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Testemunhos

1. A pequena de 5 anos (?) Samia Ramadan chora e pergunta todos os dias pelos 5 irmãos que foram mortos
aquando do ataque dos Janjauid em Buram. Tentam salvá-la do estado de loucura que parece inevitável.

2. Zinat Abdu de 3 anos diz que a casa onde vive agora é muito pobre comparada com aquela em que vivia
em Bulbul e aqui no campo de refugiados de Kalma já não tem ovelhas nem cabras para guardar e brincar…
nem leite.

3. É encorajante ver o Abd el Wahab e a Raquia (7 ou 8 anos de idade) a trabalhar com e como os adultos à
entrada do campo refugiados de Kalma a fazer tijolos verdes: “quero trabalhar aqui, fazer e vender muitos
tijolos para fazer uma casa para mim e meus avós”. Os seus pais e resto da família foram mortos pelos
janjauid.

4. Há mais de uma semana, já quase a dar a meia-noite, batem à porta da missão de Nyala. Afoitei-me e fui
abrir. Ouvir a história dos dois jovens – o Abdu e o Hachim – foi algo de espantoso. “Pedimos protecção
por esta noite”, dizem. Quase que falam os dois ao mesmo tempo e têm pressa de entrar; “quem sabe se
amanhã já não será precisa a tua colaboração para nós porque nos seguiram até à cidade e o que será de nós
amanhã não se sabe... Os amigos dos jaunjauid sabem que estamos aqui na cidade”.
O Abdu e o Hachim vêm a fugir de Greida ( Kms) onde se está em plena batalha desde há 4 dias. A pareceu
uma alma amiga que lhes deu guarida e protecção porque sabia o perigo em que eles e eu incorríamos.
Depois continuariam para o Sul (são sudistas e cristãos). Partiram sim, na manhã seguinte. A pé, em camião,
de carroça e de camelo… Que a Srª de Fátima os proteja. Ou, se já chegaram (duvido) agradeçamos com
eles…

5. O Jamal viu-me à entrada do seu campo de refugiados em Kalma e disse-me: porque não multiplicais os
esforços da saúde aqui? Falta de tudo, mas ao menos se houve algumas latrinas haveria muito menos risco de
infecções e cólera…
È perigoso parar à entrada de um destes campos, eu sei. Mas eu queria ouvir alguém, falar, partilhar
esperanças, pobrezas e riquezas. Que as há. De uma e outra parte. Num e noutro sentido. E encontrei-me com
o Jamal que me tomou por um dos ONG. Levemos a oração deste jovem muçulmano aos pés da Virgem de
Fátima, cujo nome é árabe de origem (Fátima uma das filhas de Mohammed).

6. Perto do campo de refugiados de Utach, os adolescentes ouviram a conversa e riram às gargalhadas. Mas
eu compartilhei com o Ramadan, o jovem que tinha provocado esse riso nos ditos adolescentes. O contexto
da conversa é que o Ramadan estava prestes a casar quando vieram os Janjauid… destruíram, queimaram e
levaram-lhe a querida noiva de nome Leila que nunca mais chegou a ver. Depois de 2 anos que passaram
estará Leila ainda viva? Talvez escrava/prostituta deles? Agora o meu casamento deu-se com este enorme
campo de refugiados. Aqui não odeio ninguém mas não vejo a quem eu amo de verdade”. E concluiu: “A
esperança é muito pouca, mas ainda sonho, acordado e a dormir, que um dia encontrarei a minha Leila.
Ramadan e Leila com muitos filhos, talvez pobres, mas já não importa”.
É para rir às gargalhadas? Para sorrir de esperança, sim. E fazer um intenção de oração por estes noivos.

Escola em Bileil
Originariamente povoado por darfurianos, Bileil era uma aldeia de 1.700 habitantes. Hoje conta com três vezes mais,
devido à chegada de outras gentes do Sul do país, para escapar ao flagelo da guerra que aí continuava.
Algumas Organizações Humanitárias nacionais e internacionais têm procurado executar o projecto da repatriação dos
sulistas, mas não têm recebido apoio que garanta suficiente segurança por parte do governo. “Se não podemos
continuar a viagem para o Sul – diz o Majok, resignado – tentaremos resolver vida aqui em Bileil, mesmo com a morte
constantemente à nossa frente”.
Nos 12 kms que separam Bileil da cidade de Nyala há três pontos de controlo: a polícia, o exército dos guerrilheiros
rebeldes e o exército nacional. Este último é identificado com os janjauid. É difícil ultrapassar estas barreiras de
controlo. São rigorosos na aplicação da lei que, segundo ouvimos deles mesmos, proíbe o uso de câmara fotográfica.
A escola básica, está a funcionar com 294 alunos – cristãos, muçulmanos e animistas, do 1º ao 5º ano. Os quatro
professores foram escolhidos com base no seu empenho de serviço voluntário e suas qualificações de estudos da escola
secundária. O projecto escolar, engloba o ensino, a refeição (sandes) e limpeza diária. Não recebem salário oficial mas
sim um incentivo. A escola funciona “não só por fora mas também por dentro” – como me dizia o Khamis, aluno do 4º
ano: “Muitos de nós temos experiência da escola debaixo de uma árvore e a escrever com o dedo na areia, mas desta
vez vai ser diferente, graças à Igreja e aos missionários”, – disse.

