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Conselho de Classe: o tribunal da meritocracia na escola

Paulo Antônio Pimentel

1 - APRESENTAÇÃO

Recentemente li uma tese em que a autora introduz seu trabalho a partir de


crônicas autobiográficas, nas quais ela se insere como narradora e personagem
(CARVALHO, 2001). Ela fez isso para enfatizar para o leitor, de onde surgiram as
inquietações que a levaram a se debruçar naquela pesquisa.
Inspirado nela, e aproveitando o “Relato de Experiência”, como um gênero
propício para usar esta abordagem, vou tentar fazer o mesmo aqui, enquanto conto
como foi a minha experiência durante um Conselho de Classe, na Escola Estadual
de Mário Campos/MG e como essa experiência trouxe à tona diversas inquietações
que por muitas vezes influenciam na minha prática profissional.
Recém formado em Ciências Biológicas pela UFV - Florestal, meus colegas
de trabalho insistem em dizer que: “eu ainda estou empolgado”. Foi assim que fui
recebido na escola onde leciono no turno da manhã 17 aulas por semana - desde o
oitavo ano do Ensino Fundamental até o primeiro ano do Ensino Médio - como o
professor novo, que ainda “não sofreu na escola e que ainda tem esperança” que
pode fazer alguma coisa.
De fato, este que vos escreve é alguém que, seja por esperança ou por
teimosia, é um apaixonado pela Educação e que acredita no que o Prof. Antônio
Nóvoa chama de “Renovação da Educação” na palestra “Professor: profissão
docente concedida à UFV. É importante deixar isso claro agora, para que possa ser
melhor compreendido quando expressar minha indignação contra um sistema
educacional que perpetua as desigualdades sociais e “lava suas mãos”,
depositando nos alunos toda a responsabilidade do seu sucesso escolar.
Portanto, através deste relato, espero conseguir expressar como minha
aproximação com a Sociologia da Educação foi importante para a formação da
minha identidade profissional. Eu que já tinha certas inquietações sobre a educação,
recebi dos sociólogos educacionais, musculatura conceitual para atuar com mais
precisão frente aos desafios encontrados na escola, seja aqueles que os alunos
trazem de casa ou aqueles que o próprio Sistema de Ensino eventualmente levanta
e que atrapalham os processos de ensino e aprendizagem.

2 - A EXPERIÊNCIA

O Tribunal do Mérito

Motivado pelo mestrado, e pela empolgação de agora estar na escola como


professor, passei a andar com um bloquinho de anotações no bolso e um “toco” de
lápis com o qual pescava no ar as palavras dos alunos, dos outros professores e
qualquer outra situação com a qual eu conseguisse fazer um link com a teoria. Vou
aproveitar para explicar aqui que todas as vezes que ao longo deste texto aparecer
uma frase “entre aspas e em itálico”, eu estou citando literalmente uma fala de
alguém na escola, colhida e anotada no meu bloquinho.
Foi assim, munido com o bloquinho de anotações e meu pedaço de lápis que
cheguei naquela manhã para o Conselho de Classe. Num sábado fresco, no início
da primavera, duas dezenas de professores se apertavam na Sala 15 para julgar o
mérito dos alunos naquela etapa. Apesar da estranheza que essa expressão “julgar
o mérito” possa causar, quando nos referimos a um Conselho de Classe, essa foi
precisamente a intenção que transpareceu naquela reunião de professores que
avaliavam os alunos a partir de uma lógica puramente conteudista e meritocrática.
A primeira turma avaliada era a 804, um oitavo ano difícil de lidar e com
muitos desafios educacionais e sociais. Começamos por tentar definir quem era o
destaque daquele trimestre e ali começou de fato a experiência que motivou este
relato. Foi nesse momento que acionei o bloquinho e o lápis, para anotar como a
paradigma que regia aquele Conselho era meritocrático.
Os professores queriam premiar como aluna destaque, uma estudante com
graves desvios éticos contra os seus colegas. Uma estudante que de fato tinha boas
notas, mas que por ser a que tem a melhor condição econômica da sala, esnobava
os outros alunos, desfazia deles pelo fato de não “não serem inteligentes como ela”
e que incentivava um aluno depressivo a cometer suicídio. Quando destacaram o
nome dela, imediatamente me opus e por isso, me indispus com o restante do
Conselho. Quando disse que só a nota não era critério para destaque, ouvi da
Professora de História: “A gente se destaca é pelo quantitativo”.
Depois que coloquei o contraponto, dois outros professores concordaram e
por fim aquela aluna não levou o destaque do semestre. Mas o tom em que a
reunião aconteceria já estava dado e aquela visão meritocrática guiou a avaliação
de todas as outras turmas.
Na prática, não havia deliberação nenhuma, como eu esperava que
acontecesse num Conselho de Classe e a própria diretora nos orientou a “não
perder muito tempo falando dos alunos e só indicar quais alunos não tinham mais
condições de atingirem nota suficiente para serem aprovados”. Assim, enquanto
passávamos pelas turmas, só íamos apontando aqueles alunos cujas notas eram
muito baixas, para falar se ainda tinham chance de recuperação ou já estavam
reprovados, isso ocorreu no fechamento do terceiro bimestre.
Faltou dizer que o Conselho estava ocorrendo num sábado letivo, onde nós
deveríamos pela lógica ficar até o final do turno, mas os professores chegaram lá
colocando hora para ir embora e a meta era fazer o Conselho de 15 turmas em
apenas duas horas. Dito isso, não preciso falar que todos os problemas eram
tratados de maneira tão supérflua que me parecia quase um desleixo proposital com
a situação dos alunos.

