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SOPRO

Debate 21
Desterro, fevereiro de 2010
Panfleto politico-cultural
www.culturaebarbarie.org/sopro

IDEOLOGIA ID

JORNALÍSTICA E PODER
Hugo Albuquerque

A palavra “jornal” vem do francês journal, literalmente, avanço econômico na Europa, em especial, depois
“diário” – trata-se de um publicação impressa em pa- das Grandes Navegações e a consequente explora-
pel, cuja periodicidade é diária. Seu embrião remonta ção do continente americano pelas potências daquele
à contribuição inestimável de Gutemberg para a hu- continente. A tecnologia tipográfica era uma das mo-
manidade: A criação de prensas tipográficas capazes las daquele desenvolvimento e, ao mesmo tempo,
de produzir material gráfico, em papel, de modo seria- seu tributário; esse fenômeno, inclusive, é um dos
do em uma escala considerável. Tal advento histórico elementos centrais para o surgimento do protestan-
é aquilo que McLuhan entende pelo pedra fundamen- tismo e do declínio da influência de Roma em grande
tal da comunicação em massa, o surgimento do ho- parte da Europa Ocidental.
mem tipográfico como ele bem definiu; no entanto, a Durante o século das luzes, os déspotas esclare-
origem do jornal tal como nós o conhecemos é uma cidos tinham como viga mestra política a doutrina da
herança do iluminismo, em particular, dos panfletos não confrontação do processo processo civilizatório,
políticos difundidos durante as revoluções burguesas. mas sim da sua apropriação para garantir a manu-
A revolução gutemberguiana teve um peso gi- tenção do status quo - de tal maneira, as monarquias
gantesco; ela resolveu a contradição fundamental europeias, à luz do aumento da complexidade econô-
da Idade Média: Se desde tempos imemoráveis, o mica de seus reinos, iam até as fontes do iluminismo
homem civilizado carecia da circulação de ideias em e se usavam de muitos de seus conceitos. Mesmo
maior quantidade e velocidade, no Medievo, ele se dentro de um quadro de promoção de mudanças po-
via completamente dependente dos monges copistas líticas cujo fim era a conservação da própria Ordem,
no que concerne à circulação de ideias. Tais monges evidentemente mudanças mais profundas ocorriam
formavam um importante grupo à serviço da Igreja, com a mudança da relação entre soberanos e sú-
pois eram eles que, na prática, garantiam a sua hege- ditos – principalmente se levarmos em conta que a
monia cultural – que, como sabemos desde Gramsci, pedra fundamental desse processo civilizatório era a
trata-se do alicerce da própria hegemonia política. massificação da alfabetização, em especial, no caso
Dos jornais surgiram os jornalistas, o saber prático prussiano com Frederico II.
denominado jornalismo e uma ideologia correspon- Tal conjuntura, que unia a existência de meios tec-
dente – sobre a qual dissertarei mais adiante. nológicos de difusão em massa da mensagem escrita
Dentro desse cenário de superação das amarras à existência de meios sociais para a compreensão da
medievais, na qual a tecnologia de imprensa ocupa- mesma, foi um dos principais elementos da escala-
va uma posição de destaque, sucedeu-se um brutal da da burguesia e, ao mesmo tempo, um importante

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arma para que ela alcançasse a hegemonia. A impor- explicar as coisas ouvindo sempre os “dois lados” – Quando o Capitalismo brasileiro atinge o patamar que os filhos da classe trabalhadora ascendessem
tância dos panfletos durante a Revolução Burguesa sem considerar em que patamar econômico, social ou de desenvolvimento suficiente, ele produz a impren- nas redações e assim o Oligopólio Midiático teria sua
foi fundamental. Boa parte do poder de um Danton, moral se encontrem – , de forma “neutra” e “objetiva”. sa e, ao mesmo tempo, os mecanismos de contro- mão-de-obra previamente filtrada – jornalistas forma-
por exemplo, decorria de seu jornal – assim como boa Os trabalhadores organizados da Europa do le sobre ela – para assegurar que ele atenda a sua dos na rua e sem educação formal estavam expulsos
parte da reação girondina só foi possível por conta do século 19º descobrem que dominar a mídia é um finalidade: A manutenção da hegemonia burguesa. das redações. Um processo deliberado de elitização
domínio que a alta burguesia já exercia em relação passo importante na luta social. Sindicatos socia- A construção no Brasil do ethos do “jornalista” tem da mão-de-obra semelhante ao advento que varreu
