Você está na página 1de 16
A CONCEPCAO CIENTIFICA DO MUNDO — O CIRCULO DE VIENA Dedicado a Moritz Schlick HANS HAHN, OTTO NEURATH, RUDOLF CARNAP* PREFACIO No initio de 1929, Moritz Schlick recebeu um convite muito tentador de Bonn. Apés alauma vacilacko. decidin permanecer em Viena. Neste momento. pela primeira vez tornouse claro a ele e a nds que havia algo como o “Citculo de Viena” da concepgao cientifica do mundo, que continua a desenvolver este modo de pensar em um esforgo colaborativo. Este citculo no possui uma organizagio rigida , compoe-se de individuos com uma atitude cientifica igual e bisica. Cada membro esforga-se por se adaptar, cada um poe os vineulos comuns em primeiro plano, nenhum deseja perturbar os liames com idiossinerasias. Em muitos casos, um membro pode substituir outro, a obra de um, poile ser continuada por outro 0 Circulo de Viena procura entrar em contato com aqueles cuja orientagao lhe & similar e influeneiar os que se mantém mais distantes. A colaboragio na Sociedade Ernst Mach é a expresso deste esforgo. Schlick ¢ o presidente desta sociedade, ¢ varios membros do citculo de Schlick pertencem a comissao. Em 15 e 16 de setembro de 1929, a Sociedade Ernst Mach ¢ a Sociedade para a losofia Empitica (Berlim), realizardo um congresso em Praga sobre a epistemologia das ciéncias exatas, juntamente com o congresso da Sociedade Fisica Alema ea Asso- ciagdo Alema de Matemadticos. Além de quest0es técnicas, devero ser discutidas ques- tes de principio. Foi decidido, nesta ocasigo, que o presente escrito sobre 0 Circulo de Viena da concepgdo cientifica do mundo deveria ser publicado ¢ entregue a Schlick em outubro de 1929, quando este retornar de sua estada como professor visitante na Universidade de Stanford, California, em sinal de agradecimento por sua permanéncia em Viena. Na segunda parte, contém uma bibliografia [no reproduzida aqui] compi- “Nota editorial: Traduco de panfleto originalmente publicado em 1929, com o titulo: “Wisser schaftiche Weltauffassung der Wiener Kreis. A primeira redago do panfleto deve-se a Neurath; a versfo final contou com a colaboraedo e comentarios de Camap ¢ Hahn, além de outros membros do Cireulo de Viena. O texto original foi reproduzido em: NEURATH, Otto. Wissenschaftliche Weltauffassung, Sozialismus und logische Empirismus. Ed. Rainer Hogselmann. Frankfurt, Subt- kamp, 1979, pp. 81-101. Ha uma tradugdo em inglés: FOULKES, Paul and Neurath, Marie (trad.) The scientific conception of the world: the Vienna Circle, Dordrecht, D. Reidel, 1973 Cadernos de Histéria e Filosofia da Ciéncia 101986), pp. 5-20 6 — Hans Hahn, Otto Neurath, Rudolf Carnap lada em colaboragdo com aqueles a que diz respeito. Seu objetivo é oferecer um panorama da drea de problemas em que trabalham aqueles que fazem parte ou so pré- ximos do Circulo de Viena. Viena, agosto de 1929 Pela Sociedade Ernst Mach Hans Hahn Otto Neurath Rudolf Carnap 1 O CIRCULO DE VIENA DA CONCEPCAO CIENTIFICA DO MUNDO 1.1 Antecedentes histéricos Muitos afirmam que o pensamento metafisico ¢ teologizante hoje volta a crescer, no apenas no ambito da vida como também no da ciéncia, Trata-se de um fendmeno geral ou somente de uma mudanga limitada a determinados circulos? A propria afirma- ¢do confirma-se facilmente se atentarmos aos temas dos cursos nas universidades aos titulos das publicagdes filosdficas. Todavia. também o espitito oposto, iluminista e de pesquisa antimetafisica dos fatos, se fortalece atualmente, tornando-se consciente de sua existéncia ¢ de sua tarefa. Fm muitos ciroulos, o modo de pensar calcado na experiéncia ¢ avesso 4 especulagdo estd mais vivo do que nunca, fortalecido precisa- mente pela nova resisténcia que se Ihe oferece, Este espirito de uma concepeao cientifica do mundo ests presente no trabalho de pesquisa de todos os ramos da ciéncia empitica. Poucos pensadores representativos, entretanto, examinam-no de modo sistemdtico e o defendem quanto aos principios, ¢ raramente estdo em condigdes de reunir em torno de si um citculo de colaboradores de mesma orientagio. Encontramos esforgos antimetafisicos sobretudo na Inglaterra, onde a tradiggo dos grandes empiristas ainda se mantém viva. As investigagées de Russell e Whitehead em l6gica ¢ na andlise da realidade alcancaram significagdo inter- nacional. Nos EUA tais esforgos crescem nas mais diferentes formas. Em certo sentido também William James deveria ser aqui incluido. A nova Rassia busca com determina- do uma concepgio cientifica do mundo, ainda que se apoiando parcialmente em cor- rentes materialistas mais antigas. Na Europa Continental encontramos uma concentra- Go de trabalho produtivo na diregdo da concepsio cientifica do mundo, especialmen- te em Berlim (Reichenbach, Petzold, Grelling, Dubislav e outros) ¢ em Viena. E historicamente compreensivel que Viena fosse um solo particularmente apropri do a esse desenvolvimento. Na segunda metade do século XIX, 0 liberalismo era, havia muito, orientagdo