16
A expressão é atribuída ao economista Edmar Bacha que a utilizou em 1974 para “definir o que
seria a distribuição de renda no Brasil, à época (uma mistura entre uma pequena e rica Bélgica e
uma imensa e pobre Índia)”. http://www.economiabr.net/colunas/henriques/belindia.html - acesso
em 19/12/10.
35

Sem cinturão de segurança ou cordão sanitário para isolar o mundo dos pobres do
mundo dos ricos, o Rio não cedeu ao inimigo apenas a vista mais bonita. Os nossos
bárbaros já estão dentro das muralhas e suas tropas detêm as melhores armas e a
melhor posição de tiro.

Os bárbaros são a grande fonte do mal-estar deste final de século. A exclusão se


transformou no problema social maior. Enquanto dos morros só se ouviam os sons
do samba, parecia não haver problema. Mas agora se ouvem os tiros. Não se trata
de uma guerra civil, como às vezes se pensa, mas de uma guerra pós-moderna,
econômica, que depende das artes bélicas mas também das leis do mercado, é um
tipo de comércio. Por isso não há solução mágica à vista. Sabe-se que é preciso
destruir as “vanguardas” – os que praticam barbaridades, os traficantes de drogas –
numa operação de força implacável. Exterminá-los, porém, talvez seja mais fácil
do que desmontar o circuito econômico que os sustenta e cujas pontas – a produção
e o consumo – não estão nas favelas. (Ventura, 1994, p.14).

O surgimento daquela que é considerada a primeira favela 17 carioca, no


morro da Providência, no final do século XIX, é um exemplo significativo desse
processo segregador. Seus primeiros moradores foram os soldados que
combateram na Guerra de Canudos e ficaram a mercê da sorte, ao voltarem para o
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Rio de Janeiro. Com a reforma urbana de Pereira Passos, no início do século XX,
a população pobre da cidade foi transferida para morros próximos ao Centro, entre
eles o da Providência, que teve assim sua população aumentada. Como observa
Jailson Souza e Silva (2007), a existência de espaços nobres e populares, tal como
a distinção entres os sujeitos a partir do consumo, se dá mesmo nos países mais
desenvolvidos. O que faz a diferença é a atuação do Estado, sua soberania.

No Brasil, o Estado perdeu, ou nunca teve, a soberania sobre os espaços populares.


Desde a década de 20, no Rio de Janeiro, entregou a ordenação do espaço popular e
a resolução de eventuais conflitos a grupos particulares. Inicialmente, eram pessoas
com autoridade na comunidade, lideranças religiosas ou malandros; depois, as
polícias mineiras e os grupos de extermínio assumiram o controle e, mais tarde, os
grupos de traficantes, que sofrem hoje o ataque das milícias. (Silva, 2007, p.95)

As tentativas de solucionar o problema das favelas, ou melhor, o problema


que as favelas representam para a cidade, vêm da década de 1940 e se expandem
no final da década de 1960. São políticas de habitação e remanejamento que não
estancaram a favelização da cidade do Rio de Janeiro e ficaram aquém das
promessas de dar melhores condições de vida à população mais pobre. Como
observa Cláudia Pereira em sua tese de doutorado Gisele da Favela, foi no

17
O nome favela seria uma associação ao morro da Favela, na Bahia, nome originado de uma
planta nativa, o faveleiro. http://pt.wikipedia.org/wiki/Morro_da_Provid%C3%AAncia – acesso
em 20/12/10
36

governo de Carlos Lacerda que surgiram, por exemplo, a Vila Kennedy e a Vila
Aliança, conjuntos habitacionais construídos na zona oeste do então Estado da
Guanabara, para receber os moradores das favelas.

Estas transferências geraram reações opostas, pois as opiniões estavam


divididas entre aqueles que “defendiam esta ação em nome do desenvolvimento
da área urbana da cidade e entre aqueles que se indignavam com o desrespeito aos
direitos de escolha das famílias removidas” (Pereira, 2008, p.37). A Cidade de
Deus, hoje com 36.500 moradores18, frequentadora assídua do noticiário e
conhecida como CDD, é um exemplo que ilustra com clareza a ineficiência dessas
políticas. Como relata Cláudia Pereira:

A Cidade de Deus era um conjunto habitacional destinado a funcionários públicos.


