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COCAÍNA
Robin Cook
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PRÓLOGO
A mente de Duncan Andrews funcionava a toda a velocidade,
como um comboio desarvorado. Apenas um momento antes,
estivera mergulhado numa letargia titubeante de drogado. Em
escassos segundos, as vertigens e apatia tinham-se evaporado
como um gotejamento de água numa caçarola crepitante.
Consumia-o um afluxo de euforia e energia que o fazia sentir-se
subitamente poderoso. Afigurava-se-lhe que era capaz de tudo.
Num fulgor de nova clareza, reconhecia-se infinitamente mais forte
e sagaz do que jamais supusera. Mas quando principiava a
saborear a cascata de pensamentos eufóricos e a visão iluminada
das suas capacidades, passou a sentir-se dominado por intensas
vagas de prazer. Teria gritado de alegria se a boca pudesse formar
as palavras apropriadas. Mas não conseguia falar. Os pensamentos
e as sensações repercutiam-se no espírito demasiado rapidamente
para se vocalizarem. Qualquer receio ou desconfiança que tivesse
experimentado poucos minutos antes fundia-se no novo deleite e
êxtase. No entanto, à semelhança do torpor, o prazer foi de curta
duração. O sorriso de felicidade que se lhe formara no rosto
converteu-se num esgar de terror. Uma voz advertiu-o de que as
pessoas que temia se aproximavam. Os seus olhos esquadrinharam
o aposento, dominados pelo pânico. Não viu ninguém, mas a voz
prosseguiu a sua mensagem. Espreitou rapidamente por cima do
ombro, para a cozinha. Estava deserta. Tornou a mover a cabeça e
observou o corredor até ao quarto. Não viu ninguém, porém a voz
persistia. Agora, murmurava uma predição mais terrível: ele ia
morrer.
- Quem é você? - gritou, levando as mãos às orelhas, como se
quisesse impedir o som de entrar. - Onde está? Como entrou?
- Os olhos voltaram a percorrer a sala com ansiedade.
A voz não respondeu. Ele não sabia que provinha do interior da
sua cabeça. Descobriu, surpreendido, que estava deitado no chão
da sala. Quando se levantava, o ombro colidiu com a
mesa de café. A seringa que se cravara muito recentemente no
seu braço rolou para o chão. Duncan olhou-a com um misto de ódio
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e pesar e estendeu a mão para a esmagar entre os dedos.
Imobilizou-se a curta distância dela. Os olhos arregalaram-se de
confusão mesclada com um novo medo. Sentiu imediatamente a
comichão inconfundível de centenas de insectos que rastejavam
pelos braços. Desinteressou-se da seringa e estendeu as mãos,
com as palmas voltadas para cima. Podia notar as pulgas que
trepavam pelos membros, mas por mais que procurasse não
conseguia vê-las. A pele parecia perfeitamente limpa. De súbito, a
comichão propagou-se às pernas.
- Aaahhh! - uivou.
Tentou limpar os braços, imaginando que os insectos eram
demasiado pequenos para que os pudesse ver, mas só conseguiu
que a comichão se agravasse. Com um estremecimento de medo
profundo, acudiu-lhe a ideia de que os organismos tinham de estar
sob a pele. Haviam-lhe invadido o corpo. Talvez se encontrassem
na seringa. Servindo-se das unhas, começou a coçar os braços,
numa tentativa frenética para permitir que se escapassem. Estavam
a devorá-lo por dentro. Passou a coçar com mais força,
desesperadamente, e cravou as unhas na pele até que começou a
sangrar. A dor era intensa, mas a comichão dos insectos muito pior.
Apesar do terror que eles lhe provocavam, parou de se coçar ao
aperceber-se de um novo sintoma. Levantou a mão ensanguentada
e viu que tremia. Baixou os olhos para o corpo e verificou que o
tremor se generalizara e era cada vez mais intenso. Por um breve
instante, considerou a possibilidade de marcar 911, para pedir
auxlio. Ao mesmo tempo, porém, reparou noutra coisa. Estava
quente. Não, estava a escaldar.
- Meu Deus! - conseguiu balbuciar, quando notou que a
transpiração rolava pelo rosto.