A escola lava as mãos

Um bom exemplo do paradigma pedagógico que rege o funcionamento da


escola é o fato de que o professor de matemática, vai reprovar 95% dos seus
alunos, sendo que na maioria das turmas, ninguém conseguiu pegar média em sua
matéria. Esse mesmo professor é tido como um exemplo pela direção e pelo corpo
pedagógico como “um bom professor”, já que conduz os alunos em rédea curta,
ainda que ninguém esteja de fato aprendendo nada.
À certa altura do conselho, alguém levantou uma crítica contra o Novo Ensino
Médio, por causa do sexto horário que não é interessante para os alunos, que
acabam não se dedicando às matérias eletivas e vão sendo “empurrados” nelas por
não terem nota. Nesse momento, dei a ideia de tirar as eletivas do sexto horário e
mesclá-las com as disciplinas regulares, para que os alunos percebessem que eram
matérias importantes como as outras e para que não fugissem delas matando o
sexto horário. Em resposta, ouvi que “assim os professores das disciplinas regulares
teriam que trabalhar no sexto horário, e eles não querem”. Os professores das
disciplinas regulares são os efetivos, em sua maioria, e a maior parte das eletivas
estão com os designados. E como os efetivos são os que escolhem as aulas no
início do ano, eles fogem do sexto horário, e não estão dispostos a perder esse
privilégio tão facilmente.
A recusa da mudança no sexto horário, assim como a recusa a outras
mudanças que “dariam muito trabalho e gerariam indisposição” reflete uma escola
acomodada, acostumada em transferir para os alunos a completa responsabilidade
pelo seu sucesso escolar. Nesse mesmo Conselho, ouvi a diretora dizer que: “já
fizemos tudo, não podemos fazer mais nada”. Contudo, a verdade é que se faz o
mínimo e essa postura é a consequência imediata da visão meritocrática da
educação. Todos fazem o mínimo, o corpo docente, o corpo pedagógico e a direção,
mas esperam que os alunos respondam em alto rendimento, por iniciativa própria.
Ao final do Conselho, estava com uma sensação estranha, como se tivesse
engolido algo que ficou entalado na garganta. Uma sensação de indignação ao ver
a escola “lavando suas mãos”, em relação ao fracasso escolar da esmagadora
maioria dos alunos. Meus colegas professores mais preocupados em ir embora do
que em pensar em soluções, o corpo pedagógico passando pano para “dadores de
aula” e a diretora normalizando toda aquela situação, preocupada apenas com a
confraternização que teria para os funcionários no sábado seguinte. Tudo isso foi
me deixando tão enjoado daquela situação que por fim, ao passar aqueles
sentimento para o bloquinho de notas, atropelava as palavras e escrevia
xingamentos no papel.

Choque de Realidade

Quando falamos dos desafios que os novos professores enfrentam na escola,


talvez alguém pense logo na dificuldade em lidar com os alunos, mas posso dizer
que eles são a parte mais fácil. O que é realmente difícil para alguém recém saído
da graduação é conhecer o lado feio do Sistema de Ensino. É perceber que aquilo
que aprendemos de Freire e das teorias de educação, muitas vezes está distante da
realidade prática de funcionamento das escolas, que ainda funcionam numa lógica
conteudista, meritocrática e tecnicista. Esse choque de realidade fica muito evidente
durante os Conselhos de Classe, quando esses paradigmas educacionais afloram
na boca daqueles que deveriam estar preocupados em formar alunos para a
cidadania crítica.
Uma das coisas boas de ter trabalhado como designado em muitas escolas
diferentes e em contextos diferentes é que participei de pelo menos quatro
Conselhos de Classe em escolas diferentes este ano. E com exceção de uma
(sobre a qual voltarei a tratar mais adiante), todas as escolas por onde eu passei
repetiam esse paradigma meritocrático e conteudista ao avaliar os alunos,
simplesmente reproduzindo os valores sociais vigentes.
No conselho do segundo bimestre, a pedagoga disse que : “temos que fazer
alguma coisa para ‘inglês ver’ e empurrar o problema para frente”. Ela disse isso, se
referindo a aprovar alunos do terceiro ano do Ensino Médio que mal sabiam ler, para
que deixassem de ser um problema da escola. Claramente uma situação em que o
Sistema de Ensino está “lavando as suas mãos”, como quem diz: “eu fiz a minha
parte, os alunos é que não se esforçaram”.
Essa constatação de que muitos professores e escolas funcionam numa
lógica totalmente contrária aos valores educacionais que aprendemos na faculdade
tem o potencial de gerar no recém formado, um desânimo com a área educacional e
de fato, tenho o testemunho de amigos próximos que estão nessa situação.