Seria uma “cidade-modelo” e seu projeto visava povoar Jacarepaguá, uma região
ainda pouco habitada na Zona Oeste da cidade.
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Em 1966, já no governo Negrão de Lima, um temporal causou enchentes que


deixaram suas marcas por todos os bairros e, principalmente nas favelas,
desabrigou milhares de pessoas. A Cidade de Deus, neste momento ainda em fase
final de construção, tornou-se, então, uma alternativa para a ocupação daquelas
famílias que haviam perdido, com as chuvas, suas casas e seus pertences. Formava-
se uma comunidade composta por indivíduos que viviam em 63 favelas da cidade.
Era uma população fragmentada social e culturalmente. O Instituto Pereira Passos
contabilizou mais de 38.000 moradores vivendo em 120,58 hectares, de acordo
com dados de 2000.

Com o passar dos anos, o tráfico de drogas, egresso das favelas que ali se
instalaram, passou a atuar na Cidade de Deus. Iniciou-se, então, uma batalha
territorial travada por facções rivais, que buscavam dominar o fornecimento de
drogas para a cidade. A Cidade de Deus, nos anos 1980 e 1990, passou a ser um
símbolo da violência carioca.

Primeiro pelo livro do antropólogo Paulo Lins (2003) e, em 2002, pelo filme nele
inspirado e dirigido por Fernando Meirelles e Kátia Lund, a Cidade de Deus teve
os meandros do tráfico retratados de maneira realista. (Pereira, 2008, pp.37-38)

Voltando à questão do estigma, Jailson Souza e Silva (2010b) assim


descreve o processo de segregação que estigmatizou os moradores de favelas:

18
A população da CDD diminui nos últimos anos, embora tenha sido observado um aumento no
número de moradores de outras favelas, conforme o censo IBGE 2010.
http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia/2011/07/01/ibge-populacao-em-favela-carioca-
cresce-acima-da-media.jhtm - acesso em 12/09/11.
37

Mundo da incivilidade, “não cidade”, por excelência, nesses territórios o domínio


dos grupos criminosos armados aumentou a percepção da dissociação entre a
favela e o conjunto da cidade. Nesse quadro, ao invés dos moradores serem
reconhecidos como vítimas da situação de violência e a responsabilidade do Estado
pela privatização criminosa do poder de regular a vida social, a criminalização das
favelas e de seus moradores se ampliou (Silva, 2010b).

Há ainda outros muros que se levantam dentro da “cidade partida” - ainda


que não tão visíveis quanto o que separa asfalto e morro – como aquele que corta
a cidade em “fatias” mais ou menos valorizadas: Zona Sul / Zona Norte, praia /
subúrbio. Numa espécie de zona de sombra, o subúrbio carioca19, de certo modo,
sofre com suas carências por vezes mais que as favelas, pois, por não ser
caracterizado como uma região de excluídos (favelados), não costuma receber
atenção das ONGs e nem da mídia. Entre a Zona Sul e as favelas (das Zonas Sul,
Norte e Oeste), fica esquecido, vítima também de uma segregação silenciosa, não
tão evidente. Deste modo, percebemos que a cidade não se parte apenas em duas,
há outras fraturas no corpo da sociedade, que criam zonas apartadas, excluídas. A
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cidade se expande, mas os serviços públicos tornam-se cada vez mais precários,
há uma degradação urbana. O poder público não se faz presente nessas “regiões
de sombra” como se faz nas regiões onde vivem pessoas de maior poder
aquisitivo e de maior visibilidade dentro do país e no exterior.20