Pousou a mão trémula na fronte - estava a arder! Tentou
desabotoar a camisa, mas o tremor dos dedos não lho permitiu.
Impaciente e desesperado, rasgou-a com um puxão, despiu-a e
largou-a no chão. Fez o mesmo às calças. Apesar de ficar apenas
com as cuecas vestidas, continuava a sentir um calor sufocante. De
repente, pôs-se a tossir, engasgou-se e vomitou num jacto
irreprimível, que atingiu a parede por baixo de uma litografia
assinada por Dali. Cambaleou em direcção à casa de banho. Graças
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a um assomo de força de vontade, arrastou o corpo trémulo para
debaixo do chuveiro e abriu a torneira de água fria. Permaneceu
sob a cascata quase gelada, ofegante, respirando com dificuldade.
O alívio foi de curta duração. Escapou-se-lhe dos lábios um gemido
plangente e a respiração tornou-se penosa, enquanto uma dor
excruciante se cravava no lado esquerdo do peito e propagava ao
longo do braço. Duncan pressentiu intuitivamente que se
desencadeara um ataque cardíaco. Apertou o peito com a mão
direita. O sangue dos braços feridos pelas unhas misturava-se com
a água do chuveiro e escoava-se pelo ralo. Quase rastejando,
abandonou a casa de banho e dirigiu-se para a porta do
apartamento. Não se preocupava com o facto de estar desnudo,
pois precisava de ar. O cérebro em turbilhão estava prestes a
explodir. Recorrendo à derradeira reserva de energia, rodeou o
puxador com os dedos e abriu a porta.
- Duncan! - exclamou Sara letherbee, abismada, a mão suspensa
no ar a poucos centímetros da porta dele, pois preparava-se para
bater, quando esta se abrira de rompante. - Meu Deus! -
prosseguiu, ao vê-lo em cuecas. - Que te aconteceu?
Duncan não reconheceu a amante dos últimos dois anos e meio.
Precisava era de ar. A dor intensa no peito transmitira-se aos
pulmões, e tinha a impressão de que o apunhalavam
repetidamente. Precipitou-se para a frente, enquanto estendia o
braço para afastar Sara do caminho.
- Duncan! - repetiu ela, perplexa com o que via: a nudez, os
arranhões nos braços, o olhar esgazeado e trejeitos de dor no
rosto. Recusando desviar-se, pousou-lhe as mãos nos ombros e
deteve-o. - Que se passa? Onde vais?
Ele hesitou. Por um breve momento, a voz dela penetrou na sua
demência. A boca abriu-se como se fosse dizer alguma coisa. No
entanto, não conseguiu proferir uma única palavra. Ao invés, novo
gemido, que terminou numa exclamação abafada, enquanto os
tremores coagulavam em estremecimentos espasmódicos e os
olhos desapareciam no interior da cabeça. Misericordiosamente
inconsciente, tombou nos braços de Sara. A princípio, ela
esforçou-se para o manter de pé, mas não conseguiu, em especial
porque os tremores convulsivos se tornavam progressivamente mais
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violentos. Por fim, com a maior suavidade possível, deixou o corpo
agitado deslizar para o chão. Quase no mesmo instante em que
pousaram no soalho, as costas de Duncan formaram um arco e os
tremores cristalizaram rapidamente nas contracções espasmódicas
de uma doença grave.
- Acudam! - gritou Sara, olhando em volta.
Como era de prever, não apareceu ninguém. Além do ruído que
Duncan produzia, o único som que conseguia ouvir eram os acordes
ensurdecedores de um equipamento de alta-fidelidade.
Desesperada por obter ajuda, conseguiu passar por cima do corpo
convulsivo de Duncan. O vislumbre da boca ensanguentada e
coberta de espuma aterrorizou-a ainda mais. Ansiava por que
aparecesse alguém, mas não sabia o que fazer além de chamar
uma ambulância. Com o dedo trémulo, premiu os botões do
telefone da sala para ligar ao 13911. Enquanto aguardava com
impaciência que atendessem, ouvia a cabeça dele bater
repetidamente no chão. Sara estremecia de pavor ante cada
embate e rogava aos céus que o auxilio chegasse sem demora.
