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MUSEU NACIONAL
HELDER FARAGO
Rio de Janeiro
2005
Helder Farago
Rio de Janeiro
2005
AGRADECIMENTOS
À CAPES.
Aos colegas etnólogos, Pedro Leite Lopes, Pedro Cesarino, Paulo Maia, Elena Welper,
dos grupos de língua Pano, onde serão levantadas questões relativas ao tema. Entre
This study analyses the relations between shamanism and political power,
subject.
groups, the construction of the native person and the amerindian perspectivism of
inherent a “Cosmopolitics”.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 01
Introdução .................................................................................................................... 28
Introdução .....................................................................................................................37
Introdução .................................................................................................................... 44
FEITICEIROS.....................................................................................61
Introdução .................................................................................................................... 61
CONCLUSÃO ............................................................................................................. 77
BIBLIOGRAFIA ......................................................................................................... 81
1
INTRODUÇÃO
Objetivo da dissertação
poder político à luz da “nova antropologia política” de Pierre Clastres conforme definida por
Abensour et ali (Abensour, 1987). Segundo este último, sociedades “sem Estado”, depois de
Clastres, não significam mais sociedades faltosas, mas sim sociedades “contra o Estado”.
americanas não seriam sem política, mas, ao contrário, haveria nelas a recusa a uma
destacado do “socius”.
“primitivas”, cabe perguntarmos inicialmente por que o xamanismo, em muitos casos, nas
terras baixas sul-americanas, não se torna uma teocracia? Se estas sociedades tendem a afastar
para fora do “socius” a autoridade de tipo “comando-obediência” (Clastres, P., 2003), o que
dizer então sobre o xamã, figura cujo poder consiste, entre outras coisas, em lidar com a cura
problema da distinção ocidental entre espaço religioso e espaço político, ou melhor, com o
problema, uma vez que parece não fazer sentido quando o objetivo é analisar as relações
lançando o paradoxo da “chefia sem poder”. Por outro lado, deixou em aberto o estatuto do
busca da “terra sem mal” – figura esta que poderia vir a disputar com o chefe o lugar de poder
abrangeria um espaço sócio-cósmico de subjetividades humanas e não humanas. Por esta via,
o xamã seria o mestre em transitar numa arena não apenas sócio-política, mas
“cosmopolítica” (ibidem
3
funcionando, no plano sociológico, como uma verdadeira instituição, devendo ser estudado
em sua dupla dimensão: religiosa e social. O antropólogo destaca que o xamanismo não se
acúmulo de poder não se coloca, pois apesar de “invencível e imortal em sua dimensão
simbólica” (Chaumeil, 1983:63), ele é precário em sua dimensão social. Esta é a marca de
toda vida xamânica que, segundo Chaumeil, impede a apropriação definitiva da esfera do
referentes à organização das relações entre os diferentes níveis do cosmo, através do conceito
nativo de “i-paie” (“ele-xamã”). “Aquele que tem pajé” (“i-paie”) não é apenas o xamã
(humano), mas também animais, plantas e objetos que constituem o universo Waiãpi. A noção
1
Preferencialmente entre os Yagua a carreira religiosa será destinada ao primogênito e a política ao mais jovem,
separando-se as esferas de atuação, além do que Chaumeil (1983) atesta o notável risco de agressões a que o
xamã está exposto por parte de parentes de uma vítima de doença ou de um rival, daí seu ambivalente estatuto.
4
Waiãpi, inclusive permite que um xamã poderoso receba uma boa remuneração pela sua
intervenção eficaz. Sendo assim, o xamã Waiãpi, altamente prestigiado entre os seus, é,
Vemos que é sobre este prestígio que os xamãs poderão sustentar o poder
grupo de parentesco. Porém, dada a natureza das atividades dos pajés Waiãpi, Gallois
considera improvável que consigam acumular força xamanística e poder político, duas formas
centralização de poder por um único indivíduo ou por um único grupo destacado do socius.
algo selvagem e, portanto, considerado a-social, fora do campo político. Citando Chaumeil
em nota (ibid: 60), a autora destaca que a esfera xamânica faz a mediação com este poder
selvagem e exterior à sociedade. Teríamos aí os indícios de uma teoria nativa sobre o poder
Descola (1988), em seu artigo anterior aos trabalhos publicados por Langdon
(op.cit.), argumenta que haveria um poder menos abstrato do que os supostos mecanismos de
negação da autoridade resultante do modelo clastreano da chefia impotente e este poder seria
creditado aos xamãs. Ressalta ainda o autor que este modelo de chefe, baseado no modelo de
R. Lowie2, existiria somente em situações e momentos específicos nas baixas terras sul-
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Clastres (2003: 43-63), para pensar o “paradoxo do chefe sem poder”, ressalta um modelo de chefe indígena
pacificador, generoso, bom orador e geralmente poligínico. Sendo que, as últimas três características definiriam
o conjunto das prestações e contraprestações pelo qual se mantém o equilíbrio entre a estrutura social e a
instituição política.
5
internas dos grupos locais. Descola (op.cit.) reitera que mesmo Lowie já havia percebido a
engendrando uma notável consolidação. Citando Chaumeil, Descola (ibid.: 825), inclina-se a
pensar que a essência mesma do poder político é religiosa e que talvez esta seja a única forma
de poder numa sociedade desprovida de um órgão político efetivo. Sendo assim, os xamãs
parentesco.
Santos Granero (1986), em seu artigo baseado nos trabalhos de Joanna Overing e
na sua própria experiência entre os Piaroa do baixo Orinoco, tenta demonstrar que
determinadas configurações do poder político exercido por xamãs estão imersas no processo
econômico. Este fato, afirma o autor, contradiz as assertivas de Clastres de que a chefia
Pelo referido artigo, os “ruwatu” piaroa seriam poderosos xamãs que usam seu
poder de cura, proteção mística e atividades cerimoniais em favor de seus seguidores (grupo
local), além de possuírem o controle territorial. Desta maneira, estes “xamãs-chefes” seriam
francês Michel Foucault de que Saber sempre pressupõe e constitui relações de Poder,
argumenta, contudo, que para um xamã ser considerado líder, seu conhecimento ritual deve
ser considerado pelos atores em questão como um elemento essencial no processo reprodutivo
último, argumentando que sua análise da percepção nativa do poder, adequa-se bem para os
Piaroa, mas não para os grupos Pano, pelo menos, não para os Cashinahua. O ponto principal
que impediria o monopólio do poder. Exemplificando seu argumento, Erikson lembra que o
disto, existiria aí uma clara divisão entre os papéis do líder (xanen-ibu) e do xamã (huni
mukaya). Para estes Pano, xamãs e líderes devem pertencer a metades opostas e suas funções
sociedades ameríndias, apenas atesta que, por contingências etno-históricas, eles podem
falhar.
Tal noção de política embutida, e muitas vezes não problematizada, nas mais
colocou as sociedades indígenas no patamar de sociedades plenas, pois são políticas e o que é
veremos que a dicotomia ocidental entre espaço político e espaço sagrado, bem como a
segundo a qual a condição de humanidade está sempre em disputa por todos os seres do
universo, procede segundo o princípio de que o ponto de vista cria o sujeito. É sujeito aquele
que se encontrar ativado ou agenciado pelo ponto de vista: espíritos, animais, objetos,
social é preenchido por sujeitos humanos e não-humanos, sua sociologia será uma
atuação xamânica como uma “cosmopolítica”. Termo híbrido, a cosmopolítica pode ser mais
implica um modo de conhecer, já que conhecer aqui é “tomar o ponto de vista daquilo que
deve ser conhecido” (2002a: 358). Não é para menos que, seguindo esta lógica, o papel do
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chefe guerreiro não se diferencie muito do papel do xamã, pois “matadores e xamãs são
guerra por outros meios, e guerra em Clastres (1982,2003) é política e antecede a aliança, a
Guerreiros são vasos comunicantes entre o “eu” e o “outro” intra-humanos e xamãs entre o
Considerando que Clastres (2003: 43-63) havia formulado uma tipologia do chefe
ameríndio (generoso, bom orador, poligínico) para estudar e explicitar o funcionamento dos
Clastres) com exemplos etnográficos e avaliarmos o alcance desta tipificação. Quando e onde
o xamã segue a tendência destas sociedades de evitar toda autoridade com base na coerção?
Uma outra tipologia do xamanismo foi proposta por Hugh-Jones (1994: 32-73),
xamanismo em dois tipos ideais: o xamanismo de tipo vertical versus o xamanismo de tipo
transmitido dentro de uma pequena elite, enquanto o segundo faria uma distribuição do saber
mais “democrática” (ibid.: 33). Ainda, descreve que o tipo horizontal está associado às
sociedades mais igualitárias das florestas, orientadas para a guerra e caça, com o poder secular
menos ênfase na guerra e caça, onde o poder secular e ritual seriam acumulados num pequeno
Bororo, os Arawak e os Tukano, o tipo horizontal pode ocorrer junto com o vertical e, por
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vezes, uma mesma pessoa combina aspectos de ambos ou pode ocorrer que o poder secular e
ritual esteja divido entre diferentes indivíduos (ibid.: 33). Em suma, adequando a tipologia de
Hugh-Jones aos termos de Clastres, teríamos o xamã horizontal “contra Estado” e o xamã
artigo de Pedersen (2001:411-27), que imbuído das questões colocadas pelo perspectivismo
região Siberiana.
Pedersen, através de sua experiência de campo no Norte da Ásia, propõe para seu
estudo local fazer uma antropologia comparada, dividindo a região Siberiana em áreas geo-
culturalmente definidas, nas quais as ontologias indígenas podem ser descritas. Nas regiões
mais setentrionais da Sibéria, segundo o autor, teríamos o animismo em seu “aspecto mais
autor atesta que o reino do social não termina com os seres humanos nas diferentes ontologias
refletindo sobre o citado artigo de Pedersen conclui que o xamã horizontal pan-amazônico
3
Viveiros De Castro (2002a) em seu “Perspectivismo e Multinaturalismo na América Indígena” (:345-399),
repensando as diferentes ontologias nativas (animista, totemista e naturalista), define o animismo como: “(...)
uma ontologia que postula o caráter social das relações entre as séries humana e não-humana: o intervalo entre
natureza e sociedade é ele próprio social.” (:364)
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impediria a coincidência entre poder político e potência cósmica e que, por outro lado, a
Estado (grifo meu). Consideramos portanto relevante, como fio condutor de nosso trabalho,
Pano (nome de um de seus grupos, hoje extinto) ocupa uma área contígua, que se estende do
alto Solimões (paralelo 5ºS) até o alto Purus (paralelo 10ºS), numa região fronteiriça entre
Brasil e Peru.