politica ali dominante. Seu mundo intelectual provém do iluminis- mo, do empirismo, do utilitarismo ¢ do movimento do livre-comércio da Inglaterra No movimento liberal vienense, eruditos de reputagéo mundial ocuparam posigoes de lideranca. O espiito antimetatisico foi cultivado; lembrem-se Theodor Gomperz, tra- dutor das obras de Mill (1869-80), Suess, Jodl e outros. A Concepeao Cienttfica do Mundo — O Ctreulo de Viena 7 Gragas a este espitito iluminista, Viena liderou a educagdo popular cientificamente orientada. Fundou-se e levou-se adiante ento, mediante o trabalho conjunto de Victor Adler e Friedrich Jodl, a Associagio de Educagdo Popular [ Volksbildungsverein|: 08 cursos universitdrios populares [ Volksttimlich Universitdtskurse| e a “Casa do Povo” [Volksheim] foram instituidos pelo conhecido historiador Ludo Hartmann, cuja atitu- de antimetafisica concepgao materialista da hist6ria se expressaram em toda a sua atividade. Provém igualmente deste espitito 0 movimento da “Uscola Livre” [Freie Schule], precursor da atual reforma de ensino Nesta atmosfera liberal viveu Ernst Mach (nascido em 1838). que estivera em Viena como estudante ¢ ‘Privatdozent’ (1861-64), ¢ para Id voltou somente em idade avan- cada. quando Ihe foi criada uma citedra esnecial de filosofia das ciéncias indutivas (1895). Mach esforgou-se especialmente por purificar a ciéncia empitica, ¢ em primeira linha a fisica, de idéias metafisicas. Lembrem-se sua critica a0 espago absoluto, que 0 tornou um precursor de Einstein, sua luta contra a metafisica da coisa-emsi e do conceito de substancia, bem como suas investigagdes sobre a construgio dos conceitos cientificos a partir de elementos ltimos, os dados dos sentidos. Sob alguns pontos o desenvolvimento cientifico nao Ihe deu razio, como, por exemplo, na sua oposi¢ao a0 atomismo ¢ na sua expectativa de um incremento da fisica mediante a fisiologia dos sentidos. Os pontos essenciais de sua concepgao foram, porém, valorizados positiva- mente no desenvolvimento ulterior. A cétedra de Mach foi ocupada posteriormente (1902-06) por Ludwig Boltzmann, que defendeu expressamente idéias empiristas. A atuagio dos fisicos Mach e Boltzmann em uma cétedra filosética torna compreen- sivel o fato de reinar vivido interesse pelos problemas epistemolixicos e légicos ligados aos fundamentos da fisica. Tais problemas de fundamentos conduziram igualmente a esforgos pela renovacdo da I6gica. No que tange a estes esforcos. 0 solo jé fora aplai- nado, em Viena, por alguém de posicdo totalmente diversa: Franz Brentano (professor de filosofia na Faculdade de Teologia entre 1874-1880, mais tarde ‘Dozent’ na Facul- dade de Filosofia). Brentano, como sacerdote catdlico, compreendia a escolistica ligouse diretamente a légica escoléstica e aos esforgos leibnivianos pela reforma da l6gica, deixando de lado Kant ¢ os filésofos idealistas sistenuilicos. Brentano ¢ seus discipulos mostraram repetidamente sua compreensio por homens como Bolzano (Wissenschaftsletre, 1837) ¢ outros, que buscavam uma nova ¢ rigorosa fundamen- taco para a légica. Especialmente Alois Héfler (1853-1922) pos em primeiro plano este aspecto da filosofia de Brentano diante de um férum em que os partidérios da concepedo cientifica de mundo eram fortemente representados. devido a influéncia de Mach ¢ Boltzmann. Na Sociedade Filosofica da Universidade de Viena tiveram lugar sob a direcdo de Héfler numerosas discussbes sobre questdes de fundamentos da fisica e sobre problemas epistemoldgicos e ldgicos afins. A Sociedade Viloséfica publicou os “Prefacios e IntrodugSes a Obras Cléssicas da Mecdnica” (“Vorreden und Einleitungen zu Klassischen Werken det Mechanik”, 1899), bem como escritos individuais de Bol- zano (editados por Hfler e Hahn em 1914 ¢ 1921). No citculo vienense de Brentano viveu (1870-82)°0 jovem Alexius von Meinong (mais tarde professor em Graz), cuja teoria dos objetos (1907) acusa pelo menos certo parentesco coin as modernas teorias dos conceitos, ¢ cujo discfpulo Emst Mally (Graz) também trabalhou no dominio da logistica. Do mesmo modo, os escritos juvenis de Hans Pichler (1909) provém destes citculos de idéias. 8 Hans Hahn, Otto Veurath, Rudolf Carnap Aproximadamente no mesmo periodo de Mach, atuou em Viena seu contempori- neo e amigo Josef Popper-Lynkeus. Ao lado de suas realizagBes técnico-cientificas de- vern ser aqui mencionadas suas observagbes filos6ficas (1899), amplas, ainda que assis- temdticas, bem como seu plano econdmico racionalista (Adlgemeine Nahrpflicht, 1878). Popper-Lynkeus servia conscientemente ao espitito iluminista, como atesta seu livro sobre Voltaire. A recusa da metafisica era comum a ele ¢ a muitos outros sociGlogos vienenses, como Rudolf Goldscheid. E digno de nota que em Viena, também no domi nio da Economia Politica, foi cultivado um rigoroso método cientifico pela Escola da Utilidade Marginal (Cari Menger, 1871). Este método implantou-se na Inglaterra, na Franga