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UTILIZAÇÃO DA METODOLOGIA DE ILIZAROV NO TRATAMENTO DE

DEFORMIDADES AXIAIS ASSOCIADAS A ENCURTAMENTO E


ALTERAÇÕES ROTACIONAIS DOS MEMBROS INFERIORES.

Nuno Craveiro Lopes


Carolina Escalda
Carlo Villacreses
Serviço de Ortopedia, Hospital Garcia de Orta, Almada, Portugal

Introdução

A correcção de deformidades complexas dos membros com as técnicas convencionais tem


muitos factores limitativos. A utilização da metodologia de Ilizarov pelo contrário não tem
contra-indicações impostas pela magnitude ou complexidade da deformidade e permite uma
abordagem compreensiva do seu tratamento.
No entanto a metodologia de Ilizarov não é isenta de problemas e dificuldades. É um
procedimento tecnicamente exigente com uma longa curva de aprendizagem. Para o doente a
duração do tratamento é longo, o aparelho é desconfortável, a infecção superficial de fios e
cravos é frequente e as taxas de obstáculos, problemas e complicações são também altas.
Apesar disso, utilizando uma técnica correcta incluindo planeamento pré-operatório, pré-
montagem do aparelho e controle ambulatório adequado, esta metodologia representa um meio
útil para a resolução de casos difíceis e em certas circunstâncias o único meio para a correcção
de deformidades complexas dos membros.

Planeamento pré-operatório
O planeamento pré-operatório é importante em qualquer procedimento cirúrgico, mas
torna-se essencial quando se pretende utilizar um procedimento a céu fechado, ou quase fechado,
com correcções nos 3 planos do espaço, como é o caso da metodologia de Ilizarov.
Um bom planeamento pré-operatório começa com a obtenção de boas radiografias,
incluindo todos as zonas osteo-articulares envolvidas e os segmentos ósseos contíguos em dois
planos ortogonais e, se necessário em mais dois planos oblíquos. É aconselhável também obter
radiografias simples das estruturas osteo-articulares correspondentes contralaterais que servirão
de padrão para guiar as correcções pretendidas. Geralmente estes exames são suficientes para
planear o tratamento, mas em deformidades mais complexas é aconselhável obter também uma
tomografia axial computadorizada, se possível com reconstruções 2D e 3D

Pré-montagem do aparelho
A pré-montagem, permite a construção de um aparelho mais leve e confortável, permitindo
diminuir o tempo operatório para metade quando comparada com a construção do aparelho
durante a intervenção cirúrgica. [4,5]
A pré-montagem básica para alongamento e correcção axial de um segmento ósseo começa
definindo-se os pontos de fixação em cada um dos segmentos do osso deformado. Estes pontos
de fixação podem ser constituídos por dois anéis o mais distantes possível, um anel e uma ponte
com um cravo, um semi-anel ou arco (Fig1A,B,C) [3,4,5,7,11], dependendo da necessidade em
estabilidade. O diâmetro do anel ou arco pode ser calculado no membro do paciente medindo o
diâmetro da zona do membro e acrescentando 6 cm. Em alternativa pode-se experimentar vários
anéis no membro do doente, escolhendo um que deixe um espaço de dois dedos entre o bordo
interno do anel e a pele a toda a volta. Os dois pontos de fixação são conectados por 3 bastões
roscados. Sé for necessária mais estabilidade, como no caso de doentes pesados, poderá ser
acrescentado mais um bastão roscado. Após completada a montagem do aparelho, este é testado
no membro do doente, para confirmar de novo se os diâmetros dos anéis e alinhamento estão
correctos.
Fig.1

Os anéis são fixados à estrutura óssea utilizando dois fios inseridos com uma angulação
superior a 60º entre si, um fio e um cravo roscado em angulo recto ou 2 cravos roscados,
consoante a melhor combinação que permita evitar as estruturas nobres da zona a tratar,
incluindo vasos sanguíneos, nervos e músculos (Fig.2A,C,D). Quando for necessário introduzir 2
fios com angulação inferior a 60º, deverão ser utilizados fios olivados (Fig.2B). Se for necessária
mais estabilidade, podem-se acrescentar mais fios ou cravos roscados.
Após feita a montagem das 2 partes do aparelho, correspondentes aos 2 segmentos, estas
são interligadas por 3 alongadores ou 2 charneiras e um bastão motor, consoante se procede em
primeiro lugar a um alongamento linear ou a uma correcção axial com alongamento simultâneo.

Fig.2

Aplicação do aparelho
Aplicamos o aparelho com o doente em posição supina numa mesa operatória normal ou
em marquesa ortopédica. O aparelho pré-montado é aberto em livro, fechado à volta do membro
e alinhado com a ajuda de um intensificador de imagem. São então colocados um fio no anel
proximal e outro no mais distal para alinhar e centrar o aparelho no membro, após o que são
introduzidos os restantes cravos roscados e fios. Procede-se então à corticotomia pelo método
descrito por Ilizarov, osteotomia percutânea com escopro com perfuração múltipla com broca
fina ou utilizando uma serra de Gigli.
Manipulação do aparelho em ambulatório
A correcção de uma deformidade congénita ou adquirida ou de uma consolidação viciosa
após fractura, é feita no período ambulatório, com início 5 a 10 dias após a aplicação do
aparelho. Esta correcção inclui a correcção de desvio de eixo, alongamento e correcção
rotacional ou translacional e é conseguida adaptando charneiras e bastões motores ao aparelho
inicial.
O planeamento destas modificações pode ser feita manualmente ou assistida por
computador. A primeira técnica é baseada na colheita de dados geométricos do segmento ósseo
deformado e são do doente e seu estudo em papel, o que permite encontrar os pontos charneira, a
velocidade e duração de correcção [14,15]. A técnica assistida por computador é baseada na
introdução dos dados respeitantes à posição espacial de determinados pontos da estrutura
deformada e normal num programa especial preparado para determinar a localização espacial dos
anéis e pontos charneira, velocidade e duração da correcção [14].
Embora teoricamente menos precisa, preferimos o planeamento manual porque é mais
económico, está sempre disponível, tem uma aplicação rápida e menos factores de erro, pois
permite o “ajusta pela melhor posição”, ao ser possível introduzir pequenas modificação na
localização do ponto charneira encontrado e observando a correcção que se obtém por rotação do
decalque sobre esse ponto.

