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OS FRUSTADOS

de

Walter de Azevedo

EPISÓDIO 03

SER OU NÃO SER

participação especial

CARLOS BONOW

como PAULÃO
(cena 1) – Tomada de São Paulo de manhã. Várias cenas mostrando o movimento da

cidade.

(cena 2) – APARTAMENTO/SALA/INT/MANHÃ

Dona Nair entra na sala acompanhada de Roberto, Caio e Lucas. Ela acabou de mostrar o

apartamento para eles. Nos braços da mulher está o cachorro, o poodle, Fifi.

DONA NAIR – E então? O que vocês acharam?

CAIO – Eu gostei.

ROBERTO – Eu também.

DONA NAIR – Como vocês podem ver, ele acabou de ser pintado.

Eu faço questão de manter tudo como um brinco.

LUCAS – Olha, pra mim está perfeito.

DONA NAIR – Então é o senhor quem vai morar aqui?

LUCAS – Também. Somos nós três.

DONA NAIR (ESTRANHANDO) – Juntos?

CAIO – É. Algum problema?

DONA NAIR (INDECISA) – Não sei. Três rapazes morando juntos.

Novos, bonitos. Não sei se vai ser uma boa idéia. Isso aqui é um

prédio de família e eu sei muito bem como são os homens nessa

idade. Não podem ver um rabo de saia. Não. Acho melhor não. Não

quero correr o risco de sair do meu apartamento e dar de cara com

uma moça... Suspeita.

CAIO – Não, mas a senhora não precisa se preocupar com isso. Eu

garanto que esse tipo de coisa não vai acontecer aqui.

ROBERTO – Não?
LUCAS – Claro que não.

ROBERTO (SUSSURRANDO) – Quer dizer que... Nós não vamos

poder trazer ninguém pra casa?

LUCAS – Ela só falou de moças suspeitas. Dos moços ela não falou

nada.

DONA NAIR – Eu zelo muito pela moral do prédio. Aqui não entra

mulher da vida. Nem esses desviados que andam por aí.

LUCAS – Como é? O que tem os desviados?

ROBERTO – Não foi com você. Ela falou Des antes. Desviados.

DONA NAIR – Desviados. Esses rapazes que namoram... Que

namoram outros rapazes. Que horror!

LUCAS – (SURPRESO) – Não pode? A senhora não deixa?

DONA NAIR – Claro que não. Meu prédio é um prédio de respeito.

LUCAS – Então não vai dar certo, porque eu sou...

Roberto e Caio pisam nos pés de Lucas, que grita de dor.

LUCAS (GRITANDO) – Aaaaiiiii!!!! Vocês tão doidos?

DONA NAIR – O que aconteceu?

CAIO (DISFARÇANDO) – Pisei no pé dele sem querer.

ROBERTO – Eu também. Os pés dele ocupam muito espaço. O pé

dele parece de palhaço, Na escola chamavam ele de Bozo.

LUCAS – Eu vou ficar aleijado! Vocês acham que os meus pés

servem de enfeite? Eu preciso deles. Dos dois!

DONA NAIR – Mas... Por que vocês vão morar juntos?


CAIO – Sabe o que é, dona Nair? Nós três nos conhecêmos desde

pequenos. Amigos de infância. E agora, nessa altura da nossa vida,

nós estamos... Estamos...

Sem saber o que dizer, Caio olha para os amigos, como se pedisse ajuda.

ROBERTO – Falidos.

CAIO – Não!

DONA NAIR (SURPRESA) – Vocês estão falidos? Mas então como

é que vão me pagar o aluguel?

CAIO – Também não é assim, dona Nair. O meu amigo aqui está

exagerando. Eu sou médico, o Roberto é advogado e o Lucas é

arquiteto. Nós passamos por algumas dificuldades e por isso

resolvemos morar juntos. Um aluguel, nós três podemos pagar.

DONA NAIR – Eu não sei. Essa história de falido...

LUCAS (SUSSURRANDO) – Que raio de advogado você é? Nunca

te ensinaram que na sua profissão você precisa mentir?

ROBERTO (SUSSURRANDO) – Já, mas quando me pegam de

surpresa eu não consigo.