e na Escandindvia, ndo, porém, na Alemanha. Também a teoria marxista foi cultivada ¢ desenvolyida em Viena com especial énfase (Otto Bauer, Rudolf Hilferding, Max Adler ¢ outros). Estas influéncias provenientes de diferentes flancos tiveram por conseqiiéncia 0 fato de que em Viena, especiaimente desde a virada do século, um grande ntimero de pes- soas discutia freqiiente e calorosamente problemas em estreita ligagdo com a ciéncia empirica. Tratavamse, sobretudo, problemas epistemoldgicos e metodolégicos da fisi- ca, como © convencionalismo de Poincaré, a concep¢do de Duhem sobre o objetivo e a estrutura das teorias fisicas (seu tradutor foi o vienense Friedrich Adler, um discfpulo de Mach, entdo ‘Privatdozent’ de fisica em Zurique), Além disso, tratavam-se questdes de fundamentos da matemstica, problemas de axiomdtica, logistica e andlogos. Dentre as correntes histéricas da ciéncia e da filosofia, uniram-se ali especialmente as seguin- tes, (Tais correntes serdo caracterizadas mediante aqueles dentre seus representantes cujas obras foram mais lidas e discutidas.) 1. Positivismo e Empirismo: Hume, lluminismo, Comte, Mill, Richard Avenarius, Mach. 2. Fundamentos, Objetivos e Métodos da Ciéncia Emptrica (hipéteses em fisica, geometria, etc): Helmholtz, Riemann, Mach, Poincaré, Enriques, Duhem, Boltzmann, Einstein. 3. Logistica © sua aplicagao a rea Whitehead, Wittgenstein. 4. Axiomdtica: Pasch, Peano, Vailati, Pieri, Hilbert 5. Eudemonismo e sociologia positivista: Epicuro, Hume, Bentham, Mill, Comte, Feuerbach, Marx, Spencer, Milller-Lyer, Popper-Lynkeus, Carl Menger (pai). dle. Leibniz, Peano, Frege. Schroder, Russell, 1.2.0 Circulo em torno de Schlick Em 1922, Moritz Schlick foi chamado de Kiel a Viena. Sua atividade se ajustou bem ao desenvolvimento histérico da atmosfera cientifica vienense. Ele proprio, originaria- mente fisico, despertou para uma nova vida a tradigao que havia sido iniciada por Mach e Boltzmann e, em certo sentido, continuada por Adolf Stéhr, um pensador de orientagio antimetafisica. (Em Viena sucessivamente: Mach, Boltzmann, Stéhr, Schlick; em Praga: Mach, Einsten, Ph. Frank). Em tomo de Schlick reuniu-se com o passar dos anos um cfreulo que aliou os di- ferentes esforgos em dire¢do de uma concepgio cientifica do mundo. Produziu-se mediante esta concentragdo um frutifero estimulo reciproco. Os membros do circu lo so mencionados na bibliografia [ndo reproduzida aqui; editor] na medida em que A Concepetio Cientifica do Mundo — Ctreulo de Viena 9 existe publicagdes suas. Nenhum dentre eles ¢ 0 que se denomina um filésofo “pu- 10”; todos trabalharam em um domihio cientifico particular, e na verdade provém de diferentes ramos da ciéncia ¢ originariamente de diferentes atitudes filoséficas. Com 0 correr dos anos, porém, aflorou uma crescente unidade, efeito da atitude especifi- camente cientifica: Yo que pode ser dito, pode ser dito claramente” (Wittgenstein), Se ha diferengas de opinido, um acordo ¢ afinal possivel e, portanto, também requerido, Mostrou-se cada vez mais nitidamente que o objetivo comum a todos era nfo apenas uma atitude livre de metafisica, mas antimetafisica. Ainda em relagdo as atitudes frente as questdes da vida percebeuse uma notivel concordancia, embora tais questdes ndo estivessem em primeiro plano entre os temas discutidos no Circulo. Estas atitudes mantém uma afinidade mais estreita com a con- cepgio cientifica do mundo do que a primeira vista, de um ponto de vista puramente te6rico, poderia parecer. Assim, por exemplo, os esforgos pela reorganizacdo das rela- Wes econdmicas € sociais, pela unificacgo da humanidade, pela renovagdo da escola e da educagio, mostram uma conexdo interna com a concepgdo cientifica do mundo E manifesto que estes esforgos so bem-vindos e encarados com simpatia pelos mem- bros do Circulo ¢ também ativamente promovidos por alguns. 0 Citculo de Viena ndo se satisfaz em realizar um trabalho coletivo ao modo de um grupo fechado, mas se esforga igualmente por entrar em contato com os movimen- tos vivos do presente, na medida em que estes so simpiticos a concepgao cientifica do mundo e renegam a metafisica e a teologia. A Sociedade Ernst Mach é hoje o lugar de onde o Citculo fala a um ptblico mais amplo, Esta sociedade quer, como diz seu programa, “‘incrementar e difundir a concepgdo cientifica do mundo. Promoverd con- feréncias ¢ publicagdes sobre o estado atual da concepeio cientifica do mundo, para que se mostre a significagdo da pesquisa exata para as ciéncias sociais e navurais. Deve assim ser formados os instrumentos intelectuais para o empirismo moderno, dos quais também se necessita para a configuragdo da vida piblica e privada”. Mediante a es- colha de seu nome, quer a Sociedade caracterizar sua orientagdo fundamental: ciéncia livre de metafisica. Com isso, porém, ndo declara um acordo programatico com as dou- trinas particulares de Mach. O Citculo de Viena acredita cumprir uma exigéncia do