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DEMOCRACIA RADICAL E

EXPERIMENTALISMO
INSTITUCIONAL: COMENTÁRIOS
AO SUMÁRIO DE TESES
PROGRESSISTAS DE ROBERTO
MANGABEIRA UNGER

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Hubert Humphrey Fellow na Universidade de Boston- 2002-2003

Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

2007
Dedico esse ensaio ao meu filhinho, o Bernardo, nosso pequeno profeta.

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SUMÁRIO

Introdução e Preâmbulo - 04
Primeira Tese: Da História das Instituições Democráticas - 25
Segunda Tese: Das Estruturas Constitucionais do Governo - 30
Terceira Tese: Da Reorganização da Política Eleitoral - 36
Quarta Tese: Do Conceito de Direitos Fundamentais - 39
Quinta Tese: Da Proteção dos Direitos Fundamentais - 49
Sexta Tese: Da Proteção Legal da Sociedade Civil - 54
Sétima Tese: Das Finanças Públicas e do Sistema Fiscal - 60
Oitava Tese: Da Reforma do Sistema Produtivo e de sua Relação com o
Estado - 75
Nona Tese: Dos Direitos de Propriedade - 79
Décima Tese: Do Significado de ser Progressista Hoje em Dia - 88
Décima Primeira Tese: Da Interpretação da Causa Democrática - 89
Décima Segunda Tese: Da Base Social dos Partidos Progressistas - 90
Décima Terceira Tese: Do Foco da Inovação Institucional e do Conflito
Ideológico do Mundo - 91
Bibliografia - 100

“Portanto, abaixo os dogmas -- não só os deles, mas também os nossos.


É mais importante dar braços e asas à energia frustrada da nação do que
homenagear nossas teses.”

Roberto Mangabeira Unger, Crescer sem Dogma, Folha de São Paulo,


13 de março de 2007

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Introdução e Preâmbulo

O pensamento crítico ocidental conhece dois textos clássicos, escritos sob a


forma de Teses. Refiro-me às Teses sobre Feuerbach, de autoria de Karl Marx, bem
como às Teses sobre a Filosofia da História, de Walter Benjamin. Sugiro a agregação
de terceiro roteiro temático redigido em forma de Teses: as Teses de Democracia
Radical, de Roberto Mangabeira Unger, ativista político brasileiro que leciona na
Faculdade de Direito de Harvard, nos Estados Unidos. Mangabeira Unger é o mais
conhecido intelectual brasileiro no contexto internacional, em âmbito de Ciências
Sociais. E agora, meados de 2007, a imprensa noticia a volta de Mangabeira para o
Brasil, para colaborar com o governo Lula, assumindo Secretaria com status de
Ministério, e que tem por objetivo formular projetos e propostas de longo prazo.
Roberto Mangabeira Unger nasceu no Rio de Janeiro. É profícuo, original e
iluminado pensador de nossos tempos, problemas, civilização, política e direito. O seu
trabalho é intensamente debatido nos Estados Unidos, onde já foi comparado, favorável
e desfavoravelmente, a Kant, Hegel e Marx (cf. DEVLIN, 1990, p. 648). Sua obra é
notável, entre outros aspectos, porque reconhece a complexidade do liberalismo, à luz
de amplo conjunto de concepções relativas à natureza humana (cf. TUCKER, 1987, p.
176), propondo alternativas possíveis ao marxismo e ao próprio liberalismo, sem se
render à retórica de uma terceira via inexistente num mundo que parece acenar com
caminho único.
Mangabeira tem na Política o centro de suas cogitações, não admitindo dissociar
governo de modelo normativo (cf. PARSONS, 1977, p. 147). Não se intimida com
percepções analíticas que vêem no mundo jurídico algo de lógico. Mangabeira provocou
profissionais do direito com temas de teoria do conhecimento, teoria política, economia,
para identificar apenas alguns campos (cf. DOREN, 1990, p. 105); suas reflexões
colocam em risco nossos conceitos triviais de política (cf. CHRISTODOULIDIS, 1996,
p. 377). Também muito criticado, Mangabeira fora indicado como não merecedor de
atenção mais séria, por parte da academia, segundo um opositor (cf. EWALD, 1987, p.

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665). Seu projeto conceitual é ambicioso (cf. GOLDSTEIN, 1988, p. 161),
transcendendo ao modelo que informa a tradição ocidental, centrado em Marx,
Durkheim e Weber (cf. DUXBURY, 1986, p. 658).
Mangabeira rejeita o fatalismo (cf. HUTCHINSON e MONAHAN, 1983, p.
1539), quebra barreiras, imagina soluções para o Brasil, com prestabilidade universal,
para desespero de seus críticos (cf. BALL, 1996, p. 626), que ainda o acusam de
superestimar as próprias habilidades teóricas (cf. MILLER, 1984, p. 564), bem como de
ser obscuro (cf. PANNIER, 1987, p. 650). Pregando a solidariedade e a desagregação
prospectiva dos direitos de propriedade, Roberto Mangabeira Unger revê todo o sentido
da democracia (cf. SPITZ, 1991, p. 43). E não hesita em surpreender-nos com
categorias conceituais que desconhecemos.
O presente texto trata de aspectos mais programáticos de seu pensamento,
referentes a ambicioso experimentalismo democrático, focando-se um conjunto
temático de Teses, relativo a projeto de democracia radical.
Nas Teses sobre Feuerbach, de Marx, tem-se uma das mais vigorosas passagens
do pensamento radical. Lê-se na tese XI, que “os filósofos até agora apenas
interpretaram o mundo, de vários modos; agora é preciso transformá-lo”. E colhe-se
na XIV Tese Sobre a Filosofia da História, de Walter Benjamin, o conceito de salto do
tigre: apoderamo-nos do passado qual um animal predador, propiciando para nosso uso
apenas o que nos interessa: Robespierre e a revolução francesa se viam como uma
Roma reencarnada. Mangabeira é muito cauteloso para com a história, para com
desavisado apego ao passado; não admite que sejamos servos fiéis de um pretérito que
nós mesmos inventamos.
Roberto Mangabeira Unger radicalizou e realiza as teses de Marx e de
Benjamin, incorporando-as e reelaborando-as em seu roteiro programático. Trata-se de
filósofo que se propõe a transformar o mundo (e sua participação na vida política
brasileira é da assertiva prova inconteste); e ainda, não se esconde em contexto de
espera histórica, de atenção a leis prenhes de historicismo ingênuo. Recolhe esta
historicidade cândida na vala comum das necessidades falsas, e apresenta programa de
reforma. Propõe-se a ajudar a transformar o Brasil. É o tema do estudo que segue.
O seu programa temático encontra-se em forma de Manifesto, na segunda parte
de seu livro Democracia Realizada- a Alternativa Progressista. Escrito originariamente
em inglês, foi traduzido para o português por Carlos Graieb, Márcio Grandchamp e
Paulo César Castanheira, em bem cuidada edição da Boitempo Editorial. É essa

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tradução que utilizarei, no que se refere às teses. Quanto ao corpo do livro propriamente
dito, as referências são da edição original.
São 13 teses, acomodadas em quatro campos conceituais: 1) a organização
constitucional do governo e a estrutura legal da política eleitoral; 2) a organização da
sociedade civil e a proteção dos direitos; 3) a organização das finanças públicas e da
economia e, 4) a democracia e a esquerda. Junto aos quatro grupos encontram-se os
temas que animam as teses: 1) história das instituições democráticas; 2) estruturas
constitucionais de governo; 3) reorganização da política eleitoral; 4) conceito de
direitos fundamentais; 5) proteção dos direitos fundamentais; 6) organização normativa
da sociedade civil; 7) finanças públicas e sistema fiscal; 8) reforma do sistema
produtivo e relação deste com o Estado; 9) direitos de propriedade; 10) significado de
ser progressista hoje em dia; 11) interpretação da causa democrática; 12) base social
aos partidos progressistas e, 13) foco da inovação institucional e do conflito ideológico
no mundo.
Sua linguagem invoca grandiosidade e eloqüência, é densa e poderosa. Em
outras publicações suas em língua portuguesa, a exemplo dos artigos semanais na Folha
de São Paulo (e alguns serão aqui reproduzidos), Mangabeira mantém estilo que
conclama o leitor. Incita à liça. Chama para o combate. Quer ajudar a mudar o Brasil.
Insiste que é momento de se acender a chama da paixão. Deve-se produzir luz e calor.
Obstáculos que parecem intransponíveis serão reduzidos a cinzas, e a advertência é
literal. Não há limites. Deve-se imaginar a experiência daqueles que poderíamos ter
sido, sugere a metafísica revolucionária do professor brasileiro que leciona em Harvard.
Na mesma linha, de pugna, quer que morramos apenas uma vez, como se morre na
guerra, ao invés de morrermos recorrentemente, muitas mortes sem grandeza.
O Manifesto de Mangabeira encaixa-se na tradição radical do pensamento
moderno e contemporâneo. Essa tradição remonta a Rousseau, e refiro-me
especialmente ao prefácio e a segunda parte do Discurso sobre as Origens e
Fundamentos da Desigualdade. Voltaire, no Dicionário Filosófico, no verbete
politique, retomou essa linha de pensamento. Thomas Jefferson sumariou os direitos
das colônias norte-americanas, protestando por fraternidade e harmonia. Jefferson
parecia partidário do experimentalismo; sua concepção de reforma constitucional
permanente influencia o ideário de Roberto Mangabeira. Essa tradição política de
concepção de manifestos também é encontrada em Thomas Paine, que no apêndice de

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seu Common Sense referia-se a direitos da humanidade e a estados livres e
independentes na América.
A declaração de independência dos Estados Unidos, de 4 de julho de 1776,
levou ao limite (à época) concepção de que verdades auto-evidentes dariam conta de
que os homens nascemos iguais e que somos dotados pelo Criador com direitos
inalienáveis, a exemplo da liberdade, da vida e da busca da felicidade. Do outro lado do
Atlântico, na França, Camille Desmoullins dava continuidade à tradição, insistindo que
a única alternativa à perda de liberdade seria a morte. O Abade Sieyès recolocou o
problema em termos de classe social. Jean Paul Marat e Georges Jacques Danton
radicalizaram projetos revolucionários, percepção levada ao extremo por Pierre-Sylvain
Marechal e por Babeuf.
Proudhon também se filiou a essa tradição, e afirmou que a propriedade é um
roubo. Marx e Engels conclamaram a união dos proletários. Ferdinand Lassalle
concebeu um programa do trabalhador. Kropotkin apelou para os jovens. Bakunin
substancializou críticas à religião e ao Estado. Trotsky vinculou proletariado e
revolução, de modo permanente. Emma Goldman apontou tragédias que decorrem da
condição feminina. Mangabeira é integrante dessa tradição revolucionária. E seu
pensamento é dirigido para nossa condição de pais periférico, sem deixar de ser ideário
marcadamente universal.
Sua intervenção no debate brasileiro contemporâneo faz-se também por meio de
intensa atividade jornalística. Como informado, Roberto Mangabeira Unger escreveu
inúmeros artigos para a Folha de São Paulo. Os temas, em linhas gerais, relacionam-se
com a política, cultura, sociedade e economia brasileiras, propiciando leitura precisa e
ousada da situação contemporânea. Os textos sugerem propostas, alternativas, muitas
vezes desconcertantes, pela simplicidade com que alcançam a realidade nacional. O
eixo central dos referidos artigos desdobra-se na denúncia de que vivemos sob ditadura
da falta de alternativas. É que os dois partidos dominantes, o PT e o PSDB,
apresentariam ao eleitor projeto parecido, o chamado modelo tucano-petista, que não
tocaria nos problemas centrais do país. Seriam meros paliativos. Agora Roberto
Mangabeira Unger participa do governo Lula. Pode-se indagar que alternativa teria
depois de tantos anos de propostas e sugestões. É a aporia que a política lhe apresenta.
Percebe-se nos textos jornalísticos de Mangabeira concepção otimista, marcada
por romantismo contagiante, encantador. Tem-se painel dos problemas nacionais. Leva-

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se ao limite a idéia de que tudo na vida é política. Trata-se de interpretação original do
Brasil. Roberto Mangabeira Unger é o pensador e o político da esperança.
Tem a ambição de reunir investigação especulativa, pesquisa acadêmica,
pensamento programático e luta transformadora (cf. TRUBEK, 1990, p. 232 e ss.).
Pretende transformar a política em arena para prática da fé, da esperança e da caridade
(cf. GALSTON, 1990, p. 27). Integrando jornalismo e política, remete-nos à tradição
norte-americana dos Federalist Papers (cf. SIMON, 1990, p. 297). Os Federalist
Papers consistem em 85 ensaios de autoria de Alexander Hamilton, James Madison e
John Jay, publicados na década de 1780, nos Estados Unidos, com o objetivo de
convencer os norte-americanos a adotarem a constituição que se discutia. Formam o
mais completo corpo conceitual de defesa do modelo político dos Estados Unidos.
Os textos jornalísticos de Mangabeira sistematicamente expõem uma teoria
social, na medida em que esmiúçam os problemas nacionais (cf. SIMON, op.cit.,
loc.cit.). Propondo, concebendo o possível, desconfiando do irrealizável, recomenda
que sejamos “diretos nas palavras, audaciosos nos métodos e pacientes nos
resultados”. Qual um La Fontaine revivido, pretende que sejamos tigres, e não
tapetes... Incita à mudança. E o faz a partir de conjunto coerente de propostas dirigidas
a quem quer que se disponha a mudar.
Segundo o ativista brasileiro, “nenhum de nós pode cumprir tarefa
transformadora sem transformar-se a si mesmo”. Deve-se ter ”paciência para
circundar as muralhas e soar o clarim sete vezes”. Propõe o casamento da imaginação
com a política. E parte da premissa de que não se deve ser liberal, nem estatizante, mas
sim experimentalista. Deve-se ter aptidão para a mudança. Afinal, segundo o pensador
brasileiro, “ninguém é de esquerda ou de direita como se é de determinado tipo
sangüíneo”.
Para Mangabeira, “nosso salvamento está dentro de nós”. Antes que essa
alforria exista como política e economia, precisa viver como comoção e idéia. Enuncia
princípios que colocam a democracia social ao lado das forças inconformadas,
impacientes e criadoras. Segundo Mangabeira, “em época de democracia, a profecia
fala mais alto do que a memória”.
Seus planos transitam do cosmopolitismo para o endógeno, do internacional
para questões internas, marcas de país que se diz “avesso à guerra, mas que é
acostumado à violência”. Uma estratégia nacional compatível com os interesses
brasileiros deveria nortear nossos passos para com a globalização. Teríamos mais

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condições de sucesso do que muitos outros países continentais, a exemplo da Índia, da
China, da Indonésia e da Rússia. Deveríamos globalizar de nosso modo. A busca da
globalização que nos agrade reverte o quadro patológico da “humanização do
inevitável”.
Mangabeira propõe que se conceba globalização que nos convenha. E não abre
mão. E em âmbito de política internacional, enquanto internamente se criticava nossa
ajuda à África, lembrava-nos que compaixão não é gastança. A juventude organizada,
prestando serviço social que poderia suplementar ou substituir o serviço militar, deveria
ser posta em favor de causas humanitárias. Mangabeira pretende que abandonemos
nacionalismo oco, que reivindica cadeira no Conselho de Segurança da ONU,
supostamente para carimbar orientações norte-americanas, ou para enfrentá-los não se
sabe como. Deve-se conter inteligentemente a hegemonia norte-americana. Segundo
Mangabeira, “política exterior é interesse e visão”; não se faz diplomacia com média
ou barulho. Somente quando se faz diferença é que se consegue abrir espaço.
Mangabeira pretende que se desconstrua relação com os Estados Unidos que
seja moldada no medo. Deve-se trazer à tona empatia natural que norte-americanos
teriam para conosco. Insurge-se contra a ALCA; nossa adesão seria imperdoável erro
histórico; precisamos de projeto, e não de ALCA. Para Mangabeira, “política exterior é
ramo da política, não da indústria do entretenimento”.
São muitos os assuntos que Mangabeira apreende em seu Manifesto. E são
temas que acenam com projeto radical, por vezes plasmado como utópico, na tradição
que remonta a Pierre-Joseph Proudhon, como aqui já indicado. Mangabeira repudia a
presunção comum de que há terceira via factível e alternativa à ambigüidade do
neoliberalismo e à imprestabilidade histórica do socialismo real. O pensador brasileiro
insiste que hoje só há uma via, e que a essa senda é que se deve propor novo caminho.
As teses pretendem uma direção. Propõe-se esquema de enfrentamento às superstições
falaciosas que marcam o pensamento político contemporâneo, ainda afetado por
questões levantadas pelo positivismo formalista do século XIX.
Pretende-se alternativa para tradição constitucional que se vê como o ápice de
lenta e custosa evolução. Indica-se alternativa de fragmentação de poderes, suscetível
de transcender aos impasses da formulação clássica de Montesquieu. Reformas
constitucionais são necessárias, e desejáveis: textos constitucionais não são documentos
canônicos. Deve-se fomentar a participação política. Mangabeira parece acenar com
saudosismo ao constitucionalismo plebiscitário de Weimar. Reformas que demandam

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legislação têm preferência em face da normatividade cotidiana e episódica. Referendos
e plebiscitos poderiam fazer frente ao impasse recorrente do modelo constitucional
centrado na legalidade absoluta. Para Mangabeira, campanhas políticas exigem
financiamento público. Deve-se disciplinar a escandalosa e incestuosa relação entre
partidos políticos e meios de comunicação.
O programa também sugere modelo de interpretação de direitos fundamentais.
Pragmatismo normativo e realismo jurídico se aproximam. Mangabeira discute o
problema do direito sucessório, o que o coloca em sintonia com a tradição de Proudhon.
Educação e capacitação genérica devem ser opostas ao modelo finalista de reprodução
de operário-padrão. Nas teses se percebe a emergência de um novo poder estatal. No
estilo grandioso que marca sua escrita, Mangabeira mantém retórica que “convoca os
espíritos”. Ao longo da 6ª tese tem-se bem engendrada fórmula de direito privado mais
um e de direito público menos um. Cogita-se de novas funções para o Estado.
Mangabeira se irrita com as Ciências Sociais que triunfam no Brasil, e que se
limitam a explicar a necessidade do que já existe. Insurge-se contra resíduos
fossilizados de teorias deterministas que vêem os indivíduos como joguetes de forças
coletivas. Nesse sentido, abomina o marxismo conceitual, dogmático. Não confunde
compromissos programáticos com dogmas intelectuais.
Matéria tributária também freqüenta seu programa, a exemplo de previsão de
realismo fiscal, bem como de potencialização de receitas fiscais a partir de tributação
indireta e regressiva, num primeiro momento, a par de modelo direto e progressivo,
num segundo instante. Tem-se orientação para a reorganização da estrutura laboral das
empresas. O investimento deve servir à vanguarda tecnológica. Governos e empresas
particulares deveriam protagonizar relacionamento distinto e de amplo conhecimento
público. Planeja-se dissolver os direitos de propriedade, à luz de contexto alternativo.
Uma nova noção de economia de mercado se antepõe ao capitalismo e ao socialismo.
Repudia-se a democracia-social européia. Generaliza-se o experimentalismo da vida
social. Combate-se a ingenuidade do igualitarismo formal, que é marca expressiva do
modelo de direito constitucional que se estuda no Brasil.
Em texto que preparou a respeito dos programas das faculdades de direito no
Brasil Mangabeira lamentou que “a maior dificuldade do estudo do direito
constitucional no Brasil é o violento contraste entre a profundidade e a importância
dos temas em jogo e a ladainha retórica e terminológica a que se reduz grande parte
do discurso constitucional”. Especialmente nos textos acadêmicos o direito

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constitucional dissolve-se em discurso soterológico, pretensamente salvacionista,
carregado de metafísicas conformistas, a exemplo de imagens peninsulares de
constituições dirigentes, bem ao gosto do constitucionalismo português, e de seus
teóricos.
Sabe-se que a democracia avança para o conflito, o que sugere reinvenção do
projeto democrático, em ambiente que já não se preocupa mais com suposto embate
entre estatismo e privatismo, indicativos de bom número de necessidades falsas.
Creio que o tema democracia radical já freqüentava o ideário de John Dewey,
nome mais marcante do pragmatismo norte-americano. Para Dewey, a finalidade da
democracia é radical; ninguém ainda realizou-a (cf. DEWEY, 1998, p. 338). Alcanço
aí a importância do projeto de Mangabeira. Ciente dos altos e baixos do liberalismo e
do socialismo real, Mangabeira avançou de modo muito ambicioso, e nos propõe
programa factível para nosso tempo e vidas. Algumas palavras sobre o autor estudado
são necessárias. Sigo com elas.
É que o estudo das teses de Mangabeira sugere rápida introdução relativa a sua
trajetória intelectual, no sentido de que se apresente seus livros e conceitos centrais.
Depois de se formar em direito no Rio de Janeiro, no fim da década de 1960,
Mangabeira Unger seguiu para os Estados Unidos, e lá tirou seu mestrado (LL M) e seu
doutorado (SJ D) na Harvard Law School. No início da década de 1970, e ainda
enquanto desenvolvia seus estudos, Roberto Mangabeira começou a lecionar naquela
faculdade. E lá está por quase quatro décadas. Na primavera de 1976 Roberto
Mangabeira lecionou um curso de Teoria Social, nunca publicado, disponível para
consulta em seu website. Mangabeira tratou das origens da teoria social, com especial
enfoque nas teorias das ordens sociais, com base em Montesquieu e em Tocqueville.
Em seguida, foram apresentadas as linhas mestras da teoria social em Marx, em
Durkheim e, principalmente, em Max Weber. Mangabeira propôs no fim do curso
ambiciosa intenção de se fazer revisão na teoria social clássica, que ele nominou de
teoria social profunda. Eleito estava seu eixo temático, que o acompanha até hoje.
Seu primeiro livro foi Knowledge and Politics, Conhecimento e Política.
Segundo ele, escrito como ato de esperança, an act of hope, o livro problematiza a
sociedade liberal, introduzindo argumento crítico que animou a inteligência jusfilosófica
norte-americana. Nessa obra, Mangabeira tratou de vários temas que se relacionam, a
exemplo da psicologia liberal, da unidade do pensamento liberal, do Estado de Bem-
Estar Social, da teoria do eu, da teoria dos grupos orgânicos, fechando a obra

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apresentando os dilemas da teoria política comunitária. O livro foi muito bem recebido e
preparou o caminho para a segunda obra, também de meados da década de 1970, Law in
Modern Society, o Direito na Sociedade Moderna. Uma teoria crítica do direito foi
formulada e apresentada; o direito surge como decorrência da desagregação da
sociedade, e não como indicativo de sua congregação, como recorrentemente se escreve.
Já consagrado, Mangabeira Unger publicou o opúsculo The Critical Legal Studies
Movement, livro que nunca foi traduzido para o português, e que se fez ícone do
movimento contestador que se agrupou em torno de Mangabeira e de outros professores
de Harvard e de Yale, conhecido como o Critical Legal Studies, CLS, e que se dissolveu
enquanto projeto comum. Trata-se de um dos mais importantes ensaios escritos sobre
teoria jurídica, vinculando direito e política de modo denso e pretensioso. O livro
suscitou debate acalorado, que de certa forma ainda se desdobra.
Segue Passion-an Essay on Personality- Paixão- um Ensaio sobre a
Personalidade, acompanhado de apêndice, relativo a idéia para prática psiquiátrica para
os fins do século XX. O texto identifica núcleo conceitual da obra de Mangabeira,
relativo à possibilidade que temos de transcendermos nossos contextos e reinventarmos
a nós mesmos. Já na década de 1980 Mangabeira publicou trilogia ambiciosa, que já foi
reputada como a mais poderosa teoria social do século XX. Abriu com Social Theory:
Its Situation and its Task- Teoria Social- Situação e Tarefas. O livro desdobrou a idéia
de que a sociedade é um artefato, criada e imaginada, e que deve ser repensada, como
condição de nossa liberdade existencial. Mangabeira Unger avançou no conceito de
necessidade falsa, idéia que o persegue, e que nos dá conta de que não precisamos de
tragédia para que nos transformemos ou para que nos sintamos estimulados para a
mudança. False Necessity- Necessidades Falsas é o texto nuclear do projeto, no qual
Mangabeira apresentou propostas para a reconstrução da sociedade, criticando nossa
passividade para com determinismo que inventamos mas que teimamos em não
reinventar. Mangabeira desenvolveu argumento que aponta para um superliberalismo,
para a concepção de sociedade solidária, para a qual, inclusive, propõe-se o fim dos
regimes de herança privada, em favor da criação de legado social. Plasticity Into Power-
Plasticidade em Poder, é o terceiro livro, que por meio de estudos históricos e
comparativos, especialmente em temas militares, ilustra as proposições dessa ambiciosa
teoria social.
What Should Legal Analysis Become?- que no Brasil foi publicado pela
Boitempo como O Direito e o Futuro da Democracia, centra-se em análise mais

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especificamente jurídica da democracia radical defendida por Mangabeira. O livro
propõe fixar as práticas jurídicas a favor do experimentalismo democrático. Democracy
Realized-Democracia Realizada, é de 1998, e sintetizou os argumentos em favor da
democracia radical. É esse livro que se encerra com um manifesto em forma de teses,
que serão explicitadas no trabalho que o leitor tem em mãos.
Com Cornell West o Professor Mangabeira Unger publicou The Future of
American Progressivism, enfocando problemas centrais na política norte-americana
atual. Segue What Should the Left Propose-o Que Deveria Propor a Esquerda, que
retoma temas de transformação, com estações em problemas que decorrem do
movimento de globalização, que Mangabeira tem como metáfora para a americanização.
The Self Awakened- Pragmatism Unbound-Acordando- Pragmatismo Desacorrentado,
é seu último livro, publicado em 2007, com temática fortemente filosófica, e com
especial crítica e problematização do pensamento pragmático, que é central na filosofia
norte-americana.
Várias categorias conceituais marcam o pensamento de Mangabeira Unger, e
algumas emergirão nas reflexões em torno de suas teses. Por exemplo, capabilidade
negativa, é tema importante no seu cardápio ideológico. Capabilidade negativa é
conceito explicitado exaustivamente na versão norte-americana do False Necessity. É
percepção que decorre de conjunto teórico maior, denominado de teoria da formação de
contextos (a theory of context making). Vincula-se, ainda, à concepção de contexto
formativo, sentido que nas categorias de Mangabeira Unger, aproxima-se da noção
marxista de modo de produção, ou do tipo-ideal weberiano.
A locução foi tomada do poeta inglês John Keats, que a utilizara em carta
enviada a George e Thomas Keats, em dezembro de 1817. Mangabeira confirma que a
expressão é inspirada no bardo (we may use the poet´s turn of phrase to label...)
(MANGABEIRA UNGER, 2001, p. 279). Keats referia-se às pessoas que são capazes
de viver na incerteza, no meio de dúvidas, sem que ficassem assoladas por irritação
decorrente do fato de se reconhecer as próprias limitações. Capabilidade negativa, na
dimensão de Keats, reporta-se ao poder de aceitar mitigações na compreensão da
existência. De tal modo, a incerteza das condições que nos envolvem faz com que
possamos nos mostrar em permanente estado de abertura de espírito, preparados para a
aceitação das mudanças e transformações que marcam existência coerente.
Da forma como apropriada por Mangabeira, a capabilidade negativa suscita
disposição e possibilidade do poder de transformação, e de aceitação das

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transformações. É juízo de possibilidade, de aferição de grau de abertura. Não se trata,
no entanto, de posição próxima da anarquia, de fluxo permanente ou da mera
indefinição (cf. MANGABEIRA, cit., loc.cit.). A capabilidade negativa qualifica
estruturas abertas à revisão, o que de certa forma indica elementos funcionalistas e
ideológicos em sua concepção (cf. MANGABEIRA, cit., p. 280). A capabilidade
negativa aponta para compreensão prospectiva, otimista; indica-nos que absolutamente
nada na luta no contexto social tem o poder de nos condenar ao fracasso; mantém-se a
esperança na mudança (cf. MANGABEIRA UNGER, cit., p. 303).
Capabilidade negativa é o grau de possibilidade de utilização de instrumentos e
mecanismos de desestabilização. É a possibilidade de alteração do conteúdo das
estruturas institucionais sob as quais vivemos (cf. MANGABEIRA UNGER, cit., p.
278). É a condição de revisão de nossos contextos formativos, herdados e construídos.
Formata também o quanto se pode desafiar determinado contexto formativo. A
capabilidade negativa, nesse sentido, indica-nos a possibilidade de substituição e de
recombinação de contextos formativos.

Retorno às teses e sigo com o preâmbulo, valendo-me, como já indicado, da


tradução já identificada:

“Nenhum gênero de pensamento, de fala e de escrita tem o privilégio de hoje


representar melhor a imaginação progressista e programática. Podemos
pensar de uma forma discursiva, profética ou poética; sistematicamente, ou
por fragmentos e parábolas; tendo em mente um contexto particular ou em
escala mundial; associados a partidos e movimentos particulares ou
desligados deles; ampliando a experiência real e vislumbrando a experiência
possível; para o aqui e o agora das mudanças imediatas e viáveis, ou para o
futuro remoto e especulativo da humanidade que ainda não nasceu; com
riqueza de pormenores empíricos e de argumentação justificadora, ou nada
além das invocações sugestivas ou dogmáticas de um manifesto. Essas formas
têm usos diferentes. Completam-se umas às outras. Por exemplo: no
pensamento programático, é um erro opor propostas de curto prazo e
orientadas pelo contexto à tentativa de exploração de futuros alternativos de
longo prazo, ou opor moderação a radicalismo. Qualquer trajetória de
mudança estrutural cumulativa pode ser considerada em pontos próximos da
realidade social atual, ou distantes dela. A direção é mais importante do que a
distância. O importante é encher nosso mundo simbólico com mais práticas
iguais a essa, e nos libertarmos das inibições supersticiosas que não nos
permitem fazê-lo. As teses que se seguem representam uma dessas
experiências em discurso. Apesar de colocadas no limite extremo dos gêneros
programáticos, tratam diretamente dos problemas centrais deste livro.”
(MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 207).

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Os projetos democráticos que hoje há não contam com privilégio de
representarem com exclusividade a imaginação transformadora. Especialmente, a partir
do cardápio ideológico iluminista do século XVIII tem-se referencial de redenção,
porém sob ótica de determinados grupos. A tradição romântica que remonta a
Rousseau, e contratualismo imaginário dela resultante, estabeleceram referencial de
luta, no mais das vezes pervertido. Essa perversão também se projetou na herança
marxista, e disso o socialismo real pode ser prova eloqüente. Os fatos supervenientes à
ampliação dos modelos triunfantes nas democracias ricas do Atlântico Norte parecem
seguir mesma linha de acontecimentos, sem que isso signifique subserviência a leis
supostamente históricas, bem entendido. É que a história não se transforma em
realidade apenas por tem sido contada (cf. MANGABEIRA UNGER, cit., p. 91).
A história, parece-me, seria na compreensão de Roberto Mangabeira dotada de
caráter sonâmbulo e compulsivo; isto é, o conflito em torno dos recursos que
determinariam o modelo da sociedade tem se movimentado em âmbito muito estreito
(cf. MANGABEIRA UNGER, 1997, p. 231). Mangabeira imagina a sociedade como
um artefato, é feita pelo homem, que sobre o meio social exerce poderes de
transformação. Não há limites. Mangabeira retoma a tese de Vico e provoca-nos no
sentido de que somente o homem compreende a sociedade: é que o criador apreende a
criatura.
Em tema mais pontual, fala-se contemporaneamente de uma terceira via, como
opção às regras do mercado neoliberal e à burocracia de feição estatizante, profecia
weberiana que se realizou nas tentativas de implantação do projeto marxista. Anthony
Giddens, campeão das propostas dessa senda alternativa, cogitava da renovação da
democracia social, mediante a aproximação de valores políticos supostamente opostos:
certo pós-materialismo que se propõe, por exemplo, a vincular modernização ecológica
com proteção ambiental, aproximação vista como fonte de crescimento econômico, e
não seu oposto (cf. GIDDENS, 2000, p. 19). Em âmbito de nuances de vida pessoal
(casamento, sexualidade, amizade), Giddens inspira-se em democracias dialógicas,
marcadas por conteúdo democrático emocional (cf. GIDDENS, 1994, p. 119).
Mangabeira não identificaria em Giddens, especificamente, projeto transformador, e
realisticamente revolucionário. Trata-se de concepção matizada por intervenções
episódicas em modelo que exige cirurgia radical. É o que propõe.