As três centenas de alunos sabem que esta nova possibilidade lhes vem, graças ao apoio solidário do grupo de jovens
combonianos “Fé e Missão”, dos leitores das revistas combonianas Audácia e Além Mar e de muitos outros grupos e
paróquias. Os pais dos alunos dão mostras de que, não sendo ricos de dinheiro são ricos de coração. De facto, eles
contribuem com quase um quarto do pão da sandes diária que os seus filhos comem na escola. Nós chamamos-lhe um
contributo simbólico; para eles é realidade. E para muitos deles – diga-se de passagem – será a única refeição do dia.
Nyala, 31 de Outubro de 2006

Missão de Nyala

Aqui é uma confusão de tropas e movimentos armados. Quando saio da cidade para visitar os
cristãos nos seus vários centros/capelas aqui ao redor, o mais que posso é chegar a Bileil, a quinze
quilómetros da cidade. Claro que há perigo, mas os soldados vão-me conhecendo e deixam-me passar. As
capelas eram 140 e a mais distante ficava a cerca de 150 quilómetros. Mas desde que esta guerra rebentou no
Darfur, não podemos ultrapassar os arredores da cidade. É muito arriscado e é-nos mesmo proibido. Fazemos
o nosso trabalho por perto, com muito cuidado e atenção, informando-nos antes sobre os movimentos e
paradeiros dos janjauid. O ano passado, os soldados roubaram um carro da missão: contributo obrigatório
que exigiram para combater os inimigos do nosso país – diziam.
No pequeno raio em que nos podemos mover deu para ver alguns janjauid, montados em camelos ou
cavalos. Vão sempre bem armados. Com esses é melhor pôr-se à distância. Matam sem dó nem piedade
porque têm todas as licenças do governo. Misturam-se com a gente no mercado e nas várias aldeias que,
quando se dão conta, desapareceram do mapa, literalmente. No lugar da aldeia fica só a morte semeada
com os corpos no chão. O resto das pessoas que escapam tentam chegar aos campos dos refugiados, ajudadas
e socorridas, se a tempo, pelas ONG. Nós também procuramos lá chegar e ajudar no que nos for possível.
Mas, geralmente, as organizações de socorro estrangeiras cobrem as necessidades materiais. Deste modo,
nós, então, podemo-nos dedicar mais facilmente uma presença espiritual, continuando a evangelização que já
vinham fazendo com o pessoal da missão, nas suas aldeias de origem. Tive oportunidade de estar em dois
dos vários campos de refugiados/deslocados: um panorama que não tem explicação nem descrição possível.
Estes e outros campos foram-se enchendo – ao longo de três anos – de seres humanos que lutam por estar de
pé. Já chegou aos 300 mil.
Feliz

Eu vivia aqui

- ‘Dizias que me ias mostrar a tua aldeia’!?


- ‘É aqui mesmo. Foi! Até há dois anos atrás’. Os meus pés estão a pisar escombros; vêem-se canas
no chão, sinal de algo que foi a sebe de um pátio. Aqui e além alguns restos de tijolos “verdes” (assim
chamados porque cozidos ao sol). O aldeamento já não existe mas o nome ficou: Talata Ardeb.
-‘A minha casa era mesmo ali em frente; consistia de um kurnuk, uma gutia (isto é: duas cabanas
distintas no seu formato e aplicação) e um pátio; a minha foi uma das poucas das 37 famílias que pôde
escapar antes do grande massacre, onde foram mortos quase metade da população’. Quanto ao El Nur agora
habita, com a mulher e os três filhos, em Majok, uma aldeia perto do aeroporto de Nyala que os janjauid não
destruíram, talvez, para fazer boa impressão a quem chega a Nyala por via aérea.
- ‘E as mulheres não têm medo’?
- ‘O medo está sempre presente. Mas a distribuição de alimentos pelas Organizações humanitárias
não dá para tudo. Elas sabem que os janjauid podem aparecer a qualquer momento. Mas arriscam porque a
prioridade é sobreviver. Tu e eu também estamos em situação de risco’. Procurei dissimular e não dar
importância ao arrepio que me veio por todo o corpo. Mas do meu amigo El Nur ouvi palavras que me
aliviaram: ‘até agora não houve notícias de ataques a estrangeiros. E quanto a mim, já não tenho nada a
perder; a minha verdadeira riqueza (mulher e filhos) vive agora em Majok’. Ele parou a olhar para mim,
enquanto eu lhe expressava os meus votos sinceros: ‘Deus te conserve sempre “rico” e te faça realizar os teus
desejos’. E ele concluiu à maneira de bom muçulmano: ‘Amen’.
Quisera não ouvir mais histórias como aquela do grupo de mulheres que sairam, um dia, a apanhar
lenha não muito longe do campo de refugiados de Kalma, onde viviam. Uma delas, a Auatif, não regressou.
Quatro janjauid apareceram, montados em camelos. Agarraram-na, mas como ela resistia, arrastaram-na por
uns metros. Até que a ataram a um camelo. Ora de rastos, ora a caminhar. Caía, outra vez de rastos… Para
onde? Para que? Para ser escrava dos senhores do Darfur: os janjauid. Com eles vale tudo, desde a violação
ao espancamento, até deixar a presa inânime no chão, à mercê dos abutres e dos cães vadios.
Feliz mccj. Nyala, Maio 2007