LUCAS (SUSSURRANDO) – Já sei porque você tá nessa situação.

CAIO – Dona Nair, se a senhora quiser, eu faço o depósito de três

meses. Pago adiantado. E lhe garanto que nós não vamos criar

problemas.

Dona Nair parece pensar um pouco.


DONA NAIR – Está bem. Eu vou acreditar em vocês, mas olhem lá!

Eu vou lá em casa pra ligar pro meu advogado e pedir pra ele

preparar o contrato. Vai ficar em nome de quem?

CAIO – Do meu.

DONA NAIR – Então o senhor, por favor, me acompanhe porque eu

vou precisar dos seus dados.

CAIO – Claro. A senhora pode ir que eu já lhe alcanço. Quero só dar

uma palavrinha aqui com os rapazes.

DONA NAIR – Tá bem.

Dona Nair sai, mas antes dá uma olhada para os três, como se ainda não estivesse

convencida de que está fazendo um bom negócio.

CAIO (ANIMADO) – O apartamento é perfeito!

ROBERTO – É mesmo. Bom, bem localizado, preço excelente.

LUCAS – Vocês estão doidos? Será que eu sou o único aqui que

ainda mantém os pés, pés esses que vocês quiseram destruir,

plantados no chão?

CAIO – Do que você tá falando, Lucas? Não gostou do apartamento?

LUCAS – Do apartamento eu gostei, mas vocês estão esquecendo de

um pequeno detalhe.

ROBERTO – Qual?

LUCAS – Pessoas, ela não gosta de... Desviados. Eu sou Desviado.

CAIO – Eu sei. Você é Desviado, mas não é Desviadão. Ela nem vai

perceber.
ROBERTO – Se você não der bandeira, ela nem vai perceber. E não

der... Outras coisas também.

LUCAS – Vocês estão querendo me dizer que... Eu vou ter que fingir

uma coisa que eu não sou?

CAIO – Lucas, a gente não tá conseguindo arranjar apartamento. Nós

não vamos encontrar outro que nem esse.

LUCAS – Mas vocês acreditam mesmo que ela não vai descobrir?

Eu sei que eu não dou pinta, mas não tem como esconder. E se eu

arranjar um namorado?

CAIO (SURPRESO) – Um namorado? Como assim? Você vai

arranjar um namorado?

LUCAS – Você queria que eu ficasse com um poste? Claro que eu

vou arranjar um namorado. Eu não sei quando, mas vou.

ROBERTO – Espera aí! Se eu não posso trazer as minhas namoradas

ele também não pode trazer os namorados deles.

CAIO – Gente, espera aí. Vamos resolver isso. Ninguém vai trazer

namorada e nem namorado pra cá. Vocês ouviram o que a dona Nair

falou. A gente não pode criar confusão aqui no prédio.

LUCAS – Isso não vai dar certo.

CAIO – Mas a gente precisa tentar. Por favor, Lucas!

ROBERTO – Vai Lucas! Não embaça!

Lucas parece pensar um pouco.

LUCAS – Tá bem. Eu prometo me comportar. Ou pelo menos eu

prometo tentar. Mas não pensem que eu vou ficar bancando o


machão! Não vou cuspir no chão. Não vou coçar o saco e não vou

ver futebol. Só se for pra torcer contra o Corinthians.

ROBERTO – Por mim tá bom.

CAIO – Eu vou lá falar com a dona Nair. (pausa) Gente, essa é a

nossa nova casa!

Caio sai.

LUCAS – Mas que não vai dar certo, não vai.

CORTA PARA:

(Cena 3) – APARTAMENTO/SALA/INT/MANHÃ

Lucas está parado olhando pela janela. O apartamento ainda está vazio. Ouve-se os sons de

gritos e latidos de cachorro. Roberto entra correndo e fecha a porta, ofegante.

LUCAS – O que aconteceu?

ROBERTO (ASSUSTADO) – O cachorro!

LUCAS – Que cachorro?

ROBERTO – Da dona Nair.

LUCAS – Aquele branquinho? Que tava no colo dela? O que tem

ele?

ROBERTO – É o demônio! Ele deve ter uma marca 666 em algum

lugar debaixo daqueles pêlos.