tanto à imprensa escrita quanto às fábricas de papel. listas produzem jornais e apresentam a versão dos muito a ver com a alegoria liberal e, de certa maneira, definitivamente a figura do rábula do nosso mun-
Napoleão também soube se usar dessa fonte, apesar trabalhadores, mas a ampla maioria deles caem na com a tradição bacharelesca típica do nosso país. A do judicial foi posto em prática. Essas são as linhas
dela ter se virado contra ele quando ele se tornou um mesma falácia do jornalismo burguês, sendo apenas relação entre Direito e Magia – que remonta às ori- mestras que determinaram os rumos da mídia brasi-
problema para a mesma burguesia que o criou. mais meios de comunicação classistas, portanto, gens distantes do primeiro – aflora no nosso país por leira dos anos 60 até o término do século 20º. De um
A hegemonia burguesa no século 19º assentou- vendem versões meramente inversas às da imprensa conta da organização social hierarquizada decorrente sistema que se restringia quase que exclusivamente
se sobre a ideologia liberal e é dentro desse cenário burguesa. Eles absorvem as prática e técnicas que da forma como o território foi colonizado e da ideolo- à zona urbana com o Rádio e os jornais e terminou
em que a imprensa clássica teve muitos dos seus constituem o arcabouço do jornalismo, questionam a gia positivista responsável por detrás do processo de com um sistema de televisionamento e radiodifusão
fundamentos centrais fixados; em um primeiro lugar, natureza da “neutralidade” e da “objetividade” da im- imposição da República. massificado (além de uma potente mídia escrita) no
o nascente “jornalismo” se arroga da pretensão de prensa burguesa, mas não rompem totalmente com o Se no mundo ocidental, o advogado é esse me- término do século.
neutralidade, objetividade e da concepção de ouvir paradigma da ideologia jornalística – ou, no máximo, diador com o poder de permitir o acesso do reles O outro ponto de inflexão na relação de mídia e
“os dois lados”, partindo de antemão da existência de caem num extremo de negação da verdade factual, mortal à sacro-santa dimensão do Estado Burguês, poder que irá alterar substancialmente tais relações,
uma simetria prévia entre as partes – e classes – que que é o mesmo terrível engano que, décadas mais aqui ele ganha uma incomum proeminência por conta seja no Brasil ou no Mundo, é o advento da Internet;
se confrontavam. A economia capitalista industrial do tarde, será um dos fundamentos do desastre stalinista da nossa organização social; o mesmo vale para o criada com fins militares, a Internet é uma decorrência
século 19º necessita da difusão em massa de comu- na União Soviética, seja na doutrina que apresenta jornalista que está sendo construindo pela Ordem: Ele óbvia do avanço da informática e ao mesmo tempo
nicação para conseguir concretizar o modo de orga- um Leviatã pintado de vermelho como caminho para a é o agente mediador responsável por narrar a realida- um estandarte do utilitarismo americano – caracte-
nização social complexo do qual ela depende e, para emancipação humana ou na tentativa de justificação de factual de acordo com o prisma dominante, é ele rizado pela capacidade incomum em reutilizar suas
tanto, ela produz os meios para exercer tal função e a racional do partidarismo da mídia e do próprio modo quem abre o portal mediante o qual fatos comuns po- criações bélicas na economia comum. A Internet se
própria ideologia por meio da qual se estruturariam os de narrar a História. dem acessar as páginas sacras das escrituras, isto é, estrutura como um sistema informacional em rede
métodos para realizar essa mediação. No Brasil do século 19º, os jornais tiveram lá sua os jornais – e é mediante tal processo que o sistema de alcance global e, na prática, representa o ponto
As falácias sobre as quais se assentam a im- influência na independência, mas levando em conta lhes atribuirá importância. de convergência de todas as mídias já existentes em
prensa liberal são a expressão comunicacional das a pequena quantidade de pessoas alfabetizadas – A ditadura militar brasileira, instituída por meio do uma só coisa, capaz de transmitir dados em uma ve-
falácias jurídicas e políticas liberais; em suma, todas mesmo em meio a nossa elite -, eles não foram a Golpe de 64, necessita estabelecer mais controle da locidade – e para uma distância – ímpar.