presente, colaborando com a Sociedade Ernst Mach: trata-se de elaborar instrumentos intelectuais para 0 quotidiano; para 0 quotidiano do erudito, mas também para o quo- tidiano de todos os que de algum modo colaboram na consciente configuragao da vida A intensidade vital, visivel nos esforgos por uma transformagao racional da ordem so- cial e econémica, permeia também o movimento da concepeao cientifica do mundo. Corresponde & atual situagZo em Viena que, ao ser fundada a Sociedade Ernst Mach, em novembro de 1928, fosse eleito como presidente Schlick, em torno de quem mais fortemente se concentrava 0 trabalho comum no dominio da concepgao cientifica do mundo. Schlick ¢ Philip Frank editam conjuntamente a colegio Bscritos para a Concepedo Cientifica do Mundo (Schriften zur wissenschaftlichen Weltauffassung), em que até © momento colaboraram preponderantemente membros do Circulo de Viena. ee 10 Hans Hahn, Otto Neurath, Rudolf Carnap 2A CONCEPCAO CIENTIFICA DO MUNDO, A concepgao cientifica do mundo nfo se caracteriza tanto por teses proprias, po- rém, muito mais, por sua atitude fundamental, seus pontos-de-vista e sua orientagio de pesquisa. Tem por objetivo a ciéncia unificada. Seus esforcos visam a ligar e harmo- nizar entre si os resultados obtidos pelos pesquisadores individuais dos diferentes do- minios cientificos. A partir do estabelecimento deste objetivo, segue-se a énfase a0 trabalho coletivo ¢ igualmente 0 acento no que é intersubjetivamente apreensivel. Dai’ se origina a busca de um sistema de formulas neutro, um simbolismo liberto das impurezas das linguagens historicas, bem como a busca de um sistema total de concei- tos. Aspira-se a limpeza e a clareza, recusam-se disténcias obscuras e profundezas in- sondaveis. Na ciéncia néo ha “profundezas”; a superficie esté em toda parte: tudo o que é vivenciado forma uma rede complexa, nem sempre passivel de uma visio panoré- mica e freqiientemente apenas apreensivel por partes. Tudo é acessivel ao homem;e¢ 0 homem é a medida de todas as coisas. Aqui se mostra afinidade com os sofistas e nao com os plat6nicos; com os epicuristas ¢ ndo com os pitagéricos, com todos os que de- fendem o ser mundano e a imanéncia [diesseitigkeit]. A concepgao cientifica do mun- do desconhece enigmas insoliveis. O esclarecimento dos problemas filoséficos tradi- cionais conduz a que eles sejam parciaimente desmascarados como pseudoproblemas ¢ parcialmente transformados em problemas empiricos sendo assim submetidos ao juizo das ciéncias empiticas. A tarefa do trabalho filos6fico consiste neste esclarecimento de problemas e enunciados, néo, porém, em propor enunciados “filos6ficos” prdprios. O método deste esclarecimento ¢ 0 da andlise légica. Sobre ele diz Russell: “penetrou gradativamente na filosofia, mediante a investigagdo critica da matemitica. Represen- ta, a meu ver, um progresso da mesma espécie daquele que foi introduzido na fisica por Galileo: resultados parciais pormenorizados e verificaveis ocupam o lugar de gene- ralidades amplas ¢ nao-testadas, recomendadas apenas por um certo apelo a imagina- Este método de andlise logica ¢ 0 que essencialmente distingue 0 recente positi- vismo e empirismo do antigo, mais biolégico e psicolégico em sua orientagdo. Se alguém afirma: “existe um Deus”, “o fundamento primdrio do mundo ¢ o incons- ciente”, “hd uma enteléquia como principio condutor no ser vivo”, nfo lhe dizemos: “o que dizes é falso”, mas perguntamo-lhes: “o que queres dizer com teus enuncia- dos?”, e entdo se mostra haver um limite preciso entre duas espécies de enunciados. A primeira pertencem os enunciados tais como sfo feitos na ciéncia empitica. Seu sen- tido se constata mediante andlise Igica ou, mais exatamente, mediante redugdo aos enunciados mais simples sobre 0 que ¢ dado empiricamente. Os outros enunciados, a que pertencem os anteriormente mencionados, mostram-se totalmente vazios de signi- ficagdo, caso sejam tomados como o metafisico os entende. Pode-se certamente, com freqiiéncia, transformd-los em enunciados empiticos. Neste caso, porém, perdem seu conteiido de sentimento, que , a maioria das vezes, precisamente essencial ao meta- fisico. O metafisico e 0 tedlogo, compreendendo mal a si proprios, créem expressar algo com suas proposig&es, descrever um estado de coisas. A andlise mostra, todavia, que tais proposigdes nada significam, sendo apenas expressdo de algo como um sen- timento perante a vida [Lebensgefithl]. Tal expressdo certamente pode ser uma tarefe A Concepeio Gientifica do Mundo ~ 0 Circulo de Viena 11 significativa no ambito da vida. O meio adequado a isso é, porém, a arte: a poesia li- rica ou a misica, por exemplo. Se, em vez disso, se escolhe a roupagem verbal de uma teoria, surge um perigo: simula-se um contetido tedrico onde ndo existe nenhum. Ca- so 0 metafisico ou o tedlogo queiram manter a roupagem lingiiisticd habitual, deve ter claro. e reconhecer nitidamente que nao realizam descrigio, mas