O Mapa de Exclusão Social21 construído para a cidade de São Paulo e


mencionado por Sposati (1998, p.6), é um instrumento revelador dessas nuances
da exclusão que se operam numa grande cidade, uma vez que foram utilizados
diferentes indicadores para mapear a distribuição da qualidade de vida naquela
metrópole. Antes de se indagar “quem é excluído?” é necessário estabelecer
parâmetros e definir em que ponto ocorre a fratura social que coloca de lados
opostos incluídos e excluídos. A autora ressalta a inexistência de “referenciais
universais, para a sociedade brasileira, do padrão de inclusão social” e considera

19
Consideramos aqui os bairros de classe média baixa/média, que se espalham pelas Zonas Norte
e Oeste, não especificamente as áreas de favela, mas de urbanização precária, carente de áreas de
lazer e espaços culturais.
20
Nos últimos anos alguns grupos, utilizando principalmente as redes sociais, vêm trabalhando
para dar maior visibilidade às regiões suburbanas, lutando pela preservação do patrimônio cultural
e histórico e reivindicando mais atenção do poder público. Alguns exemplos são os coletivos
Subúrbio Carioca e Movimento Cine Vaz Lobo – acesso em 07/01/12.
21
O Mapa, elaborado pela PUC-SP, destinou-se à implantação da LOAS-Lei Orgânica da
Assistência Social (Lei 8742, de 1993), que garante a assistência social como direito do cidadão e
dever do Estado. - http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8742.htm - acesso em 11/02/11
38

“difusa e subjetiva” a interpretação de proposições de caráter genérico para o


estabelecimento de uma democracia social, tais como: “sociedade justa, toda
criança na escola, salário digno, etc.” (Sposati, 1998, p.7).

Portanto, se falar em Rio de Janeiro é falar em Cidade Maravilhosa, praias,


belas paisagens, “gente bonita e descontraída”, como exposto nos cartões-postais,
é também falar em áreas degradadas, crescimento desordenado, tráfico de drogas,
criminalidade. E alto índice de mortalidade por armas de fogo, sendo as vítimas,
em sua maioria, adolescentes entre 12 e 19 anos22. A violência no Estado
recrudesceu nos anos 1980 com a disseminação do consumo de cocaína, segundo
análises de especialistas em segurança, como o Coronel Mario Sergio de Brito
Duarte, ex-Comandante-Geral da Polícia Militar do Rio de Janeiro23.

Durante fórum sobre segurança pública e cidadania24, realizado em 2008 na


Associação Brasileira de Imprensa (ABI), o Coronel Duarte classificou de “crime
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coletivizado”, e não “crime organizado”, a rede criminosa ligada ao tráfico que


atua no Estado. Segundo ele, caracteriza o conflito urbano armado, entre outras
coisas, seguir uma ideologia que não é revolucionária, política, mas de facção, que
tem a idéia de soberania de territórios. Ou seja, há uma apropriação de espaços (e
dentro deles, corpos, corações e mentes) ignorados pelo poder público. Um vazio
de serviços, de oferta de benefícios sociais, de reconhecimento de cidadania, vazio
que é preenchido pelo mais forte, no caso, aquele que detém o poder bélico, os
armamentos, e que estabelece as conexões necessárias à manutenção da

22
Ver Boletim Segurança e Cidadania do CESeC - http://pt.scribd.com/doc/51424319/Boletim-
CESeC-No-13-Meninos-do-Rio-2 - acesso 09/01/12
23
Mário Sérgio de Brito Duarte pediu exoneração do cargo no final de setembro/2011, alegando
problemas na Corregedoria interna da PM após assassinato da juíza Patrícia Acioli, em São
Gonçalo-RJ (matéria de O Globo, 30/09/11, Seção Rio, p.19). Foi comandante do Batalhão de
Operações Especiais (Bope) e do Batalhão da Maré. É autor do livro Incursionando no inferno: A
verdade da tropa, sobre o Bope. http://marius-sergius.blogspot.com/ - acesso em 08/02/12.
24
Fórum de Segurança Pública e Cidadania: o papel da sociedade na luta contra a violência.
Informações apuradas na cobertura do evento e publicadas em:
http://tecelan.blogspot.com/2008/12/rio-de-paz-possvel-ainda-1.html. Ver também website da
ABI: http://www.abi.org.br/primeirapagina.asp?id=2871 – acesso em 21/01/11
39

coletividade criminosa, conexões estas que não raramente vêm à tona, expondo
ligações entre setores da polícia e criminosos25.

