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DIMENSÃO HISTÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS

Ana Beatriz Lisboa Pereira

As idéias acerca do que seja efetivamente o fenômeno jurídico mudam a depender da


corrente filosófica ou política a que se esteja filiado. No entanto, todas as teorias
reconhecem que o Direito, em suas manifestações positivas, tem dimensão temporal e
espacial. Desta forma, tempo e espaço são variáveis que possuem grande influência na
conformação do ordenamento jurídico, fazendo com que ele não seja uma estrutura
estática, finalizada, e sim, um processo.

Também os direitos fundamentais formam uma categoria heterogênea, marcada por uma
autêntica mutação histórica através de um processo cumulativo que resulta em sua
expansão e fortalecimento1.

Segundo Alexy: “La historia de la institucionalización es um caso paradigmático del


intercambio entre las ideias y la realidad u, así, entre la teoria y la práctica”2. Portanto, a
história dos direitos humanos além de permitir identificar os critérios de unificação dos
direitos fundamentais, revela-se um importante mecanismo hermenêutico.

Segundo Stern3, podemos identificar três fases no movimento de reconhecimento,


consolidação e constitucionalização dos direitos fundamentais: uma pré-história que se
estende até o século XVI, uma fase de crescente afirmação dos “direitos naturais” do
homem, e por fim uma fase de constitucionalização.

Nesta pré-história, podemos identificar determinados conteúdos, hoje reconhecidos


como conteúdos jusfundamentais, muito embora ainda não existisse nenhum
movimento de sistematização desta categoria de direitos.

1
Como afirma Sarlet, o processo de reconhecimentos dos direitos fundamentais “é essencialmente
dinâmico e dialético, marcado por avanços, retrocessos e contradições, ressaltando, dentre outros
aspectos, a dimensão histórica e relativa dos direitos fundamentais”. SARLET, Ingo Wolfgang. A
eficácia dos Direitos Fundamentais. Op. Cit. p. 56. Também neste sentido Alexandre de Moraes: “Os
direitos humanos fundamentais, em sua concepção atualmente conhecida, surgiram como produto da
fusão de várias fontes, desde tradições arraigadas nas diversas civilizações, até a conjugação dos
pensamentos filosófico-jurídicos, das idéias surgidas com o cristianismo e com o direito natural”.
MORAES, Alexandre. Direitos Humanos Fundamentais. 6 ed. São Paulo: Atlas, 2005. p. 01
2
ALEXY, Robert. Três escritos sobre los derechos fundamentales y la teoria de los principios. Op.
Cit.p. 32
3
STERN, apud SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Op. Cit. P. 39.
O Código de Hamurabi, do século XVII A.C. já consagrava um rol de direitos comuns a
todos os homens: vida, propriedade, honra, dignidade e família; estabelecendo, ainda, a
supremacia das leis em relação aos governantes. Na Grécia Antiga, também
encontramos vários estudos sobre a necessidade da igualdade e da liberdade do homem,
com grande desenvolvimento das idéias sobre a democracia, a participação política e o
direito natural4. Por sua vez, em Roma temos a consagração da liberdade, da
propriedade e da tutela dos direitos individuais.

Na Idade Média, apesar da descentralização política e da sociedade dividida em


estamentos, foram produzidos diversos textos em defesa dos direitos naturais. Nesta
época, na Inglaterra, o Rei João Sem-Terra outorga, em 15 de junho de 1215, a Magna
Carta Liberatum5, reconhecendo direitos naturais inalienáveis dos súditos da monarquia
inglesa. Entre as garantias constantes neste documento estão: as restrições ao poder de
tributar, o devido processo legal, a proporcionalidade entre delito e sanção, o livre
acesso a Justiça, a propriedade e a liberdade de ir e vir6.

Estas conquistas dos barões ingleses transcendem o espírito de seu tempo, para
transformar-se na conquista das liberdades políticas para todo o tempo futuro,
constituindo-se na declaração medieval mais importante no processo de positivação dos
direitos humanos.