Entre estes paralelos, do oeste para o leste, encontram-se grupos pano desde o
Ucayali e seus afluentes da margem esquerda (75ºW), até as cabeceiras das bacias do Javari,
Juruá e Purus (70ºW) (Erikson, P. In Carneiro da Cunha (org.), 1992:239). Saindo desta área
Rondônia e Bolívia, desde o alto rio Madeira até rio Beni, onde estão as populações Kaxarari,
Chacobo, Pacaguara e Karipuna. São grupos minoritários sul-orientais, que de acordo com o
mapa etno-histórico de Curt Nimuendaju (1987) estariam situados no quadrante 64º a 67ºW e
8º a 12ºS. Para Erikson (op. cit.: 240), estes grupos representariam um pequeno resíduo, que
teria se separado da maior parte dos pano por um corredor de população Arawak. Estes
últimos, teriam feito sua intrusão na área por volta dos 700-800 d.c. (ibid.: 245).
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na região de Tefé e alguns outros pano, na maior parte Shipibo, deportados para a região do
Outro detalhe que nos chama atenção é a provável migração recente de alguns
grupos, que podemos notar se compararmos os mapas de Nimuendaju (op. cit.), de 1944, com
o mais recente de Erikson, no já mencionado artigo (1992: 242). Por exemplo, os Marubo que
no primeiro mapa estão alocados nas coordenadas 4ºS/73ºW (entre o alto Solimões e o rio
Javari), já no segundo mapa aparecem mais ao sul, precisamente nas coordenadas 6ºS/73ºW
(entre o alto Ituí e o alto Curuçá). Também temos uma comunidade Yaminawa, que não
consta no mapa do Nimuendaju, mas sim no de Erikson, localizada às margens do rio Iaco no
Acre (10ºS/69ºW).
chama atenção pela sua homogeneidade étnica excepcional, reforçada por uma expressiva
coesão lingüística e cultural. Tal homogeneidade, mesmo com a fragmentação interna destes
grupos, fez com que Erikson (1993:47), usando critérios essencialmente lingüísticos dividisse
Seguindo de sul para norte, segundo o autor, teríamos a seguinte distribuição dos sete
subconjuntos:
conhecidos e para muitos, seriam o paradigma de uma sociedade pano típica (população: ±
2500).
Pano, os Maya e outros grupos menores, todos falando dialetos mutuamente inteligíveis
(população: ± 1000).
Erikson lembra oportunamente que estas sete categorias não constituem o que se
exógeno (são impostas por um grupo pano vizinho) e muitas vezes são pejorativas, como por
exemplo, o morfema “kaxi-” que quer dizer “vampiro” e é atribuído aos Kaxinawa e aos
Cashibo, ou como o “maru” (que quer dizer “careca”) atribuído aos Marubo.
Por outro lado, considerando que o termo “Huni”, (ou “Honi”, “Oni”, “Odi” que
significam “gente, gente como nós”) utilizado pelos grupos pano de maneira geral para auto
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referir-se, tem uma flexibilidade semântica capaz de englobar uma designação mais próxima
(segmento do grupo local, grupo local) até um nível mais amplo, expressando todos os Pano,
no sentido de humanidade (“todos como nós”, “todos que têm tatuagens”). Observamos que
não seria pertinente definir “etnias” com claras denominações tribais, sobretudo porque este
termo auto referencial “Huni”, de uso comum, parece abrir caminhos para o estabelecimento
maioria das características discerníveis em um grupo pano pode ser encontrada na maior parte
dos outros. Em geral, temos: grandes casas comunais (malocas), uma alimentação baseada na
(prática em declínio nas últimas décadas) e extrema importância das guerras intestinas.
“ayahuasca” (ambos substâncias do “amargo”) nas sessões xamânicas, bem como o emprego
Kariera australiano, que permite repartir o universo social em oito grandes classes (quatro por
sexo) podendo ser consideradas como seções matrimoniais (Kensinger apud Erikson,,
1993:48). Cada uma destas seções dispõe com exclusividade de um estoque específico de
nomes próprios, de maneira que a todo chamado, corresponde idealmente, para Ego, um
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termo de parentesco particular. Sendo assim, num primeiro encontro e mesmo na ausência de
um ancestral comum, dois desconhecidos podem determinar, pelo viés da onomástica, qual é
o vínculo de parentesco putativo que os une (Erikson, 1993: 48). Erikson veria no sistema
através dos mitos de origem, que atribuem aos diversos grupos pano uma emergência comum
e exclui tanto os brancos como outros ameríndios de família lingüística diferente. Um reino
pan-Pano pode se realizar também na escatologia de certos grupos, que promete a reunião
Por outro lado, cada grupo pano está tanto apto a exagerar suas diferenças internas
quanto a salientar sua semelhança com grupos vizinhos, num fluxo constante que impede o
maneira que uma das metades do grupo local se vê sistematicamente assimilada ao exterior,
do si. A alteridade aqui é constituinte, pois a existência do próprio grupo local é já definida
artigo sobre identidade e alteridade entre os pano. Neste trabalho, a autora estuda os sistemas
internos e externos que eles engendram. De fato, a área pano apresenta um contraste marcante
entre sua unidade manifesta ao nível global e sua extrema atomização em escala local. Afinal,
Feito este panorama geral, vamos agora mapear as etnografias pano. Prosseguimos
com breves comentários de cada uma delas e dos respectivos grupos relatados.
cujo significado ele procura apreender através das atividades cotidianas nas relações de
parentesco e na organização social. Townsley propõe-se a fazer uma etnografia geral dos
fundamenta.
Segundo o autor, estes grupos apresentam uma elaborada cosmologia dualista que
sobreviveu às transformações culturais, mas está florescendo cada vez mais, dada sua
capacidade de lidar com o mundo dos “outros”, inclusive o mundo não nativo. Chamamos
situados ao longo das cabeceiras dos rios Ituí e Curuçá (afluentes do Javari), ao sul do
cosmovisão, da tipologia das doenças e de como os nativos reagem diante da morte. Depara-
se então com problemas conceituais sobre o que é doença, enfermidade, moléstia e sintoma na
cultura Marubo. As práticas destinadas à cura das enfermidades estão intimamente ligadas aos
autora adere aos trabalhos de Tambiah (apud Melatti,1985: 13), no que dizem respeito à
abordagem lingüística dos atos mágicos que combinam palavras e ações (“speeching acts”).
1985:583). Comparando o ritual Marubo ao dos Cuna (Panamá) tece analogias entre a “sessão
Eficácia Simbólica”.
nas aldeias de Cana Recreio, Moema e Nova Aliança, todas no rio Purus e a sua pesquisa de
20 milhas à oeste da fronteira do Brasil. No início de sua pesquisa em 1966, a autora registrou
89 pessoas vivendo na aldeia. Estima que por volta de 1900, os Sharanahua saíram do rio
rápidas mudanças culturais ocorridas nos 25 anos anteriores à sua chegada, entre elas, a
A estrutura que ordena as relações sociais dentro da aldeia é a troca de irmãs entre
homens, ou seja, esposas preferenciais são primas cruzadas. A residência tende a seguir a
regra uxorilocal, segundo a qual o homem presta serviços ao sogro (“serviço da noiva”).
Porém, entre os Sharanahua, à medida que o homem tem filhos e adquire sua roça, ele pode
comida e este fato modela as interações entre homens e mulheres, velhos e jovens, parentes e
mandioca, sem a qual uma refeição não é completa. A caça é interpretada por Siskind como
um sistema sócio-econômico: a provisão de caça por um homem a seu grupo lhe assegura
vantagens sociais, como por exemplo, ser estimado como marido. Um bom caçador é um
O xamanismo faz uso da ayahuasca, chamada “Shori”, que não é de uso exclusivo
dos xamãs, mas só um xamã consegue controlar as visões e propiciar a cura. As doenças mais
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comuns são tratadas por herbalistas e no caso das mais graves usa-se o “sopro” de fumaça do
Mayoruna e estes ao macro-conjunto Pano. Os Matis residem todos no Brasil, em duas aldeias
situadas sobre o igarapé Boeiro no médio Ituí. O próprio “etnônimo” indica o grau de
essenciais aos Matis colocados em questão após o contato: identidade étnica, organização
Uma aldeia Matis pode se reduzir a uma grande casa comum (“shobo”). Diferente
preferencial é entre primos cruzados bilaterais, ratificando, segundo Erikson (:110), o sistema
caracterizando os cativos e seus descendentes como Matis, ou, como dizem os nativos “somos
complementares comum aos Pano. Entre os Matis, este sistema pode ser redutível ao princípio
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do “chimu” (amargo) e do “bata” (doce). A doença, por exemplo, é explicada por um “sho”,
entidade que envia minúsculas zarabatanas e que aparece na forma “chimu” (amargo).
O autor afirma que sua pesquisa pretendeu ser “sinestésica”, porque, aos modos
dos conceitos nativos, ilustra a imbricação estreita entre as práticas territoriais e agrícolas e a
escatologia dos Matis, e ainda ressalta os vínculos entre as práticas cinegéticas, concepções
dinâmica entre pares de opostos e sua concepção de humanidade para além dos limites de seu
grupo (uma humanidade não exclusiva), o xamanismo se estende para além do circuito
dos grupos Pano, alternativas geradas pelo fluxo/refluxo da ocupação branca e, por fim, o
em muitos dos grupos Pano. A pesquisa de campo foi inicialmente realizada em 1991, na
rio Iaco). Os Yaminawa acham mais fácil e prazeirosa a convivência entre consangüíneos e
consideram um pesado fardo ajudar o sogro e residir na casa de sua mulher. Não há uma regra
de residência fixa, mas sim um conjunto de regras cuja interação conforma o ciclo de vida
residencial (:50).
21
como corpo/carne ou grupo unido por relações carnais e proximidade física. “Dawa” é o
estrangeiro ou mesmo não humano, mas também é uma das metades em que o mundo “Yura”
se divide.