Deste modo, à exclusão social experimentada pelos moradores dessas áreas,


o poder armado a serviço do tráfico de drogas (e de outras atividades criminosas)
sobrepõe outra segregação. Ao demarcarem seus territórios, levantam novas
barreiras que dificultam, ou mesmo impedem, o acesso daquela parcela da
população ao exercício pleno da cidadania, como receber ou reivindicar os
benefícios e serviços a que tem direito.

Analisando o comportamento do jovem que ingressa no crime, o então


Comandante Geral da PM usou a expressão “pertencimento”: muitas vezes
desprovido de educação, apoio da família e, principalmente, perspectivas quanto
ao futuro, o jovem/adolescente busca uma identidade, um grupo, e o mundo do
crime, do tráfico de drogas está ali, à espera, pronto para fazê-lo sentir-se o rei da
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favela.

A identidade, ainda que sujeita a transformações e mesmo à fragmentação


na pós-modernidade (um tempo de incertezas em que as instituições perdem seu
valor), como analisado por Stuart Hall (2006), não pode ser descolada do
indivíduo. Mesmo o sujeito pós-moderno necessita de um espaço onde ancorar
sua identidade, que advém do sentimento de pertencimento a uma cultura. No
caso do jovem morador de favelas, vulnerável aos apelos de um modo de vida
sedutor, ainda que de alta periculosidade, o mundo da criminalidade é muitas
vezes a cultura que ele conhece. Ele ignora suas próprias potencialidades, ou não
vislumbra futuro para elas. Para este jovem, o que lhe conferirá status e o fará sair
da invisibilidade será usar um tênis de marca famosa, correntes de ouro e portar
um fuzil AK47.

A maioria desses jovens é composta por negros, pardos, pobres, com


nenhuma ou baixa escolaridade e, quando presos ou apreendidos (no caso de
menores de 21 anos) constatam que a justiça não é igual para todos, e que o

25
Como a Operação Guilhotina, desencadeada em fevereiro/2011 pela Polícia Federal (PF) e
Ministério Público/RJ a fim de desarticular grupo de policiais civis e militares envolvido com o
tráfico de armas, drogas e milícias. http://extra.globo.com/noticias/rio/comeca-depoimento-de-
allan-turnowski-policia-federal-1089067.html - acesso em 17/02/11
40

sistema penal acaba copiando a desigualdade existente na sociedade livre. 26 Esses


jovens são geralmente provenientes de famílias com problemas crônicos, que se
repetem e até se agravam a cada geração. A antropóloga Zélia Melo, num estudo
sobre os estigmas e a identidade social, destaca o papel da família como
“organização de apoio, proteção, limites e socialização” (Melo, 2005, p.3). A
autora afirma que:

A família transmite a tradição, que representa o cenário do imaginário cultural,


com os significados e significantes dos ritos e mitos do presente e do passado,
construindo sua história particular, marcando as relações internas e externas, os
vínculos afetivos e sociais, com a intenção de estruturar o universo psicológico dos
membros do grupo familiar. Através dos vínculos estabelecidos na família, o
sujeito estigmatizado pode encontrar o suporte para a apreensão das suas
diferenças, no contexto das semelhanças. Pode relativizar a diferença e acrescentar
pontos significativos na sua identidade social, algo diferente no universo das
semelhanças.