Posteriormente, teremos a Declaração de Direitos da Virgínia, de 16 de junho de 1776, e


a Declaração de Independência dos Estados Unidos, de 04 de julho do mesmo ano,
documentos de relevante valor histórico, produzidos durante o processo de
independência das colônias norte-americanas, cujos conteúdos tiveram como principal
preocupação a limitação do poder estatal, a partir do reconhecimento de direitos naturais
4
Antígona: “[...] Nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder de superar as leis não escritas,
perene, dos deuses, visto que és mortal. Pois elas não são de ontem nem de hoje, mas são sempre vivas,
nem se sabe quando surgiram”. SÓFOCLES. Antígona. Porto Alegra: LP&M, 2006. p. 36
5
O Rei João São Sem Terra, foi levado ao trono numa espécie de eleição, em razão de ter assumido uma
série de compromissos com a nobreza. Revela, no entanto, rapidamente a sua inaptidão para governar,
dando inicio a uma fase de instabilidades que se agrava com o fim da aliança com Clero. Seu governo
despótico cria um circulo de conflitos com a nobreza e o clero. Pressionado pelos barões, que marcham
sobre Londres em 24 de maio de 1215, o rei concorda em garantir uma série de demandas dos Barões
apresentadas a ele em um documento conhecido como “Articles of the Barons”; documento que servirá
de base para a Magna Carta, pondo fim aos conflitos. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação
histórica dos Direitos Humanos. 3 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 69-80
6
A Magna Carta foi reafirmada mais de 30 vezes depois do reinado de João sem Terra.Umas das mais
importantes reafirmações foi a Bill of Rights, de 1628, que modifica o entendimento de “devido processo
legal”, incorporando as exigências de citação prévia e de ampla defesa dos acusados. COMPARATO,
Fábio Konder. Op. Cit. p. 89-93
do indivíduo: devido processo legal, princípio da legalidade, princípio do juiz natural e
imparcial, julgamento pelo júri, a liberdade de imprensa e a liberdade religiosa, entre
outros.

Estes direitos serão consagrados na Constituição dos Estados Unidos da América e suas
dez primeiras emendas, aprovadas em 25 de setembro de 1789, e ratificadas em 15 de
dezembro de 1791.

Mas, o conceito de direitos fundamentais está intrinsecamente associado ao conceito de


direitos humanos, consolidado na Revolução Francesa, a partir da “Declaration des
droit de l´homme et des citoyens” de 17897. Assim, os direitos fundamentais, tais quais
os conhecemos hoje, são produtos da concepção teórica de homem construída no
processo histórico de superação do arbítrio estatal e de afirmação da dignidade da
pessoa humana, que alçou o homem à condição de titular de situações subjetivas
diretamente oponíveis ao Estado.

O nascimento dos direitos fundamentais coincide com o reconhecimento da chamada


primeira geração ou dimensão8 de direitos fundamentais, os direitos civis e políticos. É a
partir daí que determinados conteúdos, cuja finalidade é garantir a manutenção de uma
esfera de dignidade ao homem na sua relação com o poder estatal, alcançam o status de
norma constitucional, tanto do ponto de vista formal, quanto do ponto de vista material.

Esta primeira manifestação histórica dos direitos fundamentais, como categoria


sistematizada, está, também indissociavelmente ligada ao aparecimento do Estado
Liberal, como elemento de progresso histórico que se assenta na luta contra o
absolutismo monárquico, em favor de uma libertação do homem9.
7
A Revolução Francesa representa uma renovação completa nas estruturas sociopolíticas, consequência
de um movimento de articulação entre burguesia e povo, com o emprego, inclusive, de grande violência.
Instalou a República na França e produziu a Declaração Francesa de Direitos do Homem e do Cidadão, a
partir de uma noção de direitos naturais generalizante - que reconhecia serem tais direitos pertencentes a
todos os povos, independente de tempo e lugar – e da afirmação de três valores: a liberdade, a igualdade e
a fraternidade. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos. Op. Cit. p.
124-155.
8
Existe uma controvérsia na doutrina sobre o uso das expressões “geração” ou “dimensão” para
identificar os conteúdos reconhecidos como direitos humanos a partir de seu reconhecimento histórico.
Neste sentido Bonavides: “[...] força é dirimir, a esta altura, um eventual equívoco de linguagem: o
vocábulo ‘dimensão’ substitui, com vantagem lógica e qualitativa, o termo ‘geração’, caso este último
venha a induzir apenas sucessão cronológica e, portanto, suposta caducidade dos direitos das gerações
antecedentes, o que não é verdade” BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 11 ed. São
Paulo: Malheiros, 2001.p. 525
9
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de
Janeiro: Campus, 2000. pág. 273.
Desenvolvido inicialmente pelos Iluministas, foi apenas entre o final do século XVIII e
o início do século XIX, que o pensamento liberal ganhou grande prestígio nas camadas
sociais. A ideologia liberal está ligada ao aparecimento e consolidação da classe
burguesa, sustentando a não interferência do Estado nos assuntos de natureza privada,
lema que ficou celebre na expressão francesa “laisser faire, laisser passer”.