ERA UMA VEZ UMA ALDEIA

Esta manhã fui às compras ao Um Dafaso, o mercado mais popular em Nyala. Chego à porta da
missão e tenho, como de costume, o Ibrahim à minha frente. Trinta e cinco anos de idade. Casado e quatro
filhos. Com ele, qualquer um se sente em casa.
- Não te disturbo, pois não? Vejo que acabaste agora mesmo a oração, pois já estás a enrolar a
“maslaia” (pequeno tapete usado pelos muçulmanos na oração).
- “Ámen, ámen” – disse o Ibrahim, enquanto um sorriso se desenhava espontaneamente nos seus
lábios. E acrescentou: “hoje a oração não me correu lá muito bem. Pensava em Teguê.
- Teguê? Uma aldeia na direcção Norte, a caminho de El Fasher?
- Exactamente; é a minha terra – assentiu. Já passa de 5 anos que lá não vou.
Teguê era e continua a ser a terra do meu amigo Ibrahim. Mas a aldeia já não existe. Dos quase três mil e
quinhentos habitantes que eram, pouco mais de metade puderam chegar sãos(?) e salvos ao acampamento de
desalojados em Utach, aqui nos arredores de Nyala.
As notícias sobre o conflito do Darfur começaram a ser conhecidas e divulgadas fora do Sudão em
2003. Mas a verdade é que, já desde 1999 os habitantes de Teguê conheciam o flagelo dos janjauid e eram
vítimas das suas barbaridades. “A maioria montados em camelos e outros em cavalos, iam à nossa terra só
para nos provocar e humilhar. Como que passeavam no meio das cultivações de amendoim e sorgo (o nosso
pão diário) pertencentes às muitas famílias da nossa aldeia. Eles, naquele dia, eram mais de mil.”
“Se quereis viver, ide embora para longe daqui”! Ibrahim deixou de me olhar e ouvi-o falar a sós: “ir
embora? Deixar a nossa terra? Se há uma terra que nos pertence é mesmo esta. Nós somos da tribo fur e
vivemos aqui no Darfur, a nossa casa, a nossa terra”.
Uma aldeia inteira estava em fuga! Correram... Caminharam… Quem se cansava, recebia ânimo e
coragem para não ficar para trás; seria o seu fim. Em pouco mais de duas horas estavam debaixo do grande
embondeiro por eles bem conhecido. Mas, vítimas dos disparos, nem todos compareceram. Os mortos foram
várias centenas.
A história dos habitantes de Teguê continua a repetir-se hoje em tantas outras aldeias deste
martirizado Noroeste do Sudão. As ameaças não param. O odioso refrão continua a ferir-lhes a alma: “Ide
embora se quereis viver”...! A contagem dos mortos já vai em mais de 200.000 Actualmente, são mais de 2
milhões e meio os darfurianos que tentam sobreviver nos campos de desalojados.

P. Feliz

A VIDA BEIJOU A MORTE


. - ‘Há mortos e feridos em Bulbul. Há mortos e feridos em Khur el Bachar’.
Quisera enganar-me, mas estas e outras passam a ser notícias de rotina no Darfur. Os comentários
na rua terminam com um encolher de ombros que diz muito: ‘que posso eu fazer? Os soldados da paz
(União Africana) andam por aí aos montes. Em Bulbul e Khur el Bachar seria necessária a sua presença.
Mas não. Andam por aqui a passear no mercado da cidade, a atrapalhar quem quer fazer vida...’
Levanto os olhos para a cruz. Vejo a morte que resiste e não quer morrer: ‘Pai, porque me
abandonaste’? Palavras ‘escandalosas’ na boca daquele que é o Filho de Deus?!
Tiveste mesmo que morrer desse jeito?! Aceita, Senhor, este gesto meu e destes irmãos e irmãs de
Nyala. Não estamos aqui para fazer complot de vingança à maneira humana. Também não queremos
anunciar ao mundo o luto pela tua morte. É o nosso agradecimento que te vimos trazer. Hoje, de maneira
muito especial, com todos os redimidos do mundo inteiro. Hoje, dia da grande sexta- feira (a tradução
literal do árabe para a 6ª feira santa ).’
A vida beijou a morte e abriu-lhe as portas da eternidade feliz. Cantemos Aleluias! As nossas
vozes já não podem destoar. O Senhor Ressuscitado está presente evai afinando, connosco, as cordas da
eterna melodia.
Feliz mccj, Nyala, Maio 2007

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