elas decorrem das falácias gerais dos liberalismo e arma central de tal processo. No Golpe de Estado imprensa ao mesmo tempo em que fomenta o avanço A possibilidade da criação de uma miríade de es-
que, por sua vez, caminham na contramão da filosofia que resultou na República, tal influência foi um pouco das telecomunicações – nada mais natural. Ela pro- paços novos dentro dessa rede mundial somada ao
clássica: O descobrimento da realidade deixa de ser maior, mas eles só vieram a adquirir uma importância duz um oligopólio midiático e, dentro da mais pura desenvolvimento de mecanismos de buscas como o
o horizonte a ser buscado e, de repente, é como se considerável no debate politico apenas no século 20º, lógica positivista, ordena as coisas para fazê-las pro- Google – que, no fim das contas, garantem a unidade
ele já tivesse sido atingido, só nos restando agir de quando a industrialização do país produziu a tecnolo- gredir. As empresas jornalísticas que apoiaram a der- da web, funcionando como o fecho necessário para
acordo com seus ditames: Não pense, não reflita, não gia necessária para produzir material impresso em rubada do Governo Goulart assistem ao esmagamen- garantir a coerência da rede -, possibilitam a criação
sonhe, a verdade já foi encontrada e só resta agir à escala assim como as estruturas educacionais que to das suas concorrentes que se opuseram ao Golpe de uma universo libertário – no sentido americano
partir dela. Outro ponto digno de relevo é a doutrina alfabetizaram uma quantidade mínima de pessoas e tornam-se agora os auto-falantes do novo regime do termo -, passível de ser anarquizado e, assim,
de igualar desiguais - notadamente pré-aristotélica – para compreender o significado daquela espécie de que visa desenvolver o capitalismo nacional a qual- assistimos a uma profunda alteração nas relações
que, por óbvio, favorece o mais forte ao colocar no mensagem. Não por coincidência, o primeiro gover- quer custo. Outra medida de ordenação das relações econômicas, sociais, políticas e pessoais devido a
mesmo patamar agressores e agredidos, opressores no da nossa história que traça uma política firme de midiáticas é a depuração da própria mão-de-obra. A nova espécie de interação mediada, na verdade, a
e oprimidos. A linguagem de força, isto é, neutralizan- censura e controle geral da imprensa é, justamente, exigência de diploma de jornalista nos fins dos anos maior revolução contemporânea e a verdadeira – e
te, torna-se, como na passe de mágica, neutra. Eis as aquele que, mais do que qualquer um outro, trabalhou 60 (Por meio do Decreto-Lei 972/69) aconteceu não única - quebra do paradigma comunicacional de mas-
bases da ideologia burguesa e é sobre ela que deverá em prol do desenvolvimento industrial e da urbaniza- por obra da mobilização sindical, como alguma men- sa estabelecido no período posterior às revoluções
se assentar a ideologia jornalística: Devemos apenas ção do país – e, claro, falo aqui de Vargas. te ingênua pode pensar: O Regime buscava impedir burguesas. A Internet funciona de forma antitética

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aos meios de comunicação em massa tradicionais: tamos deslocados, somos nós mesmos que estamos de São Paulo (Sertesp) e pelo Ministério Público Fe- nalizada ou, no máximo, nacionalizada, centrado nas
ela não é parte de um centro difusor que chega a na rede atuando; aquela velha mediação produzida deral. Isso foi um efeito claro do impacto econômico questões tangentes ao Estado-nação, de outro, uma
milhões de pessoas ao mesmo tempo – uma via de pelo mago-jornalista, guardião e conhecedor do se- que a Internet significa para a velha mídia: A quebra rede de escala global tributária e agente de uma eco-
mão-única, portanto –, ao contrário, ela institui uma gredo sagrado da mística do acesso informacional é de paradigma que a rede mundial de computadores nomia global – tal dicotomia é a expressão, no âmbito
lógica dialogal, na qual os emissores são, ao mesmo feita automaticamente nesse novo meio. Nota do autor: O acesso é feito estabeleceu em relação à comunicação alte- da comunicação social, da dicotomia-mór do século
tempo, receptores, todos integrados em uma série de Na edição 81 da revista Fórum, Henrique automaticamente e, por meio rara consideravelmente a conjuntura política que se inicia. A figura do jornalista se esvazia em to-
desse processo, ele desfaz a ideo-
redes sociais integradas entre si. O indivíduo torna-se Antoun disserta sobre tal confronto em um ar- logia que se assenta sobre a medi- sobre a qual se assentava a ordem positivada das as partes e no Brasil, ela se esvazia por completo.
