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Janine – Acho que temos superestimado o Dei toda essa volta, Mario, para esclarecer

papel da escola. Ao mesmo tempo em que a que acho que existem questões que são
sociedade brasileira não dá muito valor ao políticas. Não são questões pertinentes ao
profissional da educação, haja vista os mundo da pesquisa e da ciência, mas sim ao
salários pagos aos professores do ensino mundo da política. Há várias doenças que
básico público, ela exige muito da escola. certamente já podem ser sanadas, pelo
Por exemplo, a política de cotas – que é um menos já foram descobertos os meios, a
longo assunto e que eu apoio, desde que seja academia já completou seu trabalho. Agora,
com data de término determinada, pois se resta o Estado e a sociedade fazerem a sua
trata de um paliativo, não mais que isso – parte. Se ocorrem epidemias de dengue
joga sobre o professor a responsabilidade de porque as pessoas deixam água empoçada,
dar aula ao mesmo tempo para alunos mais isso nada tem a ver com o pesquisador.
bem formados e alunos menos bem
formados. Ou seja, quem paga a conta da Qual seria nosso papel iluminista no
política de cotas muitas vezes é o professor. tocante à política? Quando falamos em
A mesma coisa acontece com a questão iluminismo, sempre há um elemento ético.
ética: coloca-se geralmente como um tema Estamos pensando numa política que seja
que a escola tem de assumir, quando a ética, ética, decente, capaz, ideal, utópica no
antes de tudo, é da alçada da família. sentido que você mencionou antes – não de
irrealizável ou impossível; ela é, apenas,
Cortella – Fernando Haddad, como insaciável. Talvez a principal característica
ministro da Educação, dizia que, no Brasil, da democracia seja que ela nunca se sacie.
já havia uma política de cotas: chamava-se Dizer que a democracia é incompleta talvez
vestibular, uma vez que só entrava na seja até um traço – positivo – do que ela é. A
universidade uma pequena parcela da democracia abre a caixa de Pandora dos
sociedade. desejos, dos anseios e nunca mais para.
Então, cabe-nos um papel iluminista no
Janine – Há uma cobrança em relação à sentido de esclarecer, de opinar, de
escola e ao educador de coisas que às vezes conduzir? De conduzir certamente não, mas
estão além do nosso alcance. Lembro-me de de esclarecer, sim. Podemos apontar, por
uma discussão que tive, quando fui diretor exemplo, essa tendência da democracia a
da Capes, com uma docente de um programa sempre pedir mais, o que não implica
de pós-graduação ligado aos direitos concordar que tudo o que é pedido deva ser
humanos. Há apenas sete desses cursos no dado.
Brasil e só um está fora da área de direito, o
que já é uma limitação, porque acabam tendo Aqui destaco um ponto que, creio, é um
uma presença pequena da pesquisa mais dos que nos aproximam: podemos ter nossas
recente das ciências sociais sobre os direitos. preferências políticas, mas nós dois somos
Na ocasião, uma professora me perguntou, muito comedidos quanto a expressá-las.
de maneira áspera, o que a Capes poderia Considero mais importante, no Brasil, hoje,
fazer para reduzir a desgraça das crianças de que as pessoas aprendam que a posição de
rua. Ora, o campo de ação da Capes é muito seu adversário também é legítima, que
limitado, pois o que ela pode fazer é aprovar aprendam a entender o que ele disse, em vez
programas de pós-graduação. Na verdade, de contestar o que apenas imaginam que ele
acabava de ser aprovado um mestrado, cuja falou. Nosso debate é pobre, porque se faz
criação eu havia sugerido – um mestrado caricatura do adversário. Não é à toa que
profissional sobre adolescentes em conflito ainda há quem chame o adversário, na
com a lei –, voltado justamente para a área política, de inimigo! Inimigo, só na guerra.
mencionada pela professora. Mas ela Pior que isso, ainda não se entranhou em nós
continuava irritada, apresentando uma a convicção de que dois lados podem ter
demanda que o sistema de pós-graduação alguma razão e de que a política é o
não pode resolver. Uma das coisas curiosas enfrentamento de posições opostas mas
que acontecem no Brasil reside no fato de legítimas. É nesse conflito que cada uma
muitos se dirigirem à pessoa ou à instância delas pode se aprimorar.
errada para pedir alguma coisa.