Yaminawa.
este “complexo” não é só uma tradição ritual (embora use ritos) ou “sistema simbólico”, mas
pode ser visto como uma ciência, não no seu sentido positivo, mas como um espaço
institucional definido. As questões do “complexo xamânico” serão vistas com mais detalhes
1994 a 1997, Lima registra um crescimento demográfico de 70% na aldeia de Campinas (:18).
que habitam as mesmas terras demarcadas. O termo Katukina serve mais às relações externas
e foi dado pelo governo brasileiro, sendo que os nativos identificam-se a partir de seis
etnônimos: Varinawa (Povo do Sol), Kamanawa (Povo da Onça), Satanawa (Povo da Lontra),
Katukina afirmam ainda no passado uma união com os Marubo e a semelhança lingüística
ênfase que os Katukina insistiam em dar ao simbolismo dos animais levou-a a explorar o
sobre o que são homens, animais e espíritos se entrecruzam. Uma pessoa é resultado de
processos sócio-fisiológicos que modelam seu corpo e este processo como um todo é
compreendido pelos nativos como manutenção do equilíbrio com a alteridade. Daí a autora
comum aos Pano, está presente na cosmovisão Katukina. Na escatologia, Lima atesta uma
fórmula de “xamanismo sem xamã” por considerá-la essencialista. Além do mais, a presença
ativa e abundante dos rezadores de algum modo estabelece o trato especializado com a
pluralismo médico. Deste modo, a tese vai explorar essencialmente as concepções de cura e
Gregório, existem várias colocações formadas por uma até cinco casas, sendo que, cada
colocação é ocupada por uma família extensa. Contudo, existe uma aldeia central, Nova
Esperança, onde reside o atual líder, abrangendo um posto de saúde, uma escola e posto de
deslocamento depende do meio utilizado e da época, porém nunca u5162( )-0.18504(i)-2.6 tooa,ednaG(â-2
A popui
24
Roe fez seu trabalho de campo entre os Shipibo, grupo de língua pano consistindo
rio Ucayali e relacionados estreitamente mais ao sul aos Conibo. São índios de hábitos
através da coleta dos mitos Shipibo (grupo Pano do Ucayali) correlacioná-los ao estilo de arte
Seu objeto de estudo é a arte verbal Shipibo e sua tese parte do pressuposto de que
por baixo de uma pletora de mitos registrados da floresta tropical sul-americana há uma
cosmologia basal constituída pela fauna e por outros “símbolos naturais”. Estes significados
humanos. A definição do que os animais significam é essencial, pois é daí que os nativos
populações humanas, das mais variadas culturas, mas estes símbolos, por serem construtos
sistemas locais (:6). Roe presta reverência à Lévi-Strauss e à sua análise estruturalista dos
mitos, porém seu propósito é ir além. Não basta entender como partes de um sistema mítico se
opõem ou se correlacionam e iluminam vários temas, pois é preciso relacionar estes temas a
sexual do trabalho que sustenta a organização social das sociedades tribais da floresta (:4).
tecnológicos e as mulheres artistas, mas ambos são interdependentes, pois o homem entalha a
madeira e a mulher a recobre com desenhos. Segundo Roe, a mais forte reflexão social levada
a cabo nos mitos gira em torno do papel desempenhado pelas mulheres e isto é uma
característica Shipibo.
No xamanismo Shipibo, existe uma clara distinção entre o “bom xamã”, que é
aquele que contacta os espíritos trazendo-os a seu favor para o processo de cura dos doentes,
usando a “Nishi” (“Banisteriopsis caapi.” cozida) e o “mal xamã”, aquele que usa os poderes
para enfeitiçar, ingerindo o “Toe” (a “Nishi” crua). Ainda o autor constata a raridade de
mulheres xamãs e quando há relatos da existência, quase sempre estão associadas às bruxas
ou feiticeiras. (:218)
O dualismo comum aos Pano pelo viés Shipibo, faz com que o autor teça
comparações ao taoísmo chinês. Sendo assim, o modelo nativo preconiza que a origem da
26
trabalho.
para que o poder do chefe não seja o único. Também o xamanismo, como um mecanismo de
(inclusive não humanas), pode se constituir num empecilho para as relações de posições fixas,
hierárquicas.
xamanismo, sobretudo, implica a noção de perspectiva, isto é, a posição que o corpo ocupa
numa relação (e não sua substância ou essência) irá determinar sua humanidade (ou
animalidade e sobre-humanidade).
desigual, por certo, no mundo, o xamã será o principal negociador destas relações
perspectivas, ele será um atravessador de fronteiras, alguém que não se detém diante de uma
bipartição prévia e fixa do mundo. Além disso, o xamanismo trabalha os corpos, faz alianças
com as potências não-humanas através da manipulação dos corpos, dos odores, da fumaça,
dos líquidos, das secreções etc. Os corpos, na prática xamânica, não são tomados como coisas
terminadas.
forma/conteúdo), enfim, uma recusa de conceber os termos fora da relação, contribui para a
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recusa de uma totalização e centralização do poder num sujeito separado, base da constituição
CAPÍTULO I
Introdução
macro-conjunto Pano por vários especialistas. Townsley (1988) e Roe (1982) chegam a
é tema central da obra de Deshayes & Keifenheim (1994) entre os Kashinawa do Peru.
Assim, seguiremos por ora os passos destes autores, trazendo também o relato de
Carid Naveira (1999) entre os Yawanawa do Acre, que evidencia os aspectos da política
Kashinawa peruanos, grupo de família lingüística pano que totaliza entre 2000 e 3000 falantes
nas fronteiras entre Brasil e Peru. Do lado peruano existem duas grandes aldeias no alto Purus
e Balta no rio Curanja (afluente do Purus). Existe ainda, uma grande circulação entre as
“Outro”, partindo do princípio de que o outro não é outro por natureza, mas por relação a si.
alteridade (:29).
alteridade, que estrutura de maneira isomorfa tanto a aliança interna quanto as relações
externas aos outros seres humanos. No léxico nativo o termo “Kuin” define a ordem do Si e o
Por sua vez, o termo “Bemakia” define a ordem do “Outro” e o que não for
existe uma zona intermediária e toda uma gama de possíveis relações. Como exemplo, numa
aliança matrimonial dada, chama-se Kuin aquele que, distinto pelo vínculo genealógico mais
próximo dentro da seção dos desposáveis, o casado com uma prima cruzada. Os casamentos
casamento sem nenhum vínculo genealógico, ou seja, com alguém de fora da aldeia, um
(KEIFENHEIM,1992:82). Entre estes termos existe uma ampla zona intermediária de aliança
matrimonial que concerne aos casamentos entre esposos com qualquer vínculo genealógico,
excetuando-se aqueles definidos por “Kuin”. Segundo a autora, este tipo corresponde a 90%
dos casamentos.
Há de fato dois pólos claramente definidos e uma ampla zona intermediária “Huni
Kuin” gerada entre estes. O nível mais concêntrico (“Kuin”) só é praticado pela aliança entre
4
Esta obra tem suas origens na tese de doutorado em etnologia defendida na Universidade de Paris 7 em 1982.
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chefes de metades, em especial quando da criação de uma nova aldeia. O nível mais
casamento.
Ainda, a relação dual Si/Outro se apóia nas divisões da sociedade “Huni Kuin”
(autodenominação), sendo que nenhuma metade pode ser auto-suficiente e nenhuma metade
tem superioridade sobre a outra. A primeira divisão distingue duas metades totêmicas, “Inu” e
Portanto, podemos inferir que este tipo de organização das relações sociais faz
distintos chamados por um mesmo nome, enquanto outros com nomes diferentes se
Uma das explicações para estas incertezas é que muitos grupos possuem uma
abarcando os diferentes grupos Pano em um grupo maior e que em sua maioria usam a mesma
autodenominação: Huni Kuin, Honi Kon, Uni Koi etc (Keifenheim: 1990:80). Huni, Honi,
Uni significando “homem” no sentido de “ser humano” e Kuin, Kon e Koi (traduzidos
nativa nem uma deficiência dos dados recolhidos pelos pesquisadores, mas ela mesma remete
interior do conjunto Pano, ao mesmo tempo em que o campo “imaginado” do “Outro” exterior
nomes dados pelos outros, não pode avançar senão através do estudo dos conceitos de
Conforme vimos no tópico anterior, é o sistema relacional “Huni Kuin” que está
em jogo aqui. Um dos termos chaves para o entendimento deste contexto é o conceito
“Nawa”. Este termo figura no nome de um grande número de grupos Pano: Capanawa,
um sufixo significando o sentido mais geral de “gente”. Na língua Pano também há o sufixo
“-bo”, exprimindo a idéia de “gente” como em Shipibo, Conibo, Marubo, mas à diferença de
(Yaminawa. Kashinawa etc.) não são autodenominações, mas sim nomes dados por outros
grupos (Pano ou não, brancos, missionários e caboclos) e ressentidos pelos nativos como
geral de pessoas que não se pode nomear ou de gente com as quais não se estabelecem
relações.
sociedade como Outro, estrangeiro, inimigo ou neutro. Em certos grupos existem seções ou
metades internas que levam a marca de “nawa”. A autora exemplifica que dos sete grupos
identitários Amahuaca, cinco utilizam o pluralizador “-bo” para se autodenominar e dois usam
“nawa”: Shawanawa e Kutinawa. Já uma das metades dos Yaminawa se chama “Dawa
Portanto, o conceito “nawa” atravessa todos os grupos Pano e seu estudo permite
um mesmo grupo e entre outros Pano, bem como a dinâmica das relações com a sociedade
Carid Naveira (1999) fez seu trabalho de campo entre os Yawanawa6 em 1999 na
Terra Indígena do Alto rio Gregório (Alto Juruá) no Acre na aldeia de Nova Esperança.
compactas” (Erikson, 1993 apud Carid Naveira, 1999:36) que transmite uma idéia de
procura indagar quais os limites dos grupos e se a noção de etnia corresponde a estes ou a de
tribo.
neste sentido, sua tese versa sobre dois organizadores básicos ao entendimento do fenômeno:
a guerra e o ritual. É através do exercício da guerra e do ritual que o conjunto adquire seu
de Deshayes & Keifenheim (1994), porém Carid Naveira afirma que o “sistema relacional
Huni Kuin” destes autores requer algumas matizações quando aplicados aos dados
Yawanawa. Pois, diferente dos Kashinawa, que possuem um campo identitário com uma
nítida definição do outro (branco, Yuxin etc...), os Yawanawa vêem uma plêiade de
6
Ver também na apresentação dos grupos de língua Pano: “Os Yawanawa” por GIL, Laura Perez (1999).
34
Nos rituais dos Yawanawa, o outro vem de fora e encena o de dentro, é o ápice do
“Mariri” (festa) intertribal do “Uma Aki” (festa da caissuma). Já nos rituais Kaxinawa, o
outro é encenado por uma das metades que faz o papel do exterior. Para Carid Naveira o
cativo, que se tornará um parente7. Buscam-se esposas e genros mas não sogros8, obtendo-se
uma “troca assimétrica” (ibidem.:98). Longe de um desarranjo, a guerra tenta criar a ordem
desejada, mas esta ordem não tem por horizonte a permuta e sim a absorção hierárquica.