Segundo Ferrajoli:

O pensamento jusnatural e contratual do Iluminismo formulou esta


regra primária da relação entre o Estado e o cidadão e da convivência
civil entre a maioria e a minoria concebendo os direitos vitais do
homem como “naturais” e a sua garantia como condição de
legitimidade daquele “homem artificial que é o Estado” e do pacto
social por ele assegurado10

A doutrina do Estado Liberal apresenta-se, portanto, como a defesa do Estado limitado,


sustentando-se em um discurso de interferência mínima na vida social. O Estado
limitado é aquele no qual o poder está determinado pelas leis, sejam naturais, sejam elas
civis, através de uma Constituição pactuada.

O liberalismo é, ainda, produto de uma transferência da titularidade da soberania,


consequência das transformações nas condições materiais que se operavam na sociedade
da época, que teve grandes repercussões nas instituições jurídicas e políticas.

Ressalte-se, como afirma Leon Duguit11, que não se trata, no entanto, de uma alteração
de conceito, mas uma alteração de titularidade. O poder, entendido como direito
patrimonial do rei, passa a ser chamado, a partir do final do século XVI, de soberania,
indicando a característica daquele cujo senhorio não derivava de outro senhor superior.
O termo indicava, portanto, um poder de caráter particular de certos senhorios, e,
especialmente, dos senhorios reais.

No século XVII e XVIII, a soberania indica um direito de mandar, cujo titular é o rei –
que o exerce como se fosse um de seus direitos patrimoniais. Assim, a palavra
soberania, que designava apenas uma característica do poder real, passa a designar o
poder real em si mesmo. A soberania é uma propriedade una, indivisível, inalienável. É
também absoluta, como todo direito de propriedade.
10
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. 2 ed. rev. e amp. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 2006. p. 793.
11
DUGUIT, Leon. As transformações do direito (público e privado). Buenos Aires: Heliasta, s/d. p. 09
Na doutrina liberal o rei é substituído pela nação, e a partir daí a nação será um sujeito
de direito, titular do direito de soberania. Derivam daí à noção de soberania nacional,
também, una, indivisível, inalienável e imprescritível, e a noção de lei como expressão
da vontade nacional.

A história do Estado liberal é, assim, a história das técnicas de realização do princípio


da limitação do poder, através dos direitos fundamentais.

Podem-se distinguir, para maior clareza, duas formas de limitação do


poder: uma limitação material, que consiste em subtrair aos
imperativos positivos e negativos do soberano uma esfera de
comportamentos humanos que são reconhecidos livres por natureza
(a chamada esfera de licitude); e uma limitação formal, que consiste
em colocar todos os órgãos do poder estatal abaixo das leis gerais do
mesmo Estado. A primeira limitação está fundada no princípio da
garantia dos direitos individuais por parte dos poderes públicos; a
segunda no controle dos poderes públicos por parte dos indivíduos.
Garantia dos direitos e controle dos poderes são dois traços
característicos do Estado liberal. 12

Esta teoria do Estado limitado, embora engendrada nos movimentos burgueses de


libertação da monarquia absolutista, aplica-se a qualquer forma de governo, inclusive ao
próprio Estado Burguês. Neste contexto surge a idéia de separação dos poderes.

O princípio da separação de poderes estava baseado na idéia de que ninguém poderia


dispor sozinho de todos os poderes do Estado. Assim, para exercer as funções do Estado
foram criados órgãos autônomos e harmônicos entre si, fragmentando-se o poder estatal
em legislativo, executivo e judiciário.

O poder Legislativo, exercido por um parlamento, teria como função precípua o


estabelecimento das “leis”, entendidas como preceitos gerais, abstratos e vinculativos.
Gerais porque deveriam ter como destinatários toda a coletividade, abstratas porque
deveriam tratar das situações jurídicas em tese, e não de situações concretas e
específicas, e por fim, vinculativas porque obrigariam todos ao cumprimento do
comportamento descrito. Ao Executivo caberia a função de implementar os comandos
legais, enquanto que ao Judiciário, caberia fiscalizar esta implementação, e zelar ainda
pela integridade da Constituição e pelo respeito aos direitos fundamentais.