Um conselho de fato

Agora vou trazer o exemplo do Conselho de Classe que anteriormente eu


havia dito que era uma exceção e que foi um bom Conselho. Nessa escola, a
discussão ocorreu de forma mais saudável e ainda que possa fazer algumas
críticas, nem se compara com o “tribunal de classe" que deu origem a esse relato.
Primeiramente, não tinha ninguém da Direção nesse conselho, o que se deve
ao fato de aquela escola ter um corpo pedagógico forte, engajado e fundamentado
em bons paradigmas educacionais que valorizam o aluno. Esse conselho durou
algumas horas e os casos mais preocupantes eram tratados com cuidado, trazendo
à discussão inúmeras informações dos alunos que iam muito além do seu
rendimento escolar. Foram pontuadas questões familiares, sociais e médicas que
contribuíram muito para a realização do Conselho.
Nesta ocasião, pude perceber claramente como uma análise sociológica do
contexto educacional pode contribuir para que medidas mais assertivas sejam
adotadas para melhorias do processo de ensino e aprendizagem, visando o
desenvolvimento dos estudantes. Contudo, para que isso aconteça, percebi que é
necessário um forte engajamento dos professores e do corpo pedagógico para
vencer a tendência de empurrar para os alunos a total responsabilidade de seu
sucesso escolar. Inclusive, nessa escola, havia professores que trabalhavam
segundo essa visão conteudista e meritocrática, mas diante da totalidade do corpo
discente e da boa gestão pedagógica, prevalecia uma abordagem mais humanizada
e reflexiva da educação.

3 - RELAÇÃO DA EXPERIÊNCIA COM A LITERATURA

Uma das principais ideias que está por trás do pensamento meritocrático é o
conceito de Capital Humano. Este conceito, criado no universo da Economia, afirma
que todo indivíduo devidamente treinado e preparado é capaz de gerar bons
resultados. Segundo Bourdieu:

“[...] uma definição do "capital humano" que, apesar de suas conotações


"humanistas", não escapa ao economicismo e ignora, dentre outras coisas, que o
rendimento escolar da ação escolar depende do capital cultural previamente
investido pela família e que o rendimento econômico e social do certificado escolar
depende do capital social também herdado - que pode ser colocado a seu serviço.”
(Bourdieu, 1979, página 2, aspas do autor)

Em outras palavras, Capital Humano é um conceito que relaciona as


competências, capacidades e atributos de uma pessoa com a sua capacidade de
desempenhar uma determinada atividade e ter bons resultados. Essa ótica vê o ser
humano como uma aplicação na qual se pode investir, para que de forma
automatizada, ela gere bens e valores. O Capital Cultural contrapõe essa ideia e diz
que há muito mais na formação do aprendizado do que o aluno pode aprender com
treino, mas que esse aprendizado é formado principalmente a partir do plano de
fundo e da realidade na qual o aluno está inserido.
Nesse sentido, quando o Sistema de Ensino adota um paradigma
meritocrático, ele está ignorando as diferenças situacionais que há entre os alunos e
os avalia como se partissem das mesmas condições. Essa abordagem pode ser a
base para se cometer injustiças educacionais e de fato é o que ocorre quando a
escola não considera os diferentes contextos sociais em que atua.
Quando a escola assume essa postura de funcionar nessa lógica
meritocrática, ela está reproduzindo a lógica de funcionamento da sociedade.
Segundo a teoria de Bourdieu, a escola funciona como uma perpetuadora da ordem
social vigente:

"[...] nas sociedades contemporâneas a reprodução da ordem social e a persistência


de desigualdades e injustiças são promovidas, essencialmente, pelas estratégias
escolares" (Valle, 2022, página 1)