elemento ativo na relação midiática. tigo com o delicioso título “Guerra da Informa- ação. A realização de um significa pelo Decreto-Lei da Ditadura; se antes fazia A ideologia jornalística, que se manteve fiel aos ide-
a desconstrução da outra.
O caráter da Internet não é anárquico. Ele não ção ou Guerra em Rede?” e toca na questão sentido a depuração da mão-de-obra, hoje, a ais liberais clássicos, bem mais do que outros ramos
pressupõe o domínio coletivo, mas sim uma lógica da condição dos usuários de redes sociais, de forma concorrência da rede joga uma pressão muito forte do saber humano – como as Ciências Econômicas e
privada extrema e horizontal – o que remete aos liber- cirúrgica, ao fazer a seguinte citação: “Os usuários sobre as empresas do Oligopólio da mídia tradicional, Políticas que se desvencilharam dessa influência já
tarians americanos e não aos anarquistas. Por outro se transformam em sócios das empresas através de tal forma que a única saída possível foi ela lutar no século 19º- e talvez por essa vinculação ser sua
lado, ela é mantida pela entidade denominada ICAN, de sua cooperação interessada, a colaboração e a pelo fim da obrigatoriedade do diploma junto ao apa- própria natureza, entra em grave crise quando a nar-
a guardiã da arquitetura da Internet, curiosamente livre expressão uniriam empresários e usuários nes- rato judicial do Estado como forma de abaixar o custo rativa verdadeira topa com a narrativa em construção
ligada ao Departamento de Comércio dos Estados se poderoso ambiente de negócios integrados”. Em econômico das redações, aumentando assim a oferta expressa pelos seus próprios partícipes. As vísceras
Unidos da América. Ademais, países como China e suma, o mesmo Capitalismo que criou e potencializou de mão-de-obra e também diminuindo o poder do pró- da questão social vêm à tona quando a mediação que
Irã, controlam a rede de um modo menos sutil que os meios de comunicação em massa clássicos é o prio sindicato dos jornalistas. O decreto dos militares distorce a contradição é exposta e as vítimas ganham
a superpotência americana, ainda que no fundo, o mesmo que os levou à exaustão e, agora, nos pega- e a decisão do STF presidido por Gilmar Mendes, ao voz própria. Uma série de questões decorrem desse
controle-geral da rede esteja em mãos estaduni- mos em uma nova etapa, na qual o Capitalismo pós- contrário do que o debate travado em meio intelectu- processo e, se ainda não sabemos se o futuro será
denses. Se formalmente ela está sim sob controle, industrial e Global produziu uma nova forma de mídia alidade acerca do fato levava a crer, foram perfeita- melhor, por outro resta a certeza de que ele será mais
certas idiossincrasias suas são, na verdade, flancos de massa que é contraditória aos meios clássicos mente coerentes entre si: Ambos foram uma expres- complexo.
que, como já dito, abrem espaço para uma potencial – mesmo que as empresas da velha mídia estejam são jurídica das necessidades do sistema econômico.