12
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política: a filosofia política e as lições dos clássicos. Rio de
Janeiro: Campus, 2000. p. 276
Note-se, portanto, que a lei, em sentido formal, é um conceito central, ao redor do qual
se organizarão os poderes estatais. A atribuição desta importância decorre da visão da
lei como uma forma de garantia da igualdade entre todos, vez que por ser geral, ela
impediria o estabelecimento de privilégios.

Além disso, a lei será instrumento, por excelência, de garantia dos direitos do homem,
ou seja, a lei como garantia do homem contra os arbítrios estatais na medida em que
estabelece um critério objetivo de previsibilidade das relações sociais, sobretudo da
relação entre o cidadão e as instituições estatais.

A tradição liberal articulou os direitos fundamentais do cidadão em torno das liberdades


individuais, notadamente da propriedade. Para Locke e demais ideólogos do Estado
Liberal, o cerne dos direitos políticos e civis era a propriedade, e por isso eles deveriam
zelar, sobretudo, pela autonomia e pela liberdade dos indivíduos, que uma vez
garantidas, permitiriam a todos desenvolver-se economicamente a fim de adquirir os
bens que julgassem necessários a sua sobrevivência13.

Desta forma, inicialmente calcados em ideais liberais e, portanto, essencialmente


individualista, os direitos fundamentais constituem-se, em sua primeira manifestação
histórica, como direitos a prestações negativas, ou ainda, direitos liberdades, cujo
conteúdo essencial é o dever do Estado de não interferir na esfera das liberdades
humanas. Surgem aqui os direitos à liberdade de associação; liberdade de expressão;
liberdade de ir e vir, entre outras.

É também produto desta época a idéia de devido processo legal formal, como
consequência do princípio da legalidade, conformando uma exigência absoluta de
adequação do agir estatal as formas pré-estabelecidas em lei14.

Assim, percebe-se que o Estado liberal concebido no contexto do contratualismo e


centrado na propriedade, fechou-se no chamado império da lei e no formalismo jurídico
abstrato, não reconhecendo uma dimensão social dos direitos fundamentais do cidadão
13
SABINE, George H. História das Teorias Políticas. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1961, 2° vol. p.
519.
14
Segundo a Declaração Francesa de Direitos do Homem e do Cidadão, em seu art. 7: “Ninguém pode ser
acusado, detido ou preso senão nos casos determinados pela lei e de acordo com as formas por ela
prescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou fazem executar ordens arbitrárias devem ser punidos;
mas todo cidadão convocado ou detido em virtude da lei deve obedecer incontinenti: ele se torna culpado
em caso de resistência”. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos.
Op. Cit. p. 154.
e, muito menos, uma esfera de atuação do Estado nas relações de natureza privada,
inclusive no domínio econômico.

No Século XIX o mundo passa por uma transformação nos modos de produção
capitalista de grande monta, que ficou conhecida como “Revolução Industrial”. Esta
expressão designa todo um conjunto de mudanças na produção de bens e riquezas, que
se operaram a partir de meados do século XVIII15.

Como não havia lei que regulasse as relações de trabalho, homens, mulheres e até
mesmo crianças trabalhavam nas novas fábricas. A promessa de emprego nas cidades e
a crescente perda de prestígio das atividades agrícolas levaram ao aumento das
concentrações urbanas, despreparadas para receber este contingente de pessoas, criando
vários problemas e deteriorando as condições de vida.

Além disso, o ambiente interno das fábricas era inadequado e insalubre, com pouca
iluminação e ventilação deficiente, e os salários eram parcos, em razão da grande
demanda por emprego e da diminuição de postos de trabalho16.

Com o aumento da concentração de riqueza e a deterioração do quadro social, acirra-se


a oposição ao Estado Liberal, o que cria um risco para a estabilidade das instituições
burguesas liberais e para a continuidade do sistema capitalista.