15
A crítica de Mangabeira à terceira via é muito recorrente. Em artigo publicado
na Folha de São Paulo se lê:
“A ‘terceira via’ é um dos rótulos que descrevem a suposta modernização da social-
democracia no Atlântico norte. Reconciliaria a flexibilidade econômica dos
americanos com a proteção social dos europeus. Os partidos e os governos que a
abraçaram vem sendo derrotados em toda a parte. Por quê? Que legado deixarão? E o
que tem isso a ver com o Brasil? Participando de encontro entre líderes e
administradores da social-democracia européia, deparo-me com experiência rica em
ensinamentos para nós. A terceira via não foi avanço. Foi retirada -- motivada por
imperativos de eficiência e de justiça. De eficiência, porque era preciso reformular os
direitos sociais de maneira que facilitasse a renovação econômica, estimulasse a auto-
ajuda individual e limitasse o crescimento do gasto público. De justiça, para impedir
que esses direitos beneficiassem alguns -- os trabalhadores relativamente privilegiados
-- à custa de excluir outros. O resultado, porém, foi menos a síntese da flexibilidade
econômica com a proteção social do que a generalização da insegurança social e
econômica (...). (MANGABEIRA UNGER, Morte e Legado da Terceira Via, Folha de
São Paulo, s.d.)

Em outro texto, também publicado na Folha de São Paulo, com o título de Novo
Debate no Mundo, retomou o problema:

“Desde o fim da Segunda Guerra não vive o mundo momento tão rico de
possibilidades como agora. Difundira-se a idéia de que a história teria acabado. Foi a
época da "terceira via". Nada teríamos a fazer senão aceitar o inevitável -- a
convergência de todos os países para as mesmas práticas e instituições -- e humanizar
o inevitável com o recurso às políticas sociais. Era uma apologia da subserviência.
Descartava como "voluntarismo" toda tentativa de lutar contra o suposto destino
global enquanto entoava uma ladainha de lamentação impotente. Mais depressa do
que todos supunham está virando um discurso rejeitado pelos centros vitais de energia
e pensamento no mundo. A discussão muda de foco, tanto nas universidades dos países
ricos quanto entre as lideranças emergentes dos maiores nações periféricas, como a
China, a Índia e a Rússia. O eixo do novo debate é o conflito entre duas maneiras de
substituir o ideário reinante: as muitas vias e a segunda via. (...) (MANGABEIRA
UNGER, Novo Debate no Mundo, Folha de São Paulo, s.d.).

Para Mangabeira, confusão gerada com a insistência em terceiras vias poderia


ser o mote para conjunto de transformações. É o tema de outro excerto de jornal,
também de sua autoria:
“Armou-se grande confusão no mundo. Ela começa a se dissipar. Desse avanço pode o
Brasil ser ao mesmo tempo agente e beneficiário. A discussão programática
contemporânea parece se estreitar cada vez mais. Três correntes de idéias vem
dominando o debate. A primeira corrente -- de neoliberais -- abraça o que lhe parece
mero bom senso. Mercados devem ser livres. Governos devem viver dentro dos seus
meios. O livre comércio entre as nações deve aumentar para que os países mais pobres
se possam desenvolver sob a influência da imitação e da integração econômicas. Os
neoliberais sérios sempre tiveram, porém, o cuidado de distinguir esse ideário da
rendição aos interesses financeiros: muitos defendem, inclusive, limites fortes à livre
movimentação dos capitais. E insistem na importância do investimento social,
sobretudo em educação. Um segundo grupo, de social-democratas, identifica no
esforço de reconciliar a tradição européia de proteção social com a flexibilidade
econômica das práticas americanas a única maneira segura de preservar a essência
dos seus compromissos históricos. Encolhe a social-democracia para salvá-la. E acaba
convergindo com os neoliberais críticos na defesa dos compromissos sociais e das

16
restrições aos interesses financeiros. Um terceiro grupo - de esquerdistas ou ex-
esquerdistas -- reconhece a morte do estatismo. (...) (MANGABEIRA UNGER, A Vez
do Brasil, Folha de São Paulo, s.d.).

“A direção é mais importante do que a distância”, é previsão de importância de


orientação programática, não importando custos e dificuldades. Uma democracia
radical decorreria de tomada de consciência, reveladora de atitude de disposição para
com a inovação, a serviço da imaginação criativa. O preâmbulo indica a coerência em
se deixar de lado inibições supersticiosas da teoria social transformadora, que
cristalizadas passam a obstaculizar caminhos anteriormente traçados, a exemplo do
marxismo, que se fez prisioneiro de si mesmo. As alternativas desenvolvidas em
cenário real não se mostraram aparentemente prospectivas, não obstante haja
pensamento comum que negue progressos e saltos protagonizados na esfera do
socialismo tal como efetivamente desenvolvido. O preâmbulo propõe o desapego para
com visões convencionais de estruturas e rotinas indissociáveis; há mais no mundo do
que se propõe a partir de percepção servil de um passado escravizante.
A sociedade é feita e imaginada. A crença em uma história que segue rumo pré-
determinado é herança da escatologia cristã, que acenou para a possibilidade de uma
ciência da história, que garante determinismo opressor. A atribuição de sujeito, rumo e
fim à experiência humana é medida que subtrai de nós mesmos poderes de escolha e de
moldagem da existência. É ranço das concepções iluministas, localizado no berço do
paganismo moderno (GAY, 1977). Submissão ao determinismo histórico é marco da
chamada teoria social profunda, tal como plasmada em seus founding fathers: Marx,
Weber e Durkheim.
No artigo Debate Já, Roberto Mangabeira Unger retomou o problema do rumo,
de que tanto precisamos, mas do qual não somos escravos. Descendo o tema para o
debate contemporâneo, o referido rumo enseja também planejamento tributário mais
ambicioso:
“Não é possível reorientar o rumo do país sem saber para onde. Um conservador não
precisa ter idéias. Um progressista convencional, que queira apenas humanizar a
ordem existente, necessita de poucas idéias fracas. Quem se proponha, porém, a obra
transformadora requer muitas idéias fortes. Engajar um movimento no esforço para
desdobrá-las. E fazê-las viver na imaginação coletiva. (...) (MANGABEIRA UNGER,
Debate Já, Folha de São Paulo, s.d.).

O Manifesto de Mangabeira radica na compreensão de que conflitos que


parecem informar nossa tradição mais recente, a exemplo das oposições entre estatismo
e privatismo, dirigismo estatal e mercado, suscitam novo conjunto de problematizações

17
e discussões (cf. MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 1). O pensador brasileiro propõe-
se a buscar alternativas factíveis para o programa neoliberal, decorrente do Consenso de
Washington, supostamente vencedor da contenda clássica da guerra fria, na previsão da
chamada tese da convergência. O desconforto é geral, confusão e desilusão não agitam
somente o pensamento de esquerda (cf. MANGABEIRA UNGER, 1999). Mas é
justamente a esquerda que se encontra mais profundamente desorientada.
Desobediência aos modelos impostos é mensagem que se sustenta na
constatação de que é a rebeldia quem detém as rédeas da história, isto é, se a imagem
não desconstrói conjunto historiográfico marcado pela oposição ao determinismo e ao
fatalismo. É uma heresia programática que brota das propostas de Mangabeira, que
concebe espécie de escudo, que não se deve temer, por conta de que em última
instância o que se alcança é a humanização do inevitável; e a locução é recorrente.
Mangabeira constata a desorientação que assola a esquerda, que perdeu
alternativas, idéias de mundo, agentes e crises. E propõe estratégias para a apatia que
resulta dessa contingência história. O renovado dilema do dirigismo, sempre associado a
intervencionismo salvacionista, que caiu em descrédito em virtude da desigualdade e da
insegurança, marca a fragilidade das conexões sociais. A esquerda teria perdido a
condição de explicar por que luta, bem como a possibilidade de articular conjunto de
idéias que acene com concepções institucionais criativas. A intelectualidade que vive no
centro (e na margem) dos nichos esquerdistas protagoniza perene atitude escapista, que
marca projetos vazios de opções concretas para reformas sociais inafastáveis.
Uma adesão à racionalização, em seu sentido weberiano, faz da esquerda devota
de soluções burocráticas gastas, embora pródigas na soturna tarefa de se sufocar a
imaginação transformadora. Para Mangabeira a esquerda perdeu um agente, plasmado
em eleitorado cujos interesses e aspirações um dia disse honestamente representar.
Misterioso encolhimento do proletariado, em dimensão qualitativa jamais anunciada
pelo marxismo ortodoxo, criou espaço livre, marcado por eleitorado incômodo, e
incomodado, para quem não se tem o que se dizer, embora se tenha o que pedir. Esse
proletariado imaginado e festejado pulveriza-se enquanto classe, desaparece como
agente, dissolve-se enquanto sujeito da história, papel que se recusou a representar, por
razões que oxigenaram as grandes transformações da década de 1990. Para Mangabeira,
a necessidade falsa de crise justificativa de ação não pensada é também praga que
assola a esquerda desorientada.

18
Mangabeira insiste em apreender as forças sociais reais que poderiam ocupar o
espaço deixado pelos grupos que no passado foram vinculados à esquerda. E assim,
dois agentes importantes são considerados nessa conjuntura, a saber, a classe
trabalhadora e o Estado-Nação. Mangabeira percebe que o grupo que a esquerda
matizou de classe trabalhadora carece de redefinição, especialmente porque o
proletariado idealizado nas grandes narrativas do pensamento de esquerda parece
sonhar com um aburguesamento completo, a exemplo do que se dá especialmente nos
Estados Unidos, espaço social no qual a força de trabalho se define como classe média.
Parte-se da presunção de que o experimentalismo ganha espaço; Mangabeira
afirma que empresas de sucesso passam a ser iguais às boas escolas (1999, p. 4).
Inverte-se a linha conceitual de Foucault, para quem escola é instância que sinaliza com
domínio, poder e controle.
No texto que antecede ao Manifesto, Mangabeira define o experimentalismo
democrático, ao qual imputa interpretação da causa da democracia marcada pela
combinação de esperanças e do pensamento prático em ação (1999, p. 5). Busca-se
zona comum que permita a aproximação entre progresso prático e emancipação
individual (cf. MANGABEIRA UNGER, 1999). Tem-se linha de ação que admite que
não podemos ser livres quando somos fracos (cf. MANGABEIRA UNGER, 1999, p.7),
invocando-se relação que aproxime cooperação e inovação.
Do ponto de vista conceitual o texto que antecede o Manifesto dá-nos conta de
três teses: dualidade, correspondência e assimetria. A tese da dualidade sugere que há
modos alternativos e persuasórios para que se definam e defendam interesses de grupos.
A tese da correspondência explicita que alianças de grupo e antagonismos representam
idéias reversas dos respectivos conjuntos de arranjos institucionais e de seqüências de
reformas. A tese da assimetria indica-nos que relações entre alianças políticas e sociais
não são naturais e necessárias; aquelas primeiras nem sempre pressupõem essas últimas
(cf. MANGABEIRA UNGER, 1999); a história política brasileira, pretérita e recente,
confirma a presunção, mediante farta messe de exemplos de nossa vida republicana.
Política é o tema nuclear das teses que Mangabeira Unger apresenta, e que
define como a alternativa para a chance e a oportunidade (1999, p. 13). O radicalismo
que propõe desdobra-se em experimentalismo democrático que reconhece que se
necessita de imaginação institucional. Deve-se libertar da ditadura do passado e do
conjunto das necessidades falsas que maculam a ação política presente. A necessidade
falsa indica crença de que arranjos institucionais da sociedade contemporânea seriam o

19
resultado de seqüências conectadas de conflitos sociais e ideológicos (cf.
MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 24). Instituições que herdamos são apenas exemplo
de arranjos possíveis, e que não se mostram necessariamente insubstituíveis.
Mangabeira convida para prática política transformadora que dê primazia para reformas
radicais (1999, p. 18).
Despreza-se o marxista desiludido que se transformou no social-democrata
conservador; trata-se do rendido que urge que se humanize o inevitável, locução que
Mangabeira utiliza para qualificar o pensamento entreguista e determinista. Não se
pode mais viver especulando em torno e a partir de conceitos que o marxismo ocidental
tornou canônicos, a exemplo do suposto vínculo entre estruturas e rotinas que
marcariam o modo de produção asiático, o escravismo greco-romano, o mundo feudal,
o capitalismo e o socialismo (cf. MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 22).
Refratários a reformas e ao experimentalismo democrático comungam de
fetichismo institucional, isto é, de identificação de que concepções institucionais
clássicas, a exemplo de democracia representativa, economia de mercado e sociedade
civil livre formariam conjunto único de arranjos institucionais (cf. MANGABEIRA
UNGER, 1999, p. 25). Diriam os pós-modernos que os referidos arranjos qualificariam
práticas discursivas indicativas das grandes narrativas. Ao fetichismo institucional
reporta-se o fetichismo estrutural; este último padeceria do mesmo defeito daquele
primeiro, embora em nível ainda mais alto: nega o poder transformador (cf.
MANGABEIRA UNGER, 1999, loc.cit.). Insiste Mangabeira que não se precisa ser
preso por acidente de nascimento aos conjuntos institucionais que conhecemos ao
nascermos (cf. MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 27).
O fetichismo institucional nega que se possam alterar os contextos formativos
nos quais vivemos. O contexto formativo é concepção que em Mangabeira suscita
retomada do conceito de modo de produção em Marx, ou de tipo ideal em Weber, ou
de solidariedade orgânica em Durkheim, sem que nos encontremos prisioneiros de
vínculos muito rígidos entre estruturas e rotinas. O contexto formativo qualifica
estrutura institucional fundamental e imaginativa da vida social, causal e reguladora da
distribuição de recursos (cf. MANGABEIRA UNGER, 1997). Tais contextos podem
ser reformulados, moldados, redirigidos; essa maleabilidade marca plasticidade que
indica o que Mangabeira nomina de capabilidade negativa, isto é, o grau de abertura e
de maleabilidade de determinado contexto formativo (1997).

20
Consciente das críticas que o programa receberá, adiantou-se Mangabeira
lembrando que se ele propõe algo distante, dizem que é utópico demais; e se ele propõe
algo próximo, lembram que a proposta é factível, porém trivial (cf. MANGABEIRA
UNGER, 1999, p. 30). A ambição do projeto centra-se na fé de que se possa ultrapassar
limites e divisões entre vanguarda e retaguarda.
É nesse sentido que a proposta tributária que anima o pensamento de
Mangabeira protagonizará papel especialíssimo. Em linhas gerais, o pensador brasileiro
cogitará de modelo fiscal que alcançaria três bases tributáveis: a) um imposto sobre o
valor agregado altamente regressivo, com alíquota única; b) um imposto progressivo
sobre o consumo (imposto Kaldor); c) um imposto progressivo sobre doações e
propriedade mobiliária. Pretende Mangabeira alcançar a hierarquia dos níveis de vida, a
absorção que o indivíduo faz dos recursos sociais, bem como a acumulação de riqueza
como poder econômico, especialmente entre as gerações, gravando-se doações e
heranças (cf. MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 50 e ss.). O modelo persegue o
aumento do nível da poupança nacional.
O realismo fiscal é medida pregada por Mangabeira, que não teme desgastes que
a proposta suscita naqueles que defendem irrefletidamente a diminuição imediata da
carga tributária. Poupança, trabalho e investimento são os outros aspectos que marcam
melhor aproveitamento do conjunto fiscal arrecadado. Mangabeira insiste em que se
tribute o consumo, percebendo na regressividade tributária medida otimizadora de
melhor distribuição dos resultados do esforço social.
Como visto, Mangabeira é animado crítico do neoliberalismo e do Consenso de
Washington. Abomina os programas de ajustes estruturais, tão ao gosto dos agentes de
Bretton Woods. Questiona a falsa necessidade da exploração das vantagens
comparativas. Admite, porém acautela-se com as parcerias que se multiplicam entre
governos e empresas. Propõe que tomemos cuidado com a reprodução dos erros que
marcaram as crises típicas dos emergentes tigres asiáticos. Adverte para relações
instáveis que se processam entre política e economia neoliberais.
Parece-me que, para Mangabeira, a globalização ganha ares de álibi genérico
para rendição e entrega. Por outro lado, respostas prospectivas há, e Mangabeira faz-nos
lembrar que a China parece não se genuflectir a fórmulas que oferecem opções
limitadas e superficialmente tentadoras. É um pluralismo de alternativas que oxigena o
campo conceitual e programático de Mangabeira. Diferenças nacionais poderiam ser até
estimuladas como indicativos de especialização de ordem moral. Democracia

21
representativa, economia de mercado e sociedade civil livre são blocos conceituais
sensíveis que carecem de modulação. Cético, porém realista, Mangabeira lembra-nos
que alteração prospectiva nos rumos da globalização não seria implementada por elite
internacional bem comportada que pense no bem-estar global.
Mangabeira conclama à resistência de países continentais e em
desenvolvimento, como a China, a Índia, a Rússia e o Brasil. Há vantagens que acenam
positivamente nesse sentido. A rebeldia é o referencial temático de posturas a serem
desenvolvidas, levando-se em conta, especialmente, que se vive em um mundo que dá
liberdade de trânsito ao capital, negando-a ao trabalho.
Mangabeira inquieta-se com exemplos intrigantes. Na Europa tem-se conjunto
amplo de direitos sociais, em contrapartida a índice relativamente preocupante de
desemprego. Nos Estados Unidos o nível de proteção social é mínimo, e o desemprego
não é superlativamente preocupante (cf. MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 77). Tal
dado também orienta a concepção das teses experimentalistas que anunciou, e pelas
quais vem lutando.
Centra o pensamento no caso brasileiro, porém não deixa de ser universal.
Ocupa-se prioritariamente de país que muito bem conhece, e que esgotou nos 40 anos
que seguiram a segunda guerra mundial a modelo de substituição de importações, que
fora primeiramente aplicado no grande conflito de 1914-1918.
As propostas de Mangabeira substancializam alternativa realmente progressista.
Imputa ao governo um papel triplo: 1) ajuda no desenvolvimento da vanguarda
produtiva; 2) moderação na distância que separa vanguarda de retaguarda; 3) sustento
de práticas de aprendizado coletivo que propiciem a possibilidade de riqueza e
realidade da liberdade (cf. MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 136).
A concepção de uma herança social, que lembra o modelo norte-americano dos
40 acres e uma mula dá o tom de projeto concomitantemente nacionalista e universal. É
assim que se propõe liberdade de trânsito, para o capital, mas também, e
principalmente, para o trabalho. Mangabeira sugere esquema por meio do qual países
que exportassem trabalho qualificado receberiam parcela da tributação incidente sobre
os trabalhadores que exportou (cf. MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 178).
O projeto contará com indicativos de modelo democrático de educação,
alavanca para concepção de herança social (cf. MANGABEIRA UNGER, 1999, p.
204). Para Mangabeira, “nenhuma organização é mais importante para o progresso do
experimentalismo democrático do que uma escola”. Repele-se o constitucionalismo

22
clássico, que possibilita o impasse; tem-se em mente constitucionalismo vitaminado,
acelerado, independente de modelos arcaicos de freios e contrapresos (cf.
MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 213 e ss.). Problematiza-se o nível de participação
política, o que de resto reflete a história política de um país (cf. MANGABEIRA
UNGER, 1999, p. 217). Retomando característica de seu pensamento, Mangabeira
mofa da neutralidade, porque bem sabe que “instituições sociais moldam a experiência
moral” (MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 246).
Um modelo democrático mais atuante está no núcleo das propostas que
Mangabeira alavanca, especialmente mediante a concepção de plebiscitos freqüentes
(tema que será aqui retomado), sempre precedidos de debates nacionais,
desenvolvendo-se fórmulas que permitam atuação rápida nos grandes impasses
institucionais. Certo constitucionalismo fetichista, triunfante nos Estados Unidos,
poderia ser obstáculo intransponível. Embora, registre-se, o alcance do
constitucionalismo norte-americano, comparado com o modelo brasileiro, seja muito
distinto. Explico-me melhor.
Altera-se a constituição norte-americana, prioritariamente, mediante modelos
interpretativos distintos. Não há necessidade de que se tenha, como no Brasil,
especificamente, emenda constitucional que literalmente corrija rumos ou que acene
com novos pressupostos institucionais. Faz-se perene aggiornamento do texto
originário, mesmo quando se infere subjetivamente qual seria a intenção que teria
animado os legisladores norte-americanos de 1787. Entre nós brasileiros, por outro
lado, tem-se um novo texto constitucional, o que historicamente recorrente, ou altera-se
a compreensão originária, por via de emenda, não obstante haja intrigante indicativa de
respeito a princípios constitucionais de maior sensibilidade, que a retórica rebarbativa
de nosso constitucionalismo nomina de cláusulas pétreas.
É justamente essa atitude que provoca certa suspeita para com as propostas de
Mangabeira Unger, por parte do pensamento convencional e dominante, no sentido de
que plasticidade constitucional, e constantes reformas e experimentos que se afastem de
impasse, sugeririam atitude golpista e propiciadora da aventura inconseqüente; e a
experiência de Weimar é muito ilustrativa, nesse sentido. Essa contra-corrente engessa
o experimentalismo. Faz-nos cativos do passado. Escraviza.
A proposta de reexame da constituição tem sido recorrente em Mangabeira, que
em outro livro observou que um estilo constitucional projetado para acelerar a política
e favorecer a prática repetida e freqüente de reforma básica deveria combinar um forte

23
elemento plebiscitário com um ampla faixa de canais pra a representação política da
sociedade (MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 208). O fetichismo institucional que
marca o culto à constituição na tradição ocidental poderia voltar-se contra a proposta,
que juspublicismo mais açodado macularia de golpista. Mas a idéia é realista e o
implemento de um fast track plebiscitário é exigência de época cibernética, na qual a
velocidade comunicacional e institucional não pode se limitar aos estreitos cânones de
preciosismo normativo barroco e conceitualista.
Mangabeira quer discutir a estrutura constitucional, e respectivos mecanismos de
correção de rumos e alternativas. Não há área na qual nossa dependência para com
tradição única tem sido mais constrangedora. Fixamo-nos em ideário dos séculos XVIII
e XIX, presentemente ventilados por dogmática neopositivista que nos remete ao
constitucionalismo alemão do pós-guerra. O discurso que ganha espaço nos livros e nas
cátedras convence-nos que não há nada melhor. Retoma-se o bordão das eras dos
direitos, de gerações de conquistas, que partem da revolução francesa, e que nos conduz
não sabemos exatamente para qual parada (cf. MANGABEIRA UNGER, 1997).
Constitucionalistas brasileiros parecem aderir a concepções liberais que
historicamente foram dirigidas por comissões de notáveis, e que sempre ergueram
obstáculos às massas, aos demagogos e aos outsiders. É nesse sentido que as propostas
de democracia radical também substancializariam alternativas para conjuntos
institucionais elitistas (cf. MANGABEIRA UNGER, 1997). E, de fato, o modelo
presente, embora prenhe de retórica democrática e participativa, materializa, no plano
do real, aliança entre esquerda insegura e faceira, cortejada por direita fisiológica e
facilmente adaptada a novas realidades; muda-se de partido, afasta-se de ideais, rejeita-
se o passado, compromete-se o futuro.
Mangabeira parece acenar-nos com constitucionalismo que maximize o
conteúdo popular da democracia direta. E parece que pretende dotar o governo de
iniciativas decisionais que permitam a continuidade das orientações governamentais.
Não se pode ameaçar o apelo às massas. As propostas que seguem matizam modelo que
pode fomentar nova organização de governo; domínio oligárquico se neutralizaria com
participação efetiva de grupos maiores de eleitores conscientes. O cenário exige
recomposição de modelo de distribuição de poderes e funções. É rota de colisão com
estruturas arraigadas de tripartição de poderes do Estado.
Por exemplo, no que toca ao Judiciário, alternativa pluralista poderia contar com
tribunais populares, dirigidos por membros das várias comunidades (cf.

24
MANGABEIRA UNGER, 1997). A imaginação institucional não tem limites. Tem-se
espécie de anti-governo, que emerge estruturalmente de associação voluntária.
Sigo com Mangabeira, apresentando a primeira tese.

“ Primeira tese: Da história das instituições democráticas-

A tradição constitucional dominante no Ocidente deriva hoje de duas


séries de estruturas e de idéias. A primeira série consiste em uma preferência
por formas constitucionais que fragmentam o poder, favorecem o impasse e
estabelecem uma equivalência rudimentar entre o alcance transformador de
um programa político e a severidade dos obstáculos constitucionais-legais e
político-práticos que surgem no decorrer de sua execução. Tanto o sistema de
"freios e contrapesos" em regimes presidenciais no estilo americano, quanto
a necessidade de basear o poder político em um amplo consenso dentro da
classe política, nos regimes parlamentares, exemplificam essa preferência
inibidora. A segunda série de estruturas e idéias na tradição dominante
consiste na adoção de regras e práticas que mantêm a sociedade em um nível
relativamente baixo de mobilização política. Essas práticas gradualmente
tomaram o lugar dos dispositivos institucionais do liberalismo
protodemocrático - os limites ao sufrágio e o recurso a níveis múltiplos de
representação - que garantiam a propriedade contra o populismo. Os pro-
gressistas devem rejeitar e substituir ambas as partes dessa tradição.”
(MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 207/8).

Mangabeira dá-nos conta de uma tradição constitucional. Essa tradição radica


em percepções de supremacia constitucional, e se desdobra no neoconstitucionalismo;
trata-se esse último de movimentação conceitual: é que a contemporaneidade daria
conta de que os textos legais podem ter pouco valor prático. Como tentativa última de
realização de valores jurídicos os comandos emigram: partem das leis ordinárias e
homiziam-se nos textos constitucionais. O mundo parece se fragmentar em duas
vertentes: o que é constitucional e o que é inconstitucional. Vicejam tribunais e
modelos de controle de constitucionalidade, que são identificados menos como
responsáveis por impasses institucionais que beneficiam a alguns, do que como
supostos instrumentos de realização democrática.
Essa tradição constitucional é encontrada em todos os lugares, especialmente
onde jamais se cogitou de constituição, em épocas que desconheciam esse conceito
contemporâneo; assim, por exemplo, já se falou até de constitucionalismo hebraico, de
feição bíblica. Embora com variações de pormenor, essa tradição constitucional de que
trata Mangabeira vem conhecendo textos constitucionais muito parecidos, o que sugere
afastamento para com valores e idiossincrasias locais. Inglaterra, Estados Unidos,
México, Peru, Paraguai, Argentina, Brasil, Alemanha, França, Bélgica, Espanha,
25
Cidade do Vaticano, Itália, Portugal, Marrocos, Angola, África do Sul, Irã, Israel,
Afeganistão, China, Tailândia, Índia, Mongólia, Japão, Nova Zelândia, Austrália e
Vanuatu, apenas para citar países que tratei em recente livro que escrevi,
fundamentados em valores de direitos humanos, que poucos se atrevem a dizer para
quem servem e quem os dita (GODOY, 2006). Trata-se da antiga discussão entre
universalismo e particularismo, que agita a antropologia forense, especialmente em
nicho de pluralismo jurídico.
O historicismo que remonta a Hegel e a Verder, com estações em Savigny,
perceberia direitos como manifestações simbólicas e factuais dos vários povos. É o que
se dá com outros elementos da cultura, a exemplo da gastronomia e das preferências
voluntárias que marcam as opções da vida cotidiana. Esse esperanto jurídico que se
pretende impor, e que é traço marcante dos processos de globalização, reduz
expectativas de experimentalismo.
É nesse sentido que as teses de Mangabeira ganham dimensão universal.
Modelos constitucionais contemporâneos parecem convergir para esquemas desenhados
nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, por exemplo. Controle de
constitucionalidade é assunto recorrente. Desprezam-se contextos institucionais
complexos e particularizados, em favor de modelos políticos e gerenciais regulares e
racionais, que ambientes de formação avessa à tradição iluminista ocidental
desconhecem.
Até que ponto, e de que modo, conteúdos políticos como Assembléia Nacional
Constituinte, que é prioritariamente subproduto das democracias ricas do Atlântico
Norte, alcançariam significado empírico idêntico na Bolívia, no Brasil, na Indonésia, ou
onde quer que se imagine. Deixa-se de lado, ainda, tradições de fundo religioso, marcas
de sociedades que se pretende transformar, em nome de conjunto institucional que
promova a destruição da pluralidade. O regime de tripartição de poderes parece ser
imposto ao mundo todo, promovendo-se mcdonaldização do direito, a propósito de
imagem grosseira, porém de muita expressão.
Torna-se inglória a pregação do experimentalismo institucional em contexto
dominante que insiste na uniformização institucional, americanizada, reveladora de
conjunto de forças que promove ideário dominante, que Antonio Negri denominou de
Império, intrigante livro que também sugere que se neguem as estruturas dominantes.
Não é muito pequena a legião dos inconformados.
As estruturas e idéias que Mangabeira menciona indicam pulverização do poder,

26
em nome de equilíbrio de forças, de modelo de freios e contrapesos, que apenas
favorecem ao impasse. À vetusta concepção de Montesquieu, que a tradição se
apoderou de modo a justificar a inércia, Mangabeira sugere mecanismos para tomada
de decisões, que propiciem maior velocidade para a mobilização política.
No caso específico brasileiro, há previsão constitucional para tal, a exemplo do
que se lê no art. 14 da constituição brasileira de 1988, que dispõe que a soberania
popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor
igual para todos, e, nos termos de lei, mediante: I- plebiscito; II- referendo; e III-
iniciativa popular. Exemplo desse mecanismo, que perpetua impasses, é a locução “nos
termos de lei”, que a dogmática identificaria como norma constitucional que necessita
de complementação.
Passadas quase duas décadas da promulgação do texto da constituição de 1988,
ainda hoje tramita o projeto de lei nº 4.718, de 2004, que contempla nova
regulamentação do referido art. 14 do texto constitucional. O projeto é da Ordem dos
Advogados do Brasil; a autoria é de Fábio Konder Comparato; iniciativas estratégicas
do executivo exigiram manifestação plebiscitária. O núcleo da primeira tese de
Mangabeira exige o implemento de técnicas políticas que oxigenem mecanismos de
participação popular.
Em texto de feição mais teórica Mangabeira deu indícios do que entenderia por
esse mecanismo de energização da democracia, assunto que emerge na primeira tese e
que será retomado na segunda delas:
“ A solução consiste em se equipar o sistema presidencialista com mecanismos que
permitam soluções rápidas para os impasses naturais do entorno político . Uma
fórmula adequada radica na utilização de plebiscitos e de referendos, qualificando-se
elementos das democracias direta e representativa. Eleições também poderiam ser
antecipadas, em âmbito de executivo e de legislativo, com previsão de que haveria por
parte desses poderes competência para adiantar e fixar datas para as referidas
eleições. Seria possível, assim, reverter-se a lógica do sistema presidencialista,
acelerando-se e aquecendo-se a movimentação em torno da política. O resultado seria
aferível no assentamento de um regime constitucional que lembra a quinta república
francesa. Entretanto, ao invés de alternativas que oscilam entre sincronia decisional,
marcada pela coincidência entre as maiorias que apóiam o executivo e o parlamento, e
seu oposto, quando dá-se apenas uma coexistência tolerada entre maiorias, assumir-
se-ia a primeira opção como mais adequada.” (MANGABEIRA UNGER, 2005, p.
105/106).