No caso Yawanawa, a guerra é um dos pivôs que regulam a ação sobre o exterior,
com o tempo, cria-se vínculos com ele. Segundo Carid Naveira, a guerra não é uma condição
O ritual “uma aki” possui uma encenação guerreira, indo desde relações jocosas
entre casáveis à divisão em dois grupos de prováveis cunhados que se alternam em sua função
35
sociais, sendo a brincadeira (“Mariri”) uma ponte de entrada que facilita a incorporação do
outro (ibid.:154).
O próprio autor atesta, por fim, que os grupos Pano têm mantido, ao longo do
Conclusão do Capítulo
Pierre Clastres a quem os autores atribuem o pioneirismo de fazer uma “Antropologia Política
do Sujeito” por abordar a questão do poder nas sociedades sem Estado (ibidem.: 235-236). O
“sistema relacional Huni Kuin” descrito pelo casal de antropólogos e que engloba o sistema
que cada uma das unidades tem de se constituir através das alianças, “pois a função da
exogamia local não é assegurar a proibição do incesto mas sim obrigar a contrair casamento
fora da comunidade local operando como meio de aliança política” (Clastres, P.;2003:82).
positivo para a constituição dos grupos, ao contrário de considerá-la como um limite inferior
esquema de Deshayes & Keifenheim. A guerra dos Yawanawa também é preeminente, com
36
um caráter prospectivo e criador, porém, o autor ressalta o contexto da predação, com seus
Ainda, Carid Naveira ressalta o aspecto político dos rituais Yawanawa, pois neles
teríamos a continuação da guerra por outros meios9, isto é, o outro vem de fora a convite e
não como cativo, mas encena uma das metades de dentro, ora como grupo agressor ora como
agredido e que culmina na possibilidade de sua incorporação por esta máquina de fazer
parentes. Assim, pelo viés do ritual Yawanawa, temos dispositivos de incorporação e aliança
9
Traçamos aqui um paralelo do ritual nativo descrito por Carid Naveira e a definição de “política” conforme
FOUCAULT (1998) em “Genealogia e Poder” (:167-177): “Inverteríamos assim a posição de Clausewitz,
afirmando que a política é a guerra prolongada por outros meios. (...) A política é a sanção e a reprodução do
desequilíbrio das forças manifestadas na guerra” (:176).
37
CAPITULO II
CHEFE E XAMÃ
Introdução
Santos Granero (1986),10 chamara atenção para o fato de que o dualismo seria o grande
clara divisão entre os papéis do líder (xanen-ibu) e do xamã (huni mukaya). Para este grupo
Pano, xamãs e líderes devem pertencer a metades opostas e suas funções não se sobrepõem, o
que seria um dos fatores que impediria o acúmulo de poder nas mãos de um indivíduo ou de
um restrito grupo.
peruano relatam a distinção entre duas metades totêmicas, “Inu” e “Dua”. Sendo que, a
mecanismos contra-Estado.
38
(1992) percebe as relações entre chefe e xamã pelo viés da comunicação social que abarca três
O homem caçador ao retornar à sua aldeia presta conta de sua caça narrando a
caçada na floresta primeiro à sua família (“Nabu Kuin”). Assim, o fruto de uma expedição de
como seu amante e potencial esposo11. Como o casamento, via de regra, é uxorilocal entre os
Kashinawa, os pais perdem um caçador e a família da esposa ganha um, sendo que o esposo
(pacificador). Poderíamos traçar aqui uma analogia entre estes quesitos do caçador Kashinawa
e os que Pierre Clastres sintetiza como atributos do chefe indígena: generosidade, poliginia e
próprio, um chefe, ou senão isto, pelo menos um opositor de outro chefe. Em caso de grave
conflito, poderá ocorrer um cisma na aldeia, gerando então uma nova aldeia e um novo chefe,
seu “Nabu Kuin”, mais os dissidentes da anterior. Este novo chefe se faz reconhecer entre
outros grupos, descrevendo a sua aldeia como um lugar de caça abundante e tranqüilidade
Segundo Deshayes (1992) esta prática é comum entre os chefes Kashinawa, e tem
diversos especialistas. Esta dinâmica também permite ao conjunto de aldeias, assim formadas,
nativa, “Yupa” é aquele que tem azar na caça, pois contraiu uma substância de mesmo nome e
que não o deixa mais perceber a presença dos animais. Há remédio para isto: fazer jejum com
abstinência sexual e entrar em contato com a cobra anaconda (no mito, o mestre da
ayahuasca).
11
Também entre os Sharanawa ver as correlações de carne de caça e sexo, em SISKIND, J. (1975).
40
Porém, um homem pode deixar de caçar por uma razão diferente de ser “Yupa”,
ou seja, quando ele passa a ver os animais como pessoas e daí adquire a habilidade de falar
com eles. De acordo com Deshayes (1992), um Kashinawa (não-xamã) só pode se comunicar
com um idêntico (ibid.:102). Diferente do caçador que imita os gritos dos animais para atraí-
los, o homem cuja fala é inteligível a eles, passa a ser um “mukaya” ou o “ser com o amargo”
(“muka”).
Esse estado incurável, deve contudo ser tratado para que o amargo transforme o
homem em um “Huni Mukaya” (o xamã). O xamã Kashinawa seria um “incurável” que não
pode se livrar da “muka”, mas que deve aprender a conviver com ela (ibid.: 103).
curandeiro, mas é aquele que tem o privilégio de lidar com as doenças dos espíritos, enquanto
o “Huni Dauia” (homem dos remédios), pelo conhecimento das plantas e venenos da floresta,
sociedade, o xamã, não mais caçador, encontra-se na porção inferior, de fora da troca e do
dom. Quanto ao chefe, também está fora da troca, mas desta feita pelo excesso do dom. Em
descontinuidade com o interior, ambos estabelecem porém relações contínuas com o exterior:
o chefe com homens não Kashinawa e o xamã com seres não humanos (ibid.:105).
Seguindo esta lógica, teríamos como características do chefe uma excessiva fala
para com o interior do grupo e uma hiper-escuta dos animais da floresta (de fora).
Inversamente, o xamã seria aquele que fala para os animais (para fora) e possui uma hiper-
escuta com os de seu grupo (de dentro). Deshayes conclui que estes dois personagens não
12
Veremos mais adiante, nos caps. III e IV como as noções nativas sobre os “Yuxin” (espíritos) colocam
ressalvas a esta divisão de especialistas para doenças do espírito e do corpo.
41
partilham a comunicação da mesma maneira, o chefe lida com a aliança no seio de seu grupo
Para o autor, estes são mecanismos contra-Estado que afastam tanto o Menki
quanto o Huni Mukaya da possibilidade de agregar para si uma relação de poder baseada na
autoridade. Segundo o seu artigo, os Kashinawa teriam ainda o hábito de suspeitar tanto de
Conclusão do Capítulo
O chefe Kaxinawa descrito por Deshayes (1992), está de acordo com o tipo ideal
de Clastres (2003): pacificador, generoso, bom orador e geralmente poligínico. Sendo que, as
últimas três características definem o conjunto das prestações e contraprestações pelo qual se
chefia sem poder”, o autor, manipulando os dados Kaxinawa, procura ratificar a idéia de que é
pela troca desigual ou recusa da reciprocidade que a sociedade indígena rejeita a autoridade
deriva diretamente do modelo de chefia indígena. Ambos, chefe e xamã estão impedidos de
desigual a que estão sujeitos. São eles que estão em constante dívida para com o grupo e não o
contrário13.
13
Em obra organizada por ABENSOUR, M. (1987) o artigo de Luc de Heusch (: 41-57) explicita este ponto, o
do “sentido da dívida”, argumentando que o projeto inicial de Clastres teria marcado uma oposição fundamental
entre as sociedades que recusam o poder e aquelas onde o Estado se afirma. As primeiras imporiam uma dívida
42
funções para cada metade, o modelo que opõe chefe a xamã cria mais um mecanismo contra-
Mas temos que mencionar Carid Naveira (1999), que coloca certas ressalvas à
concepção clastreana da chefia como instituição vazia de poder, pois apresenta relatos de
campo com exercício de mando-coerção e violência por lideranças Yawanawa (ibidem: 70).
Por outro lado, pelo mesmo relato também se percebe que a noção nativa de liderança
expressa pelos termos Shanaihu e Niaihu implica posse de uma qualidade ou “(...) domínio de
grifo meu)
Seguindo esta noção nativa, pelo relato de Carid Naveira14, um líder local que se
torne um “mandão local”, em pouco tempo vê-se às voltas com fissões e novas locações são
Conforme vimos neste capítulo, Deshayes (1992) atesta no seu artigo, que um
bom caçador (“Menki”), pelo excesso de Dom é ele mesmo um chefe ou então está a ponto de
se tornar um, opondo-se a outro e dando margem a divisões na aldeia. Micro-política esta, que
evidencia uma das causas centrífugas do constante movimento de fusão/fissão dos grupos
Pano.
“política Pano” ressaltada também por Erikson (1992,1993), que entre estes grupos a
permanente ao líder, que impediria o prestígio de se constituir em poder coercitivo. Já nas sociedades de Estado
conclui-se que seria o povo a estar em contínua dívida para com o soberano.
14
Transcrevo a passagem: “A questão da territorialidade não está isenta de importância e vincula-se obviamente
às relações políticas, o surgimento de novas colocações deve-se, em muitas ocasiões, a desavenças deste tipo e
na medida em que estas colocações crescem, ou não, o poder da liderança pode se ver erodido pelos cabeças de
família que estão a constituir lugares com nome próprio, roças, trilhas e normativas diferençadas.”(CARID
NAVEIRA,1999: 67-68)
43
Que chefes indígenas “mandões” possam ser encontrados isto é fato, mas o que é
mais interessante nas assertivas de Clastres, e os dados da etnografia Pano parecem confirmar,
Que isto possa em dado momento vir a acontecer é também possível, mas até
15
A “captura pelo Estado” faz referência à passagem de VIVEIROS DE CASTRO (2002a:472) já explicitada
por nós na introdução. Também com bases nas assertivas de Clastres sobre os mecanismos contra-Estado, ver o
capítulo “7000 A.C.-Aparelho de Captura” de DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1997) que renomeia estes
mecanismos como dispositivos de conjuração-antecipação: “Assim as sociedades primitivas se definem por
mecanismos de conjuração-antecipação; as sociedades com Estado se definem por aparelhos de captura; (...)”
(1997:126).