15
Há divergências entre os historiadores sobre o significado real da Revolução Industrial. Segundo
HUBERMAN, Leo. História da Riqueza do Homem. 5 e. Rio de Janeiro: Zahar Editores p. 183-186: “A
Revolução industrial é esse fenômeno da mecanização e de fortalecimento do sistema capitalista,
possibilitado pelo avanço da ciência, pela acumulação de capitais, pelo aumento da população com a
expansão colonial e os progressos da medicina. [....] A invenção da máquina para fazer o trabalho do
homem era uma história antiga, mas com a associação da máquina à força do vapor ocorreu uma
modificação importante no método de produção. O aparecimento da máquina movida a vapor foi o
nascimento do sistema fabril em grande escala. Era possível ter fábricas sem máquinas, mas não era
possível ter máquinas a vapor sem fábricas. Além disso a revolução na industria e na agricultura foi
acompanhada pela revolução nos transportes. [...] Foi no século XVIII que tiveram início os
melhoramentos na construção de estradas, abertura de canais, etc... [....] O crescimento da população, as
revoluções nos transportes, agricultura e indústria – tudo isto estava correlacionado. Agiam e reagiam
mutuamente. Eram forças abrindo um mundo novo”. Em sentido contrário SAVELLE, Max (Coord.)
História da Civilização Mundial. Belo Horizonte: Editora Itatiaia ltda., 1968. v. 3, p. 89-90: “Revolução
ou Evolução? Um examinador britânico da história uma certa vez observou com algo de ironia que todos
os estudantes medíocres sabiam que havia uma Revolução Industrial, ao passo que todos os estudantes
adiantados sabiam que não havia. Seu comentário sugere a existência de qualquer coisa de equívoco com
relação ao título deste capitulo.Muitos historiadores de economia queixam-se de que a palavra revolução
é um nome pouco adequado para um processo que se foi verificando pelo menos durante quatro séculos.
O que se chama de Revolução industrial é parte de todo o longo processo de transição da economia
senhorial da época feudal para a moderna economia capitalista. Um marxista diria que ela representa a
passagem de um estágio mais baixo para um mais alto de capitalismo – de variedade comercial do
capitalismo para a industrial”.
16
MANTOUX, P. A Revolução Industrial no século XVIII. São Paulo: Hucitec, 1987. p. 418 e ss.
As graves desigualdades provocadas pela ausência de intervenção do Estado no plano
econômico e social fizeram com que a humanidade buscasse um mínimo de garantias
materiais de existência dos indivíduos, fortalecendo-se a necessidade de intervenção do
Estado no domínio econômico. Nesta época é que surgem os ideais revolucionários,
comunistas e anarquistas, que pregavam uma ruptura com o sistema vigente,
acreditando serem as liberdades individuais, sobretudo o direito à propriedade os
grandes responsáveis, pela concentração de riquezas que se instalava no mundo.

Paralelamente a isso, e com intuito de preservar o sistema econômico, aparecem às teses


reformistas – a social democracia e o cristianismo social, defendendo uma reforma no
Estado que permitisse a inserção de novos direitos, de caráter social, e o
desenvolvimento de formas originais de atuação do Estado17.

Afirmam-se, então, os direitos econômicos e sociais, verdadeiros instrumentos de


reparação dos desníveis socioeconômicos18, que implicam o reconhecimento de
obrigações positivas, comissivas para Estado:

Todas as declarações recentes dos direitos do homem compreendem


além dos direitos individuais tradicionais, que consistem em
liberdades, também os chamados direitos sociais, que consistem em
poderes. Os primeiros exigem da parte dos outros (incluídos aqui os
órgãos públicos) obrigações puramente objetivas, que implicam a
abstenção de determinados comportamentos; os segundos só podem
ser realizados se for imposto a outros (incluídos aqui os órgãos
públicos) um certo número de obrigações positivas19

Por tudo isso, vemos no século XX à sucessiva e gradual substituição da idéia de


democracia liberal, eminentemente formal – sufrágio universal, sistema representativo,
princípio majoritário – por uma democracia material, mais ampla com institutos como a
previdência social e a tributação progressiva20.