Para corrigir uma deformidade axial isolada ou combinada com encurtamento.


1- Num decalque da radiográfica no plano da deformidade, marca-se o eixo da diáfise da
tibia (bb’) e do fragmento distal (cc’), a perpendicular à superfície articular (aa’),
calculando o CORA – centro de rotação da angulação (d’)(Fig.3A). O angulo da
deformidade é c’d’b’. De seguida desenha-se a bissectriz (dd’) do angulo complementar
da deformidade (b’d’c)(Fig.3B).

Fig.3

2- Sobrepondo o decalque normal ao do segmento deformado, marca-se uma linha unindo


um ponto bem definido da estrutura óssea nos dois decalques (ee’) (Fig.4A). De seguida
desenha-se uma perpendicular a meio dessa linha (ff’).
3- O ponto X onde as duas linhas dd’ e ff’ se intersectam, é o ponto charneira que vai
permitir a correcção simultânea do encurtamento e deformidade axial (Fig.4B).
4- Para transferir o ponto charneira do decalque para o aparelho, no membro do doente,
medem-se 2 coordenadas no decalque, do ponto charneira para 2 pontos bem definidos da
estrutura óssea contando com o factor de ampliação e transpõem-se esses dados para o
conjunto membro do doente/aparelho.
Fig.4

5- Finalmente unem-se os dois anéis junto à deformidade com duas charneiras centradas ao
ponto charneira, com um eixo de rotação perpendicular ao plano da deformidade (Fig.5A)
e monta-se um bastão motor no lado oposto, retirando os bastões roscados que se
encontravam a ligar os dois anéis. Rodando o bastão motor à velocidade e com a duração
determinada, vai corrigir simultaneamente o encurtamento e desvio de eixo (Fig.5B).

Fig.5

Para calcular a velocidade de alongamento ou correcção (Fig.6A), marca-se um linha recta


unindo o ponto charneira (a), a cortical concava (b) e o bastão motor (c). Perpendicular ao ponto
b, desenha-se uma linha representando uma unidade de alongamento (1cm=1mm/dia). A linha
recta que sai do ponto charneira “a” e passa pelo topo da unidade de alongamento “b”, vai
indicar em “c” a velocidade de alongamento ou correcção (2cm=2mm/day). Neste exemplo
deve-se deslocar o bastão motor 2mm por dia para conseguir 1mm de alongamento na cortical
concava, o que representa um ritmo de alongamento de 2 vezes ¼ de volta 4 vezes ao dia.
Para calcular a duração do alongamento ou correcção (Fig.6B), mede-se o angulo da
deformidade com o vertice sobre um das charneiras e projecta-se no bastão motor o comprimento
a alongar (ab=7cm). A duração do alongamento ou correcção neste exemplo seria de 35 dias
(70mm:2mm=35mm). Isto representa que após 35 dias a um ritmo de 2 vezes ¼ de volta 4 vezes
ao dia, obtêm-se simultaneamente o alongamento e a correcção axial pretendida.
Fig.6

Para corrigir uma deformidade por translação


Este tipo de deformidade pode ser corrigida cerca de 10 dias após a aplicação do aparelho
se é a única deformidade residual, ou antes da maturação do regenerado ósseo, após uma
correcção axial e alongamento.
1- Num decalque da radiográfica no plano da deformidade, desenha-se os eixos de ambos os
segmentos ósseos (aa’ and bb’), como referido acima e mede-se a translação existente
(Fig.7A).
2- Unem-se os dois anéis junto à deformidade com 4 bastões: 2 com um cilindro na sua
extremidade, que corre em bastões roscados montados horizontalmente em ponte sobre o
outro anel em planos paralelos ao plano da deformidade, e outros dois com uma patilha
deslizante e bastões de tracção montados sobre uma placa no outro anel, sobre o plano da
deformidade, um de cada lado da estrutura óssea (Fig.7A).
3- Rodando as porcas à velocidade normal de ¼ de volta 4 vezes ao dia, obtém-se a
correcção da deformidade por translação (Fig.7B).

Fig.7
Para corrigir uma deformidade rotacional
Este tipo de deformidade pode também ser corrigida cerca de 10 dias após a aplicação do
aparelho se é a única deformidade residual, ou antes da maturação do regenerado ósseo, após
uma correcção axial e alongamento.
A deformidade rotacional é medida clinicamente ou com auxílio de um exame por
tomografia axial computadorizada.
O dispositivo básico é constituído por 2 anéis unidos por 3 bastões curtos, cada um com
uma patilha deslizante e um bastão de tracção num dos anéis, que vão permitir um movimento de
rotação entre os dois anéis. Este dispositivo deve ser montado entre os dois anéis do aparelho
junto à deformidade, utilizando placas curtas, de modo a que o seu centro de rotação coincida
com o centro da tíbia (Fig.8A).
Rodando as porcas dos bastes de tracção à velocidade normal de ¼ de volta 4 vezes ao dia
durante o período calculado como descrito na Fig.14B, obtém-se a correcção da deformidade
rotacional (Fig.8B).

Fig.8

Bibliografia

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