LUCAS – Que exagero.

ROBERTO – Exagero? Se eu não fosse rápido estava sem perna

agora. Nunca imaginei que a boca de um cachorro pudesse abrir

tanto.

LUCAS – Cadê o Caio?


ROBERTO – Ele disse que não vai poder vir. Tinha um monte de

pacientes. Vai sobrar pra gente.

LUCAS – O cara que tá trazendo a mudança dele ainda não chegou.

ROBERTO – E a sua?

LUCAS – Roberto, eu moro no meu escritório. Que mudança você

acha que eu tenho?

ROBERTO – Sei lá. Uma cama?

LUCAS – Eu durmo num saco de dormir. Acho mais rústico. Depois

eu vou arranjar um daqueles tapetes com cabeça de urso e vou me

imaginar num chalé nas montanhas.

ROBERTO – Eu vou fazer o seguinte. Preciso falar com uma cliente

e já volto. Quando a mudança chegar, você me avisa. Liga pro meu

celular.

LUCAS – Eu não acredito que você vai me deixar aqui sozinho pra

arrumar tudo e vai pra farra.

ROBERTO – Quem disse que eu vou pra farra? Vou trabalhar.

LUCAS – Você disse uma cliente. Cliente mulher. Tá na cara que

você vai pra farra. Tá pensando que eu sou bobo?

ROBERTO – É que ela é casada. Só pode essa hora. Quebra esse

galho par mim.

LUCAS – Quem quebra galho é macaco gordo. E eu não sou

macaco, e muito menos gordo. Só Deus sabe o esforço que eu faço

pra manter esse corpinho somente com 8% de gordura. (pausa) Tá

bom, vai. Mas não demora!


ROBERTO – Você é demais!

LUCAS – Eu sei. Vai! Vai!

Roberto vai sair, mas antes se certifica de que o cachorro não está, olhando por uma fresta

da porta. Assim que ele sai e fecha a porta, ouve-se os latidos do cachorro e os gritos dele.

LUCAS – Mas será o mesmo cachorro? Ele parecia tão comportado.

Lucas vai para a cozinha. Novamente os latidos do cachorro e os gritos. Paulão, o rapaz da

mudança, entra correndo e fecha a porta, ofegante. Ele é alto, forte e bonito. Lucas entra na

sala e fica surpreso ao ver o rapaz.

LUCAS – Santa Marta Fabril! Obrigado meu Deus. Eu não merecia

tanto. (pausa) Na verdade eu merecia.

PAULÃO – Desculpe entrar assim, mas o cachorro aí do lado é uma

fera. Espero não ter entrado no apartamento errado.

LUCAS – De jeito nenhum. Tá no apartamento certo. Você não podia

estar em lugar melhor. (pausa) Quem é você?

PAULÃO – Eu sou Paulão.

LUCAS – Tô vendo.

PAULÃO – Eu vim fazer a mudança.

LUCAS – Você é o cara da mudança? Eu preciso mudar mais vezes.

Paulão percebe o interesse de Lucas por ele e se aproxima.

PAULÃO – Quando quiser, é só chamar. Paulão, à sua disposição.

Lucas começa a se abanar.

LUCAS (PRA SI MESMO) – Ele precisava falar assim?

Dona Nair entra no apartamento.

DONA NAIR – Bom-dia! Posso entrar?


Ao ver Dona Nair, Lucas se assusta, coça o saco e cospe no chão.

LUCAS (FAZENDO VOZ GROSSA) – Claro. Pode entrar. Você,

rapaz. Pode subir com a mudança.

PAULÃO – Sim senhor.

Paulão vai até a porta, mas antes de sair, pisca para Lucas. Dona Nair, que está com o

cachorro no colo, se aproxima de Lucas.

DONA NAIR – E então? Animado com o apartamento novo?

LUCAS – Estou sim. Muito.

DONA NAIR – Sabe que eu gostei muito de você? Desde que você

entrou aqui.

LUCAS (ESTRANHANDO) – É?

DONA NAIR – Você me lembra muito o meu filho. Ele não mora

aqui em São Paulo. Mora em Curitiba. Mas vocês têm o mesmo jeito.

LUCAS – Então ele deve ser da comunidade.