17
A este respeito Edvaldo Brito faz uma distinção entre o Estado Social Radical, aquele em que haveria a
supressão das liberdades individuais, e o Estado Social Moderado, no qual o Estado Liberal é substituído
pelo Estado Social de Direito, que introduz direitos sociais sem, no entanto, suprimir as liberdades
individuais” BRITO, Edvaldo. Reflexos Jurídicos da atuação do Estado no domínio econômico. São
Paulo: Saraiva, 1982. p. 20.
18
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Direito Constitucional Econômico. São Paulo: LTR, 2001 p. 135
19
BOBBIO, Noberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Campus, 1992, p. 21
20
BOBBIO, Norberto. Teoria Geral da Política. Op. Cit. p. 271
Duas constituições serão consideradas marcos consagradores desta nova concepção de
Estado: a Constituição Mexicana de 1917, e a Constituição de Weimar, na Alemanha,
em 191921. Ambas instalam uma nova tendência no direito constitucional, que
influenciará todo o mundo ocidental, na qual o Estado, como expressão da coletividade
organizada, deve garantir direitos sociais e econômicos através da instituição de
serviços públicos.

São direitos consagrados, desde esta época: o direito ao trabalho e o direito do trabalho,
o direito à educação, o direito à saúde, o direito à moradia, a previdência social e a
assistência social aos desamparados.

A extensão das funções estatais manifesta-se, portanto, como exigência do processo de


acumulação de capital, ampliada ainda quando a realização do desenvolvimento é
alçada à condição de ideal social.

O Estado é convocado para suprir as insuficiências do sistema. Assume, portanto, a


responsabilidade de ordenar a vida social, sem esvaziar as liberdades individuais, mas,
atuando no processo econômico, a fim de realizar o bem estar social e o
desenvolvimento econômico22.

Com o passar dos anos, a primeira concepção de Estado Dualista centrada na idéia de
serviço público como modo por excelência de satisfação das necessidades coletivas, vai,
pouco a pouco, sendo substituída pela atuação do Estado com vistas à orientação,
definição e fiscalização do desenvolvimento econômico e da distribuição de renda.

21
A Constituição Mexicana, promulgada em 05 de fevereiro de 1917, tem influencia da ideologia
anarcossindicalista, e foi a primeira a reconhecer a existência de direitos fundamentais aplicáveis às
relações de trabalho. No entanto, não logrou grande êxito na instalação de uma ordem democrática social
no país, daí porque não teve a mesma repercussão da Constituição de Weimar, de 1919, que instalou
efetivamente, na Alemanha pós 1ª Guerra Mundial, uma democracia social comprometida com os valores
do trabalho e da família. COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos Direitos Humanos.
Op. Cit. p. 173 e ss.
22
Como afirma Ferrajoli: O Estado de direito, como resultado do conjunto de garantias liberais e sociais,
pode ser, pois, configurado, como um sistema de metaregras em relação ás regras mesmas da democracia
política. Precisamente, se a regra do Estado liberal de direito nem sobre tudo se pode decidir, nem mesmo
em maioria, a regra do Estado social de direito é aquela a qual nem sobretudo se pode não decidir, nem
mesmo em maioria:sobre questão de sobrevivência e subsistência, por exemplo, o Estado não pode não
decidir, mesmo se não se interessarem a maioria. Apenas sobre todo resto vale a regra da democracia
política segundo a qual se deve decidir por maioria, direta ou indireta, dos cidadãos” [...] “O princípio da
democracia política, relativo a quem decidi (deve ser) é, em suma, subordinado ao princípios da
democracia social relativos ao que não é lícito decidir e ao que não é lícito não decidir” FERRAJOLI,
Luigi. Direito e Razão. Op. Cit.p. 797-798
Tais transformações tornaram imprescindível reconstituir o Estado de forma que ele não
apenas garantisse a propriedade e os contratos (Estado Liberal), mas também exercesse
seu papel complementar ao mercado na coordenação da economia para consagração do
bem estar social e do desenvolvimento econômico.

Inicia-se assim, uma transformação nas estruturas política e econômica que com a
construção de verdadeiro complexo instrumental, permita absorver a síntese dualista do
Estado de Bem Estar Social e do desenvolvimento econômico. O Estado
Intervencionista conduz a necessidade do desenvolvimento de entidades por meio das
quais se processe a satisfação das necessidades coletivas, sem abrir mão, no entanto, dos
seus privilégios contidos no Direito Publico.

Torna-se o Estado contemporâneo, uma organização comprometida com a satisfação de


todas as necessidades coletivas, inclusive àquelas não-econômicas e as que não foram
tornadas públicas pelos órgãos políticos.

Segundo José Souto de Moura:

Somos então levados a descobrir uma concepção do homem em que


este se auto-atribui uma especial dignidade, que o configura como
sujeito autônomo e eticamente responsável. Dignidade que surge
como corolário de que, “o natural” no homem é ser racional, e por
isso é que ele constantemente luta pela sua progressiva emancipação
individual e colectiva, aliás, em moldes sempre renovados23.