expresso, que ngo produzem teoria, isto é, comunicagio de conhecimento, mas poesia ou mito. Se um mistico afirma ter vivéncias que se situam sobre ou para além de todos os concei- tos, ndo se pode contesté-lo, mas ele ndo pode falar sobre isso, pois falar significa apreender em conceitos, reduzir a fatos [Tatbesténde] cientificamente articuldveis. A filosofia metafisica € recusada pela concepgo cientifica do mundo. Como se devem, porém, esclarecer os descaminhos da metafisica? Tal questo pode ser posta a partir de diferentes pontos-de-vista: sob os aspectos psicolégico, sociolégico e légi- co. As investigacSes na dirego psicolégica encontram-se ainda em estdgio inicial. Pontos de partida para uma explicago mais radical se situam talvez na psicandlise freudiana. A situagdo é semelhante quanto as investigagSes sociolégicas. Mencione-se a teoria da “‘superestrututura ideol6gica”. Encontra-se aqui um campo ainda aberto a uma compensadora pesquisa futura. Mais desenvolvido esta 0 esclarecimento da origem légica dos descaminhos metafi- sicos, especialmente pelos trabalhos de Russell e Wittgenstein. Dois erros Iégicos fun- damentais encontram-se nas teorias metafisicas, ¢ jf na posigéo das questées: um vinculo demasiadamente estreito com a forma das linguagens tradicionais ¢ a auséncia de clareza quanto a realizacio légica do pensamento. A linguagem comum emprega, por exemplo, a mesma classe de palavras, o substantivo, tanto para coisas (“maca”), .como para propriedades (‘“dureza”), relagées (“amizade”) © processos (“Sono”), induzindo assim a uma concepgio objetual dos conceitos funcionais (hipostatizagdo, substancializagio). Podem-se mencionar numerosos exemplos semelhantes, onde a lin- guagem conduza erros que foram igualmente fatidicos a filosofia. O segundo erro fundamental da metafisica consiste na concepgao de que o pens mento possa conduzit a conhecimentos a partir de si, sem a utilizagdo de qualquer material empitico, ou que possa, a0 menos, a partir de estados-de-coisa dados alcangar contetidos novos, mediante inferéncia. A investigagdo l6gica leva, porém, ao resultado de que todo pensamento, toda inferéncia, ndo consiste sendo na passagem de proposi- es a outras proposigdes que nada contém que naquelas jé ndo estivesse (transforma- do tautolégica). Ndo € possivel, portanto, desenvolver uma metafisica a partir do “pensamento puro”. Deste modo, mediante a andlise I6gica, supera-se nZo apenas a metafisica no sentido préprio e clissico da palavra, especialmente a metafisica escoldstica e a dos sistemas do idealismo alemdo, como também a metafisica oculta do apriorismo kantiano ¢ moderno. A concepgfo cientifica do mundo ndo admite um conhecimento incondi- cionalmente valido a partir da razio pura, “juizos sintéticos a priori”, tais como os que esto a base da teoria do conhecimento kantiana e, mais ainda, de toda ontologia e metafisica pré e pds-kantianas. Os juizos da aritmética, da geometria, certos prin pios da fisica, que sio tomados por Kant como exemplos, de conhecimento aprioristi- 0, serfo discutidos posteriormente. A tese fundamental do empirismo moderno con- siste exatamente na recusa da possibilidade de conhecimento sintético a prioti. A con- 12 Hans Hahn, Otto Neurath, Rudolf Carnap cepgio cientifica do mundo admite apenas proposigdes empiticas sobre objetos de toda espécie e proposigies analiticas da ldgica e da matemdtica. Todos os partiddrios da concepsio cientifica do mundo esto de acordo na recusa a metafisica, seja a declarada, seja a velada do apriorismo. O Circulo de Viena defende, porém, além disso, a concepgio de que também os enunciados do realismo (critico) e do idealismo sobre a realidade ou ndo-tealidade do mundo exterior ¢ do heteropsi- quico sao de cardter metafisico,j4 que esto sujeitos as mesmas objecdes a que esto os enunciados da metafisica antiga: so destituidos de sentido porque ndo verificaveis ¢ sem contettdo fitico. Algo é “real” por estar enquadrado pela estrutura total da experiéncia. ‘A intuiedo, especialmente realgada como fonte de conhecimento pelos metafisicos, nfo é recusada absolutamente pela concepgfo cientifica do mundo. Exige-se, porém, e busca-se gradativamente uma justificagdo racional ulterior de todo conhecimento intuitivo. ‘Todos 0s meios so permitidos 20 pesquisador; 0 que for descoberto deve, porém, resistir a exame posterior. Recusa-se a concep¢ao que vé na intui¢go uma espé- cie de conhecimento de valor mais clevado e de mais profunda penetragdo, capaz de conduzir para além dos contetidos sensiveis da experiéncia, e livre das estreitas cadeias do pensamento conceitual Caracterizamos a concepedo cientifica do mundo essencialmente mediante duas determinagées. Em primeiro lugar, cla é empirista e positivista: hd apenas conhecimen- to empitico, baseado no imediatamente dado. Com isso de delimita 0 contetido da cigncia legitima. Em segundo lugar, a concepgio cientifica do mundo se caracteriza pela aplicagdo de um método