anarquização (como a obra dos hackers nos prova) organizadas em poderosos oligopólios e, mais do que Por outro lado, a mídia tradicional brasileira se Ready-made
– em suma, se formalmente a disputa da Internet é, isso, mesmo com a entrada delas nos negócios da arroga de uma nova função que é a representação di- Em menos de ano e tanto, tinha já construído uma pe-
quena consciência jornalística para meu uso. Julguei-me
no máximo, política, entre europeus propondo um ge- Internet, percebe-se que o lucro que obtinham com reta de interesses políticos das famílias controladoras superior ao resto da humanidade que não pisa familiar-
renciamento global da rede (por meio da ONU) em os velhos negócios raramente se reproduz na Rede, da empresa – ocorre aí um paradoxo, se por um lado mente no interior das redações e cheio de inteligência e de
detrimento do interesse americano, materialmente, a pois a rentabilidade estava intimamente ligada à ve- a Internet tira boa parte do poder do oligopólio midiáti- talento, só porque levara tinta aos tinteiros dos repórteres
e dos redatores e participava assim de um jornal, onde to-
Internet ainda está em efetivamente em disputa. lha forma de mediação informacional. O usuário de co, por outro, vivemos numa época em que a fronteira dos têm gênio. Os contínuo, os revisores, os caixeiros de
Dentre os inúmeros pólos internéticos, podemos rede social não é necessariamente um pirata, mas um entre a informação e o valor econômica se estreita; balcão, o gerente, os redatores, os homens das máquinas,
destacar as redes sociais. Por meio delas, os usuá- “sócio” dentro de uma nova lógica empresarial cuja nunca antes na história, a informação se aproximou os tipógrafos, os agentes de anúncios, todos têm gênio,
muito gênio mesmo, quando de sobra não têm também
rios podem manter contas individuais, difundir notí- finalidade é garantir uma nova forma de organização de uma maneira tão direta do poder e nunca antes a muito espírito, muito mesmo! Aquela casa, como todas do
cias, trocar informações e articular ações no mundo social, necessária para um Capitalismo que se desdo- mídia tradicional esteve tão ameaçada. Isso provoca seu feitio, em que se fabricam novidades para o público,
físico. A lógica que embasa as redes sociais fura a bra para além do Estado-nação. uma mudança considerável na função do jornalista: era uma colmeia de gênios. Colmeia é bem o termo porque
era pequena e acanhada. Os redatores escreviam uns em
própria hegemonia dos grandes portais que, mesmo No Brasil, a instituição do jornalista é desconstru- Com teses vindo prontas “de cima” e com seu status cima dos outros; na revisão, que ficava misturada com a
sendo importantes centros difusores dentro da Rede, ída. Se o marco histórico da sua formação é jurídico jurídico-social diminuído, os jornalistas que trabalham composição, não se podia andar; e pela noite os bicos de
são passíveis de contestação na medida em que os – a obrigatoriedade do diploma –, o marco histórico de nos grandes meios de comunicação nacionais se gás sem vidros iluminavam tudo aquilo lobregamente,
com grandes hiatos de sombras como um porão de navio.
usuários detém o poder de produzir, questionar e sua decadência ocorre da mesma forma, como não tornaram meros redatores que devem apenas atar Pela sala em que esses dois departamentos funcionavam,
acrescentar dados à informação. A grande narrativa poderia ser diferente em um país de tradição cartorial narrativamente as teses pré-elaboradas pelas dire- flutuava um forte odor de urina, desprendido de um mic-
que poderia ser expressa por meio dos ditames jor- como o nosso: Tal marco é o fim da obrigatoriedade ções em relação aos grandes temas da política e da tório, que existia entre duas caixas de tipografia. No dia
que notei isso, não fazia oito, que um artigo furioso ataca-
nalísticos – e onde a ficção, em um sentido espino- do diploma, fruto de uma decisão do Supremo Tribu- economia – baseados, naturalmente, nas concepções va o governo pelas más condições higiênicas do Hospício
sano, ocupava grande espaço – pode ser facilmente nal Federal de Junho do ano passado (2009), quando, que elas nutrem em relação à política e aos interes- Nacional de Alienados.