A partir de então os direitos fundamentais sofrem um processo contínuo de ampliação e


especificação com o aparecimento de novas categorias, entre elas, os direitos difusos e
coletivos24.

Ressalte-se que a consagração dos chamados direitos-poderes não implicou a superação


dos direitos-liberdades; não houve alternância e sim cumulatividade, com o

23
MOURA, José Souto de. A Protecção dos Direitos Fundamentais no Processo Penal, p. 10.
Disponível em: http://www. smmp.pt/online/pdf/conf 24032004. Acesso em 26 nov. 2006
24
Os direitos difusos e coletivos, meta-individuais ou de solidariedade, representam a terceira dimensão
dos direitos humanos. E se caracterizam pela indeterminação dos titulares dos interesses e pela sua
indivisibilidade, ou seja, a satisfação ou lesão do direito não se dá de modo fracionado entre os
indivíduos. O direito paradigmático nesta geração é o direito ao meio ambiente. WOLKMER, Antonio
Carlos. Novos Pressupostos para a Temática dos Direitos Humanos, p. 07-10. In: Direitos Humanos e
Globalização: fundamentos e possibilidades desde a teoria crítica. RUBIO, David Sanchez; FLORES,
Joaquín Herrera; CARVALHO, Salo de (orgs.). Rio de Janeiro: LumenJuris, 2004, p. 03-19
reconhecimento da natureza complementar de todos os direitos, sua unidade e
indivisibilidade25.

Os direitos fundamentais deixam de ser meros suportes para o controle das atividades
do Poder Público, servindo também para conferir à sociedade os meios imprescindíveis
para o seu justo desenvolvimento através dos direitos a prestações sociais e à
participação do cidadão, de forma direta, na busca de proteção e na reivindicação dos
seus direitos. Assim a diversidade de direitos implica também a diversidade de funções
exercidas por eles que atuam ora como direitos de defesa, ora como direitos de cunho
prestacional.

Mas, importante notar que este processo histórico de formação dos direitos humanos é
também o processo de constitucionalização do Estado. Desde a primeira dimensão dos
direitos fundamentais – os direitos de liberdade – cristaliza-se o reconhecimento
material e formal do status constitucional destes direitos.

Assim, como salienta Sarlet:

É necessário frisar que a perspectiva histórica ou genética assume


relevo não apenas como mecanismo hermenêutico, mas,
principalmente, pela circunstância de que a história dos direitos
fundamentais é também uma história que desemboca no surgimento
do moderno Estado constitucional, cuja essência e razão de ser
residem justamente no reconhecimento e na proteção da dignidade
humana e dos direitos fundamentais do homem26.

Os direitos fundamentais estão indissociavelmente vinculados às noções de Estado de


Direito e de Constituição. Eles são responsáveis, em grande medida, pela autêntica
dignidade fundamental outorgada à Constituição ao longo da história, constituindo
elemento nuclear da Constituição formal e, também, da Constituição material:

25
A universalidade significa o reconhecimento de todos os seres humanos como titulares dos direitos
humanos, a indivisibilidade, por sua vez, implica o reconhecimento e que todos os direitos humanos são
imprescindíveis à existência humana, não havendo relação de prevalência entre direitos ou dimensões de
direitos humanos. PIOVESAN, Flávia. A universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos:
desafios e perspectivas. In: Direitos Humanos na sociedade cosmopolita. BALDI, César Augusto (org.)
Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 45-73. A pretensão de universalidade, em verdade, acompanha os
direitos fundamentais desde sua origem, em função, mesmo, do seu fundamento jusnatural. ARRUDA,
Samuel Miranda. O Direito Fundamental à razoável duração do processo. Brasília: Brasília Jurídica,
2006. p. 28. A universalidade é um traço característico da teoria kantiana dos direitos humanos e tem sido
criticada por aqueles que entendem que os direitos são sempre elementos de uma determinada cultura e
assim só teriam validez particular ou relativa. ALEXY, Robert, Teoria del discurso y derechos
humanos. Op. Cit. p. 64-65
26
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Op. Cit. p. 38
Tendo em vista que a proteção da liberdade por meio dos direitos
fundamentais é, na verdade, proteção juridicamente mediada, isto é,
por meio do Direito, pode afirmar-se com segurança, na esteira do
que leciona a melhor doutrina, que a Constituição (e, neste sentido, o
Estado constitucional), na medida em que pressupõe uma atuação
juridicamente programada e controlada dos órgãos estatais, constitui
condição de existência das liberdades fundamentais, de tal sorte que
os direitos fundamentais somente poderão aspirar à eficácia no
âmbito de um autêntico Estado constitucional27