Bourdieu argumenta que a educação é utilizada para reproduzir e perpetuar


valores da sociedade e vemos isso nitidamente quando o Sistema de Ensino “lava
suas mãos” e relega aos alunos a completa responsabilidade para seu sucesso
escolar. Isso é precisamente o que boa parte da sociedade faz, quando pela
meritocracia, ignora as diferenças sociais e julga o mérito daqueles que obtém
sucesso contra o mérito daqueles que fracassam.
Uma das consequências do paradigma meritocrático na educação é que
apenas um certo tipo de estudantes é privilegiado por essa visão. Na obra, Os
Herdeiros, Bourdieu e Passeron argumentam que o sistema educacional privilegia
aqueles alunos que herdam de sua família um alto grau de Capital Cultural que os
deixa em vantagem no jogo da escolarização. De fato, isso é o que estava evidente
no Conselho de Classe, principalmente quando aquela aluna do oitavo ano quase
ganhou o prêmio de destaque. Quem explica bem a aplicação desse conceito no
nosso contexto é Valle:

“[...] esta tese apresenta uma crítica contundente do princípio meritocrático, um


dos principais pilares dos sistemas modernos de ensino, explicitando suas
ilusões e hipocrisias. Dom, mérito, vocação (que permanecem hipotéticos),
assim como os demais dispositivos facilitadores do acesso à escola (como as
bolsas de estudo, por exemplo), nada mais são que mecanismos de
legitimação dos privilégios dos bem-nascidos. “ (Valle, 2014, página 1)
No texto Os excluídos do Interior, que aparece na obra Escritos da Educação,
Bourdieu e Champagne mostram como o paradigma meritocrático faz com que a
escola atue na exclusão sumária dos alunos que têm dificuldades escolares:

“Até o final dos anos 50, as instituições de ensino secundário conheceram uma
estabilidade muito grande fundada na eliminação precoce e brutal (no momento da
entrada em sixieme) das crianças oriundas de famílias culturalmente
desfavorecidas. A seleção com base social que se operava, assim, era amplamente
aceita pelas crianças vítimas de tal seleção e pelas famílias, uma vez que ela
parecia apoiar-se exclusivamente nos dons e méritos dos eleitos, e uma vez que
aqueles que a Escola rejeitava ficavam convencidos (especialmente pela Escola) de
que eram eles que não queriam a Escola.” (Bourdieu, 2014, página 219).

Apesar desta citação ser um pouco longa, ela é riquíssima e demanda pelo
menos um minuto de reflexão. O peso, a profundidade e a precisão cirúrgica desta
crítica escancara a consequência imediata da meritocracia na educação. Quando
um aluno se considera inapto para o jogo escolar, sua reação automática é se
ausentar da escola. Ainda essa semana um aluno me disse: “a escola não é pra
mim. A escola faz a gente não gostar de estudar”.
Quando um Conselho de Classe se transforma num tribunal de méritos, ele
se torna uma ferramenta de exclusão dos alunos e opera para a reprodução da
sociedade tal como ela é. Quando a escola opera no paradigma meritocrático, ela
se afasta do ideal para o qual ela deveria existir, que é formar cidadãos críticos para
o pleno exercício de sua cidadania.

4 - CONSIDERAÇÕES FINAIS

Essa experiência foi fundamental para amadurecer um pouco mais a minha


identidade profissional. Todas as inquietações que me levaram para a Sociologia da
Educação, deixaram de ser pensamentos soltos na mente e cada vez mais passam
a ser incorporadas como práticas de atuação na escola. Esse relato de experiência
é um exemplo de como o mestrado e essa disciplina têm oferecido subsídios para
orientar o meu exercício enquanto professor reflexivo.
Para finalizar este relato, invoco novamente a expressão de Nóvoa sobre a
“Renovação da Educação”, que não acontecerá sem uma prática reflexiva por parte
dos envolvidos no Sistema Educacional, e nossa prática nunca será reflexiva sem
formação continuada. A Renovação da Educação, não florescerá no mesmo solo
em que se mantém a Reprodução, baseada no paradigma meritocrático que rege
boa parte da sociedade.

5 - REFERÊNCIAS

BOURDIEU, Pierre. Les trois états du capital culturel. Actes de la recherche en


sciences sociales, v. 30, n. 1, p. 3-6, 1979.

BOURDIEU, Pierre. Escritos de educação. Editora Vozes, 2014, 4º edição.

CARVALHO, Isabel Cristina de Moura. A invenção do sujeito ecológico: sentidos e


trajetórias em educação ambiental. 2001.

VALLE, Ione Ribeiro. Os herdeiros: Uma das principais “teses” da sociologia


francesa da educação. Revista Linhas, v. 15, n. 29, p. 232-250, 2014.

VALLE, Ione Ribeiro. A reprodução de Bourdieu e Passeron muda a visão do mundo


educacional. Educação e pesquisa, v. 48, 2022.

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