desconstruível e isso se liga ao próprio conceito de julgou um recurso extraordinário interposto pelo Sin- ses que eles têm em relação à economia. Lima Barreto,
Recordações do Escrivão Isaías Caminha
virtualidade: O nosso ser está elevado à potência, es- dicato das Empresas de Rádio e Televisão no Estado De um lado, temos uma mídia tradicional, regio-

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RESENHA
IPIRATAS
Alexandre Nodari
“Unlike the old, armed, and public conflicts of the ria praticada na costa da Somália), a dupla exclusão 3) como conseqüência, provoca a confusão entre combate que não conhece limites.
states, the modern confrontation against the enemy (do direito nacional e internacional) que caracteriza o categorias políticas e criminais, entre polícia e po- Apesar de Heller-Roazen afirmar explicitamente
of all must each time, in each place, begin anew. In- pirata continua na ordem do dia. É o que fica evidente lítica; que seu livro não aborda o uso do conceito de pirata-
finitely intense, preparatory and provisional, it admits em um dos exemplos trazidos pelo autor: a caracte- 4) por fim, transforma o conceito de guerra: o pirata, ria em questões relativas à propriedade intenelctual,
of no regions such as the high seas or the air, which rização dos detidos pelos EUA não sendo um inimigo de guer- o paradigma proposto pelo autor mostra-se revelador
would constitute stable exceptions to its rule; plan- na Base de Guantánamo após ra no sentido usual, nem um para entender as conseqüências de tal uso. Aquele
etary in scope, it refuses to concede that there are el- o 11 de setembro como “illegal criminoso, pode ser combatido que compartilha arquivos protegidos por direitos auto-
ements of nature that lie beyond the line of the law of enemy combatentes” não cons- sem limitação legal. rais na rede mundial de computadores opera em um
nations. A perpetual war in the name of a peace that titui uma novidade do direito “espaço” excepcional, um espaço virtual, a internet, e
cannot be, it is familiar only with mobile zones of tran- internacional - e disso estavam De acordo com este paradig- não afronta somente os donos dos direitos de tal ou
sitory violence, their borders incessantly drawn and cientes mesmo integrantes do ma, não só os ladrões dos qual música, filme, livro, programa: afronta a própria
redrawn across the ‘spherical surface of the earth’”. governo Bush. De fato, coube a sete mares, mas também os idéia de propriedade - e daí o apelo das corporações
um deles explicitar esta ligação seqüestradores de aviões, os de mídia a um esforço internacional e conjunto contra
A compreensão do que está implicado na pa- inesperada que Heller-Roazen chamados terroristas, e mesmo a “nova” pirataria. Para combater o pirata virtual, as
lavra pirata é uma tarefa urgente e necessária não investiga: “Por que é tão difícil guerrilheiros são verdadeiros leis ordinárias se revelam insuficientes. Contra um
só pelo seu uso cada vez mais indiscriminado para para as pessoas entenderem “piratas”. É importante ressal- inimigo excepcional, são necessárias medidas excep-
se referir a quem compartilha dados, informações e que há uma categoria não co- tar, porém, que o pirata, assim cionais. Nesse sentido, a lei Hadopi, recentemente
arquivos protegidos por direitos autorais, mas tam- berta pelo sistema legal?”, per- entendido, não está simples- aprovada na França, pela qual um juiz pode cancelar
bém porque ajuda a elucidar o estatuto “jurídico” dos guntava John Choon Yoo: “O mente fora do direito internacio- o acesso à internet de um pirata virtual, parece ser
chamados “combatentes ilegais”, excluídos tanto que são os piratas?” nal e nacional. A sua exclusão apenas o começo. Todavia, aqui o recurso à liberdade
do direito da guerra (e suas inúmeras convenções), A genealogia feita por Hel- é o que permite dar forma a de expressão na defesa do partilhamento de dados
quanto do direito penal. É o que demonstra o mais ler-Roazen o permite construir ambos (e aqui, o paralelo com e informações só tem sentido tático. Como afirmava
recente livro de Daniel Heller-Roazen. Autor também um paradigma da pirataria, que o “bando soberano” identificado Foucault, “As Luzes que descobriram as liberdades
de Echolalias (que deve ganhar edição brasileira em pode, assim, ser identificada na por Giorgio Agamben, fica evi- inventaram também as displinas”. O dispositivo jurí-
breve) e de The Inner Touch, uma arqueologia da presença de quatro traços ca- dente). Assim, por exemplo, a dico que garante a liberdade de expressão é o mes-
sensação, Heller-Roazen realiza em The Enemy of racterísticos: gestação do moderno conceito mo que vincula toda expressão a um autor, que torna
All - Piracy and the Law of Nations uma genealogia jurídico de “humanidade” está ela própria de alguém. Para um bom exemplo, basta
do conceito de pirata no direito international. O título 1) a pirataria implica uma re- relacionada à tipificação dos recorrer a Constituição brasileira: “é livre a manifes-
é uma menção a Cícero que, em De Officiis, definiu gião excetuada da jurisdição crimes contra ela: ao inventar tação do pensamento, sendo vedado o anonimato”.