Segundo Marcelo Guerra, o que caracteriza os direitos fundamentais, como uma nova
categoria jurídica, é, precisamente, a força jurídica28. Para além das funções limitativas
do poder, os direitos assumem papel de verdadeiros “critérios de legitimação” do poder
estatal, ou seja, o poder estatal só se justifica pela realização dos valores fundamentais.

Estes critérios se aplicam também à ordem jurídica estatal, não apenas formalmente,
mas também materialmente, atuando, portanto, como fundamento material e formal de
todo o ordenamento jurídico, visto a partir de então como verdadeiro “sistema
axiológico”.

Assim, a constitucionalização revela-se, não apenas por meio da positivação de novos


direitos, mas, sobretudo, no fenômeno da “transmutação hermenêutica” e da criação
jurisprudencial, que assume função relevante no reconhecimento de novos conteúdos e
na expansão dos efeitos de direitos tradicionais29.

Com isso, pouco à pouco abandona-se o dogma liberal da legalidade – e o conceito


excessivamente formalista de direitos fundamentais – em prol de um conceito material,
calcado na equiparação dos direitos cujo conteúdo e importância tenham natureza jus
fundamental, àqueles constantes do rol constitucional. Ou seja, fala-se em uma
fundamentalidade material, ampliando o espaço de reconhecimento jurisprudencial de
direitos fundamentais infraconstitucionais ou mesmo implícitos 30.

Neste sentido Sarlet:

27
SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit. p. 62
28
GUERRA, Marcelo. Direitos fundamentais e a proteção do credor na execução civil. São Paulo:
revista dos Tribunais, 2003, pág. 30.
29
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Op. Cit. Pág. 57
30
Segundo SARLET, Ingo Wolfgang: os critérios para aferição da condição jus fundamental de uma
norma não constante do catalogo constitucional são: similitude de conteúdo e de dignidade; estreita
vinculação com o Princípio da Dignidade Humana e, possuir função protetiva, ou seja, buscar assegurar e
proteger certos bens individuais ou coletivos considerados essenciais. Op. Cit. p. 94-122.
Neste contexto aponta-se para a circunstância de que, na esfera do
direito constitucional interno, esta a evolução se processa
habitualmente, não tanto por meio da positivação destes “novos
direitos”, mas principalmente em nível de uma da transmutação
hermenêutica e da criação jurisprudencial, no sentido do
reconhecimento de novos conteúdos e funções de alguns direitos já
tradicionais31.

Esta atividade hermenêutica, no entanto, deve ser utilizada com cautela, sempre
justificada a partir dos valores albergados na própria constituição sob pena de perda da
relevância e do prestígio desta categoria de direitos.

Por fim, a eficácia dos direitos fundamentais expande-se nos planos horizontal e vertical
para abarcar não só as relações dos cidadãos com o Estado, mas as relações dos
particulares entre si32.

Assim, os direitos fundamentais possuem no ordenamento jurídico contemporâneo um


significado e alcance, para além das funções tradicionais, integrando um sistema
axiológico que atua como fundamento de todo o ordenamento jurídico.

31
SARLET, IngoWolfgang. Op. Cit. p. 56-57.
32
A eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas é explicada por três teorias. A primeira,
adotada nos EUA através da doutrina do State Action, exclui a aplicação dos direitos fundamentais das
relações jurídico privadas.A segunda teoria prega a eficácia horizontal indireta e imediata destes direitos
das relações privadas, dependente, portanto, da vontade do legislador ordinário, ou aplicada apenas como
vetor axiológico de interpretação das relações jurídico privadas. No Brasil, apesar da escassa doutrina
sobre o assunto, encontrou albergue a terceira teoria segundo a qual os direitos fundamentais têm eficácia
direta e imediata nas relações jurídicas de natureza privada. cf. SARMENTO, Daniel. Direitos
Fundamentais e Relações Privadas. Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 2004. p. 228 e ss.

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