E a propósito da história das tradições democráticas, identificador conceitual


de sua primeira tese, Mangabeira tem insistido em conteúdo místico que marca a
trajetória do conceito no mundo ocidental. Essa história mítica confunde-se com a

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narrativa da organização industrial e dos direitos privados. Para Mangabeira, liberais e
marxistas colaboram na concepção dessa narrativa, fazendo-o, no entanto, a partir de
diferentes pontos de vista. Combinam-se anedotas curiosas com indicações de certo
desenvolvimento inevitável; imagina-se como que as massas foram paulatinamente
incorporadas no cenário político, bem como limitações foram impostas aos governos,
como forma de garantia de direitos inalienáveis e de liberdades historicamente
alcançadas (cf. MANGABEIRA UNGER, 2001, p. 211 e ss.).
A tradição democrática é eixo comum do discurso norte-americano. As
narrativas de Aléxis de Tocqueville contribuíram para a formação desse conteúdo
discursivo, raramente desafiado. Leis, costumes, sentimentos e opiniões, foram os
núcleos da então incipiente democracia norte-americana que agitaram a curiosidade do
viajante francês. Por exemplo, na segunda parte do primeiro volume de Democracia na
América, Tocqueville pretendia identificar como se pode dizer rigorosamente que nos
Estados Unidos é o povo que governa. O excerto é denso, e demonstra conjunto de
opções que à época, e inegavelmente, circunstancializavam experimentalismo que
Mangabeira pretende retomar.
Nesse sentido, Tocqueville ocupou-se de assuntos nucleares para a reflexão
democrática, a exemplo do papel dos partidos políticos, da liberdade de imprensa, dos
modelos de associação política, do voto universal, das escolhas populares e da
referência dessas com imaginário instinto democrático, da relação entre o modelo
democrático e a estrutura do regime eleitoral, do papel do funcionário público, da
arbitrariedade dos magistrados, da instabilidade administrativa, da ocupação dos cargos
públicos e, em especial, dos esforços de democracia nascente para com a paz de que se
cogitava.
Tocqueville impressionou-se com as vantagens reais que a sociedade norte-
americana retiraria de um governo democrático. Havia certo espírito público que
atormentava o viajante francês, no bom sentido. As observações que anotou foram
colhidas entre abril de 1831 e março de 1832; os norte-americanos protagonizavam
conjunto de experiências que seriam retomadas por força de outras circunstâncias,
somente no século XX, ao longo do conjunto de reformas que acompanhou o New
Deal.
Hoje, Tocqueville não reconheceria a América que visitou. As observações que
colheu, no entanto, identificam ambiente que se dirigia por experimentalismo
democrático, no qual tudo se tentava. O viajante francês empolgava-se; o aristocrata do

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velho mundo presenciava experiência que apontava para um Éden que se construía no
mundo novo. Essa disposição para a mudança, percebida por Tocqueville, é o espírito
que o projeto de Mangabeira pretende alcançar. Ilustro o conceito, com as imagens de
Tocqueville, que dão conta de experimentalismo, defendido por Mangabeira.
Tocqueville surpreendeu-se com o que nominou de inteligência governamental
e teorias avançadas do legislador (TOCQUEVILLE, 2005, vol. 1, p. 49). Religião e
liberdade civil qualificavam nobre exercício de faculdades humanas (cf., cit, p. 52).
Mas críticas havia também, a exemplo da legislação penal que previa a prisão ou
fiança; voltar-se-ia contra o pobre, em favor do rico (cf., cit., p. 53). Tocqueville
espantava-se com a importância que se dava ao direito sucessório (cf., cit., p. 57). O
francês percebia dois governos distintos: União e Estados Federados; afirmou que os
princípios políticos eram desenvolvidos no âmbito dos Estados. Tocqueville encantou-
se com a naturalidade que animava a formação das comunas (cf. cit., p. 70).
O magistrado francês perturbava-se com ausência concreta da administração;
não encontrava funcionários no dia-a-dia, porém percebia um motor que tudo movia.
As coisas funcionavam (cf. cit., p. 82). Tocqueville observou que a sociedade contava
com dois meios para fazer com que funcionários públicos respeitassem as leis; a
destituição em caso de desobediência era um deles (cf. cit., p. 85). E se na França o
servidor público era controlado por meio de forte hierarquia administrativa, nos Estados
Unidos era o regime de eleições que vigia seus passos (cf. cit., p. 89); para Tocqueville,
o europeu via no funcionário público a força, o norte-americano, o direito (cf. cit., p.
107).
Tocqueville observava também que o mais difícil para o europeu era
compreender o funcionamento da estrutura judiciária (cf. cit., p. 111). É o que os norte-
americanos reconheciam, segundo Tocqueville, que juízes poderiam lastrear decisões
na constituição, e não nas leis (cf. cit., p. 113). O francês sentia a aproximação entre
direito e política (que Mangabeira sempre evidenciou); juízes, de acordo com
Tocqueville, eram levados à política, independentemente de suas vontades; julgavam a
lei, na medida em que decidiam os processos que lhes eram submetidos (cf. cit., p.
116). A força moral dos tribunais tornava muito raro o uso da força (cf. cit., p. 158).
Uma técnica de compromisso nortearia a compreensão constitucional - - havia dois
grandes interesses em jogo - - de uma lado a União, de outro, os Estados.
Segundo Tocqueville, esse enredo de compromisso plasmava tarefa difícil para
o legislador norte-americano: a concepção de executivo forte que pudesse agir com

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liberdade (cf. cit., p. 136). Para o observador francês, “o legislador parece o homem
que traça sua rota no meio dos mares (...) ele também pode dirigir o barco que o
transporta, mas não poderia mudar sua estrutura, criar os ventos, nem impedir que o
oceano se erguesse a seus pés” (cit., p. 185). A eleição do presidente causaria agitação,
e não ruína (cf. cit., p. 148).
Há excertos de admiração explícita; exemplifico com passagem que indica
opinião de Tocqueville, no sentido de que “a constituição dos Estados Unidos parece
essas belas criações da indústria humana que enchem de glória e de bens os que as
inventam, mas que permanecem estéreis em outras mãos” (cit., p. 187). O sentido
democrático é muito latente, e Tocqueville explicava que “ o povo nomeia aquele que
faz a lei e aquele que a executa” (cf., cit., p. 197). A liberdade de imprensa o assustava;
sentia que essa autonomia podia modificar a lei e os costumes. Lembrava que “(...) em
país que reina o dogma da soberania do povo a censura não é apenas um perigo, é um
grande atraso” (cit., p. 208).
Direito de associação, voto universal, entre outros, eram assuntos que
chamavam a atenção do viajante francês. A instabilidade das leis era tida como ponto
positivo (cf., cit., pl. 237), idéia que anima Mangabeira, a propósito de teoria
constitucional; o pensador brasileiro insiste que plasticidade é categoria que deve
informar o direito, que deve ser freqüentemente revisto, de modo a possibilitar que se
vençam impasses. Tocqueville também parece avançar admiração de Mangabeira para
com Thomas Jefferson; é que para o nobre francês Jefferson fora o mais poderoso
apóstolo que a democracia conhecera (cf. cit., p. 305).
A América que Tocqueville observou vivia ritmo frenético de transformações,
marcadas por experimentalismo ilimitado. É essa plasticidade que Mangabeira
recomenda, objetivando garantir espaço para as reformas com as quais conta.
Prossigo com a segunda tese.

“ Segunda tese: Das estruturas constitucionais de governo-

Um estilo constitucional projetado para acelerar a política e favorecer


a prática repetida e freqüente de reforma básica deveria combinar um forte
elemento plebiscitário com uma ampla faixa de canais para a representação
política da sociedade. Por exemplo: um parlamento forte coexiste com um
presidente eleito em pleito direto, com substanciais poderes de iniciativa
política. Mas o modelo padrão híbrido de regime presidencial e parlamentar
(como na Constituição da Quinta República) é substituído por um sistema que
evita o governo fraco e a perpetuação do impasse. Esse sistema funciona de

30
acordo com os princípios enumerados a seguir. Primeiramente, os programas
de reforma gozam de prioridade sobre a legislação episódica ordinária; esses
programas precisam ser aceitos de comum acordo, rejeitados, ou negociados
rapidamente. Em segundo lugar, sob tal. sistema, se o presidente e o
parlamento não estão de acordo quanto ao programa de reforma, podem
concordar com a realização de plebiscitos ou referendos. Em terceiro lugar, se
os poderes políticos do Estado não conseguem chegar a um acordo a respeito
da realização ou dos termos de uma consulta popular, ou se o resultado da
consulta não for decisivo, então o parlamento ou o presidente podem
convocar eleições antecipadas, mas as eleições devem ser simultâneas para
ambos os setores do governo. O princípio geral é uma solução rápida do
impasse por meio de um envolvimento direto do eleitorado geral. O objetivo é
acelerar o experimentalismo democrático, facilitando a prática repetida da
reforma radical: mudança nas instituições e práticas formadoras da
sociedade, bem como das crenças estabelecidas nas quais elas estão inseridas.
Em muitos países, com partidos políticos fortes e eleitorado bem-informado, a
reforma de um sistema parlamentar de governo pode produzir resultados
semelhantes.” (MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 208).

A segunda tese assenta-se em mecanismo de participação plebiscitária, idéia que


já se desenhava na tese anterior. Não obstante a menção expressa ao constitucionalismo
francês, o referencial é extensivo ao modelo constitucional alemão do entre-guerras, tal
como construído em Weimar, sob a liderança de Hugo Preuss, e com alguma influência
de Max Weber. À época, parecia triunfar uma esquerda liberal, dirigida pelo próprio
Hugo Preuss e por Hans Kelsen, que judicava e ensinava em Viena. Concebeu-se uma
constituição soberana, de forte inspiração popular, com estações conceituais em Georg
Jellineck e em Gerhard Anschütz.
As idéias desse grupo associavam-se ao pensamento de Rudolf Smend e de
Heinrich Triepel, para quem a constituição encetava valores invioláveis da comunidade.
Herman Heller, identificado com a social-democracia, propunha texto constitucional
como garantidor social. À direita, emergia noção mais substancial de Volk, com poderes
de decisão que transcenderiam ao caos e à emergência. Seu representante maior foi Carl
Schmitt, que polemizou com Kelsen, e que se identificou com o nazi-fascismo que lá
brotou (cf. CALDWELL, 1997).
A República de Weimar conheceu governos em permanente estado de crise (cf.
MOMMSEN, 1996, p. 357 e ss.). Um pluralismo partidário excessivo teria
potencializado desintegração que ensaiou ao longo de toda a década de 1920 (cf.
KOCH, 1984, p. 278). O art. 73 da Constituição de Weimar previa que o Presidente
poderia submeter ao povo a aprovação de qualquer legislação, por plebiscito, antes da
promulgação da lei que se discutia (cf. HUCKO, 1989, p. 165). Em contrapartida,

31
previa-se grande parcela de poder ao Presidente, que nos termos do art. 48 daquele
texto constitucional poderia tomar medidas discricionárias, inclusive mediante o uso
das forças armadas (cf. HUCKO, cit., p. 160).
A tese plebiscitária, em favor de mecanismo que suscite resolução de impasses,
e que tem antecedentes no modelo do pós-guerra francês e no modelo do entre - guerras
alemão, identifica força inspiradora das propostas de Mangabeira. Concomitantemente,
alcança-se o processo legislativo, na medida em que se propõe preferência para o
encaminhamento e processamento de reformas de fundo, em desfavor de produção
normativa episódica. O processo legislativo brasileiro presentemente previsto no
modelo constitucional (art. 59 e ss. da constituição de 1988), e que compreende a
elaboração de emendas à constituição, leis complementares, leis ordinárias, leis
delegadas, medidas provisórias (que indevidamente copiamos da Itália), decretos
legislativos e resoluções, em princípio, qualificaria obstáculos à proposta, a menos que
modelos de plebiscitos e de referendos pudessem intervir adequadamente. No entanto,
ainda restaria espaço para discussão, e eventualmente para impasse, dado o controle de
constitucionalidade de leis, exercido pelo judiciário em geral, de forma difusa, e pelo
Supremo Tribunal Federal, em especial, de forma concentrada.
Em outras palavras, poderia o Supremo Tribunal Federal declarar
inconstitucional uma norma aprovada por mecanismos de plebiscito e de referendo? A
questão não é acadêmica, e freqüenta a discussão constitucional norte-americana, por
exemplo. É que, dado que não há previsão expressa na constituição dos Estados
Unidos, outorgando ao poder judiciário o poder de declarar a inconstitucionalidade de
leis, construiu-se doutrina indicativa de que controle de constitucionalidade
consubstanciaria engenharia normativa contra-majoritária. O debate é longo, e radica,
de certa maneira, no caso Marbury v. Madison, de 1803.
Em 1801, em fim de mandato presidencial, John Adams apontou juízes
vinculados a seu partido, para postos que estavam vagos no judiciário federal norte-
americano. Entre eles, William Marbury, que ocuparia um juizado de paz na capital
federal, no distrito de Columbia. Ocorre que a investidura do novo magistrado não se
deu a tempo. Thomas Jefferson (inimigo político de Adams) tomou posse como
presidente e recusou-se a aceitar a nomeação dos juízes indicados pelo desafeto.
Sentindo-se prejudicado e acreditando-se no direito potestativo de exercer a
magistratura para a qual fora legalmente indicado, William Marbury protocolou pedido
junto a Suprema Corte norte-americana. Requereu que o judiciário ordenasse que

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Thomas Jefferson cumprisse a ordem legítima e acabada de John Adams. Processado o
requerimento, citou-se James Madison, secretário de estado, para que apresentasse
defesa em nome do governo.
Do nome das partes a identificação do caso: Marbury vs. Madison. James
Madison não contestou a ação. O executivo simplesmente não tomou conhecimento de
que havia matéria pendente no judiciário. O presidente da Suprema Corte (chief justice)
John Marshall (que fora secretário de estado de John Adams) viu-se em situação difícil.
Se ordenasse que Jefferson empossasse Marbury, não teria como implementar o
comando; a Suprema Corte seria desmoralizada. Se desse razão a Jefferson, sem que ele
sequer tivesse se defendido, pareceria temeroso, fraco; a Suprema Corte sairia da
contenda desmoralizada também. Porém Marshall, o grande chief justice, notabilizou-se
como mestre em tergirversar em momento de perigo. Marshall redigiu sua decisão
(opinion) confirmando que Marbury estava correto, que estava intitulado a tomar posse
e a entrar em exercício como juiz de paz em Columbia. Aproveitou para criticar
Jefferson e a política do partido que estava no poder. Porém, observou que o artigo de
lei que Marbury utilizara para instruir seu pedido (com base num ato judiciário de
1799) era inconstitucional, nulo (void). Segundo Marshall a Suprema Corte não tinha
jurisdição originária para apreciar o pedido como formulado por Marbury. Embora
substancialmente correto, Marbury teria buscado remédio jurisdicional com base em
regra inconstitucional. Marshall não enfrentou Jefferson, não deixou de dar razão a
Marbury, salvou a Suprema Corte do descrédito e estabeleceu precedente que dá início
ao controle de constitucionalidade nos Estados Unidos da América do Norte. Jefferson
sentiu-se vitorioso e não criticou a decisão, que passou a valer desde então.
E voltando ao alcance do plebiscito e do referendo, no caso brasileiro, há ainda
o conjunto normativo que informa as cláusulas pétreas, ou o bloco constitucional
sensível, tal como enunciado no § 4º, do art. 60, da constituição de 1988, e que veda
deliberação de proposta de emenda tendente a abolir a forma federativa de Estado, o
voto direto, secreto, universal e periódico, a separação dos poderes e os direitos e
garantias individuais. Do ponto de vista dogmático, como se evidenciará, propostas de
nova sistemática de fracionamento de poderes encontrariam resistência no próprio texto
constitucional. E não há subterfúgio em jocosa lembrança que nos daria conta de que
para toda cláusula pétrea haveria uma emenda britadeira...
O baixo envolvimento do eleitorado brasileiro no processo político é questão
clássica, e recorrente, em nossa estrutura republicana. Além disso, “(...) o

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comportamento eleitoral conservador, clientelista e deferente em relação aos chefes
políticos locais, expresso no voto situacionista, tem caracterizado principalmente as
camadas urbanas mais marginalizadas e especialmente os setores mais pobres da
população das zonas rurais e das pequenas cidades do interior, principalmente das
regiões mais atrasadas do país” (cf. CASTRO, 2004, p. 291). Essa baixíssima
participação qualifica a inexpressiva expressão do interesse local, no debate das causas
nacionais, e que são em última instância ontologicamente locais. Nesse sentido, o
estudo de Victor Nunes Leal, e a denúncia do coronel, o manipulador de vontades
eleitorais:
“Qualquer que seja, entretanto, o chefe municipal, o elemento primário desse tipo de
liderança é o ‘coronel’, que comanda discricionariamente um lote considerável de
votos de cabresto. A força eleitoral empresta-lhe prestígio político, natural coroamento
de sua privilegiada situação econômica e social de dono de terras. Dentro da esfera
própria de influência, o ‘coronel’ como que resume em sua pessoa, por exemplo, uma
ampla jurisdição sobre seus descendentes, compondo rixas e desavenças e proferindo,
às vezes, verdadeiros arbitramentos, que os interessados respeitam. Também se
enfeixam em suas mãos, com ou sem caráter oficial, extensas funções policiais, de que
freqüentemente se desincumbe com a sua pura ascendência social, mas que
eventualmente pode tornar efetivas com o auxílio de empregados, agregados ou
capangas.” (LEAL, 1975, p. 23).

A solução de impasses pelo eleitorado, muito menos do que instrumento de


resolução de problemas, exige eleitores dispostos e interessados, conscientes do valor
que o sistema outorgaria à decisão que tomassem. Mantidas as condições atuais, com
mera atualização tecnológica dos mecanismos denunciados por Victor Nunes Leal, o
que se alcançará será a multiplicação de programas eleitorais, dirigidos por
marqueteiros, fazendo-se do político uma mistura bem engendrada de ingredientes que
qualificam os heróis da mídia.
Mangabeira sugere que devamos discutir a estrutura constitucional dos governos
centrais; em nenhuma área é maior nossa dependência para com tradição conceitual
monolítica. Circunstancialmente somos prisioneiros de idéias que marcaram o debate
político nos fins do século XVIII e no início do século XIX. E de tal modo, acabamos
convencidos de que essas idéias substancializam o que há de melhor no conjunto
conceitual da democracia liberal, protagonizando-se ainda outro capítulo da narrativa
mitológica do avanço democrático. Especialmente após a queda dos regimes socialistas
ao longo da década de 1990 esse modelo de persuasão funcionou perfeitamente;
exemplo mais eloqüente encontra-se em Francis Fukuyama que, posteriormente, no
entanto, deixou de fazer apologias ao triunfo do liberalismo ocidental (cf.

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FUKUYAMA, 2006). O constitucionalismo liberal é historicamente instrumento em
favor de privilegiados, de notáveis; tenta-se obstruir a participação das massas e dos
demagogos (cf. MANGABEIRA UNGER, 1997).
A democracia radical, tal como engendrada nas teses de Mangabeira, articularia
alternativa para o modelo elitista com o qual se conta. E Mangabeira percebeu elo
perdido, e esquecido na tradição que remonta ao modelo da constituição de Weimar;
lembra-se de uma esquerda hesitante e embaraçada, com a qual se identificavam Hugo
Preuss e Hans Kelsen. Tentava-se reagir em face de um passado imediato, representado
pelo autoritarismo da Alemanha guilhermina e bismarquiana.
Lutava-se contra um executivo autoritário. Tentava-se racionalizar o governo, e
certa seria a influência de Max Weber (cf. MOMMSEN, 1984). Buscava-se identificar
o centro do poder governamental para, em seguida, conseguir-se fórmula legal para
discipliná-lo. Alterações políticas promoveram a revisão desses textos constitucionais.
De um lado, observou-se mudança no balanço político, em favor da direita. Foram
adotados modelos dualísticos, com dois poderes eleitos por sufrágio direto; quebrava-se
o monopólio com adoção de convívio entre parlamento e presidência (cf.
MANGABEIRA UNGER, 1997).
À época, primeira metade do século XX, especialmente em sua segunda década,
tentava-se maximizar aspectos populares da democracia indireta. Concomitantemente,
outorgava-se ao governo poder de iniciativa decisional. No entanto, o esquema não
permitia ameaça à primazia do apelo às massas. Impasses eram resolvidos mediante
eleições gerais. Esse modelo fora utilizado pela constituição portuguesa de meados da
década de 1970 (cf. MANGABEIRA UNGER, 1997). Observe-se que essas premissas
e circunstâncias não se aplicam ao desenho institucional brasileiro. É o que demonstro
em seguida.
A nossa constituição de 1891 era elitista, desprestigiava a população humilde,
vedava o voto aos analfabetos e às mulheres. A reforma de 1926 não substancializou
nenhum avanço. O poder era monopólio dos coronéis ligados à posse da terra; os
estados produtores de café revezavam-se na presidência da República, com apoio
indiscreto dos governadores estaduais. O golpe de 1930 (que levou para o exílio o avô
de Roberto Mangabeira Unger, Octávio Mangabeira, que fora ministro das relações
exteriores de Washington Luís), e a superveniente constituição de 1934, não alteraram
esse estado de coisas, com exceção do voto feminino que, de resto, não fora de
imediato implementado, por conta do golpe de 1937. A ditadura que sobreveio, bem

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como o modelo populista que emergiu institucionalmente da carta de 1946, não
corrigiram essas disfunções. Digo o mesmo do texto constitucional de 1988, não
obstante a aura de verticalidade democrática que se lhe tenta imputar, por parte dos
constitucionalistas brasileiros mais convencionais. Prossigo com a terceira tese.

“ Terceira tese: Da reorganização da política eleitoral-

Uma elevação sustentada do nível de mobilização política é necessária


para a aceleração do experimentalismo democrático em todos os campos da
vida social. O nível de mobilização política não é um fato natural na vida de
uma sociedade ou uma cultura; é, em grande parte, um artefato, sensível às
mudanças nas regras e nos instrumentos da política. Entre essas mudanças
estão: financiamento público de campanhas políticas; expansão do livre
acesso aos meios de comunicação para os partidos políticos e movimentos
sociais; multiplicação das formas de propriedade dos meios de comunicação;
normas de votação obrigatória; e mudanças no regime eleitoral. Um sistema
de listas fechadas e de representação proporcional é geralmente mais eficiente
para reforçar os partidos políticos como agentes de propostas estruturais.
Entretanto, a adoção temporária de eleições majoritárias pode, em alguns
países, ajudar a reativar um sistema partidário enrijecido e a revelar coalizões
progressistas e conservadoras subjacentes. Uma política de reiterada
mudança estrutural é necessariamente uma política de alta energia. Para que
a alta energia sobreviva aos surtos de entusiasmo coletivo tem de encontrar
sustentação em instituições propícias à ascensão do engajamento político
popular. Para que a alta energia exerça um efeito produtivo duradouro deve
deixar seu trabalho inscrito na ordem institucional e criativa da sociedade.”
(MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 208/9).

A terceira tese ameniza problemas alavancados pela necessidade de se definir


modelo que fomente a participação do eleitorado, no regime plebiscitário imaginado.
Trata-se da previsão de financiamento público das campanhas eleitorais, o que também
propiciaria a igualdade de chances entre os concorrentes. Levo em conta que a proposta
de financiamento público para tais campanhas deve ser precedida de amplo movimento
de esclarecimento, dado que é senso comum que a opinião pública ainda não teria
alcançado as vantagens do modelo. É do próprio Mangabeira a defesa da simplificação
das aparições de candidatos na televisão. Tela branca ao fundo, com certeza,
determinaria maior concentração em propostas, hoje diluídas e manipuladas nos
programas produzidos por especialistas em espetáculos de diversão pública.
O código eleitoral vigente, de 1965, em título alusivo à propaganda partidária,
elenca conjunto de regras que não toca objetivamente no problema. Por exemplo,
prescreve-se que “a propaganda de candidatos a cargos efetivos é permitida após a

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respectiva escolha pela convenção” (art. 240). Explicita-se neutralidade imaginária na
medida em que “toda propaganda eleitoral será realizada sob a responsabilidade dos
partidos e por eles paga, imputando-lhes solidariedade nos excessos praticados, pelos
seus candidatos e adeptos” (art. 241). Alteração de 1986 determinou que ”a
propaganda, qualquer que seja a sua forma ou modalidade, mencionará sempre a
legenda partidária e só poderá ser feita em língua nacional, não devendo empregar
meios destinados a criar, artificialmente, na opinião pública, estados mentais,
emocionais ou passionais” (art. 242). A propósito, propaganda eleitoral em língua
estrangeira suscita pena de detenção de três a seis meses, combinada com pagamento de
multa (art. 355).
Em âmbito exclusivamente brasileiro, a defesa do financiamento público de
campanhas eleitorais foi explicitada em artigo publicado na Folha de São Paulo, a
propósito de considerações em torno da democracia direta:
“No Brasil, como em todo o mundo, não há como avançar na reconciliação do
crescimento econômico com a inclusão social sem democratizar a economia de
mercado. E não há como democratizar o mercado sem aprofundar a democracia. Para
crescer de maneira mais justa e portanto mais sustentável é preciso ampliar o acesso a
oportunidades econômicas e educativas. Para ampliá-las, inovar nas instituições de
mercado. E para inovar nelas, criar instituições políticas que facilitem a tradução de
aspirações coletivas em reformas práticas. Explica-se nesse quadro tendência
crescente nas democracias contemporâneas: o esforço de enriquecer a democracia
representativa com traços de democracia direta -- isto é, de participação direta do
eleitorado em decisões que afetem o futuro nacional e a vida quotidiana. É um das
preocupações mais candentes da assembléia que se está reunindo para formular a
constituição da União Européia. Basta abrir as revistas noticiosas do Primeiro Mundo
para constatar como se banalizou essa idéia. No Brasil a retórica oficial indicaria que
estamos prontos para esse debate. A constituição de 1988, logo em seu preâmbulo,
prevê que o povo exercerá o poder tanto por meio dos seus representantes quanto
diretamente, inclusive por plebiscitos e referendos. O atual presidente se diz partidário
da "radicalização da democracia". E os que se têm na conta de centro-esquerda
moderna no Brasil vem há anos pregando a conveniência de complementar a
democracia representativa com traços de democracia direta. Era da boca para fora?
Há agora razão para levar tais compromissos a sério. Não construiremos saída para o
Brasil sem continuar a exigir imensos sacrifícios do povo brasileiro (...) A tarefa mais
urgente é sanear a política por meio do financiamento público das campanhas
eleitorais. (...)” (MANGABEIRA UNGER, Democracia Direta?, Folha de São Paulo,
s.d.).

O programa sugere novo modelo de relacionamento entre partidos políticos e


meios de comunicação. A concepção de valores financeiros razoáveis para a
propaganda eleitoral provavelmente potencializaria idéias, em prejuízo do espetáculo e
da exploração da imagem. Debates entre políticos não poderiam se render ao uso do
truque cinematográfico. A ambição de mudança transformaria por alguns instantes a

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televisão, espaço do imaginário e da realidade criada, no real, nicho da experiência
concreta, sem que socorra de subterfúgios que marcam programas populares, de
exploração da hiper-realidade da desgraça ou da realidade maquiada do voyeurismo. A
reorganização da política eleitoral exige reestruturação dos partidos políticos, cujo
fortalecimento é defendido por Mangabeira. Em excerto na imprensa, com o título de
Brasil Desacorrentado, a situação foi colocada:
“O Brasil precisa de outro rumo. Um rumo que reconcilie a retomada do crescimento
com a democratização das oportunidades e das capacitações. Não é nem utópico no
conteúdo nem radical nos métodos. Exige moderação e paciência. Passa pela
reconstrução de idéias e de instituições. Nem por isso, porém, esse novo caminho é
inviável. Ele é apenas difícil. A condição de país muito desigual e relativamente
desorganizado não nos impede de trilhá-lo. Pelo contrário, o Brasil reuniria hoje
melhores condições do que a grande maioria das nações, ricas ou pobres, para
percorrer uma trajetória que interesse a nós e anime a muitos, mundo afora. Reuniria,
se não fosse pelo efeito combinado de quatro realidades. Essas realidades dificultam o
surgimento do movimento de forças e idéias que ofereça ao país a alternativa de que
precisamos. E negam ao Brasil a posse de si mesmo. A realidade institucional é a falta
de regime de partidos políticos fortes e democráticos. Nossos partidos costumam ser,
ao mesmo tempo, fracos e despóticos. A realidade social é a desinformação popular
(...).” (MANGABEIRA UNGER, Brasil Desacorrentado, Folha de São Paulo, s.d.).

Modelo de financiamento público para as campanhas eleitorais teria como


resultado menor dependência do político profissional para com o empresário. Nesse
sentido, empresários e políticos somente poderiam conversar sob holofotes, teria
afirmado Roberto Mangabeira Unger em propaganda política de TV. De outro lado, a
terceira tese sugere reflexão em torno do conflito partidário, especialmente a partir da
presunção de estabilidade política em ambiente de democracia fortalecida.
Ao que consta, a objeção provavelmente mais óbvia para constitucionalismo de
mobilização seria a suposta impossibilidade de se garantir um mínimo de estabilidade
institucional. De tal modo, tudo sugere desenho explícito que implique diminuição do
Estado e da sociedade, potencializando-se a confusão generalizada. Tomando-se a
questão em seu limite, essa instabilidade imaginária negaria as vantagens de formas
concretas de associação alternativa. Eventual instabilidade do regime deveria ter como
antídoto líderes firmes e modelos prenhes de pacifismo institucional (cf.
MANGABEIRA UNGER, 1997).
O meio é o financiamento público das campanhas eleitorais. Para Mangabeira,
os governos não podem se acertar em busca de financiamentos eleitorais. O país deve
conhecer a consolidação de bases para a emergência de partidos fortes. Não se pode
aliciar a mídia por meio de verbas. Listas fechadas e voto partidário configurariam

38
modelo eleitoral mais adequado. A relação mafiosa entre empresário e política deve ser
abominada. Para Mangabeira, “voto não é distribuição de medalha em concurso de
prêmios; é decisão a respeito do futuro”.
Classes sociais deveriam ser dissolvidas em grupos de opinião, o que seria
indicativo de libertação de mais uma necessidade falsa, embora, bem entendido, para os
liberais clássicos a sociedade ocidental já teria atingido tal condição. Porém, disputas
partidárias mais acirradas dar-se-iam em torno de problemas e contradições; a
rivalidade partidária é compatível com a vida republicana e não é necessariamente
indicativo de instabilidade.
A segurança das pessoas é fortalecida com a disputa política; analogicamente.
Mangabeira indica as disputas religiosas que, do ponto de vista estritamente teológico,
potencializam a fé dos litigantes. É que dogmas e arranjos matizam a vida, embora não
consigam superar completamente as indecisões pelas quais passamos. Toda visão
radical deve ser tomada como desvio abrupto e total. Afasta-se da sociedade existente.
Alimenta-se a influência da responsabilidade e da experiência prática (cf.
MANGABEIRA UNGER, 1997).
Idéias e instituições são necessárias para que se organize o conflito pelo poder.
Deve-se abandonar qualquer concepção ingênua da vida política, como condição de
permanência dessa última, funcionando-se em torno de grupo de regras que permita o
debate e o encontro de saídas para os impasses. Direito e política carecem de priorizar
variáveis de distribuição participativa, de modo a se garantir a militância e a
participação de organizações coletivas. Mangabeira realisticamente reconhece, no
entanto, que as idéias que desenha, nesse campo temático específico, podem ser
perigosamente compatíveis com resultado não esperado por programa que defende o
fortalecimento da democracia. Segundo Mangabeira, explicitamente, no programa que
apresenta, “o cidadão torna-se cada vez mais indivíduo, em vez de mero boneco de
categoria de classe, ou de coletividade, ou de comunidade, ou de gênero, ou mesmo um
ator de drama histórico que não consegue compreender, e do qual não consegue
escapar” (MANGABEIRA UNGER, 1997, p. 321).
Segue a quarta tese:

“Quarta tese: Do conceito de direitos fundamentais-

Os progressistas devem reinterpretar, em vez de rejeitar, a idéia de di-


reitos fundamentais. Existe uma relação dialética entre a proteção aos in-
divíduos em um abrigo de interesses vitais e a capacidade dos indivíduos de

39
prosperar em meio a um experimentalismo acelerado. O papel dos direitos é
garantir às pessoas os equipamentos políticos, econômicos e culturais de que
elas precisam para se levantar, progredir e se relacionar. Esses direitos devem
protegê-las contra as inseguranças que podem tentá-las a abandonar sua
liberdade. Devemos retirar da agenda política de curto prazo a definição e a
atribuição desses equipamentos, para que possamos ampliar tal agenda com
maior eficácia. Assim, a relação dos direitos fundamentais com o a reforma
generalizada de uma democracia aprofundada é como a relação entre o amor
que uma criança recebe de seus pais e a capacidade da criança de se fazer e
refazer por meio de experiências. As pessoas deveriam herdar da sociedade, e
não de seus pais: deveriam ter uma conta de dotação social. A herança por
morte ou por meio de doação deveria ser limitada ao patrimônio exigido por
um padrão convencionalmente estabelecido de modesta independência. A
conta de dotação social deveria incluir tanto uma parte fixa quanto uma parte
variável. A parte variável deveria aumentar, por um lado, segundo um índice
medido de acordo com um princípio de compensação por necessidades
especiais - desvantagem física, social ou cognitiva -, e por outro, de um
princípio contraposto de acordo com um critério de recompensa por
habilidades especiais, por meio da competição entre os indivíduos para
incrementar suas contas. A educação, continuando por toda a vida, salvando
as pessoas, enquanto crianças, do controle imaginativo de suas famílias, sua
classe, seu país e seu tempo, e dando-lhes, quando adultas, o acesso a um
repertório de capacidades práticas e conceituais genéricas, representa o mais
importante fator de capacitação da liberdade individual e coletiva. É,
portanto, o principal objeto da conta de dotação social. Para manter o
impulso experimentalista precisamos investigar e comparar diferentes formas
de compor as contas e de restringir seu uso. Dessa forma, uma parte pode ser
recebida do governo como concessão em dinheiro e outra parte pode ser
mantida como ações ou participações - negociáveis, mas não conversíveis em
dinheiro vivo - em ativos produtivos. Parte do dinheiro terá de ser gasto de
acordo com formas predeterminadas, e regras fixas. Outra parte ficará em
disponibilidade para uma escolha entre usos alternativos e fornecedores
alternativos. Além disso, se essas estruturas de substituição de herança
impuserem um custo sobre a produção e a prosperidade, precisamos
determinar qual é esse custo e decidir que parte dele queremos assumir em
favor de uma forma de vida que nos equipe e nos una melhor. Redefiniremos
os assim, como escolha, algo que, de outra maneira, permaneceria como
destino.” (MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 210/211).