44
CAPÍTULO III
Introdução
Ao ler sobre o xamanismo nas etnografias dos grupos Pano, chama nossa atenção
o fato de que um iniciado à prática xamânica deve passar por inúmeras provas: dietas,
relatos recentes, tais provações, em muitos casos, explicam o alto índice de desistência e o
xamanismo, tal como aponta Atkinson (1992) em seu artigo. Um ponto em comum nestes
trabalhos era a atenção dada aos poderes xamânicos de acesso à “alma”, “espírito” ou
“mente”. Termos que variavam de acordo com a vertente teórica dos pesquisadores, desde os
mais “espíritas” aos mais “psicologizantes”, e que podemos reduzir a um só termo da velha
dicotomia corpo/alma.
O fato é que os dados etnográficos Pano sinalizam uma grande importância que os
nativos dão ao corpo, seus constituintes e suas propriedades. Assim, cabe aqui perguntarmos o
problemática esboçada nas “Mythologiques” (1971), tratou de princípios que operam, não
45
apenas nos mitos, mas também no nível da estrutura social ameríndia. Com isto, inspirou uma
pensamento indígena sul-americano. Alguns dos conceitos delineados nestes trabalhos foram
expressos por Seeger et ali no artigo “A Construção da Pessoa nas Sociedades Indígenas
que a dialética nativa básica entre corpo e nome define a pessoa indígena em uma pluralidade
velha oposição Natureza/Cultura. É o que Viveiros de Castro procura fazer a partir dos dados
centrais dos nativos enfatizada pelo autor é a de que o corpo humano precisa ser submetido a
xamã, e talvez a questão deva agora ser reformulada para “como se fabrica um corpo que se
xamaniza?”.
No mesmo artigo, Viveiros de Castro (1979) nos informa que a noção Yawalapiti
nos mitos, na doença e no xamanismo xinguanos. No limite, o xamã seria aquele que muda a
forma corporal, ou seja, o mestre da metamorfose. Guardemos esta observação, para agora
“política do corpo”.
como noções básicas um universo habitado por diferentes espécies de sujeitos ou pessoas,
humanos e não-humanos, que o apreendem segundo pontos de vista distintos. Esta concepção
ameríndia, segundo o autor, supõe uma unidade do espírito e uma diversidade dos corpos,
inadequação da distinção clássica entre Natureza e Cultura para descrever dimensões internas
afastado deste fundo comum. Por conseguinte, animais e outros seres não humanos possuem
humanos e aos humanos como animais ou espíritos, o que muda então é o ponto de vista de
cada um. Já para os humanos, o corpo visível do animal é concebido como “roupa” ou
xamã. Dadas as noções perspectivistas, um xamã seria então aquele que possui diversos
47
pontos de vista, podendo assumir uma perspectiva diferente da sua e retornar à original, o que
então o xamã como um “metamorfo” e a metáfora plausível de sua atuação seria a de um vaso
subjetividades outras, com isso, tecendo um diálogo trans-específico, ou seja, realizando uma
Nesta “Pólis” que abrangeria espaços humanos e não humanos e que, obviamente,
Para fechar o nosso argumento, basta lembrar, que ao definir o xamanismo à luz
diplomatas que tomam a seu cargo as relações interespécies, operando uma arena
noções de pessoa, o esforço ritual, o conceito nativo dos “Yuxin” (espíritos), enfim, os
grupos meridionais (Pano do rio Purus e do Acre), sem descartar, quando convier à análise, os
Após a introdução deste capítulo, é plausível afirmar que nas sociedades indígenas
sul-americanas tudo o que é visível, seja em sonho ou sob efeito de alucinógenos, é matéria,
48
tem corpo, porém com gradações qualitativas diferentes, daí o intenso esforço nativo para se
Leite Lopes (2001) esclarece bem este aspecto ao aplicar o modelo perspectivista
Tal como Crocker (1985) já verificara em “Vital Souls”, poderíamos concluir que
a categoria nativa de corpo deva ser melhor pensada em um termo híbrido tal como “almas-
corpos”.
descontinuidade implicaria que a alma, sob outros hábitos, se transformasse em outro tipo de
corpo. Ou seja, haveria uma ameaça constante no cosmos de subjetividades outras que podem
xamanismo. Num universo fluido, tudo visa a impedir a captura de uma pessoa por
subjetividades outras, sem o quê, o corpo então seria visto em outra forma e não mais como
McCallum (1989), não por menos. A antropóloga trabalhou junto aos Cashinahua, grupo Pano
fronteiriço da área entre o Brasil e o Peru. A maior parte de sua pesquisa de campo realizou-se
do Acre.
49
poderia ainda ser vista como uma transformação dos sistemas do Brasil Central, ou dos
Mas a autora, comparando o dualismo Cashinahua com aquele dos grupos Jê e dos
grupos endogâmicos das Guianas, constata que, para os primeiros, a real dicotomia estaria
entre os aspectos perecíveis e imperecíveis (os nomes neste último) do corpo e não na
dialética entre “personhood” e corpo (ibid.: 40). Sua intenção é concentrar a análise mais na
relação vivida entre o nome e o corpo do que na descrição da estrutura formal de transmissão
metades tipo Australiano, segundo a autora, define-se por transmissão de nomes em geração
alternada. Assim, uma mulher teria o nome de sua MM e um homem, de seu FF, sendo que o
Mas a aldeia nativa ideal, estimada entre 50 a 100 habitantes e conforme uma
unidade endogâmica, não ocorre muitas vezes na prática, pois os nomes podem ser
paralela e a criança Cashinahua receberia seu nome após algumas semanas do nascimento. O
uso deste nome verdadeiro (“Kena Kuin”) definiria as “pessoas verdadeiras” (“Juni Kuin”),
16
Entendemos o uso do termo “socialidade” conforme VIVEIROS DE CASTRO (2002a:295-316) em “O
conceito de sociedade em Antropologia”. O autor chama atenção para a tendência da antropologia
contemporânea em “(...) recusar concepções essencialistas ou teleológicas da sociedade como agência
transcendente aos indivíduos (...)” (:313). E, segundo ele, ao invés do conceito de sociedade, “(...) preferem-se
noções como socialidade, que exprimiriam melhor o processo intersubjetivamente constituído da vida social”
(:313).
17
Referindo-se ao pensamento perspectivista ameríndio, VIVEIROS DE CASTRO (2002) traduz “personhood”
como “personitude” ao citar Marilyn Strathern: “(Esta) convenção requer que os objetos de interpretação –
humanos ou não- sejam entendidos como outras pessoas; (...), o próprio ato de interpretação pressupõe a
personitude (personhood) do que está sendo interpretado.” (STRATHERN,M. apud VIVEIROS DE
CASTRO,2002a:360). Entendemos o uso de “personhood” por McCallum, que também se refere em sua tese à
50
mesmo nome, e isto é bastante forte entre as meninas. À medida que a criança cresce, somente
A autora conclui que os verdadeiros nomes e sua transmissão não estão ligados à
individualidade, mas a relações específicas, ou seja, a uma teoria da socialidade que, para os
parentes teriam que ser constantemente fabricados por determinadas relações entre os
Cashinahua. A idéia de “Nabu Kuin” (parente real) diz respeito a um mundo de afeição e
cuidados, distinguindo Ego dentre as mais distantes relações classificatórias, o que implica
que uma criança deva saber como chamar um parente para ser socializada.
pesquisadora não presenciou o ritual durante sua estadia no campo, e a explicação que lhe foi
dada é que, à época, não havia líder de canto, essencial à sua execução.
planta “nixpo”, tingindo com isto os dentes das crianças de negro e assim protegendo-os do
decaimento (ibid.: 133). Durante este período, o “líder de canto” entoa cânticos cujos motivos
Strathern, como a noção de pessoa ou o ato de personificar (ou tornar-se pessoa) algo ou alguém, agência
intencional.
51
por carne humana, tornando mais segura a viagem das crianças (McCallum, 1989: 136). O
ritual coincide com a época da colheita do milho, alimento que as crianças (meninos e
meninas) poderão ingerir após o uso do “nixpo”. Os nativos explicam que o milho dá
Para McCallum, fica claro que neste rito de passagem a criança é preparada para
engajamentos corporais com espíritos e para, a partir daí, tomar lições para o seu
desenvolvimento em adultos. Não só isso, o “nixpo pima” seria também o primeiro passo para
a criação da diferença de gênero. Depois do ritual, a diferenciação sexual se vincula cada vez
entre os Cashinahua a concepção da pessoa assume uma integridade do “Self”,19 não divisível
como em alguns casos da Oceania (ibid.: 201). Pessoas Cashinahua não se relacionariam às
suas possessões em termos da dicotomia sujeito/objeto. Suas coisas são consideradas aspectos
18
A imagem do Inca está relacionada ao canibalismo. Os Cashinahua têm histórico recente de endocanibalismo.
Para as concepções do Inca na mitologia Pano, ver CALAVIA SÁEZ (1995).
19
Entendemos o uso do “Self” (noção de Eu/ consciência de Si) pela autora, conforme a vertente
fenomenológica de Carl Rogers, expoente máximo da “teoria do Self” na América. Diz o autor sobre o
desenvolvimento do Self: “(...) uma porção do campo perceptual total do indivíduo torna-se diferenciada e
simbolizado através de uma representação consciente de ser e de seu funcionamento. Esta conscientização pode
ser descrita como experiência do self. Esta representação consciente do ser e (...) da interação com o ambiente,
(...), dá origem ao conceito de self, um objeto perceptual no campo experiencial.” (ROGERS, C. In MILLON,
T.[dir], 1979:144).
52
de si mesmas, o que explicaria, por exemplo, o fato de destruírem os objetos que pertenciam
Ainda segundo Cecília McCallum, os Cashinahua afirmam que este ritual é feito
para propiciar uma boa roça, consistindo de canções que nomeiam as plantas ou, melhor
dizendo, os seus “espíritos” “Yuxin”. Existem pequenos e grandes “Kachanaua” que podem
levar de duas semanas a um mês. Além de ser um ritual propiciatório da vida vegetal e
1989:286), gerando um estado de bom ânimo em tempos de crise. Há graça e jocosidade que
como por exemplo no ritual Kachanaua das mulheres20, cujo ápice consiste na inversão dos
papéis feminino/masculino.
ordem, mas, ao contrário, como a expressão de um cotidiano que lida e relaciona-se com os
“Yuxin”. O ritual restabeleceria o mundano e não uma interrupção deste. Sendo assim, o
mundo de fora, da floresta, de plantas selvagens, entra como força renovadora e através dos
cantos de nomeação transfere poder às plantas domésticas. McCallum lembra ainda que
nenhum nativo explicou o ritual em termos que recorressem à mitologia (ibid.: 314).
esta só é possível quando o de fora é trazido para dentro e ambos são propriamente
20
Este é chamado de ritual “Conta” (McCallum,1989: 300).
