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Entrevista 

Christian Caubet Florianópolis, setembro de 2008

A água, a escassez e os conflitos


Fotos Thiago Bora

Sentado e com as mãos sobre um mapa-múndi, Christian Caubet fala sobre os problemas e perspectivas
relacionados à água no Brasil e no mundo. Ele fez doutorado em Direito pela Université des Sciences Sociales
de Toulouse I com a tese A barragem de Itaipu e o Direito Internacional Fluvial. Caubet estuda a água há 30
anos e hoje é professor na Unversidade de Brasília. Com ironia aguçada e de forma crítica, ele fala sobre as
guerras hídricas que acontecem atualmente em diversos lugares mundo, até as políticas necessárias para
Florianópolis evitar a possibilidade de escassez daqui a uma década.

ERO: Por que estudar o tema da água tão contaminada que é incompatível com a da torneira, vão deixar de garantir a qualidade, e aí
água? saúde humana. Guerra da água. tu vai buscar água onde? Todo mundo vai comprar
Christian Caubet: Alguns dizem garrafão? Não, tem que tomar água da torneira que
que só Freud pra explicar isso. É o tipo de coisa que E em Florianópolis? Há conflitos? Quais os é garantia para todo mundo em relação à água.
acontece por coincidência. Comecei a tese de douto- principais problemas?
rado em 79, durante a ditadura militar. Na época, A Lei Federal da Água foi aprovada há 11 anos e E com relação à escassez de água, quais as al-
eu tinha a assinatura do jornal Opinião, que fazia prevê que em caso de escassez, o primeiro uso que ternativas?
parte da imprensa nanica e era muito mal visto pe- tem que ser garantido é o abastecimento humano e Há muita coisa para fazer. Dá para racionalizar
los milicos, porque fazia crítica. De repente, o jornal a dessedentação (matar a sede) dos animais. Santa os usos, economizar. As pessoas usam 300 litros
parou de chegar. Eles mandam uma carta dizendo: Catarina, pouco após a aprovação dessa lei, era um pra lavar um carro. Quantos litros são mesmo ne-
‘a ditadura acabou com nosso jornal’. Para que não caos hídrico em todos os sentidos: captação, trata- cessários? Com 30 litros, tu deixa um carro assim
perdêssemos o fim da assinatura, eles ofereceram mento, distribuição. Hoje, cadê a estação de trata- um brinco com três baldes de água. Num banho de
três livros de um catálogo. Dentre eles, havia o li- mento de Florianópolis? Pois a água daqui vem do chuveiro você gasta de 80 a 90 litros de água. Se tu
vro Itaipu - Prós e Contras, de Osny Duarte Pereira, município vizinho, de Vargem do Brás e Santo Ama- cantarolares um pouco, vai para 110 litros, se cantar
famoso Deputado Federal, jornalista e comunista, ro da Imperatriz. Quer dizer, no centro da cidade uma Traviata [Ópera Italiana] tu vais pra 150 litros.
que contava os problemas de Itaipu na época, 1978. estamos há 40 km da fonte, o rio Cubatão. São 40 Aí é melhor entrar de vez na banheira, que gasta de
Aí eu me interessei muito. Em 79, fiz um projeto, km, e sai caro. Em Florianópolis tem gente que tem 200 a 220 litros de água. Um brasileiro consome em
que foi financiado pela Fundação Ford, para ir até carência de água, por exemplo, a Barra da Lagoa e média por dia 180 a 200 litros de água.
Assunção[Paraguai], Buenos Aires [Argentina], São Rio Vermelho têm uma água péssima para efeitos
Paulo e Brasília para pesquisar. Eu fui e comecei o domésticos. A água que chega aqui é redirecionada Há necessidade de uma política maior então..
namoro com as águas. e percorre mais 25 km para chegar ao norte da Ilha, Tem que haver uma política que leve em consi-
porque lá não tem abastecimento suficiente. Então deração o fato que daqui a dez anos vai ter escassez
E enquanto o seu trabalho era desenvolvido, essa água percorre 65 km, o que é simplesmente de água terrível em Florianópolis. No verão já tem.
foi possível perceber os conflitos na relação aberrante. O preço que se paga pela água aqui é Olhe o prefeito de Florianópolis lá por janeiro, ele
água e poder? completamente imbecil, essa cidade é inviável. Se a está ajoelhado em frente à prefeitura rezando para
Pela navegação sempre houve brigas. Até o início cidade tem que pagar o que representa investimento, que venha água. Tem que chover senão ele não sabe
da década de 60, a principal atividade do rio Paraná vai morrer daqui a pouco. mais o que fazer.
era a navegação. A construção da usina hidrelétrica
de Itaipu, por exemplo, foi um problema por criar E existe preocupação por parte E as políticas para o Brasil?