A proposta enseja nova leitura dos direitos fundamentais. Mangabeira deixa de


lado a retórica que marca o discurso desse conjunto de prerrogativas, outorgando ao
direito papel concreto, pragmático, opondo eficácia a padrões metafísicos de justiça. O
direito seria instrumento do progresso das pessoas, na medida em que possa garantir
meios de ação, a exemplo de opções políticas e econômicas. Percebe-se influência do
pragmatismo que viceja na cultura norte-americana, decorrente da obra de Charles
Sanders Pierce, William James e John Dewey.

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Todo o conhecimento o é para alguma coisa. E o direito, apenas para citar um
exemplo, reflete a decomposição do modelo social e não sua formação, como sugere a
doutrina contratualista. Deve propiciar segurança. É o que na obra de Mangabeira, em
linhas gerais, emerge com o título de direitos de imunidade, que propiciariam ao
cidadão formas de proteção de direitos e garantias.
A quarta tese dá conta de um dos pontos mais polêmicos no pensamento de
Mangabeira: a extinção dos direitos de herança e a concomitante criação de legado
social, o que ensejaria maior distribuição dos recursos sociais, bem como a
potencialização dos efeitos da meritocracia. Concebe-se mecanismo de ampliação do
acesso ao capital. As dotações sociais que substituiriam o direito sucessório tradicional
generalizariam a imaginada herança social. Tem-se indiretamente forma de
desagregação dos direitos de propriedade. Percebe-se poderosa tradição radical de mão
dupla, que na esquerda faz estações em Proudhon, Lassalle e Marx, e que na direita
aproxima-se de John Stuart Mill (cf. CUI, in MANGABEIRA UNGER, 1997, p. XV).
Foi Cornell West, que publicou livro com Mangabeira, que percebeu no
pensador brasileiro duas linhas de influência. De um lado, Thomas Jefferson, Ralph
Waldo Emerson e John Dewey. De outro, Jean-Jacques Rousseau, Karl Marx e Antonio
Gramsci (cf. WEST, 1990, p. 256 e ss.). São pensadores que se incomodaram com
experimentalismo, democracia, economia e revolução.
O pensamento tradicional dificilmente aceitaria a extinção dos direitos
sucessórios em favor de herança social. E não faço aqui fetichismo institucional. É
mera constação. Há obstáculos dogmáticos, a exemplo da previsão constitucional de
garantia do direito de propriedade, resguardada sua função social. Aparente antinomia,
paradoxo típico da colcha de retalhos discursiva que caracteriza a constituição de 1988,
por conta de tradição civilista, arraigada na percepção absoluta de propriedade, oriunda
do direito romano e da tradição civilística européia, acena para conjunto normativo que
garante o domínio das coisas, e bens em nome pessoal. É previsão constitucional
plasmada no conjunto dos direitos e deveres individuais e coletivos a garantia do direito
de herança (art. 5º, inciso XXX).
Antevê-se realisticamente resistência à idéia da abolição do mecanismo
sucessório, e há previsão normativa de grande aceitação que obstaculiza o projeto de
Mangabeira, nesse sentido. Não se trata de passo de antropologia jurídica justificativa
do direito das sucessões. Porém, colho do próprio Proudhon, alterando-se o que deva
ser alterado, passagem que evidencia eventual resistência à extinção do direito de

41
herança: “(...) pouco a pouco a experiência cria hábitos e estes, costumes, depois os
costumes formulam-se em máximas, arranjam-se em princípios, numa palavra,
traduzem-se em leis, às quais o rei, a lei viva, é forçado a respeitar (...)”
(PROUDHON, 1997, p. 27).
A discussão relativa ao direito de herança está implícita no problema colocado
pelo direito de propriedade. A tradição civilista não concebe propriedade por prazo
certo, ou por prazo sujeito a condição, suspensiva ou resolutiva. Em outras palavras, a
proibição do direito de dispor a respeito dos próprios bens seria, nessa linha de tradição
romanística, bem entendido, limitação do direito de propriedade que substancializa sua
destruição conceitual. A preocupação de Mangabeira com dotações sociais é
recorrente.
Na versão brasileira da introdução às Necessidades Falsas, por mim traduzida,
Mangabeira defende a necessidade de se assegurar para cada cidadão um quinhão de
dotações econômicas, a partir de uma conta de dotação social (cf. MANGABEIRA
UNGER, 2005, p. 95). Os valores que formariam esse fundo poderiam ser sacados pelo
interessado em alguns momentos fundamentais de sua vida, a exemplo do casamento,
do início de um curso superior, da compra de uma casa, da abertura de um negócio (cf.
MANGABEIRA UNGER, op.cit., loc.cit.).
Por fim, a quarta tese dá conta da defesa de modelo educativo que vise à
capacitação genérica. Mangabeira quer que se eduquem pensadores de problemas, e não
criaturas robóticas de mera reprodução de conhecimento acadêmico ou de fartura
mnemônica. Em artigo publicado na Folha de São Paulo, em 3 de fevereiro de 2003,
com o título Consenso para Educar, defendia a melhora da qualidade do ensino
público, decompondo a tarefa em três fases.
Propunha que se assegurasse mínimo de investimentos por aluno. Em segundo
lugar, insistia na necessidade de que se privilegiasse a capacitação analítica em
detrimento da memorização enciclopédica. Defendia também a necessidade de se dar
condições para o desenvolvimento do talento e da ambição dos alunos, com especial
referência aos estudantes pobres (cf. MANGABEIRA UNGER, Consenso para Educar,
Folha de São Paulo, 3 de fevereiro de 2003).
Em outro texto, também publicado na Folha de São Paulo, cuja data não consigo
precisar, propunha a radicalização da meritocracia. Deu conta da necessidade que há de
que se identifique, de modo objetivo, alunos aplicados e talentosos, de modo que sejam
dotados de estímulos especiais e de bolsas generosas (cf. MANGABEIRA UNGER,

42
Ensino Já, Folha de São Paulo, s.d.). A revolução do ensino público também foi objeto
de texto publicado por Mangabeira na Folha de São Paulo em 26 de setembro de 2005,
com o título de Aprofundar a Democracia. Apontou problemas de eficiência com os
gastos com ensino, em artigo publicado na Folha de São Paulo em 19 de julho de 2006;
pedia menos atenção para com prédios e mais cuidado para com as pessoas- e
especialmente, sugeriu que se aumentasse o tempo de presença do aluno no ambiente
escolar (cf. MANGABEIRA UNGER, Educação: Escolhas, Folha de São Paulo, 19 de
julho de 2006).
Para Roberto Mangabeira Unger, o ensino precisa ser democratizado. Creches e
escolas públicas carecem de atender em tempo integral. Não haveria prioridade maior.
Trata-se de se garantir às crianças um manto protetor. Pobres e talentosos seriam
identificados. Esforço nacional seria canalizado para o desenvolvimento de modelo de
ensino capacitador. O ensino público seria resgatado. A classe média deveria ser
convencida a matricular seus filhos na rede pública. Do ensino público essa classe
média seria fiscalizadora e avalista.
Ensino de qualidade rejeita a memorização de conteúdos, sem finalidade. Joga-
se fora a necessidade de se aprender decorando. Desenvolve-se modelo analítico, que
propicie capacitação conceitual de efeito prático. O enciclopedismo informativo é
definido como praga a ser destruída. Formam-se inovadores. Na linguagem de
Mangabeira, “coloca-se o imaginário no trono do saber”. Seu projeto distancia-se de
ensino unificado, individualista e autoritário.
A crítica ao ensino atual, de mera memorização, remete-nos a antológica
passagem de Schopenhauer, que reproduzo:
“Em geral, estudantes e estudiosos de todos os tipos e de qualquer idade têm em mira apenas a
informação, não a instrução. Sua honra é baseada no fato de terem informações sobre tudo,
sobre todas as pedras, ou plantas, ou batalhas, ou experiências, sobre o resumo e o conjunto de
todos os livros. Não ocorre a eles que a informação é um mero meio para a instrução, tendo
pouco ou nenhum valor por si mesma, no entanto é essa maneira que caracteriza uma cabeça
filosófica. Diante da imponente erudição de tais sabichões, às vezes digo para mim mesmo: ‘Ah,
essa pessoa deve ter pensado muito pouco para poder ter lido tanto! ’”. (SCHOPENHAUER,
2005, p. 20).

A educação é prioridade do Estado. Mangabeira abona que no Brasil até escolas


de elite oferecem decoreba e divagação, instâncias típicas de mentalidade retrógrada. O
ensino público deve ser sacudido. É que, segundo Mangabeira, falta-nos cultura
familiar que incentive o estudo e que reconheça a excelência acadêmica. Boa parte dos
ídolos nacionais, no esporte, na mídia, e até na política, fugiram da escola. O senso
comum pergunta: educar para quê?

43
Mangabeira define a educação como um único projeto que teria condições de
unir os brasileiros. O assunto assinala convergência na opinião pública. Persegue-se a
duras penas possibilidades e alternativas para educação formal. A queda na qualidade e
a desorganização generalizada do ensino público suscitam paradoxo muito amargo. A
classe média tornou-se refém da escola particular, os grupos sociais menos favorecidos
foram excluídos de modelos educacionais mais atraentes, e até de possibilidades
educativas meramente informais. A elite tem acesso ao ensino universitário público,
reduto que resiste bravamente ao assalto das circunstâncias pelas quais o país passa,
indicativas de acomodação para com opções neoliberais, que Mangabeira ridiculariza ao
dizer que derrotados e pessimistas assumiram a ideologia da humanização do inevitável.
Concomitantemente, desenvolve-se modelo de ensino superior dominado por
instituições privadas, que protagonizam um dos lados (necessários) de mecanismo
perverso, excludente e por vezes pouco producente.
O modelo todo se centra em regime escolástico que inibe a reflexão criativa e
que obstaculiza a tradução do abstrato na idéia nova. Memoriza-se. Decora-se.
Reproduz-se. Segundo Mangabeira, o aluno brasileiro precisa desesperadamente de
aprender a pensar. E deve aprender a traduzir o pensamento em escrita. Arrisco-me a
ampliar esse problema de traduzibilidade, tornando-o também glotológico, sem que isso
substancialize truísmo inconseqüente. É que o país convive com variáveis lingüísticas,
em âmbito popular e informal, que o modelo educativo arraigado teima em diminuir,
menoscabar e desprezar, ao invés de explicitar essa realidade, concomitantemente a
apelo para que se estude e que se potencialize a língua formal, sem que essa clivagem
signifique, necessariamente, mais uma medida de exclusão social. A dicotomia entre as
línguas portuguesa e brasileira se acentua - - ainda bem - -, sem que se esclareça a
importância de se cultivar a língua culta - - infelizmente. Quem perde é o cidadão,
perdido entre falas que não domina adequadamente. Não consegue traduzir o
pensamento em escrita, porquanto, como regra, há muita gente que pensa em uma
língua e escreve em outra.
Vivemos preconceito lingüístico, centrado numa série de mitos, desconstruídos
por Marcos Bagno em livro inovador (2006). Indico os mitos que Bagno problematizou
e dissolveu: 1) a língua portuguesa falada no Brasil apresentaria uma unidade
surpreendente; 2) nós brasileiros não saberíamos o português, que somente em Portugal
seria bem falado; 3) o português seria muito difícil; 4) as pessoas sem instrução falariam
tudo errado; 5) o lugar onde melhor se fala o português no Brasil seria o Maranhão; 6) o

44
certo é falarmos da forma como escrevemos; 7) é preciso saber gramática para falar e
escrever bem e, 8) o domínio da norma culta é um instrumento de ascensão social (cf.
BAGNO, cit.). A gramática transforma-se em dramática, foco de perene exclusão social
(cf. BAGNO, 2005). E de um modo inusitado o preconceito atinge o próprio
Mangabeira, por conta do sotaque; como reiteradamente afirmado, Mangabeira tem
sotaque estrangeiro, porém pensa como genuíno brasileiro.
Para Mangabeira, quanto à educação, há problemas gravíssimos, quantitativos e
qualitativos. Faltam vagas, escolas, professores. As horas que o aluno passa na escola
são mínimas, desperdiçadas, o calendário é mitigado. O sistema convencional, de meio
período, quatro horas em média, propicia amplo tempo livre que não é aproveitado. O
aluno, em geral, bem entendido, é presa fácil para prazeres mundanos, que fomentam,
fermentam e florescem nos corações e mentes de adolescentes, especialmente. O
modelo educacional convencional não tem com o que acenar; parece ter muito pouco
para oferecer.
Segundo Mangabeira, perpetuam-se também problemas de qualidade; e esses
são os piores: o ensino seria medíocre, péssimo. Professores não dominariam os
conteúdos que se espera que ensinem. O modelo centrar-se-ia em incompreensível
preocupação para com a transmissão enciclopédica de informações. Não se teria
referencial de seletividade. Utilizar-se-ia método que pecaria por ser factual, e que nem
de longe se arriscaria a ser analítico. Não se verificaria modelo cooperativo. Ter-se-ia
ensino massificado, individualista, autoritário. A Nação amargaria a tragédia das
vocações. Não se sabe quem tem condições de crescer, porquanto a falta de
oportunidades veda que se revelem talentos.
A partir desse panorama Mangabeira concebeu grupo de propostas. É necessária
a formação e a organização de núcleo de reformadores. Parte-se de núcleo que levará
em frente o projeto geral, adaptando-a as peculiaridades locais. O grupo, no entanto,
reporta-se a modelo que tenha como mote o aprofundamento dos conteúdos e das
questões, em permanente desfavor e descrédito da abrangência superficial. Mangabeira
é o apóstolo que condena a mania nacional do litoral de curiosidades, da erudição
livresca, do exibicionismo.
Defende a formação de professores, condicionando aumentos salariais e outorga
de oportunidades ao que nomina de itinerário de qualificações. Trata-se de regime de
sanções premiais que faz tabula rasa da situação presente, vivida pelo professorado, e de

45
amplo conhecimento nacional. Historicamente, o professor brasileiro equipara-se ao
sacerdote, no ganho e na dedicação.
Mangabeira exonera a União da responsabilidade integral e absoluta por tudo
quanto se refira à educação; conclama maior participação de Estados e Municípios,
criticando o federalismo vigente. Propõe concepção de órgãos transfederais, decorrentes
da aproximação entre governos federal, estaduais, distrital e municipais, a quem
incumbiria permanente vigilância quanto ao desempenho nas escolas. Alunos,
professores, diretores serão monitorados. O modelo sugere redistribuição de recursos,
mediante trânsito de valores dos Estados mais ricos para os mais pobres.
Emergiria escola pública que atrairia a classe média, que dela seria fiadora e
fiscalizadora. Mangabeira reporta-se ao modelo europeu, no qual as melhores escolas
são justamente aquelas controladas pelo poder público. Imagina programa maciço para
o custeio de bolsas de estudo, com especial foco nas crianças mais pobres. Mangabeira
insiste que se deve respeitar a criança como gente grande. E garante que os resultados
não são de longo prazo, como se supõe. Reflexos e benefícios seriam colhidos
rapidamente.
Insiste-se, a educação seria o único projeto capaz de nos unir (cf.
MANGABEIRA UNGER, Virada na Educação, Folha de São Paulo, 15 de agosto de
2006). Mangabeira sugere modelo educacional que busque os alunos mais talentosos;
acredita (e tem razão) que há milhares de pessoas muito bem dotadas espalhadas pelo
país, e que não desenvolvem seus potenciais porque não conhecem as qualidades que
têm. Oportunidades deveriam ser ofertadas; deve-se recuperar o jovem do vazio da falta
de alternativas, do niilismo da vida sem esperança. Nesse sentido, Mangabeira fixa a
educação como eixo de uma estratégia. Insiste que não podemos nos fiar na mão de
obra barata, desqualificada, a exemplo do que ocorre na China, que ao lado da Índia
toca economia avançada nos parâmetros de modelo atrasado (cf. MANGABEIRA
UNGER, Eixo de uma Estratégia).
Na formação desse escudo herético educacional, marcado por modelo de
qualidade, deve-se despir de qualquer preconceito ideológico relativo ao modo como se
precisa orientar o Brasil para aprender e produzir. Monitoramento constante,
potencializado por ajuda federal aos Estados e Municípios, mediante intervenções
corretivas, quando necessárias, substancializariam a fórmula (cf. MANGABEIRA
UNGER, cit.).

46
Mangabeira elege a educação como tema de convergência nacional. Prioriza a
melhoria da qualidade do ensino público, que identifica como ponto central. A tarefa
teria como primeira parte a definição de patamares mínimos de investimento por aluno,
calculados também de acordo com os níveis de desempenho das várias escolas. O
presente federalismo educacional deverá ser revisto, quebrando-se sua rigidez,
concebendo-se novas fórmulas de repartição de competências gestoras da educação.
Naturalmente, a idéia exigiria também sistemas alternativos de divisão de receitas
tributárias, que contemplariam a educação (cf. MANGABEIRA UNGER, Consenso
para Educar).
O federalismo educacional com o qual presentemente se conta emerge como o
principal obstáculo. Mangabeira ainda sugere que se inste o Poder Judiciário, para que
interfira, na medida em que provocado pelo cidadão e pelo Ministério Público. Tratar-
se-ia de modelo de fiscalização permanente, dividido entre pais, alunos, professores,
membros da comunidade. A institucionalização da aludida fiscalização dar-se-ia,
basicamente também, mediante ampliação de competências do Judiciário e do
Ministério Público (cf. MANGABEIRA UNGER, cit).
A essa primeira parte do plano sucede a concepção de estratégias e de programas
que reorientem o modelo presente de ensino, que deverá ser reorientado. Em desfavor
da memorização enciclopédica, buscar-se-ia a capacitação analítica privilegiada e
referenciada. Com o objetivo de transformar o magistério em carreira competitiva e
atraente, um dos eixos do projeto, Mangabeira sugere a reconstrução do antigo sistema
de escolas normais (cf. MANGABEIRA UNGER, cit.).
Num terceiro momento deve-se dar vazão ao talento dos alunos, especialmente
dos mais pobres, revelando-se possibilidades escondidas. Um dos instrumentos
consistiria na complementação da bolsa-família, que suscitaria possibilidades especiais
de estudo (cf. MANGABEIRA UNGER, cit.).
Ao longo dos vários artigos publicados na Folha de São Paulo, em tema de
educação, Mangabeira destilou e explicitou em pormenor as idéias que agitam o projeto
que tem em mente. Num dos textos mais substanciais, Ensino Já, o professor brasileiro
concebeu alternativa que fracionou em três tarefas. Indico-as. A primeira delas
consistiria no cumprimento de mínimos de investimento por aluno, contabilizando-se o
desempenho por unidade de ensino, proposta que fora apresentada em outras
circunstâncias. De igual modo, Mangabeira insistiu em intervenções corretivas, por
parte da União Federal (cf. MANGABEIRA UNGER, Ensino Já).

47
Essas intervenções exigiriam que se negociasse o pacto federativo, dado o
modelo que presentemente se conhece, quanto à educação, bem entendido. Mangabeira
fala em seqüestrar recursos quando autoridades locais falharem na adequada aplicação
dos valores destinados ao modelo educativo (cf. MANGABEIRA UNGER, cit).
Recursos seriam originários de um IVA-Imposto sobre o Valor Agregado, federalizado,
que decorreria da fusão do IPI-Imposto sobre Produtos Industrializados e do ICMS-
Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços; esse último de competência
estadual, aquele primeiro, de competência federal.
A segunda tarefa estabelecida centrar-se-ia em mudança radical da natureza do
ensino, tema recorrente nas propostas educacionais de Mangabeira. Trata-se do já
mencionado aprofundamento seletivo, em prejuízo da memorização pura e simples. A
organização da relação docente-discente seria moldada na cooperação construtiva, em
substituição a modelo autoritário (cf. MANGABEIRA UNGER, cit.), historicamente
ancorado na direção do magister dixit.
Uma terceira e derradeira tarefa consistiria na radicalização da meritocracia por
meio da valorização dos esforços e dos resultados daqueles que se comprometam com a
educação. A idéia tem como objetivo a formação de contra-elite republicana, a quem se
incumbirá competir com a elite dos herdeiros. Segundo o pensador aqui estudado, o
modelo permite que se quebre o marasmo do nepotismo e do fatalismo (cf.
MANGABEIRA UNGER, cit.).
Todo o sistema decorre de mecanismo prévio, que permite o aumento do
investimento público com educação, passando-se de 4% para 7% do PIB. Recursos
também teriam como fonte nova sistemática de gestão econômica e orçamentária que
demandaria, entre outros, o rebaixamento dos juros e o aumento da idade da
aposentadoria (cf. MANGABEIRA UNGER, Educação sem Romantismo). Registre-se,
do ponto de vista factual, que essa última proposta provocaria oposição sistemática.
Mangabeira insiste em padrões nacionais de educação.
Persiste na idéia de se acabar com preconceitos ideológicos, já revelada em
outras intervenções na imprensa. Assim, imagina reforma de ensino público que passe
pelo acesso ao ensino particular aos mais pobres, mediante apoio do governo. Os alunos
mais pobres seriam os bolsistas da república, que lhes propiciaria condições de
crescimento, de aperfeiçoamento, e simultaneamente estimularia o civismo, o
empreendedorismo e a solidariedade. E, em linhas mais pontuais, sugere que se alargue
o dia escolar; o aluno deve permanecer o maior tempo possível na escola, onde deverá

48
conviver, transcender de seu meio originário, revelar o talento que inegavelmente
carrega, e que condições circunstanciais anulam e condenam (cf. MANGABEIRA
UNGER, cit.).
Esse aluno novo deveria aprender a resolver problemas, mediante a
verticalização seletiva do estudo de matemática. Concomitantemente, seria adestrado a
ler e a interpretar textos, de modo criativo; tornar-se-ia um buscador do conhecimento.
Prevê-se o fim do enciclopedismo informativo, praga de nosso modelo educacional, de
feição escolástica e coimbrã, vivificado em método que insiste na memorização de
informações de utilidade efêmera.
A flexibilização do federalismo, e não sua supressão, é item permanente nas
intervenções de Mangabeira, em matéria educacional (cf. MANGABEIRA UNGER,
Educação: Escolhas). Na concepção de fórmulas para que se empreguem recursos para
a educação, Mangabeira lembra-nos que “sociedade muito desigual tem de gastar muito
mais em educação do que sociedade menos desigual” (MANGABEIRA UNGER, cit.).
Defende que se deva gastar mais com gente e menos com prédios. É recorrente a defesa
de modelos de capacitação genérica, com foco no ensino analítico e capacitador. De
olho no professor e em concepção contínua de desenvolvimento do docente,
Mangabeira insiste em sistema de requalificação em meio de carreira (cf.
MANGABEIRA UNGER, cit.).
E o projeto educacional de Mangabeira, nos termos da quarta tese acima
reproduzida, exige revolução metodológica. Deve se buscar modelo educacional
criativo, inovador, que concorra com as insinuações de vida fácil, supostamente
desenvolvida fora do ambiente escolar. É talvez o aspecto mais ambicioso e factível do
cardápio de idéias de Roberto Mangabeira Unger.
Sigo com a próxima tese.

“Quinta tese: Da proteção dos direitos fundamentais-

Os direitos, especialmente os direitos sociais e econômicos, não devem


ser considerados simplesmente como esquemas de bem-estar social e de
seguro social, dependentes de recursos. As reivindicações de direitos entram
em conflito com determinadas organizações sociais, ou com áreas de prática
social quando: (a) surge uma estrutura de desigualdade ou exclusão nas
organizações ou práticas, ameaçando o gozo efetivo dos direitos; e (b) o
indivíduo não pode desafiar prontamente essa cidadela de privilégios pelas
formas normais de atividade econômica e política de que dispõe. Precisamos
então de um tipo de intervenção e reorganização corretiva que, ao mesmo
tempo, (a) defina direitos e estruturas; e (b) seja um fato episódico e

49
localizado. Exemplos: a intervenção em um sistema escolar para corrigir as
desvantagens de crianças dotadas de certas aptidões ou deficiências; a
intervenção em uma fábrica para reorganizar um sistema de trabalho que
imponha formas extremas de hierarquia, mais por preocupação de controlar
os operários do que por exigência de coordenação e eficiência técnicas.
Nenhum dos poderes existentes do Estado está inteiramente adaptado, em
razão de legitimidade política ou de capacidade prática, para servir como
agente de tal intervenção. Um novo poder do Estado deve ser designado, eleito
ou escolhido conjuntamente pelos eleitos. Ele deve gozar de recursos
orçamentários e técnicos apropriados para suas responsabilidades de
reconstrução”. (MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 211).

O tema da educação retorna como mecanismo de intervenção com o objetivo de


corrigir desvantagens; pretende-se também intervenção no sistema de trabalho, o que
qualifica mais uma face do dilema que as relações laborais presentemente vivem no
Brasil. O desemprego, entre outros, tem como causa o modelo tributário que pesa sobre
o empregador, em decorrência de contribuições que são exigidas em torno da folha de
salários, entre outras imposições. Os direitos trabalhistas lembram modelo de Estado
formatado ao longo da década de 1930, altamente intervencionista, e maculado por
peleguismo, centrado na cordialidade entre patrão, empregado dócil e Estado
paternalista.
Porém, a discussão precisa ser inserida à luz de dois temas: a carga tributária
que incide sobre a folha de salários, o que desestimula o emprego formal e os efeitos do
movimento de globalização econômica. Reflito agora sobre o segundo problema; o
primeiro deles é tratado em conjunto com as questões tributárias.
O ambiente do direito do trabalho parece ser o mais suscetível às
transformações decorrentes do processo de globalização. Está em perigo a dignidade do
trabalhador na presente conjuntura. O direito do trabalho fixou-se no passado em
âmbito de direito privado, dada a ficção que presumia liberdade contratual absoluta na
celebração do pacto de emprego, então enfocado sob o prisma da autonomia da vontade
e consubstanciado no leading case norte-americano representado pelo caso Lochner vs.
New York.
O aludido caso chegou à Suprema Corte dos Estados Unidos em 1905. Joseph
Lochner era proprietário de uma panificadora e fora condenado por ter desrespeitado lei
do estado de Nova Iorque, que proibia que padeiros trabalhassem mais de dez horas por
dia. Lochner exigia que seus empregados labutassem além do permitido. Dizia-se
correto, que sua conduta era lícita, porque havia aquiescência do empregado, que
também estaria exercendo a liberdade de contratar. A questão foi apreciada pela

50
Suprema Corte norte-americana, que decidiu que a lei nova-iorquina era
inconstitucional. Promoveu-se indiscriminadamente a liberdade de contrato.
Todavia, o intervencionismo característico de meados do século XX refocalizou
o direito laboral, matizando-o com as premissas que informam o direito público. A
onda neoliberal contemporânea ensaia reprivatização dos cânones de interpretação do
direito do trabalho, processo que emerge como flexibilização das regras,
principalmente percebido em projetos de lei que pretendem dar mais força às
convenções coletivas de trabalho.
O empresário vê-se forçado a competir em condições que exigem mão-de-obra
barata e manipulação de horários. Uma fúria neoliberal estaria minando conquistas
laborais construídas ao longo de penosa jornada histórica. Suposto anacronismo do
contrato de trabalho exige esforço e vigilância redobrados para com os efeitos da
globalização no direito laboral. A reversão da concentração industrial promove
descompensação da migração setorial da mão-de-obra, determinando a massificação do
desemprego, provocando o pânico, a adesão a qualquer aceno de oportunidade de
trabalho, a qualquer preço, sob quaisquer condições. E não é vocação brasileira a oferta
de mão-de-obra barata e desqualificada, segundo Mangabeira Unger.
Reflexos da conjuntura internacional, marcada pela prática de dumping social,
pela qual os países abaixam salários e fazem de tudo para que seus produtos sejam
competitivos no mercado, atingem a estrutura do direito laboral, em proporções
alarmantes. O trabalhador é quem diretamente paga a conta.
O texto constitucional brasileiro de 1988 havia acenado com grandes conquistas
para a classe trabalhadora. Efetivamente, uma realidade econômica marcada pela
influência da onda neoliberal pretende anular essa vitória de Pirro. A realidade violenta
que nos sufoca infelizmente comprovou a imprestabilidade fática da fala constitucional,
opondo mais uma vez a ética da convicção e a preocupação com os fins que
caracterizam os economistas em face da ética da responsabilidade e da preocupação
com os meios que marcam a atuação desses últimos.
O assalto internacional às forças nacionais promove medidas que caracterizam o
mencionado dumping social, o que configura abuso de poder econômico. A
competitividade de nossos produtos no mercado internacional depende de quadro geral
de preços internos, que começa com a redução de salários, dado o desinteresse do
Estado em aliviar a carga tributária. E, em princípio, também não poderia fazê-lo. É

51
nesse ambiente de fortíssima pressão que campeia o desemprego, prolifera o
subemprego e miniaturiza-se o salário mínimo.
Dissolve-se o direito do trabalho, não obstante sua carga de historicidade, de
representação normativa de luta antiga contra o capital. Com o objetivo de se
neutralizar qualquer oposição à sanha do capital no desmonte da tradição obreira,
acena-se com o desemprego e promove-se um processo de desradicalização das
ideologias. A leveza e o descompromisso de sentir conceitual light determina que
qualquer forma de radicalização, nesse sentido originariamente marxista de se tomar as
coisas pela raiz, protagonizaria o desentendimento. Trata-se da humanização do
inevitável, na categorização de Mangabeira Unger.
Conseqüentemente, o movimento sindical agoniza entre Scylla e Caribbis,
imagem da literatura clássica que plasma perigos e indecisão, oscilando entre interesses
imediatos de manutenção mínima de emprego e projetos mais ambiciosos de avanço
nas condições de trabalho. O enfraquecimento do poder sindical é sintoma que se
desenvolve desde o apogeu do Estado de bem-estar, que como uma esponja procurava
absorver a luta de classes. Tem-se também que em meados da década de 1990 o Brasil
viveu a mais grave crise de emprego de sua história.
Sentir realista parece nortear as reflexões mais recentes em torno dessa aparente
desconstrução do direito do trabalho. Inevitável o processo de mundialização do capital,
o que suscita problemas, que devem ser enfrentados, a tomarmos a circunstância como
mais uma (entre outras no pretérito havidas) que ameaçam o vendedor da força de
trabalho.
A miniaturização do Estado tende a transferir para a iniciativa privada funções
que são ordinariamente publicísticas, a exemplo da fiscalização do respeito a direitos
humanos, que também fica relegada a segmentos do terceiro setor. Enquanto ao
trabalhador procurou-se reservar o direito à liberdade do trabalho, na mesma medida à
empresa pretende-se garantir a liberdade de atividade econômica. A consecução deste
último objetivo contrasta com a formatação daquele primeiro. Cria-se um dilema de
exclusão. A liberdade do trabalho passou a ser mitigada em nome da garantia da
liberdade econômica, como reflexo direto do fato de que hoje o direito do trabalho é
tratado pelos economistas como se fosse matéria de contadores.
Implementa-se programa desenvolvido pelo capital internacional, que não vê
limites. Tudo se faz em nome da eficiência, da concorrência, da ampliação das
condições de competição no mercado. Eventuais direitos da empresa chocam-se com

52
efetivos direitos de seus trabalhadores; estes últimos levam a pior. Invoca-se que sem
aquelas estes últimos não existem e que todos os sacrifícios são necessários,
pertinentes, impostergáveis. O problema é recorrente.
Estes os efeitos da globalização, da mundialização do capital e do
neoliberalismo em relação ao direito do trabalho. Orquestra-se movimento que limita
direitos historicamente conquistados, em nome de discutível eficiência, sob cortina
ideológica que alberga a ameaça, o medo, a ansiedade e a apreensão com o
desconhecido, aspectos que marcam nossos tempos. Uma voz traiçoeira começa a ser
ouvida, sussurrando que não se pode falar em direito do trabalho onde não há emprego,
sutil lamento de um salve-se quem puder oportunista, entreguista e vendido. Certa
razão indolente quer se acomodar, esquecendo-se de uma trajetória de lutas,
protagonizada por aqueles que nunca usaram black tie. Mangabeira insurge-se contra
essa situação desesperadora.
Há conjunto de benesses laborais no texto constitucional, a exemplo da fixação
imaginária do salário-mínimo, que autoriza o intérprete a valer-se da imagem de
constituição folha de papel, tal como descrita por Ferdinand Lassalle. Para o
constitucionalista alemão, tem-se uma constituição real e efetiva, integralizada por
fatores reais, bem como um modelo normativo formal, que denominou de folha de
papel, em alusão a Frederico Guilherme IV, que não admitia que entre o Deus do céu e
a Alemanha se plasmasse uma folha de papel escrita (cf. LASSALLE, s.d., p. 74).
Mangabeira pretende implementar os direitos trabalhistas previstos no texto
constitucional brasileiro. Para isso, porém, depende de novo modelo de Estado, também
marcado por grande nível de intervenção burocrática, a exemplo do modelo engendrado
por Vargas.
O que temos presentemente é conjunto protetivo dependente de recursos. Esses
raramente são alocados para os fins que se destinam. Direitos e estruturas carecem de
definição e, mais uma vez, o conjunto constitucional hoje definido poderia repelir a
inserção de novas categorias. Locuções frequentes, a exemplo da já citada flexibilização
das leis trabalhistas, ou da faxina da CLT, seriam confundidas com novo conjunto de
direitos que se pretenderia definir.
Concomitantemente à estrutura alternativa de direitos trabalhistas, Mangabeira
cogitou de novas agências estatais, providas de orçamento e de instrumentalização
técnica, com vistas a realmente implementar os direitos invocados. Em artigo publicado
na Folha de São Paulo em 19 de setembro de 2006, sob o título de Direito

53
Constitucional, insinuou mecanismos que viabilizassem meios para que se aumentasse
a participação da cidadania. O texto é esfíngico, nada dogmático, não obstante o título,
mas é instigante, a propósito da tese que aqui se propõe a comentar:

“Novo ciclo de desenvolvimento baseado em ampliação de oportunidades econômicas


e educativas não surgirá, ou, se surgir, não se sustentará, sem aprofundamento da
democracia brasileira. Esse aprofundamento tem dois aspectos. O primeiro, imediato:
limitar a influência corruptora que o dinheiro exerce na política. O segundo, de mais
longo fôlego: reforçar o potencial transformador da política. Significa providenciar
meios para aumentar a participaçäo da cidadania, resolver os impasses entre poderes
do Estado e permitir que todos conheçam e reivindiquem seus direitos (...)”
(MANGABEIRA UNGER, Direito Constitucional, Folha de São Paulo, 19 de
setembro de 2006).