determinado, o da andlise ldgiea. O esforgo do trabalho cientifico tem por objetivo alcancar a ciéncia unificada, mediante a aplicagéo de tal andlise Iégica ao material empirico. Do mesmo modo que o sentido de todo enunciado cientifico deve poder ser indicado por meio de uma redugdo a um enunciado sobre o dado, assim também o sentido de cada conceito, pertencente a qualquer ramo da ciéncia, deve poder ser indicado por meio de uma redugio gradativa a outros conceitos, até aos conceitos de grau minimo, que se relacionam ao proprio dado. Caso se em- preendesse tal andlise para todos os conceitos, estes se enquadrariam em um sistema de redugdo, em um “sistema de constituigdo”. As investigagSes visando a um tal sistema de constituigéo, a teoria da constituig&o , configuram, assim, o quadro em que se aplica a andllise légica pela concepedo cientifica do mundo. A realizago de tais investigagoes mostra muito cedo que a légica tradicional aristotélico-escoléstica € totalmente insu- ficiente para este objetivo. Somente com a moderna légica simbélica (“logistica”) conseguiu-se obter a exigida precisio nas definigdes conceituais ¢ nos enunciados, bem como formalizar o proceso intuitive de inferéncia do pensamento comum, isto 6, conduzi-lo a uma forma rigorosa e controlada automaticamente pelo mecanismo simbélico. As investigagdes da teoria da constituigg0 mostram que os conceitos das vivéncias e qualidades autopsiquicas pertencem as camadas mais baixas do sistema de constituigao. Sobre elas descansam os objetos fisicos. A partir destes constituem-se os objetos heteropsiquicos ¢ enfim os objetos das ciéncias sociais. O enquadramento dos conceitos dos diferentes ramos cientificos no sistema de constituic&o jé hoje, em seus grandes tragos, reconhecivel, mas resta ainda muito a ser feito para que seja levado a efeito com maior exatiddo. Com a demonstragdo da possibilidade ¢ a exibigo da A Concepeio Cientifica do Mundo — O Circulo de Viena 13 forma do sistema completo dos conceitos, tornar-se-d simultaneamente reconhecivel a referéncia de todos os enunciados ao dado e, com isso, a forma estrutural da eféncia unificada. Nesta descrigao cientifica, apenas a estrutura (forma de ordenagio) dos objetos pode ser incluida, nao sua “‘esséncia”. O que une os homens na linguagem sfo as fSr- mulas estruturais; nelas se apresenta 0 contetido do conhecimento comum dos homens. As qualidades vivenciadas subjetivamente — a vermethido, o prazer, — 40, como tais, apenas vivéncias, ¢ ndo conhecimentos: A éptica fisica inclui apenas o que também um cego pode, em principio, compreender. 3 DOMINIOS DE PROBLEMAS. 3.1 Fundamentos da Aritmética Nos trabalhos e discusses do Circulo de Viena, trata-se um grande mimero de diferen- tes problemas, oriundo de diferentes ramos cientificos. O empenho ¢ 0 de conduzir as diferentes diregdes de problemas a unificagdo sistemdtica, para assim esclarecer a situagdo dos problemas. Os problemas de fundamento da aritmética se tornaram de especial significagdo histérica para o desenvolvimento da concepgio cientifica do mundo, pois foram cles que deram o impulso para o desenvolvimento de uma Iégica nova. Apds o desen- volvimento extraordinariamente frutifero da matemdtica nos séculos XVIII e XIX, quando mais se atentou 4 riqueza dos novos resultados do que ao exame sutil dos fun- damentos conceituais, tornou-se enfim manifesta a inevitabilidade de tal exame, sob pena de que a matematica perdesse a sempre clogiada certeza de sua construcdo. Este exame tornou-se ainda mais urgente quando surgiram certas contradig6es, os “paradoxos da teoria dos conjuntos”. Teve-se logo de reconhecer que nio se tratava apenas de dificuldades em um dominio particular da matemitica, mas de contradicdes ogicas gerais, “antinomias”, que indicavam erros nos fundamentos da légica tradicio- nal. A tarefa de eliminar estas contradigdes deu um impulso especialmente forte ao desenvolvimento ulterior da Idgica. Reuniram-se assim os esforgos por um esclareci- ‘mento do conceito de mimero ¢ por uma reforma interna da logica. Desde Leibniz e Lambert, esteve sempre viva a idéia de dominar a realidade mediante uma elevada preciso dos conceitos e dos procedimentos de inferéncia de alcangar tal precisdo por meio de um simbolismo imitado ao matemdtico. Depois de Boole, Venn ¢ outros, especialmente Frege (1884), Schréder (1890) e Peano (1895) trabalharam nesta tarefa. Com base nestes trabalhos prévios, Whitehead e Russell (1910) puderam construir um sistema consistente de Iégica em forma simbélica (“logistica”), que ndo apenas evitava as contradigGes da Idgica antiga, como também a superava de muito em riqueza ¢ aplicabilidade pritica. Whitehead e Russell deduziram deste sistema légico os conceitos da aritmética ¢ da andlise, para, deste modo, conferir 4 matemdtica um fundamento seguro na légica. Nesta tentativa de superagdo da crise de fundamentos da aritmética (¢ da teoria dos conjuntos), permaneceram, todavia, subsistindo