Penso que um primeiro papel nosso é um concerto, um acordo para a vida coletiva,
tentar esclarecer. Na política, esclarecer que tendo o Estado como “concertador”, como
na democracia é necessário haver posições mediador da sociedade civil.
diferentes e divergentes. Uma questão básica
(e, aqui, esquerda e direita funcionam bem Gostei dessa ideia de que nossa posição
como valores) é: você acha mais importante não é a de iluministas – como farol ou como
que cada pessoa seja o mais livre possível pontífice (aquele que pontifica as coisas) –,
para florescer em sua atividade responsável mas é a daqueles que pedagogicamente têm,
(essa é a posição liberal), ou que o Estado sim, a tarefa de contribuir para a construção
intervenha para assegurar certos equilíbrios das referências. Acho que os filósofos, tanto
sociais, os laços sociais (que é uma posição os que se dedicam ao ensino quanto aqueles
socialista)? voltados para a prática da reflexão, têm
realmente a tarefa, eu diria até a obrigação
Se adotarmos a posição liberal, podemos ética, de promover essa discussão. Na
chegar à supressão do direito de herança, verdade, todo aquele que atua na área
porque ele desiguala as pessoas no ponto de educacional precisa trazer o tema da política
partida. Para o liberal autêntico, espécie para o espaço escolar. O que não se deve é
raríssima, o importante é que todos partidarizar seu estudo, porque isso
tenhamos o mesmo ponto de partida. E mais bloquearia o tratamento da política como
até: se uma pessoa tiver uma deficiência que bem comum. A política partidária é apenas
dificulte sua vida, ela é compensada – seja uma vertente do tema, mas não é a única nem
um problema de visão ou de movimento, a melhor. Eu faço política escrevendo, dando
seja o fato de ter tido uma formação aula; faço política no meu prédio, no meu
educacional insuficiente. Tudo isso tem bairro, na convivência com minha família;
espaço no liberalismo verdadeiro. Até no modo como me relaciono com as pessoas
mesmo uma política de cotas e a ação com quem trabalho e assim por diante.
afirmativa são aceitáveis. Contudo, segundo
essa lógica, se é justo propiciar a todos que Penso que é necessário que a escola trate
tenham condições similares no ponto de das diversas subdivisões do tema, explique a
partida, não é preciso garantir que o ponto de organização partidária, a política como ato
chegada de todos seja o mesmo; isso cotidiano etc. Para vários de nós, a vida
dependerá do uso que cada um fizer de sua política teve início na própria escola, nos
liberdade. Essa é a essência do liberalismo, grêmios estudantis, no diretório acadêmico.
que é muito respeitável, embora Quando eu estava na faculdade, não era
infelizmente a maior parte dos liberais não permitida a criação de um centro acadêmico,
tenha essa compreensão. E há uma essência apenas de diretórios. E não é à toa que a ideia
socialista que é a da solidariedade: em vez de militância esteja ligada ao conceito de
de apostar em cada um, entender que a maior polícia, de militar. Pois o que era o militante?
parte das ações deva ser coletiva e deva Era aquele que se engajava nas tarefas do
reforçar os laços entre nós. Estado, para garantir a vida pública sem
rupturas. Acho que a política nos aproxima
Escolher entre essas duas posições é vital dessa condição. É tarefa também da
na democracia. É bem diferente de votar educação escolar lidar com isso.
num candidato porque seu adversário seria
corrupto ou desonesto. Nossa atual Fonte: Política: Para não ser idiota Renato
discussão política demoniza o adversário –
e, com isso, ela fica pobre. Para contestar o Janine Ribeiro e Mario Sergio Cortella.
outro, investigo se ele teve uma conduta
corrupta, antiética ou imoral. Seguramente,
política não é isso.
Cortella – Esse modo de fazer política é
até antidialético, de certa maneira. Não se
pensa a política como síntese, a democracia
omo síntese. Em espanhol, usa-se a palavra
concertación para exprimir a ideia de fazer

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