A passagem também nos remete a tema central no pensamento de Mangabeira,


relativo à necessidade falsa que se vive, no sentido de se espera uma crise, como
elemento definidor de mudanças. Isto é, não há necessidade de que estruturas
normativas de direito constitucional aguardem o limite, para que sejam em seguida
alteradas, a exemplo do que se deu no Brasil com o constitucionalismo de 1891 ou de
1946; este último sucedendo à ditadura varguista, aquele primeiro dando fim ao modelo
imperial, que por nós foi dominante por quase sete décadas, no disfarce de uma
democracia coroada.
As teses de Mangabeira conflitam com a estrutura constitucional presente, na
maioria de suas nuances. Conseqüentemente, o implemento do projeto depende de nova
definição de constituição, do abandono de fetichismo estrutural e institucional, e de
nova compreensão de conceitos institucionais abstratos, a exemplo de democracia, de
economia de mercado, e de sociedade civil.
Passo agora à sexta tese, uma das mais longas:

“Sexta tese: Da organização legal da sociedade civil-

Para o progresso do experimentalismo democrático, é indispensável


uma sociedade civil vigilante e organizada. Uma sociedade desorganizada não
tem condições de gerar futuros alternativos, nem de atuar para realizá-los. A
desorganização é a rendição ao acidente, ao acaso, ao destino. Não basta
convocar uma intensificação da associação voluntária, sem reimaginar e
refazer o contexto institucional em que se dá a associação voluntária.
Podemos convocar os espíritos, mas é possível que eles não compareçam. Há
dois caminhos de reforma institucional que têm condições de reforçar a
capacidade de auto-organização independente da sociedade civil. Vamos
chamá-los ‘direito privado mais um’ e ‘direito público menos um’. Longe de
ser mutuamente exclusivos, complementam-se. O Direito privado mais um

54
aceita o corpo convencional do direito contratual e societário como estrutura
básica para a auto-organização da sociedade civil. Entretanto, ele
complementa essa estrutura com o estabelecimento de um poder do Estado
responsável pela intervenção localizada em organizações ou em práticas
corrompidas por formas arraigadas de exclusão e subjugação social. O dano
a ser compensado por essa intervenção corretiva é uma desvantagem social da
qual o povo não pode fugir pelas formas normais de ação política e
econômica. Se não questionada, essa desvantagem impede que suas vítimas
exerçam de fato muitos de seus outros direitos políticos e econômicos. O
trabalho do poder reconstrutor do Estado não consiste em promulgar leis
gerais, como uma legislatura, nem em resolver disputas de direitos entre
litigantes individuais, como o judiciário tradicional. Sua tarefa consiste em
remover algum obstáculo localizado à ação política e econômica do indivíduo.
Para tanto, esse poder corretor intermediador talvez precise gerir durante
algum tempo a organização defeituosa, colocando-a sob uma forma de gestão
social, para facilitar sua passagem pelo limiar de aceitabilidade. Essa nova
agência do governo pode ser obrigada a investigar, investir e reformar - mas
sempre com alcance dirigido e por tempo limitado. Assim, ela deve ter a
legitimidade que vem de ser eleita pelo povo, ou eleita em conjunto com os
poderes políticos do Estado, e ter a capacidade prática que resulta do acesso a
recursos financeiros e investigativos. O direito público menos um representa
um quadro de direito público para a organização da sociedade civil fora do
Estado, em torno de empregos, moradias ou interesses compartilhado por
certos políticos (como assistência à saúde ou à educação). Sob certas
condições, seria garantido o direito de se retirar desse quadro e moldar
estruturas alternativas. Essas provisões de direito público deveriam ajudar a
estabelecer uma tendência para uma organização abrangente da sociedade
civil. Entretanto, devem permanecer livres de qualquer controle ou tutela
governamental. Por exemplo, o princípio contratualista do direito do trabalho
de completa liberdade dos sindicatos em relação ao governo pode coexistir
com o princípio corporativo da sindicalização automática de todos. A
sindicalização automática pode parecer coercitiva, até que se perceba a
necessidade de escolher entre um regime de organização desigual, que reforce
as vantagens dos que já contam com vantagens, e um regime
compulsoriamente includente, porém democrático, que ponha todos em pé de
igualdade relativa. Há democracia interna em um sistema assim unitário e
abrangente de sindicalismo, que a todos incorpora: movimentos trabalhistas
diferentes, filiados ou não a partidos políticos, competem por posições de
controle dentro desse sistema sindical da mesma forma que os partidos
políticos disputam posições no governo. Pode reproduzir-se a mesma idéia em
relação a princípios territoriais: um sistema de associações de bairro, fora da
estrutura do governo municipal e paralelo à ela. Ainda em outro domínio,
esse princípio pode assumir uma direção funcional: a organização da
sociedade civil em torno de certos interesses comuns, tais como educação ou
serviços de saúde. A profundidade e a diversidade de associação são
condições de competição cooperativa na economia e a capacidade deliberativa
na política. Reduzem o medo da inovação ao sustentar a confiança e conter o
risco. Promovê-las é o objetivo próprio de um corpo de leis sociais que
expandem e dão forma ao espaço entre a iniciativa privada e a política
pública. Desde que se satisfaçam duas condições básicas, as pessoas devem

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ser capazes de se desligar desse sistema legal público de organização social e
criar estruturas alternativas. A primeira condição estabelece que aqueles que
se afastam estejam em situação de igualdade aproximada nas relações
mútuas. A segunda condição é que não usem seu poder de desligamento da
estrutura para criar outra pequena cidadela de subordinação“.
(MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 211/13).

Forte conteúdo retórico marca a sexta tese, a exemplo da “convocação dos


espíritos, que podem não comparecer”, antítese sutil do excerto canônico que prescreve
que “muitos são os chamados e poucos os escolhidos”. A sexta tese revê conteúdos de
direito público e de direito privado, remodelando-os. Essa cisão é de manifesto sentido
romanístico e de interesse exclusivo da tradição normativa ocidental; o modelo é
desconhecido de direitos orientais, teológicos ou consuetudinários.
O direito público sedimentou-se na concepção da supremacia de um interesse
coletivo, o que justificaria o menoscabo do cidadão em face do Estado. O direito
privado cristaliza-se nas relações marcadas pelo exercício da livre vontade, em cânones
de igualdade, em torno da licitude da operação. Essa dicotomia parece contestada no
mundo contemporâneo. E o direito do trabalho, por exemplo, parece-me indicativo
seguro da assertiva. No modelo brasileiro, o direito laboral surge enquanto direito
privado, regulado pelo modelo de relações de locação de trabalho, previsto no Código
Civil de 1916.
Com o advento da CLT, marca da ditadura de Getúlio Vargas, o direito do
trabalho passou por migração conceitual, ganhou proteção do Estado, e foi identificado
como ramo do direito público. Condenações supervenientes, decorrentes do
pensamento neoliberal, prescreverão releitura do modelo, defendendo-se o afastamento
do Estado, propiciando-se a multiplicação de relações trabalhistas formais. Há pano de
fundo que indica preocupações com o modelo previdenciário.
Mangabeira define o que nomina de direito privado mais um. Tratar-se-ia de
modelo de intervenção estatal no regime básico e convencional do direito privado. Não
obstante o respeito por formas básicas de organização dos regimes de contrato e de
sociedade empresarial, defende-se intervenção corretiva do Estado; Mangabeira não
desce a pormenores, não identifica claramente o regime interventivo que cogita.
A presença do Estado no modelo negocial privado teria por objetivo amenizar e
dar fim a formas de exclusão e de subjugação social, como literalmente definido. Trata-
se de prescrição que contraria o imaginário consenso de Washington, prenhe de

56
neoliberalismo que ovaciona a mão invisível, inspirada na literatura clássica de Adam
Smith.
Em seguida, Mangabeira concebe um direito público menos um. Tem-se a
organização da sociedade civil fora do Estado. Esse modelo far-se-ia de acordo com
divisões de interesse. Saúde, educação, moradia, segurança, entre outros, seriam os
núcleos em torno dos quais se desenvolveria o projeto. Registro que pode haver temor
de que o Estado se aproveite dessa circunstância, afastando-se ainda mais de
responsabilidades que lhe são impostas, pelo modelo constitucional e organizacional
vigente. Também deve se tomar precauções para que focos não institucionais assumam
funções ordinariamente institucionais, em decorrência da incompetência e da falência
do Estado; essa situação é comprovada pela ação das milícias do Rio de Janeiro, em
matéria de segurança pública, em tempos mais recentes.
Em outras obras, Mangabeira propôs modelos assistencialistas, por meio dos
quais, por exemplo, os mais novos cuidariam dos mais idosos, os mais fortes dos mais
fracos. E especialmente no que tange a esse novo quadro de direito público e privado,
Mangabeira defende, em Necessidades Falsas:

“Há dois caminhos para um modelo organizacional social que seja mais inclusivo.
Passam por um robustecimento do direito privado e por uma mitigação do direito
público. Eles não se excluem. Eles se complementam e convergem para um mesmo fim.
Fortalece-se o direito privado mediante a manutenção de seu repertório atual,
alterando-se o seu significado. Essa modificação faz-se pela ampliação de opções
normativas referentes a modelos de auto-organização social. Exemplifico, indicando,
com base no direito norte-americano, a possibilidade de se cogitar de se reservar
parcela de isenção fiscal em favor de doações de caridade, por parte de trustes sociais
independentes, cujos administradores representem pessoas de todas as classes sociais.
Organizações sociais poderiam fazer aplicações com base nesse modelo, beneficiando-
se de isenções tributárias, proporcionando recursos para subvenções, a exemplo do
que hoje se faz com fundações privadas, no direito norte-americano, bem entendido.
Obter-se-ia a expansão da base de recursos para o fomento de trabalho voluntário.
Mitiga-se o direito público por conta de uma legislação específica que contemple a
sociedade civil, em ambiente exógeno à atuação governamental. Essa legislação
possibilitaria a organização da sociedade civil independentemente de qualquer tutoria
e paternalismo, por parte do Estado. Exemplifica-se com os sindicatos. Pode-se retirar
do regime contratualista o princípio que dá os contornos à completa independência
dos sindicatos em relação ao poder público. Pode-se também alterar o modelo sindical
corporativista que prevê a imediata filiação de todos os trabalhadores, e eu me refiro
ao direito laboral norte-americano. Distintos movimentos sindicais, associados ou não
a partidos políticos, poderiam competir por espaço nesse modelo pluralista, do mesmo
modo como os partidos políticos disputam votos em governos unitários ou federativos.
Poder-se-ia garantir a liberdade para com os governos, por meio do pluralismo dos
movimentos sindicais. Tal liberdade seria combinada, entretanto, com um poderoso
contrapeso a divisão e segmentação do movimento laboral. A dinâmica de tal sistema
conduz-nos para uma maior solidariedade salarial a ser disseminada entre diferentes
tipos e grupos de trabalhadores. Favorece-se uma maior capacidade de trabalho

57
organizado para se lidar com um contexto institucional mais amplo, influenciando-se
na proporção da renda nacional a ser destinada aos salários em geral, assim como ao
fortalecimento dos trabalhadores junto às empresas nas quais prestam serviços. Pode-
se também dar alguma expressão concreta a princípio que facilite a organização da
sociedade civil, sob as regras de direito público, a ser formada fora do Estado. Como
exemplo, indico a formação de associações de moradores, organizadas paralelamente
ao Estado, colaborando no implemento de políticas locais. Alternativamente, pode-se
imputar a tal idéia uma expressão funcional, a exemplo da organização de grupos de
pais e de pacientes, no que toca à educação e a assistência médica. Não obstante o
modelo de estrutura pública não governamental a ser desenvolvida, deve-se garantir
ao interessado o direito de escolha. Deve-se outorgar o poder de se criar uma
estrutura alternativa e voluntária, formatada normativamente por regras livremente
escolhidas e especificamente concebidas. O direito de escolha, como aqui indicado,
suscita que essas associações colaborem no programa de relativização do direito
público. O projeto de organização da sociedade civil não se realiza sem que se garanta
o direito de opção e de escolha, no que toca às associações que serão desenvolvidas.
Não se desenvolve um programa superliberal, sacrificando-se a idéias liberais
fossilizadas e a programas institucionais que identificam o liberalismo de tempos mais
recentes. O direito de escolha não pode ser discricionário, e se o for, configurará
abuso. Não pode ser exercido por grupos que não se encontrem mutuamente
vinculados a circunstâncias relativamente eqüitativas. E também não podem se prestar
a propiciarem nichos de subjugados e de excluídos. Tal direito deve representar uma
experiência de liberdade. Não pode significar a redescoberta de práticas despóticas
sob o disfarce de idéias liberais. (MANGABEIRA UNGER, 2005, p. 110-111).

A sugestão de organização superlativa da sociedade civil sugere a concepção de


legitimidade justificativa dessa ampliação da presença não governamental em ambiente
historicamente marcado pelo predomínio do poder público. E a recíproca também é
verdadeira, na medida em que a intervenção do público em setores privados provocaria
movimento supostamente contrário ao que presentemente se vê e se prescreve.
De qualquer modo, tem-se tendência de se valorizar o que seja local. Trata-se de
movimentação federalista, de percepção municipalista. Esse vínculo com o imediato,
como proposta de realização de projeto de resultado geral, radica, de certa forma, nas
concepções federalistas de Pierre-Joseph Proudhon, em sua segunda fase, quando o
anarquismo em sentido estrito e radical já não o atraía tanto. O publicista francês
cogitava de equilíbrio entre autoridade e liberdade, realizável em nível local.
Especialmente, em relação à justiça, Proudhon percebia sentido localizado:

“Repugna que a justiça seja considerada como um atributo da autoridade central ou


federal; ela não pode ser senão uma delegação feita pelos cidadãos à autoridade
municipal, no máximo, à provincial. A justiça é o atributo do homem, de que nenhuma
razão do Estado pode privá-lo. Não excetuo sequer o serviço de guerra desta regra: as
milícias, os armazéns, as fortalezas, só passam para as mãos das autoridades federais
em caso de guerra e para o objetivo especial da guerra; fora daí, soldados e
armamentos ficam sob o controle das autoridades locais”. (PROUDHON, 2001, p.
100).

58
Com os modelos de direito privado mais um e de direito público menos um,
Roberto Mangabeira Unger sugere nova concepção de Estado. Para deleite de seus
críticos evidencia-se mais um paradoxo. O esvaziamento do direito privado indica o
fortalecimento de uma noção de Estado intervencionista. E o esvaziamento do direito
público aponta para o fortalecimento da percepção de Estado neoliberal. Porém, o que
se tem, na leitura de um dos interlocutores de Mangabeira, é síntese entre tradições
liberais e tradições radicais de esquerda (cf. CUI, cit.). Trata-se de superliberalismo,
fundado em nova estrutura, que qualifica projeto de democracia fortalecida, por
intermédio da reorientação de estratégias de transformação social, acenando-se para
novo sentido da idéia de sociedade como artefato (cf. CUI, cit.); tem-se experiência de
transformação.
De qualquer modo, um programa de democracia fortalecida exige
descentralização. No entanto, do ponto de vista pragmático, as grandes transformações
se processam a partir do nível central. Mangabeira adverte, porém, que ao se colocar
toda a esperança no governo pode se sacrificar o projeto. A descentralização é
indicativa de que a possibilidade de que tudo é incontroverso é já existente
substancializa mera falácia. A descentralização deve evitar formação de hierarquias e
nichos locais de poder. Mecanismos de salva-guarda devem ser proporcionais à
transferência de autoridade.
A tese centra-se na busca de sociedade civil vigilante e organizada. A
orquestração dos movimentos sociais é condicionante do progresso democrático, que o
pensador aqui estudado sugere seja experimentalista. Abomina-se a desorganização da
sociedade que, pulverizada, vê-se presa à inexistência de futuros alternativos. Esse
desencontro, nos termos da tese, é acidental e fortuito. O núcleo das reformas decorre
de Estado que se reconstrua, e que não se prostre limitado pelas circunstâncias que
vivemos. A imaginação que não percebe condições distintas é indicadora (mais uma) da
ditadura da falta de alternativas.
Assim, o Estado pensado por Mangabeira distancia-se do Estado que a Ciência
Política presentemente desenha. Não se trataria de Estado promulgador de leis ou
agente que componha conflitos qualificados por pretensões resistidas, a valer-me da
retórica dos processualistas. O Estado, o que pode parecer paradoxal, seria o êmulo da
remoção dos obstáculos da ação política progressista. O Estado, na percepção de
Mangabeira Unger, é o corretor-intermediador. Trata-se de formulação de engenharia
social, orientada para interesses comuns.

59
A criação de estruturas alternativas é o eixo das teses. E tais estruturas remetem-
nos ao pensamento utilitarista de Stuart Mill, no sentido de se buscar a felicidade, por
meio de concepções sociais alternativas, haja vista a defesa do filósofo inglês em prol
do feminismo. A tese que se comenta orienta-se, prioritariamente, para o
dimensionamento de estruturas alternativas, referentes à educação e aos serviços de
saúde.
E agora avanço para a sétima tese, delicada, e que envolve matéria tributária.

“Sétima tese: Das finanças públicas e do sistema fiscal-

A tributação indireta, e portanto regressiva, continua necessária para


assegurar uma receita fiscal substancial que sustente um alto nível de investi-
mento público na população. O menos regressivo dos impostos indiretos e o
único que é menos provável que distorça e atrapalhe as atividades econômicas
é um imposto abrangente, de alíquota única, sobre o valor agregado. Sobre a
base segura da receita coletada por esse imposto devem desenvolver-se dois
impostos diretos principais. O primeiro é um imposto sobre o consumo do tipo
Kaldor, que taxa a diferença entre a receita e os investimentos em poupança,
com uma grande isenção para um nível básico de consumo e com uma escala
altamente progressiva. O segundo é um imposto sobre o patrimônio, no qual o
mais importante é a pesada tributação das doações e heranças familiares.
Dessa forma, distinguimos claramente dois objetivos - o padrão de vida (pelo
imposto sobre o consumo) e o poder econômico (pelo imposto sobre as
fortunas) - e os abordamos diretamente, em vez de aceitar o mecanismo
relativamente confuso e ineficiente do imposto de renda. As organizações da
sociedade civil descritas na sexta tese devem engajar-se na destinação e na
supervisão dos gastos públicos. Em um momento posterior do
aprofundamento da democracia, quando, de acordo com a nona tese, os
direitos tradicionais unificados de propriedade tiverem dado lugar a um
sistema de direitos fragmentários, conjuntos e residuais dos recursos
produtivos, a tributação pode cessar de constituir o principal sustentáculo das
finanças públicas. Em vez de taxar, o governo pode impor taxas diferenciais
de retorno para o uso dos recursos produtivos da sociedade. As organizações
semi-independentes responsáveis pela ampliação da alocação descentralizada
do capital social (tese nona) pagariam esses encargos, recuperando-os das
empresas e das equipes de trabalho, que seriam os usuários finais dos
recursos.” (MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 214).

Segundo Roberto Mangabeira Unger, o modelo tributário que se conhece no


Brasil hoje se presta para transferir renda de quem produz, em benefício de quem
especula. Do ponto de vista fático, o modelo tributário brasileiro encontrar-se-ia refém
de dois constrangimentos, dos quais não consegue se libertar. Indico-os. Primeiramente,
construiu-se uma doutrina de direito tributário, centrada em referenciais aparentemente
lógicos, identificados pela idéia de regra matriz de incidência.

60
Pretende-se outorgar à reflexão tributária um estatuto lógico que ela não
alcança. Esqueceu-se da antiga lição de Holmes, para quem direito não é lógica; direito
é experiência. Centrada nas faculdades de direito de São Paulo, e com livre acesso aos
meios de divulgação, desenvolve-se modelo tido como definitivo. Em nome da defesa
contra sanha fiscal, a quem se imputa malignidade sem precedentes, essa corrente
lógica do direito tributário faz-se de defensora da legalidade e da democracia, dizendo-
se tirar dos ricos para outorgar aos pobres. O discurso é prenhe de chavões, de
alegorias, de lugares-comuns. Invariavelmente começa na Magna Carta inglesa, faz
estações no iluminismo oitocentista, invoca a carta da república; por fim, como não
consegue alterar a atividade legislativa por meios de lobbies bem organizados, investe
suas forças contra a desorganização do judiciário.
O segundo constrangimento centra-se na atuação do poder público. Não se
manipula a extrafiscalidade, o poder transformador do tributo (do qual a indústria
automobilística brasileira é um dos exemplos mais fecundos); pelo contrário, faz do
modelo fiscal uma fonte interminável de violência contra o cidadão. Mecanismos mais
recentes potencializam essa atuação nefasta. Refiro-me à lei de responsabilidade fiscal.
Essa lei complementar, de maio de 2000, sob forte roupagem de moralismo
administrativo, possibilita o engessamento no gasto de recursos públicos, por mais que
seu criador, Fernando Henrique Cardoso, tenha explicitamente negado a assertiva, em
seu livro de memórias:

“ Parodiando a Natureza, a aprovação da LRF em maio de 2000 mostra que


também na História nem tudo se perde, algo se transforma. Com efeito, custa a
crer que um Congresso que se mostrou refratário a andar depressa na
discussão e votação de algumas reformas de vital importância para o país e que
só acelerava as decisões diante das crises financeiras haja aprovado uma lei
como essa, em prazo bem menor do que o demandado anteriormente para dar
seu imprimatur a leis de impacto muito menor. Surpreende mais ainda o fato
de, em comparação com outras medidas, terem sido relativamente poucas as
resistências à sua aprovação. É possível buscar muitas explicações para este
comportamento. Sejamos otimistas: deu-se um avanço na consciência social
quanto a certas questões que afetam criticamente a estabilização e podem
colocar em risco os ganhos da luta contra a inflação. E talvez em decorrência
da estabilização comece a haver um maior cuidado no manejo dos recursos
públicos e maior respeito aos interesses do povo (...) As oposições se aferravam
na crítica ao projeto porque concedia prioridade ao pagamento dos juros da
dívida (como se fosse possível escrever na lei que não seria assim e, portanto,
que se abriria caminho ao calote). O tema da proibição de despesas não
abrangia as chamadas ‘despesas continuadas’ de obras e contratos que se
prolongavam no tempo (...) (CARDOSO, 2006, p. 489 e ss.).

61
A questão tributária precisa ser revista. Segundo Mangabeira, algo deve ser feito
para se estancar a transferência maciça da riqueza das mãos de trabalhadores para os
bolsos dos rentistas (cf. MANGABEIRA UNGER, A Política do Vazio, Folha de São
Paulo, 10 de fevereiro de 2004).
Tem-se a impressão de que o modelo tributário é subestrutura de engenharia
política que promove conjunto legislativo que visa potencializar formas de obtenção de
receitas públicas. A destinação orçamentária torna-se assunto político e indigesto. A
indiferença, em nome de ingênua neutralidade axiológica e científica, que não passa de
neutralidade de eunuco, serve de escudo para textos de direito tributário que principiam
em insistir que o Estado visa receitas para atingir fins que aperfeiçoam interesses
públicos primários, e que seus objetivos são orientados para o bem comum. Um pouco
ingênuos. Talvez.
A negativa daquela premissa, como ponto referencial, é a base conceitual que
informaria leitura mais realista do modelo tributário. E que se faz necessária. E isto não
significa nenhum pouco caso para com a normatividade estrita, para com o suposto
direito tributário de caráter científico, na concepção dos tributaristas de renome, e que
formatam conjunto de argumentos de autoridade, que os juristas chamam de doutrina,
de modelos jurídicos dogmáticos, e que o sociólogo alemão Max Weber denominaria
de prestígio que radica na tradição e no conhecimento que se repete.
A problematização em torno de direito tributário crítico não é mera tomada de
posição ideológica, no sentido de se definir hermenêutica fiscal a favor ou contra o
Estado. As obviedades que marcam a evidente lembrança da sanha fiscalista são por
demais contundentes. Disfarçam e escondem advocacia panfletária de plantão,
freqüentada por Robin Hoods pós-modernos que ostentam o modo yuppie de vida.
Estas obviedades também oxigenam e alimentam exército de consumidores de
problemas tributários, que variam de juízes a advogados públicos, de promotores que
perseguem os crimes e criminosos contra a ordem tributária a professores universitários
enfadados com o nível de interesse dos alunos, que por sua vez se revoltam com o
despreparo dos professores, muitas vezes meros repetidores de fórmulas mnemônicas
pretensamente mágicas, que acenam com o sossego profissional, que simplesmente não
existe realisticamente no mundo conturbado em que vivemos.
O modelo normativo fiscal brasileiro segue tradição que se formou com o
pensamento racional e iluminista do século XVIII e que se desenvolveu posteriormente,

62
mediante a outorga ao Estado do monopólio da confecção de leis. Textos escritos
ocupam o centro da produção normativa, relacionando-se em busca de mínimo de
coerência e de razoabilidade.
Pensa-se em um sistema, que evite conflitos de normas e que preveja soluções
adequadas para eventual inexistência de regras, as chamadas lacunas, que qualificam
espaços jurídicos vazios. Busca-se suposta segurança jurídica que propicie relações
relativamente previsíveis, e que justifique a atuação política e o desenvolvimento
material, por mais que se desconsidere a relação entre direito e política, entre eqüidade
e poder, entre direito e economia, entre justiça e eficiência. Fetichismo institucional.
O modelo funciona a partir de um texto referencial, que detenha posição mais
densa, e que provoque respeitabilidade. A constituição assume a posição, e para isso
conta com credenciais históricas, que imaginações mais inflamadas fazem radicar na
Magna Carta dos ingleses. As revoluções inglesas do século XVII, a revolução da
burguesia francesa do século XVIII e o movimento de independência dos Estados
Unidos, da mesma época, e que formam o conjunto das revoluções atlânticas, fornecem
o pano de fundo histórico que caracteriza o discurso constitucionalista.
O liberalismo é o substrato conceitual, a previsão de garantia de direitos é a
marca mais profunda e a separação dos poderes o dogma mais recorrente. O art. 16 da
Declaração dos Direitos do Homem, embutido na constituição francesa de 1791, e que
precedeu o período do terror, mais radical, prescrevia que toda sociedade que não
assegure a garantia dos direitos nem a separação dos poderes não possui constituição. A
constituição é o ponto de partida de toda a normatividade. Regras que com ela
apresentam conflito devem ser eliminadas, por conta da toxidade que provocam no
sistema.
Cogita-se de sistema de controle de constitucionalidade das normas. Dividem-se
as regras em constitucionais ou inconstitucionais; estas últimas prioritariamente
peçonhentas, aquelas primeiras tidas como genuínas e imaculadas. Legalidade (ou
constitucionalidade) e legitimidade se confundem. Basicamente, a história do direito
registra três modelos de controle: o austríaco, o francês e o norte-americano, com seus
prolongamentos implantados em outros lugares, e que provocaram os modelos alemão,
português e mesmo brasileiro. É em cima desse desenho que se desenvolvem
discussões que freqüentam os tribunais e que perpetuam o impasse.
Mangabeira prega a tributação regressiva, de modo seletivo, como meio de
ampliação da base tributável, e como instrumento de realização de justiça fiscal. A

63
tributação regressiva alcança prioritariamente as chamadas exações indiretas, que
caracterizam os tributos não vinculados. No modelo brasileiro, os tributos dividem-se
em vinculados e não-vinculados. Esses últimos não admitem que se questione a
respectiva destinação orçamentária. Aqueles primeiros são identificados por relação
direta entre fisco e contribuinte.
Os tributos vinculados são as taxas, as contribuições de melhoria, as
contribuições sociais e as contribuições de intervenção no domínio econômico. Os
impostos, em geral, são tributos não vinculados. Os impostos são diretos quando a
relação entre fisco e contribuinte é imediata; grava-se a pessoa, ou um determinado
bem.
Ilustro com o imposto de renda, com o imposto territorial rural e com o imposto
sobre a propriedade de veículos automotores. Os impostos são indiretos quando o
contribuinte de fato não recolhe diretamente o tributo; é o contribuinte de direito quem
o faz. Exemplifico com o imposto sobre a circulação de mercadorias e serviços, que é
estadual (e distrital), e com o imposto sobre produtos industrializados, que é federal.
Estes dois últimos, ICMS e IPI, são regressivos, isto é, a carga tributária acaba
afetando mais quem tem menor poder para suportá-la. É que as alíquotas são iguais,
não importa o contribuinte. Progressivos são impostos qualificados pela razão direta
entre capacidade contributiva e carga fiscal. E quando Mangabeira propõe impostos
regressivos, leva em conta, principalmente, a seletividade.
Isto é, pretende tributar mais pesadamente o consumo suntuoso. E pretende
incentivar, por intermédio da tributação, a poupança e o investimento. Vale-se do
modelo proposto por Kaldor, concebendo a tributação sobre a diferença entre receita e
poupança. Isenta-se o consumo básico, e progressivamente se tributa o consumo
suntuoso. A isenção proposta assemelha-se ao que a dogmática nomina de imunidade
do mínimo existencial.
Mangabeira defende um sistema tributário que desonere a produção e que
facilite o emprego dos trabalhadores de menor renda. E de modo mais amplo, em texto
de jornal, “(...) a melhor maneira é acabar com todos os encargos sobre a folha de
pagamentos, subsidiar, por concessões fiscais ao empregador, o salário mínimo maior
e elevar, em troca, a tributação do consumo” (MANGABEIRA UNGER, Como
Cuidar do Social, Folha de São Paulo, s.d.). E ainda, a “(...) simplificação tributária
que transforme imposto federal sobre valor agregado, com a participação dos estados,
no instrumento principal da arrecadação, como ocorre na maior parte do mundo, e

64
compense o cunho regressivo desse imposto com medidas de justiça tributária”
(MANGABEIRA UNGER, Como Enfrentar os Perigos da Transição, Folha de São
Paulo).
Essa última proposta consubstancia um dos maiores problemas do federalismo
brasileiro, impondo limites e indicativos de guerra fiscal que se trava em nível vertical.
Há indisfarçável tendência federal em pretender açambarcar os valores que são
recolhidos com ICMS, e que hoje são de competência estadual e distrital.
Em princípio, cogitar-se-ia da fusão entre ICMS e IPI, em nome de um imposto
de valor agregado, IVA, de competência federal. Em tese, os estados perderiam o
controle de parcela mais substancial de suas receitas; aumentaria a dependência para
com o poder central. Como conseqüência, há necessidade de se alterar o regime de
divisão das receitas tributárias, que tem previsão constitucional.
Há ainda outro problema relevante, do ponto de vista estritamente dogmático. É
que o modelo federalista seria sacudido, dependendo do modo como se conduzisse o
elenco de reformas. Como resposta dos estados economicamente mais fortes, haveria
eventual enfrentamento. Pode se invocar em juízo, em mecanismo de controle de
constitucionalidade, a imprestabilidade de tais mudanças, por conta mesmo de vedação
constitucional, na medida em que cláusula pétrea estaria ameaçada. Os vivos acabamos
escravos dos mortos. De novo.
Entre países que adotam modelo de IVA temos Portugal, que nomima o tributo
de imposto sobre o valor acrescentado. Estão sujeitas ao referido imposto as
transmissões de bens e as prestações de serviços efetuadas no território português, a
título oneroso, as importações de bens, bem como operações intercomunitárias. A
incidência pessoal contempla quem de modo independente ou habitual exerça
atividades de produção, comércio ou prestação de serviços. Bens, serviços e
mercadorias importadas centram-se na área de abrangência do IVA português. Há
previsão de algumas isenções em operações internas, entre elas prestações de serviços
de médicos, dentistas, parteiros, enfermeiros e outras profissões paramédicas.
O IVA português é informado por forte natureza extrafiscal, isto é, é manobrado
com forte sentido regulatório e intervencionista. Por exemplo, há certo sentido de
seletividade também na medida em que se exclui do direito à dedução o imposto
contido em despesa relativa à aquisição, fabrico ou importação, ou mesmo à locação,
utilização, transformação e reparação de veículos usados no turismo, nos barcos de
recreio, helicópteros, aviões, motos e motociclos.

