Você está na página 1de 4

Maria Filomena Mónica (*) em O Público, 30 de Setembro de 2007

Valter Lemos nunca participou em debates parlamentares, nunca demonstrou


possuir uma ideia sobre Educação. A ministra da Educação, Maria de Lurdes Rodrigues,
tem aparecido na televisão e até no Parlamento, o mesmo não sucedendo ao seu
secretário de Estado, Valter Lemos. É pena, porque este senhor detém competências que
lhe conferem um enorme poder sobre o ensino básico e secundário. Intrigada com a
personagem, decidi proceder a uma investigação. Eis os resultados a que cheguei.
Natural de Penamacor, Valter Lemos tem 51 anos, é casado e possui uma
licenciatura em Biologia: até aqui nada a apontar. Os problemas surgem com o
curriculum vitae subsequente. Suponho que ao abrigo do acordo que levou vários
portugueses a especializarem-se em Ciências da Educação nos EUA, obteve o grau de
mestre em Educação pela Boston University. A instituição não tem o prestígio da
vizinha Harvard, mas adiante. O facto é ter Valter Lemos regressado com um diploma
na “ciência” que, por esse mundo fora, tem liquidado as escolas. Foi professor do ensino
secundário até se aperceber não ser a sala de aula o seu habitat natural, pelo que passou
a formador de formadores, consultor de “projectos e missões do Ministério da
Educação” e, entre 1985 e 1990, a professor adjunto da Escola Superior do Instituto
Politécnico de Castelo Branco.
Em meados da década de 1990, a sua carreira disparou: hoje, ostenta o pomposo
título de professor-coordenador, o que, não sendo doutorado, faz pensar que a elevação
académica foi política ou administrativamente motivada; depois de eleito presidente do
conselho científico da escola onde leccionava, em 1996 seria nomeado seu presidente,
cargo que exerceu até 2005, data em que entrou para o Governo. Estava eu
sossegadamente a ler o Despacho ministerial nº 11 529/2005, no Diário da República,
quando notei uma curiosidade. Ao delegar poderes em Valter Lemos, o texto legal trata-
o por “doutor”, título que só pode ser atribuído a quem concluiu um doutoramento,
coisa que não aparece mencionada no seu curriculum. Estranhei, como estranhei que a
presidência de um politécnico pudesse ser ocupada por um não doutorado, mas não
reputo estes factos importantes. Aquando da polémica sobre o título de engenheiro
atribuído a José Sócrates, defendi que os títulos académicos nada diziam sobre a
competência política: o que importa é saber se mentiram ou não.
Deixemos isto de lado, a fim de analisar a carreira política do sr. secretário de
Estado. Em 2002 e 2005, foi eleito deputado à Assembleia da República, como
independente, nas listas do Partido Socialista. Nunca lá pôs os pés, uma vez que a
função de direcção de um politécnico é incompatível com a de representante da nação.
A sua vida política limita-se, por conseguinte, à presidência de uma assembleia
municipal (a de Castelo Branco) e à passagem, ao que parece tumultuosa, pela Câmara
de Penamacor, onde terá sofrido o vexame de quase ter perdido o mandato de vereador
por excesso de faltas injustificadas, o que só não aconteceu por o assunto ter sido
resolvido pela promulgação de uma nova lei.
Em resumo, Valter Lemos nunca participou em debates parlamentares, nunca
demonstrou possuir uma ideia sobre Educação, nunca fez um discurso digno de nota.
Chegada aqui, deparei-me com uma problema: como saber o que pensa do mundo
este senhor? Depois de buscas por caves e esconsos, descobri um livro seu, O Critério
do Sucesso: Técnicas de Avaliação da Aprendizagem. Publicado em 1986, teve seis
edições, o que pressupõe ter sido o mesmo aconselhado como leitura em vários cursos
de Ciências da Educação. Logo na primeira página, notei que S. Excia era um lírico. Eis
a epígrafe escolhida: “Quem mais conhece melhor ama.” Afirmava seguidamente que,
após a sua experiência como formador de professores, descobrira que estes não davam a
devida importância ao rigor na “medição” da aprendizagem. Daí que tivesse decidido
determinar a forma correcta como o docente deveria julgar os estudantes. Qualquer
regra de bom senso é abandonada, a fim de dar lugar a normas pseudocientíficas,
expressas num quadrado encimado por termos como “skill cognitivos”.
Navegando na maré pedagógica que tem avassalado as escolas, apresenta depois
várias “grelhas de análise”. Entre outras coisas, o docente teria de analisar se o aluno
“interrompe o professor”, se “não cumpre as tarefas em grupo” e se “ajuda os colegas”.
Apenas para dar um gostinho da sua linguagem, eis o que diz no subcapítulo
“Diferencialidade”: “Após a aplicação do teste e da sua correcção deverá, sempre que
possível, ser realizado um trabalho que designamos por análise de itens e que consiste
em determinar o índice de discriminação, [sic para a vírgula] e o grau de dificuldade,
bem como a análise dos erros e omissões dos alunos. Trata-se portanto, [sic de novo] de
determinar as características de diferencialidade do teste.” Na página seguinte, dá-nos a
fórmula para o cálculo do tal “índice de dificuldade e o de discriminação de cada item”.
É ela a seguinte: Df= (M+P)/N em que Df significa grau de dificuldade, N o número
total de alunos de ambos os grupos, M o número de alunos do grupo melhor que
responderam erradamente e P o número de alunos do grupo pior que responderam
erradamente.
O mais interessante vem no final, quando o actual secretário de Estado lamenta a
existência de professores que criticam os programas como sendo grandes demais ou
desadequados ao nível etário dos alunos. Na sua opinião, “tais afirmações escondem
muitas vezes, [sic mais uma vez] verdades aparentemente óbvias e outras vezes
“desculpas de mau pagador”, sendo difícil apoiá-las ou contradizê-las por não existir
avaliação de programas em Portugal”. Para ele, a experiência dos milhares de
professores que, por esse país fora, têm de aplicar, com esforço sobre-humano, os
programas que o ministério inventa não tem importância.
Não contente com a desvalorização do trabalho dos docentes, S. Excia decide
bater-lhes: “Em certas escolas, após o fim das actividades lectivas, ouvem-se, por vezes,
os professores dizer que lhes foi marcado serviço de estatística. Isto é dito com ar de
quem tem, contra a sua vontade, de ir desempenhar mais uma tarefa burocrática que
nada lhe diz. Ora, tal trabalho, [sic de novo] não deve ser de modo nenhum somente um
trabalho de estatística, mas sim um verdadeiro trabalho de investigação, usando a
avaliação institucional e programática do ano findo.” O sábio pedagógico-burocrático
dixit.
O que sobressai deste arrazoado é a convicção de que os professores deveriam ser
meros autómatos destinados a aplicar regras. Com responsáveis destes à frente do
Ministério da Educação, não admira que, em Portugal, a taxa de insucesso escolar seja a
mais elevada da Europa. Valter Lemos reúne o pior de três mundos: o universo dos
pedagogos que, provindo das chamadas “ciências exactas”, não têm uma ideia do que
sejam as humanidades, o mundo totalitário criado pelas Ciências da Educação e a
nomenklatura tecnocrática que rodeia o primeiro-ministro.

Você também pode gostar