Quando os lugares e os papéis não são definidos nas relações sociais, as histórias se
mesclam e as funções são invertidas. Instaura-se a violência que, vivida na sua
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história particular, perpassa as fronteiras e vai perpetuar-se na história do sujeito,


constituindo uma herança maldita de componentes destrutivos. A ausência de
vínculos inscreve a desordem, a ausência da autonomia e da referência do ser
individual no contexto do grupo social. A história pessoal pode ser uma mera
repetição da relação com o grupo. Buscam-se componentes marcados pela
impossibilidade de estabelecer vínculos com o grupo de referência; instaura-se o
registro da violência nas relações, estrutura-se o ciclo da repetição dos
componentes destrutivos, que atravessa os espaços, as fronteiras do individual para
o coletivo e, em decorrência, contribui para os desvios dos sujeitos envolvidos na
trama. (Melo, 2005, p.4)

Pesquisando o universo de jovens delinquentes, Michel Misse (2002)


observa que eles poderiam entrar para o mundo da contravenção, prostituição,
praticar furtos, roubos, mas o varejo das drogas oferece ganhos rápidos e mais
fáceis. E muitos dos entrevistados afirmaram não considerar crime o que fazem,
pois apenas vendem a quem quer, espontaneamente, comprar. Percebe-se, assim,
uma fragilidade nos conceitos de justiça e honestidade desses jovens, que
podemos atribuir a falhas na estruturação daquele “universo psicológico” citado
por Zélia Melo.

26
Esta dupla exclusão é tema de Prisões, crime organizado e exército de esfarrapados. 2006, de
Marcelo Freixo -
https://www2.mp.pa.gov.br/sistemas/gcsubsites/upload/60/Pris%C3%83%C2%B5es,%20crime%2
0organizado%20e%20ex%C3%83%C2%A9rcito%20de%20esfarrapados.pdf - acesso em
17/02/11. Ver também o livro Acionistas do nada: quem são os traficantes de drogas, de Orlando
Zaccone (Ed.Revan, 2007) - http://www.revan.com.br/catalogo/0382.htm e
http://www.comunidadesegura.org/pt-br/node/37775 - acesso em 16/02/11
41

Podemos concluir que não só estes conceitos, mas mesmo seus sonhos têm
limites estreitos em função do universo onde transitam, também de fronteiras
exíguas, demarcadas pela ausência de oportunidades. Sabemos que o acesso ao
conhecimento desperta o desejo de novos conhecimentos, daí o contato com
diferentes culturas e outras visões de mundo, com a arte, o esporte, é apontado
neste estudo como uma ampla janela que daria, não apenas aos
jovens/adolescentes em situação de risco ou vulnerabilidade social, mas também a
eles, novas perspectivas, constituindo-se um o caminho para alargar aquelas
fronteiras.

Embora as ações na área de segurança pública tenham sido descontínuas nas


últimas décadas, algumas vozes eventualmente se levantaram dentro das próprias
instituições policiais, como aconteceu com os Coronéis Ubiratan Angelo27 e
Nazareth Cerqueira28, no final dos anos 1990. Estas vozes começaram a ganhar
eco, a se fazer ouvir, fazendo surgir novas perspectivas de mudança na atuação da
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polícia, inclusive com a participação de cientistas sociais na elaboração de planos


de segurança pública.

A partir dessas mudanças, a sociedade civil pôde melhor se organizar, se


mobilizar e se manifestar de modo mais enfático, reclamando seu direito à
informação e à opinião. As Organizações Não Governamentais (ONGs), que
começaram a se estruturar nos anos 1980, passaram a ter algum acesso aos
batalhões policiais, desempenhando um papel decisivo nessa trajetória da
sociedade rumo a patamares de maior equidade e com retraimento das situações
de exclusão social.

Foi nesse momento que se destacou a atuação de Luiz Eduardo Soares29,


Coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Governo Estadual entre janeiro
de 1999 e março de 2000. Soares levou para o centro de comando suas