65
Eventual implantação do IVA no modelo tributário brasileiro, insista-se, de
modo realista, provocaria forte oposição estadual, por conta de suposta absorção dos
ICMS em desfavor dos estados da federação.
Mangabeira propõe também pesada tributação sobre as heranças. Alíquotas e
bases de cálculo do imposto sobre transmissão causa mortis, de competência estadual e
distrital, seriam reajustadas, como medida que antecederia a concepção de um fundo
para herança social. Tenho impressão de que haveria oposição muito forte. Do ponto de
vista dogmático, mais uma vez, e de modo realista, poderia se invocar em desfavor da
medida o desrespeito ao direito de propriedade e a vedação da utilização do tributo
como confisco. Tais cláusulas informam o leque constitucional de direitos e garantias
individuais. Fetichismo institucional, ainda outra vez.
Não se pode perder de vista que, não obstante a nobreza e a boa intenção que
envolve o conteúdo das propostas tributárias, há todo um sistema a ser alterado.
Conseqüentemente, o mecanismo envolve medidas de esclarecimento e de
convencimento. A tarefa, reconheça-se, é, na medida do possível, realizada por
Mangabeira mesmo, por meio de intensa atividade na imprensa. Mangabeira pretende
que se racionalizem os impostos, sem que se diminua imediatamente a receita,
mediante a “ adoção de um regime tributário que, incidindo sobre o consumo, desonere
a produção”. (MANGABEIRA UNGER, A Obra do Futuro Governo, Folha de São
Paulo, s.d.).
Prescreve realismo fiscal. O Estado deve se obrigar a viver dentro de seus meios
orçamentários. Evidencia-se preocupação com o destino de tributos recolhidos, que
seriam transferidos para o pagamento de credores, internos e externos. A reforma
tributária é necessária, e o é para suscitar instrumentos que gerem recursos públicos e
poupança nacional; não se presta para programar subserviência do governo para com
bancos e interesses internacionais.
Insiste no sacrifício fiscal; é este quem gera ajuste tributário, e não preliminares
contábeis. Quer melhorar a qualidade dos impostos. Idealiza mitigar os efeitos nocivos
da carga tributária que incide sobre a produção. Pretende acabar com concessões
tributárias marcadas pelo casuísmo e que transformam repartições públicas fiscais em
balcões de favores. Mangabeira aponta que o fiscalismo puro é componente do cardápio
político dos rendidos.
Mangabeira quer debate tributário programático, sério e prospectivo, que deixe
de lado abstrações retóricas e pormenores técnicos, a exemplo de discussões que

66
presentemente agitam o Supremo Tribunal Federal no Brasil, a propósito da incidência
do ICMS na base de cálculo da COFINS, ou do uso de lei complementar ou de lei
ordinária para fixação da COFINS sobre as empresas prestadoras de serviços.
Mangabeira quer uma seletividade mais agressiva. Pretende uma maior tributação sobre
o consumo do supérfluo e do suntuoso.
No artigo Impostos e Futuro, publicado na Folha de São Paulo, em 27 de
fevereiro de 2007, sintetizou seu programa tributário, texto que reproduzo na íntegra,
ilustrando as considerações aqui feitas, a propósito da sétima tese:

“Se há parte do debate nacional onde a clareza ajuda a produzir o avanço, é a da


reforma tributária.Compreendamos, em primeiro lugar, que tanto os impostos, do lado
da arrecadação, quanto as transferências de renda do governo para pobres, do lado
do gasto, são instrumentos acessórios, ainda que úteis, na diminuição das
desigualdades. O que iguala mesmo é democratizar oportunidades econômicas e
educativas. Em segundo lugar, quando se quer avaliar a justiça de impostos, o que
importa é o resultado, não a aparência. As democracias mais igualitárias -- algumas
das social-democracias européias -- obtém a maior parte de sua receita pública da
tributação indireta do consumo, especialmente por meio do imposto sobre o valor
agregado, apesar de ser esse um imposto regressivo. Diz-se regressivo porque incide
mais sobre quem ganha menos e portanto sobre quem consome parte
proporcionalmente maior de sua renda. A explicação do suposto paradoxo é que essa
forma de tributação permite arrecadar mais, com menos desincentivo para poupar,
investir e trabalhar. O que se perde de progressividade do lado da receita, ganha-se
em dobro na hora do gasto social. Em terceiro lugar, o tributo para o qual
converge o mundo é um imposto abrangente, e de alíquota única, sobre o valor
agregado, o IVA. É o que menos distorce os preços relativos. Minimiza, portanto, o
trauma econômico. As alternativas, como o imposto sobre transações bancárias, não
gozam da mesma neutralidade. Em regime federativo como o nosso, a União deve
arrecadar todo o IVA, com participações pactuadas dos Estados e dos Municípios.Em
quarto lugar, por ser o IVA um imposto regressivo, só deve ser aceito como eixo
quando instituído no bojo de um projeto maior de desenvolvimento com inclusão.
Projeto que aumente o gasto social redistribuidor e que democratize as oportunidades
para trabalhar e aprender. Em quinto lugar, a melhor maneira de tornar o regime
tributário mais justo é construir, sobre a base do IVA, dois outros impostos. O
primeiro alcançaria a hierarquia dos padrões de vida, incidindo, em escala altamente
progressiva, sobre a diferença entre a renda e o consumo de cada contribuinte. O
segundo incidiria sobre a própria riqueza, sobretudo quando transmitida por meio de
doação familiar ou de herança. Os obstáculos são políticos, não técnicos. Imprestável
é o imposto de renda, antro de confusão. Na prática, serve apenas para tributar
salários da classe média. Tudo muito chato talvez, porém indispensável.
(MANGABEIRA UNGER, Impostos e Futuro, Folha de São Paulo, 27 de fevereiro de
2007).

Mangabeira defende intransigentemente um imposto sobre valor agregado,


federal e fiscalizado pelos estados. Evidencia que o imposto de renda é tributo que
incide sobre a classe média, a quem penaliza pelo ganho e pelo trabalho. Quer
descompressão tributária sobre salários e produção. Quer desonerar a folha de

67
pagamentos de todos os encargos, subsidiando incentivos fiscais para criação de
empregos e treinamento de empregados. Deve-se tributar mais o consumo, e menos a
produção. Impostos exigem racionalidade.
É nesse sentido, de modo a ilustrar as preocupações de Mangabeira, que procuro
sintetizar questões preocupantes da ordem tributária. Por exemplo, a proliferação dos
negócios bancários suscita perene especulação, inusitada movimentação de capitais, de
contratos, de empréstimos públicos e particulares, garantidos pelos governos dos países
periféricos.
Em relação a esses últimos, a atividade tributária passa a desempenhar inusitada
função. Na perspectiva clássica da Ciência das Finanças tinha-se na arrecadação
mecanismo de absorção de valores para que o Estado desempenhasse suas tarefas.
Valores eram (ou deveriam ser) orientados para a segurança, saúde, infra-estrutura.
Variava-se de acordo com o modelo do Estado, que transcendia a função clássica,
quando formatado nos moldes keynesianos de bem-estar social.
É por essa razão que historicamente a atividade tributária sempre se fez
antipática, pela tendência natural dos contribuintes no sentido de relacionarem custos e
benefícios. E muitas vezes o desate dessa aritmética tão simples fez-se em rebeliões e
revoluções. O Egito antigo, o proto-estado de Israel dos tempos bíblicos, a China das
dinastias que se diziam mandatárias do céu, as póleis gregas do rico Mediterrâneo, a
república e o império dos romanos, o Islã que tributava os infiéis, o modelo de servidão
fiscal eslava que os russos conheceram no medievo, a Inglaterra elisabeteana, as
colônias britânicas na América, os inconfidentes das Minas Gerais, interminável lista de
embates políticos com fundo e finalidades tributárias ilustram a assertiva.
No Brasil contemporâneo essa proporção entre o que se paga e o que se tem em
troca torna-se absurdamente dramática. A atual tributação não estimula os empregos, a
exportação e a produção industrial; a carga tributária atual pode atingir quase 40% do
PIB. Quando da alteração de alíquotas do PIS (de 0,65% para 1,65%) a arrecadação
federal aumentara em cerca de 16%. Tem-se a impressão que o ônus tributário tende a
absorver os recursos que circulam pelo país. O impacto da tributação no cotidiano das
pessoas transcende temas de economia política e qualifica interferência governamental
enervante.
Posso exemplificar a carga tributária presente com dados referentes à
arrecadação federal no mês de março de 2007. Os números que seguem não alcançam
exações estaduais e municipais, bem como expressiva quantidade de algumas

68
contribuições previdenciárias. A Secretaria da Receita Federal informa em página da
Internet que no referido mês de maio de 2007 foram arrecadados 33.601 milhões de
reais. Ainda, com expressão em R$ milhões, tem-se o quadro seguinte: Imposto sobre
Importação (1.007), Imposto sobre Produtos Industrializados - fumo, bebida,
automóveis, importação e outros- (2.531), Imposto sobre Operações Financeiras (609),
Imposto Territorial Rural (11), Imposto de Renda- pessoas físicas, jurídicas, entidades
financeiras, valores retidos na fonte- (12.684), Contribuição Provisória sobre
Movimentações Financeiras (2.778), Cofins- Contribuição para a Seguridade Social
(7.398), Contribuição para o PIS-PASEP (2.020), CSLL (Contribuição Social sobre o
Lucro Líquido (2.930), CIDE-Combustíveis (575), Contribuição para o FUNDAF (36),
outras receitas administradas (763).
Alguns números chamam a atenção. A inexpressividade da arrecadação do
Imposto Territorial Rural é um fato. O dado mais intrigante, no entanto, é que receitas
decorrentes de contribuições ultrapassam receitas de impostos. E a explicação é muito
simples: em princípio, a União Federal não é obrigada a repartir com os demais entes
da federação o que arrecadou com contribuições. Já no que toca aos impostos, a
constituição federal determina, em seção específica relativa à repartição das receitas
tributárias, que a União deva entregar aos Estados, Distrito Federal e aos Municípios, o
produto da arrecadação do Imposto de Renda incidente na fonte, sobre rendimentos
pagos, a qualquer título, por eles [entes aqui nominados], suas autarquias e fundações.
A União entrega aos Estados também 20% da arrecadação de eventuais impostos
residuais.
A União deve repassar 50% da arrecadação do Imposto Territorial Rural aos
Municípios nos quais se localizem as propriedades rurais tributadas. Registre-se que,
nesse último caso, a quantidade de valores não é tão expressiva assim. Comprovando a
assertiva, recente emenda constitucional (nº 42, de 2003) prevê convênios a serem
celebrados entre a União e os Municípios, mediante os quais a União transfere a
capacidade fiscalizatória e arrecadatória para os Municípios, que poderão ficar com o
resultado total da arrecadação do referido imposto, vedando-lhes a concessão de
incentivos ou isenções.
A União também deve repassar para Estados e Municípios 47% do total
arrecadado de Imposto de Renda. Deve entregar também 10% do que arrecadou a título
de Imposto de Produtos Industrializados. Esse quadro, ilustrado pela importância do
Imposto de Renda que, no entanto, é fracionado, substancializa a tendência que há por

69
parte do governo federal no sentido de multiplicar contribuições ao invés ao elevar
alíquotas ou ampliar bases de cálculo dos tributos que lança. Do ponto de vista fático,
essas contribuições qualificam verdadeiros impostos. É o caso da contribuição lançada
sobre a aquisição e consumo de combustíveis, e ainda da contribuição relativa à
movimentação financeira. Ou então identificam taxas, a propósito da contribuição
presentemente cobrada sobre iluminação pública.
As próprias incongruências (loopholes) que a lei tributária enceta, e que
tributaristas tanto criticam, é que promovem a razão de ser e de viver de robustos
escritórios de advocacia fiscal e de contabilidade. Não fosse a inaptidão da lei fiscal,
advogados tributaristas e contadores não seriam tão requisitados. Não teriam o que
fazer. E outros problemas ainda há, e refiro-me à projeção da mundialização do capital
no ambiente normativo brasileiro.
A moda do planejamento tributário, mediante a concepção e venda de
produtos, disfarçados em liminares e decisões judiciais que mitigam a carga das
empresas e das pessoas, é fruto direto dessa engenharia social decorrente de mundo
globalizado. O uso de trusts e off-shores, por exemplo, como mecanismos de
diminuição de carga tributária, promovendo inclusive dúvidas conceituais a propósito
do fato de que suscitam práticas elisivas ou evasivas.
É preciso ir ao fundo do problema. O modelo tributário brasileiro atual é o
resultado da necessidade em que se vê o poder constituído em manejar a dívida externa
e as condições de investimento no país, como decorrência da economia globalizada. No
passado, por exemplo, durante a guerra fria, havia espaço de manobra, dado que
suposto combate contra a ameaça comunista, a par de nossa posição estratégica,
possibilitavam concepção de geopolítica que nos favorecia. Porém a situação já não é
mais a mesma. A guerra fria acabou.
A mantença de um serviço de dívida externa é que influi nos contornos ao
sistema tributário nacional. Como pano de fundo, o modelo de neoliberalismo que
imprime novo ritmo nas relações estruturais internacionais, com conseqüente redesenho
de modelos conjunturais locais. Efetivamente é o contribuinte local quem paga a conta
dessa movimentação global, sem poder insurgir-se. Simultaneamente, a busca da
estabilidade da moeda e da baixa inflação faz-se por conta de legislação que, bem
trabalhada, promove a evasão e o ilícito.
O tema reforma tributária ganha atenções. Mas não chega a lugar nenhum.
Romanticamente imaginada como a tábua de salvação para a diminuição da carga

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fiscal, presta-se justamente para o contrário, na medida em que realmente parece
promover bases mais amplas para recolhimento. O direito tributário convive então com
movimento normativo que prevê reforma fiscal que pretende ampliar essa base de
recolhimento, como reflexo da crise pela qual o Estado se vê tomado.
O mais perverso dos impostos, o ICMS, de competência estadual e marcado por
forte regressividade, passa a justificar guerra fiscal que revela problemas graves de
federalismo vertical. O ICMS é o imposto que suscita o maior número de impasses no
modelo tributário presente. Exemplifico exaustivamente. Discute-se a incidência do
ICMS nas operações de arrendamento mercantil, especialmente em operações de
importação, e especificamente em relação à introdução de aeronaves e de peças de
aviões, no território nacional. Embora, em princípio, não exista previsão para incidência
de ICMS em operações de leasing, tem-se que a introdução de mercadorias em
território nacional, mediante o uso da referida operação, poderia apontar para
mecanismo de importação, justificando-se a incidência do ICMS, que incide na
importação de mercadorias e de serviços.
Certo é que essa reflexão decorre de operação mental odiosa, e refiro-me à
chamada interpretação econômica do direito tributário, que pretende excluir aspectos
normativos que envolvem os fatos tributáveis, em favor dos elementos econômicos que
os caracterizam.
O ICMS é também discutido quanto à incidência no transporte de passageiros,
aéreos e terrestres. O Supremo Tribunal Federal, na ação direta de inconstitucionalidade
1.600, relatada por Nelson Jobim, entendeu que não há incidência do ICMS no
transporte aéreo de passageiros. Para o referido Ministro, que presidiu aquele tribunal,
não há como se identificar os elementos fundamentais e necessários para que esse
imposto possa ser adaptado à moldura constitucional. Entendeu-se ainda que não se
realiza o princípio da não-cumulatividade, porquanto o adquirente de bilhetes, se pessoa
jurídica, não teria como se creditar em desfavor de débitos presentes e futuros. Decidiu-
se também que o ICMS não pode incidir sobre transporte aéreo de passageiros, dado
que não se fixa adequadamente o Estado da federação que seria beneficiário da
cobrança, quebrando-se o modelo de repartição de receitas, tal como explicitado na
constituição federal. Toda essa linha de argumentação parece informar discussão que o
Supremo Tribunal Federal aprecia, relativa à ação direta de inconstitucionalidade 2.669,
também relatada por Nelson Jobim, na qual se disputa a incidência do ICMS no
transporte terrestre de passageiros.

71
O ICMS parece ser, de fato, o tributo que provoca o maior número de discussões
no país. É assunto freqüente no Supremo Tribunal Federal, por conta dos problemas que
suscita, em campo de controle de constitucionalidade. Alguns exemplos ilustram a
idéia, e comprovam que o modelo provavelmente cria mais problemas do que se
imagina. Indico algumas questões presentemente discutidas.
Na ação direta de inconstitucionalidade 2.777, requerida pelo Governador do
Estado de São Paulo questiona-se lei estadual que dispõe sobre restituição de ICMS
pago a maior. Argumenta-se que o modelo não estaria de acordo com previsão
constitucional, tal como se lê no art. 150, § 7º da constituição federal. O processo é
relatado pelo Ministro Cezar Peluso e há várias intervenções amici curiae de outros
estados, interessados no deslinde da questão, porque também discutem matérias
semelhantes.
Especialmente, refiro-me à ação direta de inconstitucionalidade 2.675,
originariamente relatada por Carlos Velloso, que julgou improcedente o pedido do
governador do Estado do Pernambuco.
Na reclamação constitucional 2.491, relatada pela Ministra Ellen Gracie,
discute-se sentença que declarou incidentalmente inconstitucionalidade de instrução
normativa que determinou que pagamento de ICMS no estado do Piauí seja feito por
meio de substituição tributária calculada com base no valor agregado, com base em
recolhimento decorrente de efetiva ocorrência de fato gerador e conseqüente
mensuração.
Na ação direta de inconstitucionalidade 429-8, proposta pelo Governador do
Estado do Ceará em face da Assembléia Legislativa daquela unidade da federação,
discute-se a imprestabilidade de vários dispositivos da constituição daquele estado. Por
exemplo, questiona-se norma que determina que microempresas fossem isentas de
tributos estaduais; inclui-se, naturalmente, o ICMS. Outra norma discutida refere-se ao
parágrafo único do art. 273 da referida constituição estadual, que prevê redução fiscal
de 1% no ICMS para empresas privadas que contem com até 5% de deficientes no
respectivo quadro funcional. Ainda, o inciso III do art. 283 da mesma constituição
impõe ao estado isenção total de ICMS para estímulo da confecção e comercialização
de aparelhos destinados a pessoas portadoras de deficiência.
Na ação direta de inconstitucionalidade 2.663, relatada pelo Ministro Eros Grau,
discute-se a adequação de lei do Rio Grande do Sul que prevê incentivos fiscais de
ICMS para empresas que patrocinem bolsas de estudo para professores.

72
Reporto-me também à ação direta de inconstitucionalidade 2.529, relatada pelo
Ministro Gilmar Ferreira Mendes, na qual se discute lei paranaense que cria programa
estadual de incentivo à cultura, e que conta com recursos de um fundo especial de
cultura, com objetivo de mecenato, implementado mediante incentivos de ICMS.
O mesmo Ministro Gilmar Mendes relata a ação direta de inconstitucionalidade
2.056, requerida pela Confederação Nacional de Agricultura, que questiona lei do
estado do Mato Grosso do Sul que trata de regime de diferimento de ICMS relativo a
produtos agropecuários. A questão enceta uma série de problemas, a exemplo da
natureza do benefício do diferimento do ICMS nas operações internas com produtos
agropecuários, vinculados a contribuição facultativa, criada pela norma discutida.
Convênios interestaduais em matéria de ICMS também animam a discussão. Gilmar
Mendes também relata a ação direta de inconstitucionalidade 1.648, proposta pela
Confederação Nacional do Comércio contra a Assembléia Legislativa de Minas Gerais.
Nessa ação discute-se se é constitucional a incidência de ICMS sobre alienação de bens
salvados de sinistro por seguradoras.
O Governador do estado do Espírito Santo propôs ação direta de
inconstitucionalidade (3.809) discutindo lei estadual que prevê concessão de incentivos
fiscais para empresas que contratem apenados e egressos. Na ação direta de
inconstitucionalidade 2.747, proposta pelo Governador do estado de Minas Gerais em
face do Ministro da Fazenda discute-se convênio de ICMS que prevê regime de
tributação relativo à venda de automóveis pela internet.
E miríade de outros assuntos há, a exemplo de incidência de ICMS em software
(ADI 1.945), critérios de distribuição de parcelas de arrecadação de ICMS (ADI 1.423),
entre tantos outros.
A situação tributária brasileira é realmente confusa. A CPMF - contribuição
provisória sobre movimentações financeiras, prorrogada reiteradamente, parece tornar
definitivo o que nascera sob a égide da provisoriedade. Impostos de importação e de
exportação também incidiriam sobre serviços, além de produtos, que hoje gravam em
detrimento de eventual paradigma de livre comércio.
Assuntos antigos resistem, e promovem animadas discussões. Exemplifico com
o FGTS-Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Questiona-se se a cobrança do
fundo de garantia qualifica tributo ou prestação em favor do trabalhador. O Supremo
Tribunal Federal, ainda em 1988, no recurso extraordinário 100.249, relatado por Néri
da Silveira, descaracterizou a natureza fiscal do fundo. No mesmo recurso

73
extraordinário, o Ministro Sidney Sanches, em voto-vista, explicitamente afirmava que
o fundo de garantia por tempo de serviço não seria tributo, porém direito social do
empregado.
É com base nessa premissa que em julgados posteriores, especialmente no
recurso extraordinário 134.328, em 1993, em processo relatado pelo Ministro Ilmar
Galvão, optou-se pela aplicação do art. 144 da lei orgânica da previdência social, o que
plasmou prazo prescricional de 30 anos, relativos à cobrança de débitos de fundo de
garantia. Essa decisão fora seguida pelo Ministro Marco Aurélio, no recurso
extraordinário 120.189, julgado em 1999.
O Tribunal Superior do Trabalho fixou entendimento, identificado no enunciado
nº 362, que dispõe que é trintenária a prescrição do direito de reclamar contra o não-
recolhimento da contribuição para o FGTS (...). Tudo leva a crer que esse
entendimento tende a promover entendimento distinto, sobremodo após a criação do
seguro-desemprego, por meio da constituição de 1988. O fundo de garantia parece
ganhar sentido distinto, de modo que tratado como direito do trabalhador fugiria da
esfera tributária, centrando-se como direito laboral, determinando-se regime
prescricional de cinco anos; é que a exação radicaria no art. 7º, III, da constituição.
Problemas tributários também sacodem o campo. Refiro-me ao Funrural, cobrado com
base no art. 12, V, a, da lei nº 8.212, de 1991. Há tendência no sentido de se esvaziar a
cobrança, porquanto empregadores rurais discutiriam se a incidência dar-se-ia sobre o
faturamento, o lucro, ou ainda a folha de salários.
A tributação internacional passa a exigir maior fiscalização e empenho,
especialmente em âmbito de preços de transferência e seu controle fiscal. Cogita-se
também de necessária tributação do comércio eletrônico no plano internacional.
Também o direito comunitário passa a integrar o modelo nacional de tributação, a
exemplo do que se passa em âmbito de Mercosul. Ocorre, no entanto, que o aludido
sistema ainda não foi implementado, a par do fato de que sua eventual normatização
baliza-se em preceitos de harmonização. A utilização dos blocos e regimes de
harmonização pode representar mecanismos eficazes na luta contra distorções
tributárias que engessam o desenvolvimento do país.
A questão ultrapassa a tendência de discutir-se matéria tributária em campo
exclusivamente analítico. A concepção de regra matriz de incidência, por exemplo,
acaba genuflectida a relações entre soberania e globalização, que jamais poderiam ser
imaginadas na reforma tributária de 1965, quando se concebeu o CTN. Pode-se até

74
cogitar de uma desconstitucionalização de alguns temas tributários, como mecanismo
de celeridade nessa concepção de modelo tributário menos ingênuo e mais realista. E se
o aumento da carga tributária é o reflexo direto da globalização em relação a nós
brasileiros, percebe-se também movimentação normativa que acompanha o momento, e
que é muito criticada.
O nível de iniqüidades é muito grande. Pode-se pensar que a tributação sobre a
comida de cachorros é inferior ao que se tributa na mesa da pessoa. Pode-se afirmar que
o botox, usado para supressão de rugas nos tratamentos de beleza tem alíquota zero,
enquanto remédios são violentamente taxados.
O Brasil é um país periférico na ordem global atual. É monitorado pelos
chamados agentes internacionais globais, a exemplo do Fundo Monetário Internacional
e do Banco Mundial. Nessa condição, vive assediado para a consecução de projeto de
estabilização econômica, moldado por modelo de reforma estrutural que exige atitude
fiscal que promova a confiança externa nas possibilidades internas.
Na miragem de se atrair investimentos externos são oferecidas amplas
generosidades fiscais ao capital estrangeiro, que nos faz presas de interminável
chantagem tributária. A carga tributária atual é também reflexo dessa situação.
Conseqüentemente, qualquer projeto de reforma ou de modelo tributário que não
discuta antes a posição do Brasil nesse concerto internacional, comete o pecado de
pretender subverter os meios pelos fins, a parte pelo todo. E é nesse sentido que o
sumário de propostas de Mangabeira pretende avançar.
Parto agora para a oitava tese.

“Oitava Tese: Da Reforma do Sistema Produtivo e de Sua Relação com o


Estado-

A reforma da produção ao longo de linhas mais experimentalistas não


tem necessariamente conseqüências democratizantes, mas oferece
oportunidades democratizantes. O caminho mais promissor para a realização
de tais oportunidades está em uma estratégia de crescimento que combine os
seguintes atributos: (a) dentro das empresas, a prática da produção como
aprendizado e o abrandamento dos rígidos contrastes entre as atividades de
definição de tarefas e as de execução de tarefas; (b) entre empresas, a
competição cooperativa - empresas de pequeno e médio porte, ou divisões
descentralizadas de grandes empresas, competem e cooperam si-
multaneamente, partilhando entre si recursos financeiros, comerciais e tec-
nológicos; (c) entre empresas e governos, uma ampla faixa de formas de
parceria, com práticas de coordenação estratégica descentralizadas, plura-
listas e. socialmente includentes entre governo e empresas. Para evitar que

75
essas parcerias degenerem em um confronto entre as elites burocráticas e as
empresariais e se tornem vítimas do clientelismo ou do dogmatismo,
precisamos diversificar o elenco de agentes econômicos e separar os governos
das empresas particulares, afirmando ao mesmo tempo, de maneira nova, a
idéia de associação entre o poder público e a iniciativa privada. A
democratização da parceria entre o governo e a empresa exige o de-
senvolvimento de organizações que se coloquem entre o Estado e as empresas:
fundos sociais competitivos e centros de apoio. Gozando de ampla
independência e sujeitos à pressão competitiva e à responsabilidade finan-
ceira, esses fundos operariam com os recursos de uma dotação original,
suplementada por seus próprios lucros. Sua tarefa seria associar a iniciativa
privada e o poder público de forma descentralizada, para minimizar
preconceitos burocráticos e privilégios econômicos, promovendo ao mesmo
tempo a inovação experimental nas formas institucionais de atividade de
mercado. Desde o princípio, algumas dessas organizações seriam
encarregadas de adotar uma visão além do curto prazo, nos moldes de uma
empresa pública de capital de risco. Uma de suas preocupações características
seria investir em uma vanguarda tecnológica capaz de produzir, sob medida,
os materiais e as máquinas de que a retaguarda tecnológica da economia
precise. Iriam também atuar no sentido de erguer a retaguarda, ajudando-a a
identificar e assimilar melhor as práticas e a tecnologia mais avançadas.”
(MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 214/5).