um paredão que impedia a navegação nos rios que daqueles que podem investir Há quatro anos eu digo que
compõem a Bacia do Prata: Paraná, Paraguai e Uru-
guai. Na Europa, após Congresso em Viena, em 1815,
para mudar a situação da ci-
dade?
A atual guerra é urgente fazer investimento em
educação, polícia administrativa
depois das guerras revolucionárias e napoleônicas, Bom, ela ainda se dá ao luxo do Iraque é da água... Ah, porque policiar todo
começou-se a eliminar os obstáculos à livre navega-
ção comercial. Em outros casos afora a navegação,
de aceitar um golfe do Costão do
Santinho, que é um negócio se-
guerra da água, mundo? Sim, polícia administra-
tiva da água. Não tem nenhuma
quando falta água pra beber, para fazer irrigação ou guro para matar o que ainda tem mas ninguém legislação, em nenhum lugar do
para garantir alimentação, aí sim temos problemas
graves. Porque a primeira garantia é poder beber e,
de abastecimento local. Eles fazem
um gramado “para inglês ver”, que
diz que é. É mundo, que funciona sem repres-
são. Não conheço e se me derem
depois, irrigar. Nós não temos esse problema, mas precisa de agrotóxicos para matar muito mal visto um exemplo vou estudar para que
outras regiões do mundo têm. Só que ninguém diz
que existe guerra da água. Não se fala disso.
os bichinhos e as plantinhas que
não interessam para o resto ficar
dizer que um no Brasil a gente tenha água limpa
sem jamais botar uma multa. En-
British Sward (“gramado britâni- país faz guerra quanto isto não funciona, precisa-
Por quê?
Porque é muito mal visto dizer que um país
co”, no português). Então, quando
chove, a água dissolve o agrotóxico,
para destruir mos de uma polícia administrativa
como existe em diversos países, em
faz guerra para destruir os suprimentos hídricos. que chega ao lençol freático, que os suprimentos alguns há mais de 800 anos. O tri-
Christian Caubet nasceu na França, em
1947. No Brasil, em 2001, iniciou o projeto
A atual guerra do Iraque é a guerra da água. Mas
ninguém diz que é. Quando os americanos ataca-
está à beira da superfície, e depois
à água subterrânea, que é a reser-
hídricos. Há bunal de água de Valência, na Es-
panha, vem do século XIII. Ele trata
de pesquisa A água, a lei, a política, que ram, há cinco anos, eles destruíram absolutamen- va mesmo de abastecimento. Há guerra da água de irrigação e funciona até hoje.
culminou com o lançamento do livro A água,
a lei, a política... e o meio ambiente?, em
te tudo o que existia no país em termos de recur-
sos hídricos. Eles mandaram mísseis, destruíram
aqui um conflito pelo uso de água,
entre o proprietário que diz “eu sou
em tudo quanto E as perspectivas de crescimen-
2004. Dois anos depois, publicou a obra estações de captação e distribuição de água, dutos, o dono e quero instalar um golfe” e é lugar” to populacional no Brasil, como
A água doce nas relações internacionais. destruíram usinas de redistribuição, abastecimen- as 80 mil pessoas que precisam da afetam as previsões futuras de
Até agosto de 2008, foi professor do to de hospitais, tudo o que puderam. Tinham feito água e estão lá embaixo. E a população está toman- abastecimento de água?
Departamento de Direito da Unversidade a mesma coisa com o Vietnã, quando atacaram os do essa água através da captação feita pela Casan. A humanidade que já tem seis bilhões de pessoas
Federal de Santa Catarina (UFSC) diques para expulsar a população. Há guerra da Então quer dizer que a empresa é má? Não, ela faz o e todo mundo diz que em 2025 vai haver no planeta
água em tudo quanto é lugar. Na Bolívia tem guer- que pode, mas não é suficiente e ponto final. oito bilhões de pessoas. Eu não sei o que eles vão co-
ra da água neste momento. Tem gente que não mer, mas não vão beber. E não venha me dizer que se
sabe mais o que fazer pra ter o mínimo de água Quer dizer então que a qualidade da água não não houver água, então que tomem cerveja, porque
aos pés dos Andes, onde a água deveria estar ga- é confiável? para fazer um litro de cerveja na média são necessá-
rantida pelo derretimento do gelo. E eles não têm A água da Casan é boa, e eu só tomo dessa água rios 11 litros de água. Então, saúde pra todo mundo.
água. Por quê? Porque as mineradoras interna- e exijo que vocês façam a mesma coisa. O dia em
cionais usam toda a água possível e deixam uma que eles suspeitarem que nós não tomamos água Esther da Veiga e Marina Veshagem

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