DONA NAIR – Como?

LUCAS (DISFARÇANDO) – Eu perguntei se nós temos a mesma

idade.

DONA NAIR – Devem ter sim. Mas o que mais me chamou a

atenção foi que o jeito de vocês é igual. Esse jeito másculo.

LUCAS – É biba.

DONA NAIR – O que você disse?

LUCAS – É linda. A sua cachorrinha é linda.

DONA NAIR – É sim. O nome dela é Fifi.

LUCAS – Oi Fifi.
Lucas vai colocar a mão na cadela, que rosna para ele.

LUCAS – Temperamental.

DONA NAIR – Nada. Ela late, mas não morde.

LUCAS – Eu imagino.

A campainha toca.

LUCAS – A senhora me dá licença? Vou atender a porta.

Lucas abre a porta e dá de cara com Pedro. O menino o olha muito seriamente.

PEDRO – Você não é o meu pai.

LUCAS – Você não é o meu filho. Era só isso que você queria? Eu

estou ocupado.

PEDRO – Quem é você?

LUCAS – Essa é uma pergunta muito complexa. Com quem você

quer falar?

PEDRO – Eu vim falar com o meu pai. O que você fez com ele?

LUCAS – Depende de quem seja o seu pai. Mas eu não sabia que ele

era casado.

Paulão chega carregando algumas caixas.

PAULÃO – Dá licença! Tô passando!

Paulão entra e Lucas fica olhando para o rapaz, esquecido de Pedro.

PEDRO – Por que você olhou daquele jeito pra esse moço?

LUCAS – Garoto, por que você não vai arrumar o que fazer? (pausa)

E não me olha assim porque eu tenho medo.

PEDRO – Eu só saio daqui quando souber o que você fez com o meu

pai.
LUCAS – Mas eu não sei quem é o seu pai, criatura irritante!

PEDRO – Segundo a minha mãe, o meu pai mora aqui nesse

apartamento.

Paulão se aproxima e pára perto dos dois.

PAULÃO – Se eu precisar de uma ajuda...Você dá?

LUCAS – Dá? Como assim? O que?

PAULÃO – A ajuda.

LUCAS (DESCONCERTADO) – Dou. Claro. Claro que eu dou.

PAULÃO – Então, quando puder, é só avisar.

Paulão pisca para Lucas e sai.

LUCAS – Mas isso tinha que acontecer logo hoje? Logo aqui?

PEDRO – Você é muito estranho.

LUCAS – E você acha que é normal? Se olha no espelho, garoto!

Dona Nair se aproxima.

DONA NAIR – Eu não vou atrapalhar você. Se precisar de alguma

coisa eu estou na minha casa. É só tocar.

PEDRO – A senhora é cúmplice dele? Ajudou a sumir com o meu

pai? Onde vocês esconderam o corpo dele?

DONA NAIR – Quem é esse menino?

LUCAS – Quando eu descobrir, aviso.

Pedro entra no apartamento e se senta no chão.

PEDRO – Eu só saio daqui quando souber o que vocês fizeram com

o meu pai.

DONA NAIR – Mas quem é o pai dele?


LUCAS – Algum doido. Nenhuma pessoa sã ia gerar uma coisinha

dessas.

Analy entra tempestuosamente pela porta.

ANALY – Dá licença! Cadê o meu filho?

Pedro vê a mãe e a abraça.

PEDRO – Mãe, eu tô aqui! Esses dois aí sumiram com o meu pai.

DONA NAIR – Mas será possível? Eu avisei vocês que não queria...

Moças estranhas aqui no prédio.

LUCAS – Mas eu sei tanto dela quanto a senhora. Eu tô aqui só pra

ver como vai acabar essa história.

ANALY – Onde você enfiaram o meu marido? Se não falarem eu

chamo a polícia!

LUCAS – Minha jovem... Quer dizer, minha senhora, quem é o seu

marido?

Caio entra no apartamento.

CAIO – O que está acontecendo?

ANALY – Caio, meu amor!

Analy e Pedro correm e abraçam Caio.

CAIO (SEM GRAÇA) – É a minha família.

Lucas e Dona Nair ficam olhando para os três.

(FIM DO EPISÓDIO)

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