A oitava tese assenta-se em três pontos básicos: reorganização da estrutura


laboral das empresas, separação entre governantes e empresas particulares,
investimento em vanguarda tecnológica. Repudia-se o fordismo e o taylorismo,
quebrando-se diferenciações rígidas entre definição e execução de tarefas. Negando a
lógica do capitalismo competitivo, Mangabeira sugere regime de cooperação entre
empresas rivais, mediante trocas de recursos e de tecnologias. A relação entre
governantes e empresários, hoje praticada de modo orgânico e fisiológico, cede lugar a
regime cooperativo que decorre de programas normativos de direito privado mais um e
de direito público menos um. Cogita-se de necessária associação entre poder público e
iniciativa privada, sem favoritismos, e sob rígida fiscalização. De modo a engendrar
materialmente o processo, pensa-se na formação de fundos destinados a dotações
sociais. A idéia não é extravagante, e a experiência do Fundo de Garantia por Tempo
de Serviço, esboçada por Roberto Campos em meados da década de 1960, é disso
exemplo esclarecedor. O mecanismo institucional que poderia explicitar o modelo
transcende à rígida formatação das agências reguladoras, tais como as temos, e a
opinião é minha. Especialmente, mecanismos tributários poderiam incentivar o
investimento em vanguarda tecnológica, mediante isenções, incentivos e renúncia de

76
receitas, o que suscitaria embate no judiciário, dadas barreiras rígidas que decorrem da
lei de responsabilidade fiscal.
Do ponto de vista empresarial realizam-se dois novos modelos, de alcance
interno e externo. Internamente, rearticula-se a linha de produção, que passa a
protagonizar aprendizado constante. Afasta-se da hierarquia e do modelo burocrático
estudado por Weber, flexibilizando-se diferenças entre coordenação e execução de
tarefas. Externamente, substitui-se a competitividade agressiva por molde de
competitividade simpatizante, o que se programaria mediante esforço comum em
resultados também comuns, por parte dos atores do mercado, doravante identificados
mais adequadamente como parceiros. Efetiva-se desmonte das regras de direito
econômico; substituindo-se um direito de concorrência por um suposto dever de
cooperação.
Retoca-se a relação entre empresas e governo, favorecendo-se espaço dialógico,
no qual não haveria lugar para o lobby, para a troca de favores. É esse o tema de fundo
de artigo publicado na Folha de São Paulo, no qual Mangabeira explicita essa nova
fronteira entre público e privado, criticando a relação que se tem presentemente:

“(...) Moralizar a política significa romper os elos entre poder público e privilégio
privado. Um exemplo mostra o que isso representa. Imaginem que um grande
empresário, chegado ao presidente, deu-lhe dinheiro na campanha. Agora, apresenta a
conta. Quer continuar obra de vulto, iniciada por estrangeiros. Cobre-se com a
bandeira do nacionalismo econômico. Sua empresa, porém, não está sequer
qualificada no ramo. O empresário tenta comprar prerrogativa e vender proximidade.
Se o presidente aceitar, começa a destruir seu governo. Se rejeitar, começa a construí-
lo. O divórcio entre poder público e privilégio privado significa culto de transparência,
guerra contra o tráfico de influência, substituição de favores casuísticos por regras
impessoais e por critérios de desempenho e apoio aos emergentes como condição de
ajuda aos estabelecidos. Nada de telefonemas do empresário suplicante ao governante
cúmplice para perguntar se este gosta do que aquele pretende fazer. Distância e
dignidade. Desprivatização do Estado e privatização do setor privado. Essa ética é
gêmea da eficiência e mãe da justiça (...) (MANGABEIRA UNGER, A Ética Após a
Rendição, Folha de São Paulo, s.d.).

Os elos que se propõe que se rompam são aqueles entre poder público e
privilégio privado; isto é, excluem-se as parcerias que objetivam o bem comum, e que
resistam a escrutínios de moralidade e de seriedade administrativa. E o assunto remete
às demais teses, no sentido de que se deva banir o financiamento privado das
campanhas políticas. Privilegia-se a transparência. Substancialmente, Mangabeira
identifica a necessidade de desprivatização do Estado e privatização do setor privado.
Em outro texto, Mangabeira manteve a tese, observando que é necessário que se dê fim

77
“à prática dos governos se acertarem, em troca de financiamento eleitoral, com os
grandes empresários, o que esvazia e corrompe a democracia brasileira”.
(MANGABEIRA UNGER, A Misteriosa Reforma da Previdência, Folha de São Paulo,
22 de julho de 2003).
Insistindo na desprivatização do Estado, Mangabeira em outro artigo estampado
na Folha de São Paulo, e publicado com o título de Abaixo o Tráfico de Influência,
vinculou corrupção e financiamento privado de campanhas políticas:

“Parte das elites brasileiras habituou-se ao tráfico de influência. O hábito se agravou


durante o atual governo por conta da condução das privatizações. Está previsto no
Código Penal como o crime de que trata o artigo 332: "Tráfico de influência. Solicitar,
exigir, cobrar ou obter para si ou para outrem, vantagem ou promessa de vantagem, a
pretexto de influir em ato praticado por funcionário público no exercício da função."
Ocorre mesmo quando o funcionário não haja sido compensado. Tem por
contrapartida a advocacia administrativa, o patrocínio de interesse privado por parte
de funcionário. Como o "lobby" não está regulamentado no Brasil, o direito brasileiro
é mais severo do que, por exemplo, o americano na criminalização dessas práticas. O
país deseja intensamente acabar com a corrupção. A fonte mais importante da
corrupção é o financiamento das campanhas eleitorais “ (...)“ (MANGABEIRA
UNGER, Abaixo o Tráfico de Influência, Folha de São Paulo, s.d.).

A oitava tese sugere também a necessidade de que tenhamos empresariado


nacional. A reorganização da estrutura laboral das empresas é também conseqüência da
formação de classe empresarial forte, e comprometida com projeto nacional.
Mangabeira insiste na capacidade nacional, invocando dados do Banco Mundial
que atestariam nossa capacidade empresarial. Não se rende também ao fatalismo que
decorre dos processos de globalização, tida por alguns como a origem de todos os
nossos males, e por outros como a saída para todos os nossos problemas.
Especialmente, quanto ao regime a ser imposto ao falido, Mangabeira acreditaria que a
quebra deve determinar a ruína, e não a riqueza. É nesse sentido que invoca,
intuitivamente, conceitos de desconsideração da pessoa jurídica, assimilados pelo
modelo normativo brasileiro, porém limitados por circunstâncias contingentes de
processos falimentares.
No artigo Crescer, de igual modo publicado na Folha de São Paulo, capacidade
nacional de crescimento foi discutida, e dimensionada, sob interesse enfoque relativo a
terreno, escudo e lança, em texto que reproduzo integralmente:

“ É possível reduzir a poucas palavras a demarcação dos primeiros passos de caminho


que devolva o Brasil ao crescimento? E que assegure que, dessa vez, o crescimento

78
surta efeito igualizador e includente? Não há como destruir as mistificações do
fiscalismo e do mercantilismo que dominam nosso debate econômico se não soubermos
definir alternativa a elas. Distingo o terreno, o escudo e a lança. O terreno propício a
essa luta é o das condições que nos permitam baixar o juro real sem ameaçar a
estabilidade da moeda, reforçando o poder de barganha do Estado com seus credores
e tornando a economia menos dependente do capital descomprometido com a
produção. Reforma previdenciária que institua regime público de capitalização,
impondo a quem ganhe mais a obrigação de poupar muito mais e mobilizando
poupança de longo prazo para investimento de longo. Reforma tributária que
simplifique os impostos, fiando-se no único tributo capaz de gerar muita receita com
pouco ônus para a atividade produtiva: o IVA. E acrescentando, pouco a pouco,
impostos que reconciliem a tributação com a justiça, incidindo sobre o consumo de
luxo e sobre as heranças e as doações em família. Ao atenuar o conflito entre
tributação e produção e ao estreitar os vínculos entre produção e poupança, o governo
ganhará força para baixar o juro sem quebrar contratos. O escudo contra os perigos
da transição se faz de cautela em proteger nossas reservas e de prontidão para impor,
quando necessários, controles sobre a saída de capital brasileiro. Inclusive sobre o
capital, fantasiado de estrangeiro, que circula entre o Brasil e os paraísos fiscais de
acordo com as oscilações da ganância e do medo. A lança para avançar tem quatro
partes. O primeiro pedaço -- na ponta -- é conjunto de iniciativas destinado a
deslanchar escalada de investimento tanto da parte do governo (a começar pelo
BNDES) quanto por parte das grandes empresas privadas. O governo tem de negociar
com os empresários às claras, setor por setor, os apoios ou as concessões, até mesmo
tributárias, que forem úteis para superar a inibição em investir. O segundo pedaço, do
lado da oferta, é construção de instituições que, de maneira descentralizada e sob
regras impessoais e critérios de desempenho, possibilitem ajudar a multidão de
empreendedores emergentes a ganhar acesso a tecnologia, a crédito e a mercados. Só
nesse quadro democratizante se legitima uma política que também contemple a
formação de multinacionais brasileiras capazes de competir em escala mundial. O
terceiro pedaço, do lado da demanda, é esforço para aumentar o salário real,
imprescindível ao aprofundamento de mercado de consumo em massa no Brasil. Para
que o aumento se sustente, os meios para consegui-lo têm de ser diferentes nos níveis
superiores do assalariado -- participação dos trabalhadores nos lucros das empresas -
- e nos níveis inferiores --incentivos à qualificação do trabalhador e à legalização do
emprego. O quarto pedaço -- cabo e força da lança -- é multiplicação de escolas
públicas e de professores que saibam desenvolver a capacidade analítica e inovadora
dos alunos. E que tenham meios para premiar, com apoio abrangente, os estudantes
mais aplicados e talentosos, entusiasmando o país com os exemplos de ambição e de
excelência que essa nova contra-elite republicana lhe possa oferecer. Dar braços e
asas à energia frustrada dos brasileiros, na produção e no pensamento, é o cerne desse
projeto. De sua realização depende o êxito do Brasil em virar o que ele quer ser.”
(MANGABEIRA UNGER, Crescer, Folha de São Paulo, s.d.).

Sigo com a nona tese.

“Nona tese: Dos direitos de propriedade-


A parceria descentralizada e democratizada entre governos e
empresas, descrita na oitava tese, pode avançar por meio do desmembramento
dos direitos tradicionais de propriedade. Os poderes agora unidos sob o rótulo
de "propriedade" seriam separados, passo a passo, e investidos em diferentes
camadas de detentores de direitos: governos, organizações intermediárias e
empresas. As instituições democráticas dos governos podem demarcar os
limites extremos da desigualdade de benefício ou de posição no local de
trabalho, criar o meio alternativo para a alocação descentralizada de capital e

79
estabelecer a taxa básica subjacente para o uso do capital. As organizações
intermediárias - fundos sociais e centros de apoio - coordenariam o acesso
aos recursos produtivos sob diferentes regimes jurídicos. Sob alguns desses
regimes, os fundos teriam uma relação distanciada com as empresas que são
suas clientes: destinando recursos, em troca de empréstimos ou participações
acionárias, para aquelas que tiverem melhores perspectivas de garantir, em
períodos mais longos ou mais curtos, a taxa mais alta de retorno. Sob outros
regimes, as organizações desenvolveriam uma relação mais íntima com as
empresas que forem suas clientes, como peças centrais de pequenas
confederações de negócios operativo-competitivos. Os tomadores de capital e
usuários finais - as empresas clientes ou as equipes de profissionais ou
trabalhadores que entram e saem das empresas - compartilhariam com as
organizações intermediárias e com os governos locais ou associações
comunitárias direitos residuais conjuntos sobre os negócios que
estabelecerem. Dessa forma, restringiríamos os direitos de propriedade para
fazer com que proliferem. Conseguiríamos maior descentralização das
oportunidades econômicas, bem como maior diversidade nas formas legais do
mercado, à custa do enfraquecimento do poder absoluto dos detentores de
direitos de comando sobre os recursos a sua disposição. Sistemas diferentes de
direito contratual e direito da propriedade, equivalentes a métodos alter-
nativos para a alocação descentralizada de capital, passariam a coexistir
dentro da mesma economia. Uma sociedade atuante e informada pode, então,
avaliar os méritos de cada um desses regimes de direito privado para cada
setor da atividade econômica, seus benefícios econômicos e seus custos
sociais. Diminuímos a tensão entre a iniciativa privada e o controle público
mudando seus veículos institucionais. Diminuímos simultaneamente de
muitas outras formas, para melhor ver e julgar as conseqüências práticas de
cada forma. Por meio de tais dispositivos, transformamos em um artifício
reconhecido e substituível o que teria sido errado para a necessidade prática
ou teórica no desenho institucional de uma economia de mercado. O
resultado não é o "capitalismo", nem o "socialismo", mas a economia de
mercado que se tornou mais includente, mais pluralista e mais experimental.”
(MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 215/6).

A nona tese calca-se no desmembramento dos direitos de propriedade, no


modelo de alocação descentralizada de capital e na defesa da economia de mercado
contra o capitalismo e o socialismo, o que em primeira vista parece paradoxal. Como já
observado, em princípio, a desconstrução (ou a reconstrução) dos indicativos do
modelo de propriedade pode suscitar discussão imediata, e em âmbito judicial e
dogmático, dada a feição constitucional da referida prerrogativa. Mangabeira dá conta
de desmembramento dos poderes presentemente descritos como de propriedade. Quais?
Historicamente, o direito brasileiro assimilou o fracionamento conceitual entre posse e
propriedade. É redação do Código Civil atual que “considera-se possuidor todo aquele
que tem de fato o exercício, pleno ou não, de algum dos poderes inerentes à

80
propriedade” (art. 1.196). Tem-se a posse direta, na qual a coisa encontra-se em poder
de alguém, ainda que temporariamente (Código Civil, art. 1.197). Prevê-se também a
figura do detentor, isto é, “aquele que, achando-se em relação de dependência para
com outro, conserva a posse em nome deste e em cumprimento de ordens ou instruções
suas” (Código Civil, art. 1.198). Seguindo tradição que remonta ao direito romano, o
modelo brasileiro contemporâneo prescreve uma posse justa, isto é, toda aquela que não
seja violenta, clandestina ou precária (Código Civil, art. 1.200). Fala-se também em
possa de boa-fé, na qual o possuidor “ ignora o vício, ou o obstáculo que impede a
aquisição da coisa” (Código Civil, art. 1.201). A posse gera efeitos, a exemplo do
poder que seu titular tem de ser nela mantido, no caso de turbação, ou dela restituído,
na eventualidade de esbulho (Código Civil, art. 1.210).
A propriedade suscita conjunto mais amplo de prerrogativas, por parte de seu
titular. Nos termos da legislação civil brasileira, “o proprietário tem a faculdade de
usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que
injustamente a possua ou detenha” (Código Civil, art. 1.228). O modelo atual
prescreve características que imputam à nossa qualificação de propriedade estrutura que
remonta à tradição romanística, a exemplo de figuras de usucapião, aquisição por
acessão, por aluvião, por avulsão, bem como por regra que, por exemplo, identifica
figura de “álveo abandonado” (Código Civil, art. 1.252). Figuras extemporâneas, como
achado do tesouro, ainda são encontradas, assim definido: “o depósito antigo de coisas
preciosas, oculto e de cujo dono não haja memória, será dividido por igual entre o
proprietário do prédio e o que achar o tesouro casualmente “(Código Civil, art. 1.264).
O apego ao passado transcende para o litoral das curiosidades jurídicas, quando se
prevê que ‘achando-se o terreno aforado, o tesouro será dividido por igual entre o
descobridor e o enfiteuta, ou será este por inteiro quando ele mesmo seja o
descobridor” (Código Civil, art. 1.266). Em termos de projeto ousado, de reconstrução
nacional, essas últimas normas são de aplicabilidade restrita a circunstâncias inusitadas.
Perde-se tempo e desperdiça-se energia intelectual em discuti-las. A propriedade é
direito real, como também o são o direito de superfície, as servidões, o usufruto, o uso,
a habitação, o direito do promitente comprador do imóvel, o penhor, a hipoteca e a
anticrese (Código Civil, art. 1.225).
Essas categorias, que remontam a séculos de tradição, e que não subsistem mais
em país periférico, marcado pela desigualdade, acabam vítimas da própria
imprestabilidade fática, isto é, se levamos em conta situações concretas. Refiro-me a

81
invasões, a ocupações irregulares e a transações imobiliárias contingenciais, sem
previsão legal, a exemplo da venda de barracos, em ambiente de grupos sociais mais
carentes. Refletindo a distância entre ordenamento jurídico de fortíssima abstração, que
dá conta, inclusive, de achados e de tesouro, surge pluralismo jurídico que transcende
categorias antropológicas, estudadas originariamente na Polinésia, por Melanie Wiber e
por Franz Von-Benda Beckman; aquela leciona no Canadá, este último na Alemanha.
A recomposição dos direitos de propriedade, proposta por Mangabeira, sugere
concepção pragmática e utilitária do uso das coisas, quebrando-se a monotonia do
ordenamento convencional. Embora ainda não deduzida em termos de maior
especificidade, a proposta é radical. Há necessidade de inovações institucionais, e o
alargamento dos aspectos indicativos do direito de propriedade é indicativo dessa
exigência estrutural. Essa disposição para a mudança qualifica o que Mangabeira
insinua como plasticidade, condição de volatibilidade e de experimentalismo que
garante o abrandamento do fetichismo institucional.
Esse sentido de mudança identifica o conteúdo de capabilidade negativa. Isto é,
o grau de abertura ou de maleabilidade com o qual se conta, em âmbito de um
determinado contexto formativo. A liberdade humana e a concepção de sociedade como
artefato exigem que se possibilidade o aumento superlativo da capabilidade negativa,
diminuindo-se as distâncias que separam rotina e revolução. Fetichismo estrutural, que
nega a possibilidade de alteração de contextos formativos, isto é, de realidades
presentes, é o maior obstáculo para que se repensem os direitos de propriedade. É que a
propriedade, ao lado de conceitos vagos de democracia, de economia de mercado e de
sociedade civil, também, e por isso, consubstancia conjunto iconizado de fetichismo
institucional.
A tese do desmembramento do direito de propriedade insiste no abandono do
proprietário tradicional em favor da propriedade de empresas, trabalhadores e governo.
E não adianta que se repasse a propriedade para o Estado ou para cooperativas de
trabalhadores; como resultado, mudou-se apenas de dono (cf. CUI, 1997). Têm-se
novos atores, mantendo-se os mesmos personagens. A experiência de mera
transferência de propriedade para o domínio estatal ou para cooperativas de
trabalhadores mostrou-se historicamente frustrante. É indicativo da falência do
socialismo real. O sacrifício para com conceitos arraigados é necessário. E não se pode
usar de projeto liberal para a realização de programa carregado de despotismo. É tema
de Mangabeira, em outro de seus livros:

82
“ Não obstante o modelo de estrutura pública não governamental a ser desenvolvida,
deve-se garantir ao interessado o direito de escolha. Deve-se outorgar o poder de se
criar uma estrutura alternativa e voluntária, formatada normativamente por regras
livremente escolhidas e especificamente concebidas. O direito de escolha, como aqui
indicado, suscita que essas associações colaborem no programa de relativização do
direito público. O projeto de organização da sociedade civil não se realiza sem que se
garanta o direito de opção e de escolha, no que toca às associações que serão
desenvolvidas. Não se desenvolve um programa super-liberal, sacrificando-se a idéias
liberais fossilizadas e a programas institucionais que identificam o liberalismo de
tempos mais recentes. O direito de escolha não pode ser discricionário, e se o for,
configurará abuso. Não pode ser exercido por grupos que não se encontrem
mutuamente vinculados a circunstâncias relativamente eqüitativas. E também não
podem se prestar a propiciarem nichos de subjugados e de excluídos. Tal direito deve
representar uma experiência de liberdade. Não pode significar a redescoberta de
práticas despóticas sob o disfarce de idéias liberais.” (MANGABEIRA UNGER,
2005, p. 111).

O foco estaria em modelo que propiciasse a descentralização das oportunidades


econômicas. E para tal deve-se abandonar a civilística tradicional, bem como o direito
público convencional, à luz de concepção acima descrita de direito privado mais um e
de direito público menos um. Nesse sentido, deve-se repensar a história do direito. De
fato, “a história não se transforma em realidade apenas por ter sido escrita” (cf.
MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 91). E pode se tomar como plausível a tentativa que
há, na historiografia jurídica, de se fazer apologia das instituições presentes, mediante
utilização seletiva do pretérito. É que direito e história vivem uma relação equivocada.
A forma como se escreve a história do direito presta-se mais para confirmar conclusões
presentes do que para investigar situações concretas pretéritas. A historiografia jurídica
suscita reflexões em torno das relações entre direito e história, entre relato e verdade. À
história do direito reserva-se a triste tarefa de justificar e legitimar o direito atual,
função legitimadora. Disfarça-se esse ônus empírico alegando-se que a história do
direito oxigena a cultura geral do operador jurídico, que alarga horizontes, que fomenta
a compreensão do presente, que explicita a realidade da experiência jurídica, que revela
mistérios, que apresenta exemplos, que prevê tempos vindouros.
A história do direito é representada como um fio condutor para realidade
normativa perfeita, acabada, realizada. Institutos, conceitos, imagens, perspectivas e
acontecimentos prestam-se para justificar a ordem contemporânea. Reservada à parte
introdutória dos textos de doutrina, de exegese, de dogmática, a história do direito
protagoniza ante-sala experimental, indicativa panglossiana de que o mundo caminha
para o melhor dos mundos possíveis, concretizada nos excertos legislativos de nossos
tempos. Sob a falsa impressão de que dá tônica à interpretação, de que alarga

83
horizontes, de que densifica a argumentação, de que enceta disciplina formativa, de que
dá demãos de cultura, a história do direito segue como segundo violino, sonorizando o
triunfo de racionalidade instrumental que não mais se justifica, e o caos da prática
judiciária é disso prova incontestável.
De tal modo, a retomada de novas percepções de instituições jurídicas é atitude
conceitual nuclear no projeto desenhado por Roberto Mangabeira Unger. Reporto-me a
idéia desenvolvida na sexta tese, com reflexos na tese de que se cuida; e o texto
seguinte é do próprio Mangabeira:
“ Deve-se recusar a se aceitar formas contratuais contemporâneas, tal como
enunciadas e previstas no direito privado. Essas formas simplesmente não subsumem
uma linguagem natural única, capaz de expressar todas as percepções sociais de
vida e de organização societária. O vocabulário do direito privado presta-se a
evidenciar um modelo truncado de livre associação. Partidos políticos, clubes,
fundações, igrejas, enfim, associações que detém a capacidade de veicular
mensagens sociais, carecem de sentido realista e de uma postura mais identificada
com problemas concretos. Sindicatos e empresas acabam por implementar tal
missão. Há dois caminhos para um modelo organizacional social que seja mais
inclusivo. Passam por um robustecimento do direito privado e por uma mitigação do
direito público. Eles não se excluem. Eles se complementam e convergem para um
mesmo fim.” (MANGABEIRA UNGER, 2005, p. 109 e ss.).

Mangabeira insurge-se em face dessa linguagem natural única que a teoria geral
do direito se diz possuidora. Há vocabulário institucional a ser criado, remodelado, e a
assertiva é resultado da concepção da sociedade como artefato. É o que se daria,
especialmente, com o modelo de alocação descentralizada do capital. Essa nova
estrutura encetaria fundo central de capitais, dotado de capitais de investimentos e
destinados a tomadores de capitais, em circunstâncias politicamente previstas, de
energização econômica. Na advertência de Mangabeira, “deve se impor o capitalismo
aos capitalistas” (MANGABEIRA UNGER, 2005, p. 97).
No que tange ao modelo laboral, deve-se deixar de castigar quem emprega o
trabalhador. Obstáculos para empregos formais carecem de ser quebrados.
Trabalhadores poderiam optar para transpor fronteiras, a exemplo do que ocorre com o
capital e com seus donos. O trabalho deve ser legalizado e o trabalhador retirado da
informalidade. O Brasil não pode apostar em força de trabalho barata e desqualificada.
Não temos futuro como manancial de trabalho barato. Porém, discussão em torno de
direitos de propriedade enseja questão abrangente: qual o papel do direito?
A posição que o direito ocupa nesse conjunto de teses também está especificada
em outra obra, publicada originalmente em inglês, com o título What Should Legal
Analysis Become? A pergunta é provocativa, especialmente se vertermos o núcleo da

84
questão, legal analysis, para algo mais idiomático e pragmático, isto é, a reflexão
jurídica. O livro principia com advertência. O autor pretende que os especialistas
renunciem um pouco de suposta autoridade, que de resto nunca possuíram
propriamente. Mangabeira defende que essa autoridade putativa seja transformada em
modelo novo de colaboração, ligando-se especialistas e pessoas comuns (cf.
MANGABEIRA UNGER, 1996, p. 1).
A reflexão jurídica parece institucionalmente cega (cf. cit., p. 99). Devem-se
simplificar tarefas de utilidade social; é que, em sentido muito realista, o “direito seria
expressão episódica de compromisso prático em face de compromisso real” (cf. cit., p.
53). O babelismo jurídico é obstáculo permanente. Mangabeira ilustra a acusação
comparando os juristas com o narrador em Marcel Proust: ” somos amigos daqueles que
têm idéias tão confusas quanto as minhas “ (cf. cit., p. 52). Qual o papel do direito,
parece ser pergunta freqüente no pensamento de Mangabeira. E a resposta parece
pronta, simples: consiste em papel de regulação e de moderação de conflitos (cf. cit., p.
55).
A imaginação institucional exige novas ferramentas, bem como a definição do
trabalho que se pode realizar; nesse sentido, o direito pode ter muita utilidade (cf. cit., p.
2). Trata-se de esperança, que Mangabeira se propõe a traduzir em insight (cf. cit., loc.
cit.). Não há limites. È que o “projeto democrático, na medida em que livre do
pessimismo e do otimismo dogmáticos, consiste em esforço para identificação de
arranjos práticos que se encontram em zona de convergência entre condições de
progresso material e de emancipação individual” (cf. cit., p. 6). Mangabeira reitera
críticas ao fetichismo institucional, que reputa com um dos maiores inimigos do
experimentalismo democrático (cf. cit., p. 7). Esse fetichismo ostenta falsa
respeitabilidade científica, que decorre da tese da convergência (cf. cit., p. 8), que dá
conta de que o mundo marcha para caminho único, e que essa senda é a percorrida pelas
democracias ricas do Atlântico Norte. Mangabeira desafia esse conformismo.
Como conseqüência, fórmulas jurídicas devem ser mudadas, e sem medo. Há
variáveis e alternativas para conteúdos conceituais muito amplos, a exemplo de
democracia representativa, economia de mercado e sociedade civil (cf. cit., loc.cit.).
Pode-se cogitar de modelos diferenciados, nunca conhecidos, a propósito de suposta
rebeldia freudiana, na análise de sonhos nunca sonhados. Por exemplo, indica-se
necessidade de descentralização de oportunidades econômicas e de iniciativas (cf. cit.,
p. 13). Outra referência centra-se em modelo de associação entre governo e empresas,

85
mediante o combate de sistemas rígidos de estabilidade no emprego, bem como por
meio da fixação de limites rígidos para direitos adquiridos. É que essa engenharia
privilegia alguns setores da força de trabalho.
Ao poder público imputa-se a obrigação de propiciar treinamento contínuo ao
trabalhador (cf. cit., p. 11). Por outro lado, Mangabeira alerta que o referido processo de
treinamento contínuo perde plasticidade e operacionalidade na medida em que a força
treinada não fora adequadamente utilizada (cf. cit., p. 12). O papel da escola emerge
novamente. É que sua função, em sociedade democrática, consiste na libertação do
educando de suas origens (família, classe, país, período histórico) providenciando-se
experiência realmente transformadora (cf. cit., p 15).
Do ponto de vista normativo esse conjunto de mudanças exige, entre outros, que
se contorne o presente modelo constitucional, que privilegia o impasse deliberado (cf.
cit., p. 16). Deve-se engajar o eleitorado universal, em mecanismos de soluções rápidas
para problemas aparentemente intransponíveis. Plebiscitos, referendos, antecipação de
eleições, recalls, financiamento público de campanhas políticas, fortalecimento dos
partidos, exemplificativamente, poderiam substancializar esse conjunto transformativo
(cf. cit., p. 17). Trata-se de mundo novo, no qual o direito social seja livre do Estado e
da iniciativa privada (cf. cit., p. 18). Mangabeira desmistifica a veneração fetichista que
há para com algo simples, e que deve ser apreendido como arranjo ocasional, transitório
e falível (cf. cit., p. 19), e não como verdade que transcende a nosso tempo. O progresso
do instrumentalismo democrático exige a prática da imaginação institucional(cf. cit., p.
22); por isso, o fetichismo institucional é indicativo de perigo, para as idéias e para a
prática do experimentalismo (cf. cit., loc.cit.).
A reflexão jurídica deve ser colocada a serviço do experimentalismo
democrático (cf. cit., p. 23). Afasta-se do modelo de justificação do existente, que é
marca do pensamento normativo ocidental, em quase todas suas versões, inclusive
aquelas que plasmam relativo sentido crítico. Entorno conservador parece domar o
direito. Afinal, qual são as forças que o tornam tão apático (cf. cit., p. 30) ? Para
Mangabeira, “a tarefa do teórico do direito deveria consistir no desenvolvimento de
modelo teórico livre da devoção do século XIX para com sistemas pré-determinados de
direito privado” (cf. cit. p. 35). À teoria do direito caberiam duas tarefas básicas: o
reconhecimento do elemento ideal que está embutido no modelo que há, a par da
revelação de que há melhorias na lei, especialmente no que toca aos seus estilos de
recepção por parte de seus destinatários (cf. cit., p. 37).

86
A fixação de papel prospectivo para o direito sugere acerto de contas com
questões pendentes; entre elas, a velha pergunta: por que codificar? Luta-se em torno de
duas atitudes: a codificação como instrumento para que se controlasse o poder dos
juristas ou a codificação como instância de resumo conveniente da doutrina desses
juristas (cf.cit., p. 39). Mangabeira denuncia esse complexo de Atlas que acomete a
quase todo pensador do direito, que vê que sua disciplina compreende atividade
regulatória e redistributiva interminável (cf. cit., p. 47). Mas não se pretende avançar.
Do ponto de vista doutrinário, Mangabeira lembra-nos que textos jurídicos são muito
parecidos, conceitual e epistemologicamente falando. Partem das leis. Falam mal delas.
Explicam como devem ser mudadas. Mas nunca chegam ao fundo do problema (cf. cit.,
p. 49). As mudanças que propõem são de mera conjuntura, de âmbito instrumental,
procedimental. A emenda constitucional nº 31, que alterou nosso modelo de medidas
provisórias, é dessa idéia eloqüente exemplo.
Mangabeira nomina essa atitude conceitual, tímida, restringida, de reformismo
conservador; buscam-se objetivos programáticos, que não se isolam do sistema, a
exemplo de maior competitividade econômica, igualdade de oportunidades, tudo dentro
dos limites de ordem já pré-estabelecida, bem entendido (cf. cit., p. 51). Essa doutrina
conformista enceta mentira, embora nobre e necessária (cf. cit., p. 52). Mangabeira
insurge-se com o que nomina de bonapartismo dos juristas; isto é, o modelo jurídico
atende a vítimas isoladas, ao invés de as conduzirem a canais de ligação social, que
propiciariam medidas generalizadas e de alcance mais amplo (cf. cit., p. 105).
Mangabeira parece quebrar o monopólio dos juízes e nesse sentido lembra-nos a
tese da sociedade aberta dos intérpretes da constituição, de Peter Häberle, e a tese de
que a constituição não pode ser interpretada somente pelas cortes, como defende Mark
Tushnet. Para Mangabeira, de modo que nos livremos do contexto histórico de
verdadeira obsessão, deve-se reduzir o jurista a mero assistente técnico do cidadão (cf.
cit., p. 106). Assim, o cidadão, e não só o juiz, deveria ser o interlocutor primário da
reflexão jurídica (cf. cit, p. 113). É que a lei brota de mundo político real (cf. cit., p.
115). Ciência que insista no papel convencional que se outorga ao judiciário é
condenada à infância eterna (cf. cit., p. 124).
Indica-se técnica de keinosis, de esvaziamento, que propicie espaço jurídico
totalmente esvaziado, a ser preenchido com idéias que necessitamos (cf. cit., p. 128).
Deve-se tentar o novo. E é como visionários que nos tornaríamos realistas (cf. cit., p.
190). Prossigo com a décima tese.

87
“Décima tese: Do significado de ser progressista hoje em dia-

Ser progressista hoje em dia é insistir em transpor as fronteiras da


estrutura institucional estabelecida numa direção democratizante. Todo
aquele que aceita a estrutura institucional estabelecida como o horizonte
dentro do qual os interesses e ideais - inclusive os ideais igualitários - devem
ser perseguidos não é um progressista. Os partidos social-democratas da Eu-
ropa não são progressistas. Um reformismo pessimista, socialmente preo-
cupado porém institucionalmente conservador, não é progressista. O erro
consiste em acreditar que a alternativa à submissão é a substituição total de
um "sistema" por outro. Mas a reforma revolucionária - a substituição, parte
por parte, de estruturas e idéias institucionais formadoras - é a forma
paradigmática da política transformadora. A idéia da mudança revolu-
cionária tornou-se, por sua impraticabilidade, um pretexto para seu contrário.
As nove primeiras teses dão exemplos de reformas revolucionárias que
atravessam as fronteiras da estrutura institucional estabelecida.”
(MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 217).