Ela afastou as mãos do rosto e olhou o relógio. Eram quase três
horas da madrugada. Encontrava-se sentada naquela cadeira de
fórmica da sala de espera do Hospital Geral de Manhattan havia
mais de três horas. Esquadrinhou pela milésima vez o apinhado
aposento, que tresandava a fumo de cigarro, suor, álcool e roupa
de lã húmida. Havia um grande letreiro mesmo em frente dela que
dizia: NãO FUMAR, Mas o aviso era totalmente ignorado. Os
doentes misturavam-se com aqueles que os acompanhavam. Havia
bebés e crianças de tenra idade que começavam a andar, ruidosos,
ébrios feridos por espancamento ou outras causas similares e
alguns pacientes que envolviam um dedo cortado num pedaço de
pano ou com uma toalha encostada a um queixo esfaqueado. A
maioria fixava o olhar no espaço à sua frente, com indiferença,
alheia à espera interminável. Uns estavam obviamente doentes e
outros sob o efeito de dores agudas. Um homem trajado de forma
irrepreensível tinha o braço em torno da não menos elegante
companheira. Poucos momentos antes, travara-se de razões com
uma enfermeira de ares intimidativos, que não se mostrara
impressionada com a sua ameaça de telefonar ao advogado se a
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mulher não fosse observada imediatamente. Por fim, resignado,
também olhava um ponto indefinido à sua frente. Sara voltou a
fechar os olhos e sentiu o latejar das pulsações nas têmporas. A
imagem vívida de Duncan dominado por convulsões à entrada do
apartamento não lhe abandonava o espírito. Ela sabia que,
independentemente do que acontecesse naquela noite, jamais
conseguiria varrer a visão da mente. Depois de chamar a
ambulância e indicar o endereço dele, voltara para o seu lado.
Recordara-se vagamente de que devia ser introduzido algo na boca
de uma pessoa sob o efeito de convulsões para que não mordesse
a língua. No entanto, por mais esforços que fizesse, não conseguira
descerrar-lhe os dentes, como que grudados. Pouco antes da
aparição do médico, Duncan parara finalmente de se agitar em
estremecimentos espasmódicos. A princípio, Sara ficara aliviada,
mas apercebera-se a seguir, com renovado alarme, que ele não
respirava. Limpou-lhe a espuma e os vestígios de sangue dos
lábios e tentou a respiração boca a boca, mas descobriu que tinha
de lutar contra a náusea. Entretanto, haviam acudido ao corredor
vários vizinhos de Duncan e, ante o alívio dela, alguém disse que
fora enfermeiro na marinha e, juntamente com outro indivíduo,
prestou assistência ao sinistrado até à chegada da ambulância.
Sara não conseguia imaginar o que acontecera. Apenas meia hora
antes, ele telefonara-lhe para que o procurasse. Julgara detectar
uma ponta de tensão na voz, mas, de qualquer modo, não se
achava minimamente preparada para o encontrar em semelhante
estado. Estremeceu mais uma vez ao vê-lo estendido na sua frente
à entrada do apartamento, com as mãos e braços ensanguentados
e o olhar esgazeado. Dir-se-ia que enlouquecera. Viu-o pela última
vez, num instante fugaz, depois de chegarem ao Hospital Geral.
Tinham-na autorizado a seguir na ambulância, que efectuou o
percurso a uma velocidade alucinante pelo tráfego intenso de Nova
Iorque. Eles levaram-no através de um par de portas de vaivém e
desapareceram nas entranhas da unidade de emergência. Ela ainda
tinha presente o momento em que a maca de rodas as transpusera,
com o médico a efectuar compressões no peito.
- Sara - chamou uma voz, que a arrancou das cogitações.
- Sim? - articulou, erguendo os olhos.
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Um jovem médico que apresentava uma barba por fazer e trazia
uma bata branca algo salpicada de sangue materializara-se diante
dela.
- Sou o doutor Murray. Importa-se de vir comigo? Preciso de
falar consigo por um momento.