53
combinados (McCallum, 1989: 322-323). Todo o processo resulta na criação de vida, mas de
relações, cujo ponto central do processo social para McCallum são as relações
exploração. Neste aspecto a autora justifica que, centrando o foco na questão do gênero, pode-
“Yuxin”. Descritos como “espíritos” ou forças renovadoras do exterior que se relacionam com
nativa existem três componentes, um dos quais seria o corpo físico “Yora” e os outros dois
seriam não físicos. Estes últimos seriam melhor entendidos como aspectos da consciência e da
uma “sombra” que produz as idéias e diz o que fazer, ao passo que o “wëroyoshi” seria mais
bem entendido como uma essência vital que anima e dá vida e, portanto, causa a morte ao
21
Vimos na introdução da dissertação que SANTOS GRANERO (1986) usa preceitos semelhantes à McCallum,
na análise do ritual, entendendo como processo econômico de produção/reprodução ou técnicas de “life-giving”,
54
relações entre “yora”, “diawaka” e “wëroyoshi” são asseveradas. O “wëroyoshi”, diz o autor,
tem um tênue vínculo com o corpo durante a vida, estando sujeito a vagar e ficar à mercê de
noções “diawaka” e “wëroyoshi” não se reduzem a “funções mentais” e que elas não estão
localizadas no cérebro (ibid.: 108). O “diawaka”, fortemente vinculado ao corpo, tem nas
sombras das pessoas a confirmação de sua existência que, após a morte, permanece ligada aos
vivos de maneira invejosa e negativa sendo que a intenção do rito funerário é aplacá-lo. O
“wëroyoshi” ao deixar o corpo e viajar para a terra dos mortos (“Bai Iri”) encontra um lugar
sedutor. Assim, dentro da concepção nativa do “Yoshi”, a perda da alma na doença pode ser
recuperada ao se tentar atrair o “wëroyoshi” de volta à terra dos vivos. Este seria todo o
aos humanos acesso controlado ao mundo dos espíritos o que torna o poder da visão central
Por sua vez, toda a mitologia Yaminawa é marcada pelo mundo “Yoshi”. Dos
eventos recontados nos mitos, surge uma ordem no mundo que emergiu do caos primordial,
de coisas que ainda não tinham suas formas fixas, onde tudo era mutável. Porém, estes
e que, no caso Piaroa, os xamãs teriam o monopólio destes “meios místicos de reprodução”.
55
Não é difícil notar pela etnografia, e Townsley enfatiza isto, que, subjazendo a
organização dual e o campo da ação xamânica, existe um sistema conceitual cujo centro é o
“Yoshi”. Este conceito interpenetra o mundo aparente em cada ponto e está latente em todas
as situações. A noção central de “Yoshi” aparece na cosmologia de vários grupos Pano sob
Yaminawa. A autora da tese, descreve o que ela chama de uma teoria das “almas” (ibid.: 143),
definindo o “Yuxin” como um ser intangível para os estados ordinários da consciência, afeito
a uma força ou poder que afeta o estado dos corpos e objetos inanimados ou substâncias que
os habitam sendo que as pessoas morrem quando seus “Yuxin” deixam seus corpos (ibid.:
144). Já nos “estados alterados de consciência”, que se tem sob efeito de alucinógenos, ou nos
sonhos e nas doenças, o “Yuxin” não só é tangível como assume aspectos antropomórficos
(ibid.: 144).
termos como “espíritos” ou “almas”, fazendo ressalvas pertinentes sobre o cuidado que se
(1989), estaria entre a “alma verdadeira” (“Yuxin Kuin”, “Bedu Yuxin” ou “Nama Yuxin”,
Assim, quando por exemplo, alguém sonha, é o seu “Nama Yuxin” (alma sonho) que vagueia
enquanto o corpo dorme, ao passo que, quando alguém morre é o seu “Yuxin Kuin” que saiu
do corpo e foi para a terra dos mortos. A autora ratifica a dicotomia, pois a “alma verdadeira”
(“Yuxin Kuin”) é imortal e a “alma corpo” (“Yuda Yuxin”) é mortal, sendo que a “alma
56
sonho” (“Nama Yuxin”) não teria um destino pós-mortem por ser apenas um aspecto da
“alma verdadeira” (McCallum, 1989: 144-145). A dicotomia pode ser uma tentativa da autora
em reduzir o conceito a uma, porém o que fica claro para nós é, no mínimo, o caráter
relação entre as duas principais almas do corpo de uma pessoa. Neste ínterim, vemos a
“multinaturalismo” prometem maiores rendimentos à sua análise, já que está tratando com
“Yuxin” dos agentes sobrehumanos, devem ser controlados e fixados para produzir seres
conceitos-chave analisado em sua tese é o “Yuxin” (força vital, alma) e sua relação com os
“Yuxibu”, que é um tipo de “Yuxin”, mas que difere deste pela variação de seu poder e por
seu caráter altamente transformativo. “Yuxin”, segundo o relato de Lagrou (1998), seria
aquilo que dá forma à matéria e, por isto mesmo, é também uma agência intencional.
chave da ontologia Cashinahua. Esta noção implica que todos os seres vivos têm “Yuxin”
(entendido como agência intencional), sendo que a água, o ar e o fogo são conectores ou
desconectores (o fogo neste caso) de “Yuxin”(Lagrou, 1998: 49). Mais ainda, somando-se à
noção de “Yuxin” está a idéia de “Ibu” (guardião ou dono, criador, genitor). O termo “Ibu”
descreve uma qualidade demiúrgica de criação e de contínua responsabilidade por ela. Assim,
por exemplo, os três “Yuxibu” mais poderosos são “Ibu” dos três níveis interconectados deste
mundo: água (“Yube”/lua), floresta (“Ni ibu”) e céu (Inka) (ibid.: 70).
extensão, líder, sendo portanto essencial para entender a política nativa. Os diferentes líderes
da comunidade são designados como “Ibu”: o homem (“xanen ibu”) e mulher (“xanen ainbu
ibu”) chefes de uma aldeia, líder masculino e feminino de canto e mestra tecelã (“ainbu
keneya” ou mulher com desenho). Há ainda um sentido coletivizador na noção “Ibu”, pois
Lagrou relata que um falante usa o termo “Yuxibu” quando quer enfatizar que está lidando
com mestres de coletividades de seres pertencentes a uma mesma classe e não com os
evidente coerência estilística na ornamentação dos objetos e dos corpos entre os diferentes
grupos Pano.
Lagrou (1998) não deixa de notar a ênfase que os Cashinahua dão aos cuidados do
corporal é tão marcante que foi escolhida como elemento crítico da auto-imagem nativa,
58
distinguindo os Cashinahua dos demais grupos Pano como “Povo com desenho”. Nesta
medida, por exemplo, os Shipibo do Ucayali seriam igualmente “povo com desenho” e
portanto “Huni-Kuin” (pessoas verdadeiras), diferente dos vizinhos dos Cashinahua que
também são grupos Pano, os Kulina e os Kampa, mas que não têm desenhos considerados
Não é por acaso que um dos pontos centrais da tese de Lagrou sejam os desenhos.
Constituída com base na ontologia “Yuxin”, teríamos, segundo a autora, uma tríade
perceptiva dos Cashinahua: “Kene” (desenho), “Dami” (imagem) e “Yuxin” (espírito). Esta
trilogia nativa, diz ela, entende que todas as coisas e seres percebidos são “fenômenos”,
implicando que todas as percepções têm algum nível de existência. Com isto, os intrincados e
belos desenhos geométricos são considerados guias para a percepção e cognição Cashinahua.
“Kene” se torna então um tipo de código escrito, ao ser inscrito em corpos e objetos e
Definindo o conceito “Kene”, a autora explicita que ele não é o corpo nem o
“Yuxin” a que se refere, mas um código composto de signos que aludem a uma presença, à
livres. Por outro lado, o conceito “Dami” significa imagem, só que deformada ou em processo
uiin” (vejo transformações) ou para ver transformações em si mesmo como na expressão “en
damiai” (estou transformando) (Lagrou, 1998: 201). Portanto, “dami” também significa
modelar, produzir formas, assim como um pai que modela o feto na barriga da mãe. Esta
feminina, da mesma maneira como cozinhar, fiar, tecer e fazer cerâmica o são. Neste sentido,
entre os Yaminawa, com sessões dirigidas por procedimentos rituais e cantos, dando acesso
controlado ao mundo dos espíritos (ibid.:127). O controle das visões é central ao xamanismo
Yaminawa, mas, pelo crivo crítico dos Cashinahua, os desenhos deles são considerados
Mas é importante notar até aqui um aspecto, o da sinestesia nesta tríade perceptiva
Cashinahua: sons, cantos que evocam imagens “Dami” e que resultam em desenhos “Kene”
noções ocidentais de arte e cognição, noções estas que, desde Platão, privilegiaram a
Conclusão do Capítulo
epistemologia nativa é a categoria “Yoshi”. Nas etnografias, os autores tentam defini-la pela
sua capacidade fluida, transformativa, interativa, etérea, mas que se corporifica e que, sob
O leitor pode se surpreender ao ver que um capítulo com o termo “corpo” em seu
título, discorra longamente sobre uma categoria que à primeira vista possa parecer exatamente
60
rapé do tabaco, o veneno do sapo são, como nos indica Lagrou (1998), meios de ação
ingerir determinadas criaturas ou plantas, é como se algo delas, o seu “Yoshi”, passasse agora
Assim, o poder do xamã está intimamente ligado à sua capacidade de lidar com
este mundo fluido, poder este adquirido através de um aprendizado que visa uma
transitando entre os diferentes domínios do cosmo e fazendo sua política. A lógica animista,
ou “perspectivista em seu aspecto forte” (Pedersen, 2001) dos “Yuxin” Pano, promove as
22
Discutimos este ponto, no item “Instrumental teórico-metodológico: Perspectivismo e Tipologia”, na
introdução da dissertação.
61
CAPÍTULO IV
Introdução
Vimos, pelo que foi descrito no capítulo anterior, o uso genérico do termo
“xamã”, mas percebemos pelos relatos que, durante a iniciação e o aprendizado, existem
diferentes estatutos e técnicas envolvidos. Isto faz com que, ao iniciarmos o presente capítulo,
62
Para os grupos Pano, como vimos no capítulo anterior, tal princípio se enquadra
no conceito nativo de “Yoshi”. Ligado a este sistema de energia global, há, portanto, uma
exemplifica este poder xamânico com dois tipos básicos de xamã entre os Tukano do noroeste
perceber, mais uma vez, como o xamanismo de tipo horizontal vincula-se a condições
“contra-Estado”.