certas dificuldades que até o presente nao encontraram solugdo satisfatoria e definitiva. Atualmente trés orientagdes dife- 14 Hans Hahn, Otto Neurath, Rudolf Carnap rentes defrontam-se neste dominio. Além do “logicismo” de Russell e Whitehead, encontra-se o “formalismo” de Hilbert, que concebe a aritmética como um jogo de fSrmulas com regras determinadas, e o “intuicionismo” de Brower, segundo 0 qual os conhecimentos aritméticos repousam em uma intuigdo irredutivel de dualidade-uni- dade [Zwei-Einheit]. As discussbes entre estas trés orientagdes sfo seguidas com 0 maximo interesse pelo Circulo de Viena. Nao se pode ainda prever aonde a decisto finalmente conduzira; em todo caso nela residiré simultaneamente uma decisio sobre a estrutura da ldgica. Dai a importdncia deste problema para a concepgdo cientifica do mundo. Muitos so da opinigo de que a distancia entre as trés orientages ndo é tio grande quanto parece. Supdem que tragos essenciais das trés orientagdes se aproxi- mardo do desenvolvimento ulterior e que provavelmente, com a utilizagdo das idéias de grande alcance de Wittgenstein, se unirdo na solug&o final A concepgio do cardter tautolégico da matemtica, baseada nas investigagées de Russell ¢ Wittgenstein, é também defendida pelo Circulo de Viena. Observe-se que esta concepgio se opde nfo apenas ao apriorismo e ao intuicionismo, mas também ao empirismo mais antigo ( por exemplo, Mill) que pretendia, de certo modo, derivar a matemidtica ¢ a logica de maneira indutivo-experimental Em conexdo com estes problemas da aritmética e da l6gica esto também as investi- gagdes sobre a natureza do método axiomdtico em geral (conceitos de completude, independéncia, monomorfia, ndo-ambigitidade, etc.), bem como sobre a construgao de sistemas axiomaticos para dominios matematicos determinados. 3.2 Fundamentos da Fisica Originariamente, 0 maior interesse do Citculo de Viena dirigia-se aos problemas metodoldgicos das ciéncias da realidade. Estimulados por idéias de Mach, Poincaré, Duhem, discutiram-se os problemas de submissio da realidade mediante sistemas cientificos e, especialmente, sistemas hipotéticos ¢ axiomaticos. Um sistema axiomati- co pode ser encarado, em primeiro lugar, de modo totalmente desligado de qualquer aplicagdo emplrica, como um sistema de definigdes implicitas. Quer-se com isso dizer que os conceitos que aparecem nos axiomas ndo sf fixados ou, de certo modo, definidos segundo o seu contetdo, mas apenas em suas relagdes reciprocas, por meio dos axiomas. Um tal sistema axiomdtico, contudo, somente obtém significacdo para a realidade mediante acréscimo de definig6es ulteriores, as “definigdes coordenativas” [Zuordnungsdefinitionen], mediante as quais se indicam os objetos da realidade que devem ser considerados membros do sistema axiomatico. O desenvolvimento da ciéneia empirica, que pretende reproduzir a realidade com uma rede de conceitos e juizos 0 mais uniforme e simples possivel, pode ocorrer de dois modos, como se mostra histori- camente. As alteragdes necessdrias devido a novas experiéneias podem ser efetuadas ou nos axiomas ou nas definigdes coordenativas. Com isso, se toca o problema das conven- Ges, tratado especialmente por Poincaré © problema metodolégico da aplicagdo dos sistemas axiomdticos a realidade inte- ressa em prineipio a todos os ramos da ciéncia. E, porém, compreensivel que até o mo- mento as investigacdes tenham sido frutiferas quase exclusivamente para a fisica, jd que no atual estagio do desenvolvimento histérico da ciéncia, a fisica est, de muito, 4 frente das outras ciéncias no que tange a preciso ¢ a finura da construgao conceitual A Concepeiio Cientifica do Mundo — O Circulo de Viena 15 ‘A andlise epistemolégica dos conceitos principais da ciéneia natural tem livrado sempre mais estes conceitos de misturas metaffsicas que aderiram a cles desde tempos primitivos. Especialmente os conceitos de espago, tempo, substincia, causalidade, probabilidade, foram purificados por Helmholtz, Mach, Einstein e outros. As doutrinas do espaco absoluto ¢ do tempo absoluto foram superadas pela teoria da relatividade. Espago ¢ tempo no mais sfo recipientes absolutos, mas apenas estruturas ordenadoras de processos elementares. A substincia material foi dissolvida pela teoria atémica e pela teoria do campo. A causalidade foi despida de seu cardter antropomérfico de uma “atuagio” [Einwirkung] ou “conexdo necesséria” e reduzida a relagdo de condiciona- lidade e coordenago funcional. Além disso, substituiram-se leis da natureza, tidas como rigorosas, por leis estatisticas, e, com base na teoria quintica, até mesmo aumen- tam as diividas quanto a aplicabilidade do conceito de uma regularidade estrita aos fenédmenos nas menores regides espaco-temporais. O conceito de probabilidade é reduzido ao conceito empiricamente apreensivel de freqiiéncia relativa. Mediante a aplicagdo do método axiomdtico aos problemas mencionados, em todos 0s