27
Ubiratan Angelo é coronel da Polícia Militar, onde atua há mais de 30 anos. Mantém na internet
o Forum Ubiratan Angelo de Segurança Cidadã - http://fubasc.ning.com/ - acesso em 25/01/11
28
Carlos Magno Nazareth Cerqueira esteve no comando da Polícia Militar de 1982 a 1986 e de
1990 a 1994, durante os governos de Leonel Brizola. Foi assassinado em 1999 e o crime não foi
esclarecido. http://www.comunidadesegura.org/pt-br/MATERIA-coronel-nazareth-cerqueira-
presente - acesso em 15/06/11
29
Luiz Eduardo Soares é co-autor do livro A elite da tropa, no qual foi baseado o filme Tropa de
Elite (José Padilha, 2007). Foi Secretário Municipal de Valorização da Vida e Prevenção da
Violência de Nova Iguaçu-RJ.
42

inquietações envolvendo polícia, violência e segurança pública no contexto da


democracia, temas sobre os quais realizou diversas pesquisas (Soares, 2001).
Falando de um conhecimento atravessado por emoções, o sociólogo relata uma
experiência marcante que viveu durante uma visita à favela do Jacarezinho, em
1999, que reuniu mais de 200 pessoas:

Em abril, vivi uma dessas experiências iluminadoras, raras, dolorosas e vitais, que
mudam nossas vidas pela intensidade, pela qualidade. Visitei o Jacarezinho, com a
vice-governadora Benedita da Silva [...]. Prometemos uma polícia respeitosa, que
deveria merecer o respeito da comunidade [...]. Invocamos a solidariedade de todos
para não permitir que as dificuldades nos dividam, no futuro, destruindo a crença
de que é possível construir uma polícia que trate o morador do Jacarezinho da
mesma forma que o morador da Vieira Souto. [...] Pedimos que a audiência se
pronunciasse: começou, inesperadamente, nossa viagem ao fundo da noite. [...]
Desdobrou-se uma avalanche de vozes e testemunhos que ganharam,
gradualmente, volume e carga emocional, a ponto de provocar o recolhimento dos
fotógrafos e repórteres. Fez-se um silêncio de morte. [...] Tragédias desfiaram-se,
uma a uma, com toda a crueza de sua brutalidade original: “No dia tal, do mês
qual, do ano tal, diante de mim e de minha casa, desarmado e inocente, meu filho
foi morto pela polícia a sangue frio...” (Soares, 2001, pp.67-69).
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Para o sociólogo, a desejada relação de confiança e respeito entre


autoridades, policiais e moradores das favelas passa necessariamente pela verdade
e pela recuperação e manutenção da memória. Lembrando os gregos antigos, para
quem o esquecimento era a pior punição, Soares afirma que a “superação da
tragédia coletiva depende da celebração pública da memória individual-coletiva
dos grupos vitimados pela barbárie do Estado.” (Soares, 2001, p.70).

Quase uma década depois daquela visita ao Jacarezinho, instaurou-se um


processo de ocupação nas favelas, com a instalação das Unidades de Polícia
Pacificadora, as UPPs30. Criadas em 2008, estas unidades, em alguns casos,
integram-se às ações do PAC-Programa de Aceleração do Crescimento do
Governo Federal, que por sua vez é seguido, também em alguns locais (como
Rocinha e Cantagalo/Pavão-Pavãozinho), pelo POC–Projeto Ocupação Cultural31,
patrocinado pela Secretaria de Estado de Cultura, com a proposta de realizar
várias oficinas e cursos. No verão 2011 a Secretaria de Estado de Assistência
Social e Direitos Humanos (Seasdh), que coordena as UPPs Sociais, e a Secretaria
de Estado de Cultura programaram a realização de projetos culturais em cinco

30
A primeira UPP foi instalada no Morro Santa Marta (Botafogo) em 2008. Em janeiro/2012 foi
inaugurada a 19ª UPP do município do Rio de Janeiro - http://upprj.com/wp/ - acesso em 20/01/12
31
http://www.cultura.rj.gov.br/projeto/programa-de-ocupacao-cultural-poc - acesso em 09/01/12
43

Unidades de Polícia Pacificadora (Batan, Borel, Chapéu-Mangueira/Babilônia,


Cidade de Deus e Providência), o chamado projeto “Verão nas UPPs”32. Estas
iniciativas vêm acenar com a possibilidade de avanços rumo à integração social,
conforme proposto por Amaro (2000), ainda que haja muitos obstáculos a
enfrentar33.