o pirata como o inimigo comum de todos (communis originária - por exemplo, o alto mar, ou The Enemy of All
a “humanidade”, o pensamento moderno Vedar o anonimato é vedar o coletivo, o comum, aqui-
hostis omnium), definição que chegaria no moderno o espaço aéreo internacional; Piracy and the inventou também o “inimigo da humani- lo que pode ser apropriado por qualquer um sem que
direito internacional levemente alterada pelo pensa- 2) ela envolve um agente que demons- Law of Nations dade”, reelaborando, uma última vez, a constitua uma propriedade. Para inventar a liberdade
mento medieval: o inimigo da espécie humana (hostis tra um antagonismo que não é em re- definição de Cícero. Nesse sentido, a de expressão como direito, a modernidade precisou
de Daniel Heller-Roazen
generis humani). Mesmo com o relativo declínio da lação a um indivíduo ou agrupamento paz perpétua de Kant parece se confun- constituir (e controlar) um fora. A Internacional Pira-
pirataria tal como estamos acostumados a concebê-la político específico: não possui um alvo Nova Iorque: dir com a guerra perpétua: para garantir ta, que se avizinha como a única estratégia política
Zone Books,
(relativo na medida em que persiste: basta lembrar a determinável - daí a “universalidade” 2009 a humanidade, é preciso enfrentar seus contemporânea revolucionária, não pode prescindir
recente atenção internacional despertada pela pirata- de sua ameaça; inimigos - os antigos piratas - em um do anonimato.

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Ready-made
Canção de Piratas (de Machado de Assis)
Publicado originalmente em 22 de julho de 1894

Telegrama da Bahia refere que o Conselheiro está em Canu- galantes, audazes, sem ofício nem benefício, que detestam
dos com 2.000 homens (dois mil homens) perfeitamente o calendário, os relógios, os impostos, as reverências, tudo
armados. Que Conselheiro? O Conselheiro. Não lhe ponhas o que obriga, alinha e apruma. São homens fartos desta
nome algum, que é sair da poesia e do mistério. É o Con- vida social e pacata, os mesmos dias, as mesmas caras, os
selheiro, um homem, dizem que fanático, levando consigo mesmos acontecimentos, os mesmos delitos, as mesmas
a toda a parte aqueles dois mil legionários. Pelas últimas virtudes. Não podem crer que o mundo seja uma secretaria
notícias tinha já mandado um contingente a Alagoinhas. de Estado, com o seu livro do ponto, hora de entrada e de
Temem-se no Pombal e outros lugares os seus assaltos. saída, e desconto por faltas. O próprio amor é regulado por
Jornais recentes afirmam também que os célebres cla- lei; os consórcios celebram-se por um regulamento em casa
vinoteiros de Belmonte têm fugido, em turmas, para o sul, do pretor, e por um ritual na casa de Deus, tudo com a eti-
atravessando a comarca de Porto Seguro. Essa outra horda, queta dos carros e casacas, palavras simbólicas, gestos de
para empregar o termo do profano vulgo que odeio, não convenção. Nem a morte escapa à regulamentação univer-
obedece ao mesmo chefe. Tem outro ou mais de um, entre sal; o finado há de ter velas e responsos, um caixão fechado,
eles o que responde ao nome de Cara de Graxa. Jornais e um carro que o leve, uma sepultura numerada, como a casa
telegramas dizem dos clavinoteiros e dos sequazes do Con- em que viveu... Não, por Satanás! Os partidários do Consel-
selheiro que são criminosos; nem outra palavra pode sair heiro lembraram-se dos piratas românticos, sacudiram as
de cérebros alinhados, registrados, qualificados, cérebros sandálias à porta da civilização e saíram à vida livre.