O significado de ser progressista marca otimismo e realismo que identificam o


ativista brasileiro, que pretende substituir lamúria por ação. Garante que grandeza é
audácia e sacrifício. O que importa é educar e produzir. Não se constroem saídas para
os problemas que enfrentamos sem que continuemos a nos impor imensos sacrifícios. O
Brasil reúne condições para iniciar novo ciclo de desenvolvimento, no qual se erradique
a miséria; e no qual se dê condições para que a maioria trabalhadora conte com
instrumentos para educar e produzir.
Progressista parece adjetivo neutro, qual um guarda roupa no qual cabem
muitas fantasias, e que pode plasmar comportamentos de vanguarda. É volátil, revisto,
retomado, com disfunções e reformulações históricas e geográficas. É, no entanto,
simpático. Mangabeira afastou-se do pensamento da democracia social européia, que
alhures nominou de ”ídolo de barro”.
No artigo Aprofundar a Democracia, de 26 de setembro de 2005, publicado na
Folha de São Paulo, identifica pensamento progressista, que coloca em termos de
alternativas para o Brasil, divididas em três grupos:

“A alternativa de que precisa o Brasil tem três componentes: mudar o modelo


econômico, revolucionar o ensino público e construir democracia capaz de acabar
com o controle oligárquico do poder. Nenhum dos três pode ir longe sem os outros
dois. Erram gravemente os se aferram a um em prejuízo dos outros. É no terceiro
desses três pontos que o debate brasileiro mais vem avançando (...).”
(MANGABEIRA UNGER, Aprofundar a Democracia, Folha de São Paulo, 26 de
setembro de 2005).

88
A transposição de estruturas dá o norte à 10ª tese. Fulmina-se o conservador, o
tímido, o medroso. Identifica-se o não progressista, justamente naquele que não admite
mudanças, especialmente porque se limita ao contexto institucional existente. Trata-se
de fetichismo, em sua fórmula institucional, comportamento repugnante ao
desenvolvimento do pensamento progresssista.
Avanço agora para o conteúdo da décima primeira tese.

“Décima Primeira Tese: Da Interpretação da Causa Democrática-

A causa democrática é o esforço para identificar e conceber estruturas que


aproveitem o cruzamento potencial entre as condições de progresso material e as
condições de emancipação do indivíduo. Assim, ela procura generalizar o
experimentalismo na vida social. Ela submete as formas institucionais de
democracia representativa e da economia de mercado regulamentada a esse
mesmo experimentalismo. Não é antiliberal; realiza as esperanças liberais pela
mudança das formas liberais; recusa-se a sacrificar a pluralidade de interesses
humanos a um igualitarismo ingênuo. Quer que sejamos menos desiguais e menos
desligados uns dos outros, de maneira a nos tornarmos também maiores, mais
atuantes e capacitados.” (MANGABEIRA UNGER, 1999, p. 217/8).

A décima primeira tese sugere algo mais do que simples problema


hermenêutico. Acolhe opção por resultados, na busca do progresso material, também
indicado pela emancipação do indivíduo. Aceita experiências, multiplicando-as,
“generalizando o experimentalismo”. Retoma-se o ideário iluminista da isonomia. Não
se pretende que as pessoas sejam mais iguais. Realismo conceitual vislumbra a luta
para que sejamos menos desiguais.
A interpretação da causa democrática, entre outros, exige cuidados com
modelos de previdência social, bem como com políticas sociais prospectivas. Segundo
Mangabeira, ‘política social é ramo da política, e não da caridade; não é distribuição
de esmola”. Preocupa-se, por exemplo, com o problema da adoção de crianças: temos
orfanatos abarrotados; não se adota e não se deixa adotar; crianças são aprisionadas e
escondidas de nós mesmos. Mangabeira quer previdência social que mobilize a
poupança popular.
No artigo Grandeza do Brasil, publicado na Folha de São Paulo, Mangabeira
ilustra a interpretação da causa democrática, fazendo-o com o otimismo de sempre,
daquele que vendo uma casa pegando fogo, surpreende-se com uma casa bem
iluminada:

89
“ De repente, o Brasil se levantará. A ascensão do Brasil não passará por ódios e
guerras, nem se fundará sobre novidades deslumbrantes na maneira de organizar a
sociedade. As novidades -- instituições diferentes -- virão, porém só depois. Será um
milagre de iniciativas óbvias e singelas, por falta das quais uma vitalidade
desmedida não conseguia, até então, ser fecunda. Juntando homens e mulheres que
não confundem o realismo com a rendição, o Brasil reinventará o desenvolvimento
no ato de retomá-lo. Democratizará o mercado, descentralizando o acesso aos
recursos da produção. Com isso, dará oportunidade aos dois terços da população
adulta que hoje tentam sobreviver na economia informal. O Brasil rejeitará a
escolha entre um Estado que pouco faz pela produção e um Estado que, em nome da
produção, distribui favores entre apaniguados. Governos e empresas trabalharão
juntos, sem favorecimentos, para identificar o que falta. Em vez de impor uma única
estratégia de cima, deixarão que muitas estratégias convivam. Não teremos medo de
crescer, porque teremos aprendido a diminuir nossa dependência de importações e
dinheiro de fora, sem nos fechar ao mundo(...).” (MANGABEIRA UNGER,
Grandeza do Brasil, Folha de São Paulo, s.d.).

A tese aqui indicada enfrenta problemas centrais, de definição, especialmente


no que se refere ao alcance de democracia representativa e de economia de mercado.
É que a compreensão de tais circunstâncias institucionais é limitada à conjunto
riquíssimo de narrativas mitológicas, que se prestam, especialmente, para justificar o
já existente. Segue a décima segunda tese.

“Décima Segunda Tese: Da Base Social dos Partidos Progressistas-

Os partidos progressistas não podem aceitar a escolha entre aderir à


representação privilegiada dos trabalhadores organizados na indústria de
produção de massa e se redefinir como partidos de "qualidade de vida" da classe
média. Se escolherem o primeiro caminho, mergulham na defesa de interesses
corporativistas ainda mais estreitos. Se escolherem o segundo, traem sua missão
transformadora e democratizadora. Eles devem encontrar em um programa de
reconstrução estrutural tanto o foco como a base para uma aliança popular
ampliada. O que torna possível esse esforço é: (a) a relação interna ou dialética
entre a redefinição dos interesses e ideais e a renovação de instituições ou
práticas; e (b) a relação assimétrica entre alianças sociais e alianças políticas. As
alianças sociais são construídas por meio do trabalho de transformação das
alianças políticas e sustentadas por reformas estruturais que convertem as
convergências táticas em combinações duradouras de interesses e identidades de
grupo. No entanto, as alianças políticas não pressupõem alianças sociais; sua
tarefa é a construção de alianças sociais.” (MANGABEIRA UNGER, 1999, p.
218).

Ao cogitar da base social dos partidos progressistas, creio que Mangabeira


acredita que o grande erro histórico da esquerda fora a escolha da classe média como
inimiga visceral. Os grandes avanços da história do Brasil teriam se dado sob a
liderança da classe média. Provavelmente, teria em mente ideário tenentista

90
desenvolvido ao longo da década de 1920, bem como a continuidade do projeto, ao
longo da segunda metade do século XX, não obstante todos os males, que Mangabeira
pessoalmente combateu, e por conta do qual teria se afastado fisicamente do Brasil. A
moralidade que marca o pensamento da classe média sugere radicalização que deve ser
levada em frente pelo governo. De qualquer modo, a promoção do esclarecimento dos
trabalhadores nunca poderá compensar a desorientação da classe média. Mangabeira
parece acreditar que maneira segura para se mudar o país passa pela construção e pela
consolidação de corrente de opinião que suscite na classe média alternativas produtivas,
capacitadoras, democráticas e nacionais.
Partidos progressistas encontram-se presos junto a um dilema. A quem servir?
Com quem contar? O que fazer? O vínculo com grupos trabalhadores sugere
corporativismo imperdoável. A aproximação com a classe média, na defesa de temas
ligados à qualidade de vida - - e o ambientalismo é um exemplo - - pode apontar traição
para com causa histórica. Mas fora o próprio filósofo de Trier, Karl Marx, quem
afirmou que “tudo que é sólido desmancha no ar e tudo o que é sagrado será
profanado”.
No artigo Classe Média e Futuro Nacional, de 16 de novembro de 2004, o
assunto ganhou mais cores:

“Quem sinaliza no Brasil o rumo que o país tomará é a classe média. Todas as
renovações brasileiras ocorreram quando a classe média se desgarrou da plutocracia
neocolonial e passou a propugnar, em nome de todos, outra idéia do futuro da nação.
Assim foi com o abolicionismo e a república no século 19 e com os movimentos
democratizantes e desenvolvimentistas no século 20. Tais momentos de insubordinação
ocorreram quando a classe média viu seu avanço bloqueado não apenas pela
frustração de seus interesses econômicos mas também pela negação de seus interesses
morais. Ela sempre quis escapar das humilhações de uma sociedade carente de direito
e de respeito. A primazia da classe média como sinalizadora do futuro só fez aumentar
no Brasil de nossos dias. Isso porque ao lado da classe média tradicional surgiu classe
média de emergentes, feita na base do estudo à noite, da cultura de auto-ajuda e do
empreendimento teimoso, sem crédito nem favor. (...).” (MANGABEIRA UNGER,
Classe Média e Futuro Nacional, Folha de São Paulo, 16 de novembro de
2004).

Apresento, por fim, a última tese.

“Décima Terceira Tese: Do Foco da Inovação Institucional e do Conflito


Ideológico no Mundo-
O projeto democrático avança por meio de conflito: as divisões ideológicas
herdadas perdem sua conexão viva com as preocupações reais e as alternativas
possíveis. Precisam então ser reinventadas. O conflito entre estatismo e privatismo
está morrendo e sendo substituído por um conflito entre as formas institucionais

91
alternativas de pluralismo político, social e econômico. A democracia
representativa, a sociedade civil livre e a economia de mercado podem assumir
formas muito diferentes daquelas hoje admitidas no mundo do Atlântico Norte. A
escolha entre essas alternativas é crucial, porque representa uma preferência não
apenas por certas estruturas, mas também pelas possibilidades de experiência
individual e coletiva que essas estruturas sustentam. O experimentalismo
institucional involuntário dos países pobres (que inventam quando a imitação
deixa de funcionar) lança luz sobre as possibilidades suprimidas de transformação
nos países ricos. O albatroz do socialismo de Estado foi alçado do pescoço da
esquerda. No entanto, a tentativa dos sociais-democratas institucionalmente
conservadores de reduzir a política progressista à reconciliação da proteção social
com a flexibilidade de mercado deixa a democracia irrealizada e falha em seus
próprios objetivos. Agora é o momento para os progressistas reinventarem a si
mesmos. Chegou a hora de aprender a fazer a mudança sem ter de passar pela
ruína, a hora do experimentalismo democrático.” (MANGABEIRA UNGER,
1999, p. 218/9).

Somos herdeiros de legado jacente, que não nos alcança, porque já não nos
interessa. Recebemos o liberalismo e o socialismo como alternativas factíveis e
possíveis. Realismo dá conta de que esses modelos não teriam realizado as utopias
sonhadas pela tradição iluminista, calcada na liberdade e na racionalidade. O rigorismo
da afirmativa desconsidera avanços do socialismo real, que transformaram
profundamente sociedades ainda marcadas por vida feudal. Desconsidera-se também a
trajetória paradoxal do legado liberal: riqueza e miséria, indústria e destruição
ambiental, indicando-se o mais óbvio.
Cogitou-se de via alternativa, já mencionada, que os ingleses da London School
of Economics plasmaram como Third Way, e que Mangabeira rejeita; ficamos com
apenas um caminho, aquele proposto pelos mandarins que estão no poder. É uma
segunda via que marca a proposta temática de Mangabeira. Liberalismo, socialismo e
terceira via imaginária perderam conexão com a vida real. Alternativas pensadas em
debate que se desenvolveu a partir da revolução industrial inglesa são muito limitadas
para o conjunto de problemas que a sociedade contemporânea enfrenta. E o maior deles
é a falta de imaginação institucional.
Modelos de organização social podem ser reformatados, a partir do que hoje se
tem, de modo radical. Há concepções alternativas de democracia representativa. Pode-
se pensar em sociedade civil livre cujos contornos seriam refratários ao modelo que
hoje nos enquadra. O conceito de mercado pode sugerir modos distintos de se
organizarem as relações econômicas. Estende-se a reflexão para o direito. A tripartição
dos poderes, que radica mais recentemente no pensamento europeu oitocentista, não

92
exprime realidade única e incontornável.
Países pobres exploraram involuntariamente alternativas, justamente quando a
cópia de modelos importados deixou de funcionar. Transposições organizacionais e
normativas não levam em conta realidades locais. A utilização da medida provisória
pelo direito brasileiro, concepção tomada da Itália, país parlamentarista, é exemplo
marcante. A proliferação do ideário liberal e racional em constituições que vicejam no
mundo todo é indicativa de que a adoção forçada de soluções estranhas pode resultar
em modelo normativo meramente formal.
E do ponto de vista realista, a reinvenção do processo democrático exige que se
enfrentem problemas que sacodem o país. A criminalidade é exemplo eloqüente.
Mangabeira quer que avancemos em “linhas paralelas”. Quer polícia inteligente aliada
a comunidade interessada. Indica que crime organizado se vence pela força; e que
crime desorganizado se domina mediante a vigilância associativa. Quer impor a ordem
contra o crime. Quer combinar o agravamento das penas com a humanização das
prisões. Segundo o pensador brasileiro, olhos abertos provocam queda de
criminalidade. O crime organizado se destrói na marra, com força inteligente; é essa a
opinião de Mangabeira.
O experimentalismo democrático exige nova concepção de economia. O
produtor não pode pagar mais pelo crédito, em relação ao que gastou com o
investimento. Mangabeira quer cogitar fórmulas para estancar a transferência maciça de
riqueza, que flui das mãos dos trabalhadores para bolsos de rentistas. Pensa em política
de emprego, que qualifique o experimentalismo democrático que prega. Prevê
intervenção direta, por meio da qual o Estado fomentaria obras públicas, com especial
atenção para com habitações populares. Cogita de incentivo sistêmico, propiciando-se
benefícios fiscais para a contratação e treinamento de trabalhadores. Imagina parcerias
capacitadoras, acenando-se com créditos, conhecimento, tecnologia e mercados.
Mangabeira não quer simplesmente agradar o capital financeiro, aumentando o
superávit fiscal. Quer que fiquemos independentes dessas forças capitalistas. Para
Mangabeira, “a humanização da sociedade passa pela humanização do mercado”. O
caminho seria a desprivatização do Estado. Mangabeira sugere que se assegure a cada
cidadão um patrimônio mínimo, com o qual esse possa contar nas primeiras tentativas
de trabalho e de estudo. A cada cinco ou dez anos, o cidadão deve retornar à escola,
para se reequipar, renovando conhecimentos e capacidades.
Mangabeira acusa que “bancos têm lucros sem trabalhar e que trabalhadores

93
trabalham sem lucrar”. É hora de se fazer justiça social com eficiência econômica;
deixar que os falidos caiam na falência. Não se prospera com meras políticas de
medidas compensatórias, a exemplo do fome zero, que nos remete a programa norte-
americano da década de 1970. Mangabeira propõe o fim da aliança entre financistas e
famintos.
No artigo Paz sem Marasmo, publicado na Folha de São Paulo, Mangabeira
lembra-nos que a tragédia não é necessariamente a parteira do progresso. Esperar-se por
uma hecatombe, por uma guerra, é atitude conformista que qualifica uma Falsa
Necessidade:
“Proponho um tema obscuro e inconveniente, de importância capital para o
entendimento do que o Brasil é, e pode a vir a ser, no mundo que está surgindo: guerra
e paz. A maior diferença entre o Brasil e as nações ricas e poderosas de hoje é que
todas elas foram formadas pela guerra enquanto que o Brasil não foi. Ao contrário do
que escreveram os pensadores sociais mais influentes dos últimos dois séculos, a
guerra foi muito mais do que um acidente sanguinário na história das sociedades
modernas. Funcionou como detonador das grandes transformações. Foi graças à
guerra que as nações mobilizaram seus recursos: a mobilização militar, não o
keynesianismo, venceu, tanto nos Estados Unidos, quanto na Europa, a depressão da
década de 30. Na guerra e para a guerra, fortaleceu-se o sentimento nacional e
enfraqueceram-se as hierarquias de classe. E da guerra surgiu um antídoto selvagem
ao marasmo a que uma sociedade comercial, dedicada ao consumo e ao dinheiro,
parecia condenar a humanidade. Duas vezes no século passado, pais e mães, ricos e
pobres, apresentaram seus filhos para morrer. (...) Ao mostrar como se pode viver a
paz perpétua sem sofrer o marasmo moral, o Brasil dará luz e esperança à
humanidade. Essa será a base da nossa grandeza.” (MANGABEIRA UNGER, Paz
sem Marasmo, Folha de São Paulo, s.d.).

As teses apresentadas e comentadas confirmam que não há necessidade de uma


crise gravíssima para que se possa pensar em mudança. A espera da catástrofe, que o
autor estudado se refere jocosamente em outras circunstâncias e contexto, como a
espera do cometa, não é (e nem poderia ser) o limite para a ação. A necessidade da
tragédia como parteira da mudança é uma necessidade falsa, que tão-somente represa a
ação criativa e a imaginação institucional.
O avanço é o resultado da plasticidade institucional, da aptidão para mudanças e
experimentos. É o calibre de uma capabilidade negativa, conceito que nos remete a
contexto experimental. A plasticidade institucional nega o determinismo e a
acomodação com uma ordem histórica coerente e controlável. A teoria da história que
Roberto Mangabeira esposa é rebelde para com contextos pré-estabelecidos e para com
a percepção de que existiriam leis superiores que dirigem a epopéia humana. É o
homem o agente da história; e porque somos maiores do que imaginamos carecemos de

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retomarmos os rumos de nossos destinos, ameaçados pelas necessidades falsas que nos
fazem acreditar.
Não há, necessária e forçosamente, vínculo indissolúvel entre estruturas e
rotinas. Mangabeira repele os quadros da historiografia marxista, centrados em modos
de produção, e em antíteses que criam modelos novos, já existentes nos modelos que
sucedem e já pulverizados nos institutos que lhes sobrevêm. É o caso da partição
clássica entre modos de produção asiático, escravista, feudal, capitalista e socialista;
este último levaria o proletário, o próprio agente da história na concepção marxista,
para o mundo novo, no qual Estado e direito seriam lembrança de um tempo de triste
memória. Creio que se Marx estivesse vivo e visitasse as fábricas chinesas, talvez
sentisse saudades dos tempos da revolução industrial inglesa, que tanto criticou.
E também não se poderia canonizar o modelo hoje existente, fetichismo
institucional acomodado e preguiçoso, que Mangabeira vem denunciando, na imprensa
e na academia. O modelo que há é apenas um modelo contingente, e não
necessariamente excludente de tentativas de remodelação institucional. A teoria dos três
poderes, por exemplo, não é dado, é construído cultural. A concepção de poderes
harmônicos e independentes entre si é apenas mais um elemento de certa tradição
constitucional, que existe, mas que não exclui outras, presentes ou supervenientes. E
não se excluiu o que quer que se possa imaginar.
Em excerto disponibilizado no website do Professor Mangabeira Unger há
esboço de programa destinado à concepção de uma segunda via, sob a ótica de passos
iniciais. O referido plano complementa as teses aqui comentadas.
Principia-se pela mobilização dos recursos nacionais, fortalecendo-se
economicamente o governo. Para tal, prescreve-se alta carga tributária (high tax take)
mediante dois estágios. Primeiramente, pesada tributação regressiva e indireta no
consumo. Em seguida, implementa-se modelo progressivo, com foco no consumo
individual e na herança. A mobilização de recursos nacionais exigiria também um
serviço público de altíssimo nível.
Segundo Mangabeira, a mobilização dos recursos nacionais exige atenção
especial para com poupança e produção. Pretende-se a concepção de escudo protetor
(protective shield) contra o capital volátil. Pensa-se em poupança progressiva
compulsória, sempre proporcional ao conjunto de rendimentos do poupador,
formatando-se mecanismo de redistribuição de valores poupados. Os laços entre
poupança e produção devem ser fortalecidos.

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O modelo também sugere a democratização da economia de mercado, mediante
a construção de pontes que liguem vanguarda e retaguarda. Tal se daria por meio da
ampliação do acesso ao crédito, à tecnologia e ao conhecimento. Em seguida,
Mangabeira cogita de estratégia experimentalista descentralizada que coordene a
relação entre governo e negócios, materializada pela multiplicação de entidades
intermediárias entre os pólos dessa relação. Um último estágio da democratização da
economia de mercado conceberia regimes alternativos de propriedade, a partir de então
fracionada em propriedade privada e social. Não há menção à propriedade pública.
A democratização da economia de mercado apontaria também para salários
mínimos relativamente altos, projetos nacionais de trabalho, bem como para assistência
social de feitio público. O problema clássico consiste nos reflexos que o aumento do
salário-mínimo suscitaria no regime previdenciário convencional, a menos que se
alterasse substancialmente esse último.
A radicalização da competitividade encetaria a imposição do capitalismo aos
capitalistas, na expressão própria de Mangabeira, já aqui citado. Deve se garantir a
primazia do interesse produtivo sobre os juros pagos aos rentistas. Tal relação seria
qualificada pela ampliação do ciclo doméstico de poupança e de investimento.
A subordinação do externo ao interno desenharia integração condicional do país
è economia internacional, em termos adequados a um projeto nacional. Trata-se da
globalização que nos convenha, reiteradas vezes defendida por Roberto Mangabeira
Unger. Com tal objetivo, reinventa-se o modelo de substituição de importações. A
abertura da economia seria condicional. Dar-se-ia em contexto marcado pela ampliação
da base social com acesso às vanguardas produtivas. Por fim, defende-se luta sem
trégua por programa alternativo de comércio mundial, a partir de concepção pluralista
que orientasse a reorganização do modelo de Bretton Woods.
O projeto ainda aponta para política social orientada para o fortalecimento
educacional e econômico dos indivíduos. Para tal, defende-se educação focalizada na
instrumentalização das capacidades gerais do educando. O modelo federalista seria
alterado, de modo que organismos transfederais seriam concebidos, e posteriormente
dotados de poder de supervisão educacional. Do ponto de vista econômico, essa política
social se desdobraria a partir de recursos oriundos de mecanismos de herança social, já
indicados anteriormente.
Reorganiza-se a sociedade civil. Novo regime de solidariedade social seria a
base para políticas alternativas de assistência. O tempo de trabalho do cidadão seria

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dividido entre as atividades das quais depende o seu sustento e atividades gerais,
genéricas e civis de assistência social. Concebe-se um serviço civil obrigatório.
Reporta-se ao regime do direito público menos um, mediante o fortalecimento
de vínculos de associação voluntária, especialmente por conta do patrocínio de
fundações públicas independentes. Refere-se ainda ao regime do direito privado mais
um, por meio do qual estruturas não governamentais agiriam, com opção, inclusive, de
se afastarem das regras gerais, atinentes aos organismos prioritariamente públicos.
Aprofunda-se a democracia. Energiza-se a política. Mangabeira propõe alto
nível de engajamento cívico, especialmente por meio da imprensa e dos partidos
políticos. Pede que se acredite na capacidade de reforma, sobretudo mediante arranjos
constitucionais que combinem modelos de plebiscito com eleições imediatas, em caso
de impasses.
Mangabeira acena com imaginação institucional criadora, de que são provas
modelos expressos nas teses que compôs, a exemplo da percepção de direito público
menos um e de direito privado mais um. Fórmulas de associação social não são apenas
internalizadas pela tradição constitucional e contratualista ocidental. A percepção de
homem enquanto animal social, que remonta à tradição aristotélica é figura
emblemática tomada do pensamento do estagirita, com o propósito de se justificar a
inevitabilidade imaginária do modelo que se desdobrou na trajetória da cultura
ocidental.
O esforço intelectual não pode ser desperdiçado na explicação e na justificação
do que já existe. Não se pode apenas confirmar que as instituições que conhecemos são
necessárias, naturais e superiores. O controle de constitucionalidade, por exemplo, é um
assunto que ilustra a assertiva. A própria idéia de constituição é ilustrativa da
concepção. É que constituição e democracia não são necessariamente faces de uma
mesma realidade. Entre nós no Brasil, os modelos de 1824, 1891 e, especialmente, de
1937 e 1969, são confirmações da hipótese.
Rejeita-se um direito que apenas procura atenuar estruturas que não logramos
imaginar ou reconstruir de outra forma. E os textos de doutrina jurídica que hoje
conhecemos limitam-se a explicar a gênese e o desenvolvimento do que já existe.
Conceitos como interesse público, livre vontade, contrato, tributo, pena, legalidade,
constitucionalidade, entre tantos outros, não detém universalidade e muito menos
transcendem no tempo. E os direitos humanos também ilustram o problema. Não há
esperanto institucional.

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No núcleo do pensamento de Mangabeira a insurgência para com contingências
históricas que nos são impostas. Discute-se o poder do passado sobre o futuro.
Mangabeira critica a ditadura que o passado exerce sobre o presente e sobre o futuro.
Trata-se de peso insuportável, que nos faz reféns de um passado, que imaginamos
romântica e ingenuamente como nosso guia.
Mentalidades retrógradas lideram o pensamento, ditam regras, impõem
soluções, que não inovam, e que reiterada e recorrentemente nos prendem no passado.
Trata-se de culto histérico ao pretérito. Ressurge romantismo prenhe de miragens,
saudosismo de sabor conservador. Só o passado teria produzido algo de valioso, e a ele
deveria o homem retornar. Ledo engano. Filosofia da história para ingênuos e
reacionários.
Mangabeira critica as teorias historiográficas de adesão incondicional ao
passado, e a projetos que se desdobram em tempo remoto, a exemplo dos modelos
veiculados pelo marxismo ocidental e pelo positivismo. O ideário de Mangabeira
avança e dissolve esses projetos. Mangabeira rejeita o marxismo, por conta,
especialmente, da teima em se vincular estruturas e rotinas. Também não aceita a
crença inabalável na percepção de que a história tenha sentido, que conheça leis, e que
seja regida pela marcha do proletariado rumo a um mundo melhor. Teria dito que não é
museu, e que pode (e deve) mudar de idéias. Plasticidade pura.
Alerta-nos Mangabeira que a esquerda errou quando elegeu a classe média
como inimiga prioritária. E a imagem do pequeno burguês é recorrente nesse sentido.
Resgatando o passo falso, o pensador brasileiro retoma ideário de classe média, sem se
deixar convencer pelo falso moralismo. Assim, Mangabeira quer a classe média como
fiadora da escola pública, e a quer livre de arcar com ônus tributário que não lhe resolva
problemas, especialmente na medida em que refém do plano de saúde, da escola
privada e mais recentemente da segurança particular.
Preocupações com educação circunstancializam o ideário de Mangabeira. E aqui
já se comprovou a assertiva. Para o Brasil, o professor de Harvard quer ensino de
verdade, defendendo métodos educacionais que potencializem a capacidade analítica
em detrimento de referencial mnemônico. A educação deve atingir amplo contingente
da nossa população, de fato, o maior possível. Darwins e pequenos einsteins proliferam
desconhecidos. Nossos pequenos profetas precisam ser descobertos, revelados,
incentivados, treinados, libertados.

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As teses de Mangabeira apontam para o fato de que não podemos nos curvar. O
Brasil deve se inserir nos mercados globais, sem abrir mão de prerrogativas e de
interesses. O Brasil precisamos buscar e defender globalização que nos interesse.
Rebeldia é a base de escudo herético que precisamos carregar. A partir do pensador
aqui estudado, rebeldia é condição de liberdade, inconformismo é indicativo de avanço.
A história das instituições democráticas é problematizada nas teses de
Mangabeira. O assunto também freqüenta outros textos seus, a exemplo da versão
norte-americana do False Necessity. O vínculo de democracia com mercado é o fio
condutor de mensagem oficial, e o próprio conceito de mercado é desafiado por
Mangabeira, para quem mercado é nome que se dá a abstração de nossos tempos.
Estruturas constitucionais que hoje há apenas indicam arranjos políticos que
circunstancialmente triunfaram. Necessariamente, não são os modelos melhores, ou
únicos. O regime político, o sistema eleitoral, o referencial de cláusulas pétreas, o
sistema tributário, enfim, todo o conjunto que informa o contorno constitucional
brasileiro, nesse sentido, poderia (e deveria) ser objeto de revisão.
Eventual remodelagem atentaria para imperiosa reforma na lei eleitoral.
Especialmente, o financiamento público das campanhas é ponto essencial no conjunto
de idéias de Roberto Mangabeira Unger. Ter-se-ia como resultado o afastamento do
financiador da campanha, que qual um Mefistófeles renovado aproxima-se de seu
Fausto-candidato-eleito, exigindo o pagamento de promessas.
Uma nova conceituação de direitos fundamentais afasta-se do dogmatismo e da
ingenuidade; Mangabeira pretende que se confiram direitos de imunidade, protegendo-
se os cidadãos das restrições que o poder público pode eventualmente lançar em relação
aos particulares. Tem-se uma nova concepção de sociedade civil.
As teses voltaram-se também para finanças públicas que apontam para novo
modelo tributário. Impostos regressivos, incidentes sobre o consumo, a exemplo do
modelo de Kaldor, substancializariam realismo fiscal. Mangabeira propõe imposto
sobre valor agregado, que provavelmente reunisse o atual imposto sobre circulação de
mercadorias e serviços, que é estadual, e o imposto sobre produtos industrializados, que
é federal. Resta saber como os Estados reagiriam à proposta. E creio que não
aceitariam. E aqui não creio que poderia invocar realisticamente fetichismo
institucional.
As teses sugerem também novos regimes de cooperação entre Estado e
particulares, no que toca ao modelo econômico. O Estado gerenciaria iniciativas,

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apontaria caminhos, garantia transações, incentivaria o empreendedorismo. A adesão e
o entusiasmo para com as propostas dá os contornos do progressista dos dias de hoje. A
causa democrática ganha interpretação ampla, livre dos constrangimentos do passado,
dotada de carta de alforria da ditadura do pretérito.
Partidos progressistas não devem deixar de lado o apoio da classe média,
repetindo-se o erro da esquerda radical. Sine ira et studio deve-se alcançar focos de
inovação institucional que transcendam estreitos limites ditados por suposto conflito
entre liberalismo putativamente triunfante e segunda via potencialmente alternativa,
prenhe de prescrições de intervencionismo estatal típico de democracia social. Para
Mangabeira só há hoje uma via, aquela ditada pelo liberalismo supostamente vencedor.
E propõe uma alternativa, que qualifica um superliberalismo.
Esse sumário de teses de Roberto Mangabeira Unger consolida projeto radical
de mudança, centrado na imaginação institucional criativa, afastando-se de patologia
recorrente em nossas ciências sociais, que consiste em se trabalhar justificando apenas
o que já existe. Há muito a ser feito. Deve-se contar com imaginação e ousadia, na
concepção de um escudo herético. Essa a mensagem central de Roberto Mangabeira
Unger, creio eu.
Ele se propõe a ajudar a transformar o Brasil. Recusar tal ajuda é erro
imperdoável, que não se pode cometer.

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Artigos de Roberto Mangabeira Unger publicados na Folha de São Paulo e aqui


estudados

A Ética Após a Rendição


A Misteriosa Reforma da Previdência
A Obra do Futuro Governo
A Política do Vazio
A Política do Vazio
A Vez do Brasil
Abaixo o Tráfico de Influências
Aprofundar a Democracia
Aprofundar a Democracia
Brasil Desacorrentado
Classe Média e Futuro Nacional
Como Cuidar do Social
Como Enfrentar os Perigos da Transição
Consenso para Educar
Crescer
Debate Já

102
Democracia Direta
Direito Constitucional
Educação: Escolhas
Eixo de uma Estratégia
Ensino Já
Grandeza do Brasil
Impostos e Futuro
Morte e Legado da Terceira Via
Novo Debate no Mundo
Paz sem Marasmo
Virada na Educação

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