Com essa guinada na política de segurança pública, nos âmbitos estadual e


municipal, gradativamente foi sendo construído e/ou fortalecido um olhar
diferente sobre as favelas. Analisando diversas matérias sobre a modelo Gisele
Guimarães, da Cidade de Deus, objeto do estudo de sua tese, Cláudia Pereira
observa como se dá a representação da favela no imaginário social. Segundo a
autora, “O imaginário sobre o lugar reúne representações sobre a violência, a
invisibilidade, a marginalidade e a ausência de oportunidades” (Pereira, 2008,
p.131) e há ênfase no fato de Gisele não ter se envolvido nem se prostituído,
“apesar de morar na Cidade de Deus”, ou seja, ela não se encaixou no papel pré-
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determinado para ela. Assim, aquele que consegue ascensão econômica e social, é
visto como um indivíduo que difere dos demais de seu grupo, quase como uma
figura exótica. Contudo, o estigma frequentemente permanece, ainda que
veladamente.

O estigmatizado, na análise de Goffman (2008), pode ser um desacreditado


– aquele que é prontamente identificado por sinais perceptíveis – ou um
desacreditável – quando o estigma ou “defeito” não é imediatamente visível ou
detectado. Em ambos os casos, o portador do estigma terá de desenvolver
estratégias para conviver com os “normais”. Enquanto o desacreditado tem de
recorrer à “manipulação da tensão gerada durante os contatos sociais” (Goffman,
2008, p.51), o desacreditável se verá na necessidade de manipular as informações
que, se conhecidas, poderão incluí-lo na categoria do estigmatizado, portador de
um “defeito”. Ele terá de decidir se irá “exibi-lo ou ocultá-lo; contá-lo ou não

32
http://www.uppsocial.com.br/?s=ver%C3%A3o+das+upps – acesso em 16/02/11
33
No segundo semestre de 2011, conflitos armados nas comunidades pacificadas (com UPPs)
levaram novas inquietações à população. http://noticias.uol.com.br/ultimas-
noticias/agencia/2011/09/10/oito-homens-sao-presos-no-morro-da-providencia-no-rio.jhtm e
http://www.jb.com.br/rio/noticias/2011/09/06/upps-passam-por-processo-de-adaptacao-afirma-
cabral/ - acesso em 10/09/11. Ver também notícia sobre disparidades nos serviços oferecidos:
http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/noticias/ultima-a-ser-pacificada-mangueira-tem-mais-
projetos-sociais-que-outras-favelas-20111224.html -
44

contá-lo; revelá-lo ou escondê-lo; mentir ou não mentir; e, em cada caso, para


quem, como, quando e onde” (Goffman, 2008, p.51).

Essa avaliação é, em muitos casos, determinante para a vida do


estigmatizado, já que, mesmo quando aceito pela sociedade, esta aceitação tem
limites que não devem ser testados nem ultrapassados. É o que Goffman chama de
“bom ajustamento” (Goffman, 2008, p.132) e que está nitidamente demonstrado
no relato de Stuart Hall acerca de suas origens e de como seu pai, um jamaicano
negro de classe média baixa, esforçava-se para ser aceito pelos brancos ingleses
como um igual, em seus clubes. Para Hall, eles apenas o toleravam: “Eu percebia
como eles o tratavam com um respeito que marcava sua inferioridade”. (Hall,
2003, p.409).

Neste ponto é interessante comentar o papel da mídia no reforço desses


estigmas e, em nosso universo de pesquisa, no balizamento das relações que se
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estabelecem entre autoridades, criminosos e a sociedade em geral. Jailson Souza e


Silva acredita que “a mídia contribui, mais do que qualquer outra instituição, para
a consolidação e a difusão do conceitos estereotipados” (Silva, 2007, p.95)
quando, por exemplo, numa entrevista, retrata o morador de favela sempre mal
vestido, sujo, despenteado, ao contrário do que faz em relação a um intelectual,
sempre retratado bem arrumado e cercado de livros. Não se trata de mascarar a
realidade, observa o autor, mas se ela é plural não deveriam ser enfatizadas apenas
suas carências.