- Com certeza - assentiu Sara, com nervosismo. Levantou-se e
ajeitou a correia da carteira a tiracolo, após o que principiou a
caminhar atrás do médico, que dera meia volta quase antes que
ela tivesse tempo de responder. As mesmas portas que haviam
tragado Duncan três horas antes fecharam-se agora atrás de
ambos. O doutor Murray deteve-se quase imediatamente e virou-se
para a encarar. Sara fitou com ansiedade os seus olhos fatigados,
empenhada em divisar uma réstia de esperança, que, no entanto,
se achava totalmente ausente.
- É a namorada do senhor Andrews? - começou ele, num tom que
denunciava igualmente cansaço. Fez uma pausa, enquanto ela
aquiescia com um leve movimento de cabeça. - Em regra, falamos
primeiro com a família, mas sei que veio com o paciente e tem
estado todo este tempo à espera. Lamento que demorasse tanto,
mas chegaram várias vítimas de uma cena de tiros que nos
monopolizaram por completo.
- Compreendo - murmurou Sara. - Como está o Duncan? - Tinha
de fazer a pergunta, embora não se achasse muito ansiosa por
conhecer a resposta.
- Posso garantir-lhe que o pessoal clínico fez tudo o que estava
ao seu alcance. Infelizmente, não foi possível salvá-lo. Ele estava
DOA. Sinto muito...
Olhou-o com incredulidade, desejosa de notar uma ponta do
mesmo pesar que se avolumava no seu íntimo. No entanto, a única
coisa de que se apercebia era cansaço. A aparente ausência de
sensibilidade dele ajudou-a a manter a serenidade.
- Que aconteceu? - perguntou, quase num murmúrio.
- Estamos noventa por cento convencidos de que a causa
imediata foi um enfarte maciço do miocárdio, ou ataque cardíaco -
informou ele, obviamente mais à vontaDe com a sua terminologia
profissional. - Mas a principal parece residir numa toxicidade de
drogas, ou overdose. Ainda não sabemos qual era o seu nível
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sanguíneo. É uma coisa que tarda algum tempo.
- Drogas? - repetiu Sara, perplexa. - Refere-se a alguma em
especial?
- Cocaína. O médico da ambulância até trouxe a agulha que ele
utilizou.
- Nunca me constou que o Duncan consumisse cocaína. Disse
mais de uma vez que não queria nada com as drogas.
- As pessoas costumam mentir acerca do sexo e das drogas. E,
sobre a cocaína, há casos em que uma vez basta. Pouca gente está
ao corrente do perigo que representa. A sua popularidade infundiu
uma falsa sensação de segurança. De qualquer modo, precisamos
de contactar com a família. Sabe o número do seu telefone?
Aturdida pela morte de Duncan e a revelação do aparente
consumo de cocaína, Sara recitou em voz átona o número do
telefone dos Andrews. O facto de pensar em drogas permitia-lhe
evitar concentrar-se na morte. Ao mesmo tempo, interrogava-se
acerca de há quanto tempo ele e injectaria sem o seu
conhecimento. Era tão difícil de compreender... E ela convencida de
que o conhecia muito bem!
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CAPíTULO 1
NOVEMBRO, SEGUNDA-FEIRA, 6 horas
NOVA IORQUE
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CAPítULO 2
SEGUNDA-FEIRA, 21 e 40
QUEENS, NOVA IORQUE
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CAPítULO 3
TERÇA-FEIRA, 7 horas.
MANHATTAN
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CAPíTULO 4
TERçA-FEIRA
MANHATTAN
94
CAPíTULO 5
QUARTA-FEIRA, 6 e 40
MANHATTAN
12
3
CAPíTULO 6
QUARTA-FEIRA, 20 e 40
MANHATTAN
15
0
CAPíTULO 7
QUINTA-FEIRA, 7 e 40
MANHATTAN
17
3
CAPíTULO 8
QUINTA-FEIRA, 15 horas
MANHATTAN
19
1
CAPíTULO 9
QUINTA-FEIRA, 23 horas
MANHATTAN
19
9
CAPítULO 10
SEXTA-FEIRA, 6 e 40
MANHATTAN
Fim
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3