eleitores e contribuintes. Para nós, artistas, é a renascença, A vida livre, para evitar a morte igualmente livre, pre-
é um raio de sol que, através da chuva miúda e aborrecida, cisa comer, e daí alguns possíveis assaltos. Assim também
vem dourar-nos a janela e a alma. É a poesia que nos le- o amor livre. Eles não irão às vilas pedir moças em casa-
vanta do meio da prosa chilra e dura deste fim de século. mento. Suponho que se casam a cavalo, levando as noivas
Nos climas ásperos, a árvore que o inverno despiu, é nova- à garupa, enquanto as mães ficam soluçando e gritando à
mente enfolhada pela primavera, essa eterna florista que porta das casas ou à beira dos rios. As esposas do Consel-
aprendeu não sei onde e não esquece o que lhe ensinaram. heiro, essas são raptadas em verso, naturalmente:
A arte é a árvore despida; eis que lhe rebentam folhas novas
e verdes. Sa Hautesse aime les primeurs,
Sim, meus amigos. Os dois mil homens do Conselheiro, Nous vous ferons mahométane...
que vão de vila em vila, assim como os clavinoteiros de Bel-
monte, que se metem pelo sertão, comendo o que arreba- Maometana ou outra coisa, pois nada sabemos da re-
tam, acampando em vez de morar, levando moças natural- ligião desses, nem dos clavinoteiros, a verdade é que todas
mente, moças cativas, chorosas e belas, são os piratas dos elas se afeiçoarão ao regime, se regime se pode chamar a
poetas de 1830. Poetas de 1894, aí tendes matéria nova e vida errática. Também há estrelas erráticas, dirão elas, para
fecunda. Recordai vossos pais; cantai, como Hugo, a canção se consolarem. Que outra coisa podemos supor de tamanho
dos piratas: número de gente? Olhai que tudo cresce, que os exércitos
de hoje não são já os dos tempos românticos, nem as armas,
En mer, nem os legisladores, nem os contribuintes, nada. Quando
les hardis tudo cresce, não se há de exigir que os aventureiros de Can-
écumeurs! udos, Alagoinhas e Belmonte contem ainda aquele exíguo
Nous allions número de piratas da cantiga:
de Fez
à Catane... Dans la galère capitane,
Nous étions quatre-vingts rameurs,
Entrai pela Espanha, é ainda a terra da imaginação
de Hugo, esse homem de todas as pátrias; puxai pela mas mil, dois mil, no mínimo. Do mesmo modo, ó po-
memória, ouvireis Espronceda dizer outra canção de pi- etas, devemos compor versos extraordinários e rimas inau-
rata, um que desafia a ordem e a lei, como o nosso Consel- ditas. Fora com as cantigas de pouco fôlego. Vamos fazê-las
heiro. Ide a Veneza; aí Byron recita os versos do Corsário de mil estrofes, com estribilho de cinqüenta versos, e versos
no regaço da bela Guiccioli. Tornai à nossa América, onde compridos, dois decassílabos atados por um alexandrino e
Gonçalves Dias também cantou o seu pirata. Tudo pirata. O uma redondilha. Pélion sobre Ossa, versos de Adamastor,
romantismo é a pirataria, é o banditismo, é a aventura do versos de Encélado. Rimemos o Atlântico com o Pacífico,
salteador que estripa um homem e morre por uma dama. a via-láctea com as arejas do mar, ambições com malogros,
Crede-me, esse Conselheiro que está em Canudos com empréstimos com calotes, tudo ao som das polcas que te-
os seus dois mil homens, não é o que dizem telegramas mos visto compor, vender e dançar só no Rio de Janeiro. Ó
e papéis públicos. Imaginai uma legião de aventureiros vertigem das vertigens!

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