Melatti (1985), entre os Marubo, grupo Pano situado a norte dos grupos
Também aí segue-se a lógica dos “Yoshi” e relacionados a eles estão os espíritos “Yobé”,
alguns com qualidade de cura por sua capacidade neutralizadora dos “Yoshi” nefastos.
Melatti descreve em sua tese que, na cura xamânica, o “Yobé” conta ao curador
xamã o tipo de doença e assim, ao executar o canto de cura, o “Yoshi” da doença toma forma
e pode ser exortado a sair do corpo enfermo. Segundo ela, um curador aprende dos “Yobé”,
ao usar ayahuasca ou nos sonhos, e ensina esta técnica de “dar forma” aos aprendizes.
Durante todo o aprendizado, há uso de ayahuasca e, sob seus efeitos, são vistos “dardos
mágicos” que são introduzidos no corpo do iniciante e é isto que vai lhe conferir os poderes
Líderes de maloca geralmente são curadores, mas só alguns são exímios nesta arte,
memorizar e recriar novos cânticos. Vários curadores de diferentes malocas podem se unir
para uma sessão de cura com ayahuasca, acionando um mecanismo de solidariedade entre
Mas a autora enfatiza que há um diferencial entre curador (vários o são) e xamã.
Para alguém se tornar um xamã, precisa receber um chamado sobrenatural que se manifesta
através da doença e que pode ocorrer em qualquer idade. A partir desta revelação, o iniciado
deve passar ainda por um rigoroso treinamento, aprendendo cânticos, evitando alimentos
64
(pó de tabaco) e a ayahuasca. Tal como notificado por Erikson (1990), vemos aqui também o
princípio dual entre os sabores doce e amargo concomitante à lógica dos “Yoshi”.
“Yobé” de sua seção e esta habilidade segundo os nativos só ocorre se os “Yobé” assim o
intimidade com os seus “Yobé” e seu status dependerá apenas de sua vontade individual e
capacidade intelectual.
Outro chamado vocacional pode ser pela picada de insetos e, quando isso
acontece, significa que aquela pessoa vai ser curador ou xamã e, se já for curador, em breve se
transformará em xamã (ibid: 263). Contudo, Melatti não relata picadas intencionais com este
fim.
fisiologia do corpo humano e isto se percebe pelo conteúdo das narrativas dos cânticos.
preferencialmente o eixo vertical, indo da cabeça aos pés. Os cânticos retomam este caminho
Novamente temos sons que são imagens, atuando na manipulação corporal, o que
faz Melatti comparar os cantos de cura Marubo aos cânticos dos Cuna descritos por Levi-
Strauss, aderindo à interpretação psicológica do ritual xamânico tal como uma “eficácia
imbricam mas, segundo o autor, é necessário reintegrá-los aos reinos da ação e da experiência
com o qual estão vinculados (ibid.:126). Por sua etnografia, reforça-se mais uma vez que,
centro é o “Yoshi”. Este conceito interpenetra o mundo aparente em cada ponto e está latente
quadros da organização dual Yaminawa. Os xamãs “Roa” e “Dawa” são distinguidos como
Podemos ver aqui semelhanças com o sistema Marubo dos “Yobé” por seções,
mas, entre os Yaminawa, há dois xamãs durante a iniciação, cada um apresentando os Yoshi
fim, pois há dieta estrita, absoluta abstinência sexual e dolorosos ordálios supervisionados por
um xamã experiente. Segundo o autor, o aprendizado Yaminawa visa apresentar aos neófitos
os espíritos de animais e plantas que darão a eles os poderes que procuram. O “Shori”
Seguem-se picadas de formigas (“ani”) e depois de vespas (“dai wida”), consideradas ambas
mestre dos mestres, o “iwo” de todos. Além disso, o iniciado deve ingerir a língua e os
excrementos da cobra. Explica-se então a dureza dos ordálios, pois a questão nativa do
aprendizado não pode ser vista meramente como uma aquisição de conhecimento no sentido
Ocidental, mas sim, pensada como uma transformação substantiva, num processo que imbrica
o físico e o mental. Tornar-se xamã é tornar-se um tipo radicalmente diferente de ser humano
(ibid.: 133).
66
escolhem o neófito tanto quanto este os escolhe. Nem iniciado nem o mestre xamã
(ibid.:137), que as metáforas produzidas nos cantos “Koshuiti” Yaminawa não são destinadas
direcionadas para os xamãs e para os “Yoshi”, inteligíveis somente por eles e toda a
Lima (2000), em sua recente tese, concorda neste ínterim com Townsley, pois,
entre os Katukina, a condição que marca o “duplo” da vida xamânica é conviver com duas
famílias. A familiarização com seres metafísicos (“Yoshi”) não é simplesmente uma questão
Dentro desta lógica, não é de surpreender que entre os Katukina existam relatos de
(ibid.: 138). Este casamento, que completa o aprendizado xamânico Katukina, pode gerar
“filhos-espíritos” e estes podem auxiliar o xamã na cura. Segundo Lima (2000), a abstinência
sexual durante o aprendizado é esclarecida pelos nativos como uma forma de evitar o ciúme
da “mulher-espírito”.
rezadores de xamãs. Os rezadores têm atributos mais modestos cabendo a eles tratar de
pequenos desarranjos corporais com cantos de cura. Só os xamãs sabem curar e vingar
doenças por feitiços e tornar efetivo os cantos para atrair a caça. A rigor, o xamã Katukina
grande”, sonhos que revelam os segredos de cura e incentivo da esposa para que seu marido
Os ritos de cura entre os Katukina, assim como em outros grupos Pano, são
concebidos como um embate entre os especialistas xamânicos e seres sobrenaturais. Tal como
os Marubo descritos por Melatti, também aqui prescreve-se restrições alimentares para a
4.2 Rezadores/Cantadores/Ervateiros/Feiticeiros
entre os grupos Pano. Gil (1999), em sua tese, ressalta a confusa profusão de nomes com que
os Yawanawa fazem referência aos praticantes do xamanismo. Como exemplo, podemos citar
(ibid.:32). Para entendermos estas denominações e suas variantes, devemos antes lembrar as
medicina são interpretadas e adaptadas às categorias nativas que, por sua vez, se modificam.
campo no qual concorrem várias opções de cura sem contradição no seu uso simultâneo.
24
Com tal assertiva, Townsley coloca uma crítica à interpretação psicologizante da “eficácia simbólica” de
Lévi-Strauss, comentada anteriormente e à qual MELATTI (1985) adere. A questão importante para Townsley é
evidenciar, pela descrição da ação ritual, qual é a lógica nativa que está implicada no ato da cura.
25
Vide Apresentação dos Grupos Pano, os “Yawanawa” por GIL, Laura Perez (1999).
68
Também, entre os Yawanawa, existem especialistas no campo xamânico que são de outros
grupos ou se formaram entre outros Pano (entre os Shawanawa, Cashinahua e Katukina), mas
bem prezado e não é dado com facilidade e nem para qualquer pessoa que não esteja
comprometida pela rede de parentesco, ou seja, quem não encontra parente próximo para lhe
Gil (1999) salienta que é neste contexto interétnico que devem ser entendidas
forma pontual ou restrita entre os seus interlocutores Yawanawa, com certeza, estas não estão
desligadas de uma tradição Pano mais ampla e, portanto, comum a vários outros grupos
aldeia de Gregório.
xamânicas parte mais de um interesse pessoal do que de um chamado dos espíritos “Yuxin”,
como no caso dos Cashinahua, e se verifica, na prática, pelo desejo de não depender dos
outros nos momentos de doença, tanto própria quanto de familiares próximos. Contudo, a
eficácia do rezador (“xinaya”), diz ela, vai depender de seu comprometimento com o processo
de iniciação. O papel dos sonhos e visões induzidas pela ayahuasca (“uni”) e pelo “raré”
(datura) é essencial para se entrar em contato com parentes mortos e os “Yuxin” detentores de
conhecimento.
Por outro lado, segundo o relato de Gil (1999: 42), é fundamental nesta fase a
o ver e o escutar, pois o iniciado, ao declarar que conhece uma reza, não o faz diretamente,
mas sim afirmando que as escutou exaustivamente. Ainda que a ajuda do mestre seja
esforço do aprendiz. Não há qualquer evidência entre os Yawanawa de que o mestre passe seu
próprio poder ao iniciando, como, por exemplo, os dardos mágicos colocados no corpo, fato
mais comum aos Katukina ou aos Marubo. Por último, a autora enfatiza que, após intensos
eficácia desejada.
último de origem Katukina), de acordo com Gil (1999), são os únicos que se enquadram pelos
Yawanawa sob o rótulo de “pajé”. Segundo a autora, as razões para isto são obscuras e, de
acordo com os Yawanawa, podem ser devidas ao maior grau de poder que estes “pajés”
possuem.
Gil em parte contesta este fato, pois, ao comparar estas denominações de pajé com
o estatuto do “xinaya” (rezador) ou do “Kushuintia” (soprador), verifica que estes últimos são
de cada um com o processo de iniciação. Por seu relato, o termo “xinaya”, traduzido
literalmente, significa “aquele que tem pensamento” (ibid.:34) e sua prática entre os
Esta reza recebe o nome genérico de “shuãnka”, mas o termo varia de acordo com
o objetivo a ser alcançado (ibid.:34). Xinaya também pode ter um sentido genérico, para
referir-se a especialistas que possuem uma formação completa e que são poderosos. Assim,
durante um ano e o “shuintia” apenas durante três ou seis meses (Gil,1999: 34), mas ambos
processo de ensinar ou para designar aquele que recebe os “Yuxin”. Gil (1999) refere ainda o
uso deste termo, tal como entre os Cashinahua, associado à aquisição de conhecimento através
enquanto que a técnica de quem usa o assopro (“kushuaka”) para a cura designa o especialista
como um “Kushuintia”. Por sua vez, o termo “Tsimuya” (aquele que tem o amargo) é
Gil (1999) ressalta que esta denominação, “tsimuya”, é de longe a mais ambígua
de todas e os nativos usaram este termo apenas em referência a dois xamãs, a João Grande e a
um outro que era notório por possuir três espíritos auxiliares (ibid:37). Mas os Yawanawa
indicaram desconhecer entre eles qualquer “pajé” que tirasse pedras do corpo como o fazem
“feiticeiros”.