Antes de tudo, é preciso compreender que não existe apenas “a” favela, mas
favelas, como aponta Jailson Silva (2007, p.93): se está num terreno plano ou num
morro; se é grande ou pequena; se está na Zona Sul ou na periferia da cidade; se
sua população é majoritariamente negra e carioca ou oriunda do Nordeste; se é
controlada por traficantes de drogas ou milicianos. Segundo Jailson, a percepção
homogeneizadora dos moradores de favelas e periferias não permite que se
percebam as mudanças em seu perfil educacional, por exemplo. Citando políticas
públicas, como a criação do Programa Universidade para Todos (Prouni), o autor
destaca o aumento do número de universitários moradores de favelas, certamente
um percentual bem maior do que o de criminosos, embora estes tenham mais
visibilidade na mídia (Silva, 2007, p.94).
45

As pesquisadoras do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESeC)


Silvia Ramos e Anabela Paiva, consideram que houve avanços na abordagem da
violência pela mídia, que foi reduzindo as matérias sensacionalistas, as fotos de
cadáveres, e, especialmente nos anos 1990, passou a incluir em suas pautas o tema
segurança pública (Ramos; Paiva, 2007, p.17). As autoras destacam que, a partir
dos anos 1970, quando foi regulamentada a profissão de jornalista, novos
profissionais, com curso superior, foram gradativamente substituindo os “da
antiga”, geralmente de origem humilde. Se por um lado mostram-se tecnicamente
mais bem preparados, estes novos jornalistas, em sua maioria de classe média,
carecem de experiência em relação ao cotidiano dos moradores de favelas e
periferias (Ramos; Paiva, 2007, p.78).

De fato, veem-se hoje na mídia reportagens positivas, realizadas nas favelas


e periferias, que mostram, por exemplo, grupos de rap, teatro, cinema, mas a
ocorrência de um tiroteio sempre receberá mais destaque na imprensa. Embora
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haja indiscutíveis obstáculos à atuação dos jornalistas em algumas áreas (hoje


minimizados com a instalação das UPPs), as autoras enfatizam que é necessário
contornar tais dificuldades, por exemplo, acompanhando a produção cultural e o
esporte nas comunidades, abrindo assim canais de diálogo e buscando novas
fontes (Ramos; Paiva, 2007, p.83). Os jornais chamados populares e destinados às
classes C, D e E deveriam retratar os moradores de comunidades pobres de modo
mais completo, acreditam as autoras, contudo, por estarem associados a veículos
da chamada grande mídia, “tendem a intensificar os estereótipos e a investir ainda
mais no monotema da violência”. (Ramos; Paiva, 2007, pp.81-82).

O jornalista Caco Barcellos também considera precária a cobertura feita pela


mídia em geral sobre a violência nas favelas e, tal como Luiz Eduardo Soares toca
na questão da memória e Jurandir Freire fala do alheamento, o repórter aponta
como um dos problemas dessa cobertura o esquecimento que a imprensa dedica
àqueles locais. Segundo Barcelos, há um distanciamento que compromete o
exercício do bom jornalismo e, para estas comunidades, a omissão e o silêncio são
piores do que a crítica. Ele adverte que “É preciso estar perto das pessoas. Não
bastam a internet, as fontes de pesquisa” (Barcellos, 2007, p.84)
46

Diante do panorama que procuramos traçar neste Capítulo, conclui-se que


abordar o tema exclusão/inclusão não envolve aspectos tão óbvios como poderia
parecer a princípio. Há nuances, sutilezas, detalhes que escapam quando se faz
uma análise superficial da questão. Pode-se afirmar que não bastarão ações
externas, geralmente centradas no aspecto econômico, sejam por parte do Estado
ou de entidades filantrópicas, para promover o que Amaro (2000) chama de
“integração” na sociedade: um processo duplo que é a soma da “inserção” do
indivíduo com a “inclusão” possibilitada pela sociedade que o acolhe, conforme
veremos no Capítulo a seguir.
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