Por fim, temos o termo niipuya (ervateiro) que designa os que sabem manipular os
“rau”, palavra-conceito que, segundo a autora, engloba as folhas do mato utilizadas num
Portanto, o interessante é que apesar da grande profusão dos nomes, uma mesma
pessoa pode ser designada de diversas formas dependendo mais da técnica ou ação que está
71
sendo colocada em prática. Também o uso de determinado termo serve para destacar alguma
xinaya (rezador) que adota o papel de mestre ou utiliza o “meka” (canto) para curar, pode
shuintia com o “shuanka” (reza), o Yuve com o “meka” (canto), o Kushuintia ao “Kushuaka”
(assopro), o niipuya aos “rau” (folhas do mato). Entretanto, é comum constatar que um
si quase todo o leque de denominações existentes. Este era o caso já citado do “Tsimuya”
João Grande, conhecedor tanto das rezas, do canto, do assopro, como do uso das plantas.
gradualmente acumular diferentes tipos de poderes, mas, por outro lado, diz a antropóloga,
eles distinguem muito mais radicalmente do que os Cashinahua, as doenças que são tratadas
por plantas medicinais daquelas que são curadas por cantos. Por sua vez, os Cashinahua
que tem o amargo e que pode enviar ou extrair a substância “muka” de outrem.
envenenamento.
(plantas medicinais) têm um complexo etiológico imbuído da idéia de vingança, não pela ação
dos homens, mas sim pela ação dos “Yuxin” (:58-62). A “Kupia” (vingança) é a retaliação
72
dos “Yuxin” pela desobediência a resguardos e a tabus alimentares. Com efeito, o nome de
várias enfermidades entre os nativos contém esta palavra, como por exemplo, podemos citar o
“mai pisi kupia” (a vingança do cará podre) ou o “Yuxin Kupia” (vingança do Yuxin)
(Gil,1999: 59).
(ervateiro) com os “rau”. Entre os Yawanawa, assim como em outros grupos Pano, os entes
Esta concepção da realidade nos permite entender a utilização que dos “rau” fazem os
Yawanawa, práticas e técnicas que estão inseridas numa cosmologia de tipo xamânico, tal
como vimos anteriormente. Neste sentido, podemos concluir que um niipuya, por exemplo, ao
manipular suas ervas, está lidando também com a alteridade “Yuxin”, inclusive com poder
xamânico entre os Pano, cabe perguntar agora o que querem dizer os nativos quando afirmam
Calavia Saez (1995), ao relatar sobre o xamanismo Yaminawa, afirma que este
pode estar em toda e em nenhuma parte, sendo possível que um pesquisador passe meses sem
vê-lo e depois se dê conta de que está associado a todos os aspectos da vida cotidiana
(ibid:105). Seus informantes afirmavam não existirem especialistas, e que o único “pajé”
conhecido estava velho e aposentado. Mas, aos poucos, o antropólogo percebe que as
negativas a um “verdadeiro e poderoso xamã” poderiam ser explicadas como sendo restrições
típicas de muitos sistemas ligados à feitiçaria. Também existe uma prudência dos Yaminawa
73
perante os interlocutores brancos que prezam por uma certa etiqueta no assunto. Alguns
brancos desacreditam nos xamãs e os ironizam, enquanto outros não só acreditam como
Assim, o passo seguinte de Calavia Saez (1995) foi considerar que existia “pajé”,
porém na sua expressão menor, o “Koshuiti”, traduzido como “segundo doutor” (ibid.:106).
Segundo o autor, “Ñiumuã” (“o doutor”) é a expressão nativa mais alta de xamã e a diferença
uma pretensão entre os Yaminawa de que as atividades do xamã sejam exercidas apenas “para
o bem”, mesmo que tal fato implique na sua relativa diminuição de prestígio.
Outro ponto salientado pelo autor é a tradução nativa das distintas figuras do
xamanismo em termos da hierarquia médica e não a sacerdotal, quadro que se explica pelo
(ibid:106).
Contudo, segundo o antropólogo, não demorou para que as mesmas pessoas que
de nome Sebastião, o mesmo que antes haviam relatado estar aposentado (ibid.:105-106).
Agora passava a ser referido como o mestre de todos os Yaminawa, capaz de fabricar o
“Shori” e detentor de todas as tradições. Essa valorização, atesta o autor, foi aumentando até o
final de sua pesquisa de campo. O próprio Sebastião, quando argüido, negava ter qualquer
conhecimento mas afirmava ser “doutor”, capaz de curar e tomar “shori” (ibid.:106).
74
Por sua vez, Lima (2000) questiona a existência de um “xamanismo sem xamãs”,
pois, para ela, trata-se antes de um essencialismo dos pesquisadores que elegeram um tipo
(“romeya”), porém ela, durante todo o seu trabalho de campo, só conheceu rezadores. Para
Lima, a presença ativa e abundante dos rezadores de algum modo estabelece o trato
especializado com a alteridade dos “Yuxin”, cabendo perfeitamente aos “shoitiya” Katukina o
título de mediador dos dois mundos, comumente outorgado aos “xamãs verdadeiros”. Ainda,
sua etnografia sugere haver aí também um “sistema de feitiçaria” tal como o descreve Calavia
Saez (1995:106), sendo que, entre os Katukina, somente um “romeya” sabe curar e vingar
considera que o que deve ser levado em conta como critério definidor de categoria de xamã
do tipo “mukaya” é a capacidade que este possui de se comunicar à sua vontade com a
alteridade “Yuxin” (ibid.: 17-18, grifo meu). Se de fato a percepção “Yuxin” permeia o
cotidiano de toda a vida nativa, pode-se dizer que de xamã todos têm um pouco, mas o que se
perde sem a figura do “mukaya” é a habilidade comunicativa com a alteridade submetida por
Conclusão do Capítulo
que se deve ter para evitar essencialismos ao eleger um determinado praticante de uma técnica
aprendizado xamânico entre os grupos Pano, está presente a concepção dos “Yuxin”.
Concepção esta, que, como vimos, é animista por excelência, ou “perspectivista em seu
aspecto forte”, no dizer de Pedersen (2001), e que permeia toda a realidade nativa. Adquirir
transformando-se substancialmente.
conforme a classificação de Hugh-Jones (1999). É certo que em alguns grupos, como por
conhecimento advém dos “Yuxin” e são estes que, em muitos casos entre os Pano, elegem o
horizontal.
Vimos ainda que, entre os Marubo descritos por Melatti (1985), o iniciante só será
Pedersen (2001) o faz na Sibéria, porém o pensamento Marubo também está permeado pela
(1999) nota que em muitos casos a ocorrência dos tipos horizontal e vertical é concomitante e
que um não anula o outro, como, por exemplo, entre os Bororo ( :33).
76
Calavia Saez (1995), pode-se perceber o funcionamento de mais um dos dispositivos “contra-
CONCLUSÃO
Vimos no primeiro capítulo que o termo “nawa” não é pensado somente como o
exterior da sociedade, como Outro, estrangeiro, inimigo ou neutro. Em certos grupos, existem
seções ou metades internas que levam a marca de nawa. O conceito “nawa” atravessa todos os
os modelos relacionais no seio de um mesmo grupo e entre outros Pano, bem como a
Os dados Cashinahua por Deshayes & Keifenheim (1994) exemplificam isso com
Já com os dados Yawanawa, Carid Naveira (1999) ressalta o aspecto político dos
rituais “Mariri”, pois neles teríamos a continuação da guerra por outros meios. Neste caso, o
“Outro”, estrangeiro ao grupo, viria de fora a convite e não como cativo, encenando uma das
(Erikson,1993) bem como o sistema relacional “Huni Kuin” Cashinahua (Deshayes &
fronteiras étnicas.
do xamanismo Cashinahua peruano. Neste concluímos que, tanto o tipo-ideal de xamã “infra-
Yupa”, quanto sua contra-parte o chefe “ultra-Menki” a que chega Deshayes (1992), derivam
xamã estão impedidos de relações do tipo comando-obediência com os demais do grupo, pelo
mecanismo da troca desigual a que estão sujeitos. São eles que estão em constante dívida para
Além do dualismo complementar que divide as funções para cada metade, opondo
Vimos também, com Carid Naveira (1999), que a noção de líder Yawanawa
determinados. O autor percebe, mediante este fato, que o exagero de um líder no exercício de
mando e coerção é motivo para fissões e, como conseqüência, novas locações são formadas
expresso entre outros pelo conceito “Nawa” e as condições do possível lugar de poder (o
chefe e o xamã), podemos ratificar que o que é próprio da “política Pano” e que faz deles uma
interferiram na não centralização territorial. E, a contar pelas etnografias aqui estudadas, esta
é uma tendência que vem prevalecendo, mesmo com o atual privilégio das tendências
conhecimento nativo e, por conseguinte, da fabricação do corpo e pessoa pela produção ritual.
alteridade “Yuxin”, o que faz do ritual arena cosmopolítica por excelência. Vimos que, o
etnografias, os autores tentam defini-la por sua capacidade fluida, transformativa, interativa,
etérea, mas que se corporifica e que, sob determinadas condições, pode ser vista em seu
aspecto antropomórfico.
que veiculam propriedades “Yuxin”. Ou, em outros termos, ser xamã é conhecer e adquirir
conhecimento pelo “perspectivismo” é “tomar o ponto de vista daquilo que deve ser
conhecido” (Viveiros de Castro,2002a: 358). O ponto de vista dos “Yuxin” deve ser levado
seu “aspecto forte” (perspectivista) com o xamanismo de tipo horizontal (áreas setentrionais
perspectivista dos “Yuxin” não contradiz, por exemplo, a lógica totêmica dos “Yobé” Marubo
tipo vertical. O ponto central da definição de Hugh-Jones (1999) para o xamã do tipo vertical,
M., 1981), não se adequa bem a um conhecimento que é compartilhado por todos os grupos
etnografia Pano, optamos por concluir que existe um complexo xamânico de tipo horizontal
pan-Pano, onde cada qual participa de diversas maneiras, sem que determinados especialistas
que o conhecimento vem dos “Yuxin” ou dos “Yobé”, como é no caso Marubo. Mas de modo
geral, nos grupos Pano, encontramos diversos tipos de xamãs, com diversas técnicas de curas,
Freqüentemente, recai sob aquele que se diz detentor de poder tão grande o
feiticeiro é aquele que existiu no passado do grupo ou então quase sempre pertencente a um
grupo de fora, vinculando-se aos “sistemas de feitiçaria” descritos por Calavia Saez (1995).
dos grupos Pano, uma configuração de relações de poder propícia ao xamanismo horizontal e
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