ambitos separam-se os componentes empiticos da ciéncia dos meramente convencio- nais; 0 contetido dos enunciados, das definigBes. Nao mais resta lugar para os juizos sintéticos a priori. A possibilidade de conhecimento nao mais se baseia em que a raz0 humana imprima sua forma ao material, mas em que o material seja ordenado de um determinado modo. Nada se pode saber de antemdo sobre a espécie ¢ o grau desta ordem. O mundo poderia ser muito mais ou muito menos ordenado do que é, sem que se perdesse a cognoscibilidade. Apenas a pesquisa da ciéneia empirica, penetrando gradativamente, pode-nos ensinar em que medida o mundo é regular. O método da indugfo, a inferéncia do ontem para o amanh, do aqui para o ld, é certamente valido apenas se subsiste uma regularidade, Este método nao repousa, contudo, sobre una pressuposicéo aprioristica desta regularidade, e pode ser empregado, suficiente ou insuficientemente fundamentado, onde quer que conduza a resultados frutiferos. Jamais garante certeza, mas a reflexdo epistemoldgica exige que se conceda significa- cdo a uma inferéncia indutiva apenas na medida em que possa ser empiricamente examinada. A concepgio cientifica do mundo nao rejeitaré o resultado de um trabalho de pesquisa por ter sido este obtido por meios insuficientes, esclarecido insuficiente- mente do ponto de vista logic ou fundamentado insuficientemente do ponto de vista empirico. Pretender e exigird sempre, contudo, o exame com meios auxiliares claros, a saber, a redugao mediata ou imediata ao vivenciado. 3.3 Fundamentos da Geometria No mbito dos fundamentos da fisica, o problema do espago fisico alcangou uma significagdo especial nas iiltimas décadas. As investigacoes de Gauss (1816), Bolyai (1823), Lobatchevshi (1835) e outros conduziram a geometria ndo-euclidiana a0 te00- nhecimento de que o sistema geométrico clissico de Euclides, que até entGo reinava sozinho, era apenas um em um conjunto infinito de sistemas, todos igualmente legi- timos do ponto de vista Idgico. Com isto, levantou-se a questo de qual destas geome- trias seria a do espaco real. J4 Gauss quisera decidir esta quest40, medindo a soma dos Angulos de um grande iriingulo. A geometria fisica tornava-se, assim, uma ciéncia empitica, um ramo da fisica. Os problemas foram mais desenvolvidos, especialmente 16 Hans Hahn, Otto Neurath, Rudolf Camap por Riemann (1868), Helmholtz (1868) e Poincaré (1904). Poincaré acentuou, sobre- tudo, a conexdo da geometria fisica com todos os demais ramos da fisica: a questdo da natureza do espago real 86 pode ser respondida no contexto de um sistema total de ffsica. Einstein encontrou entdo um tal sistema, mediante o qual se respondeu a esta questo no sentido de um determinado sistema ngo-euclidiano. Por meio deste desenvolvimento, a geometria ffsica foi separada cada vez mais nitidamente da geometria matemdtica pura. Esta, pot sua vez, foi gradativamente mais e mais formalizada, mediante o desenvolvimento ulterior da andlise ldgica. Em primei- ro lugar, foi aritmetizada, isto é, interpretada como teoria de um determinado sistema numérico. Foi, entio, axiomatizada, ou seja, apresentada por meio de um sistema axiomdtico que concebe os elementos geométricos (pontos, etc.) como objetos inde- finidos e fixa apenas suas relagbes reciprocas. Finalmente, a geometria foi logicizada, isto 6, apresentada como uma teoria de estruturas relacionais determinadas. A geome- tria tornou-se assim o mais importante dominio de aplicagio do método axiomstico € da teoria geral das relagSes, provocando, deste modo, o mais forte impulso para o desenvolvimento destes dois métodos que ento se tornaram to significativos para o desenvolvimento da prdpria ldgica e, assim, por sua vez, para a concepgao cientifica do mundo em geral. As relagdes entre geometria matemdtica e geometria fisica conduziram naturalmen- te a0 problema da aplicagio de sistemas axiomaticos a realidade, que, como foi men- cionado, também desempenha importante papel nas investigagOes mais gerais sobre os fundamentos da fisica. 3.4 Problemas de Fundamentos da Biologia e da Psicologia Os metafisicos sempre distinguiram com predilecdo a biologia como um dominio es- pecial. Isto se expressou na doutrina de uma forga vital especial, no vitalismo. Os modernos defensores desta doutrina esforgam-se em conduzi-la da forma obscura e vaga do passado a uma versdo clara, do ponto de vista conceitual. No lugar da forca vital, aparecem as “dominantes” (Reinke, 1899) ou “enteléquias” (Driesch, 1905). Tais conceitos sZo rejeitados como metafisicos pela concepgdo cientifica do mundo, uma vez que ndo satisfazem a exigéncia de redutibilidade ao dado. O mesmo vale para © chamado “psicovitalismo”, que ensina uma intervengdo da alma, um “papel condu tor do espiritual no material”. Caso, porém, se desligue do vitalismo metafisico o nti- cleo empitico palpdvel, resta a tese de que os processos da natureza orginica decorrem segundo leis que ndo podem ser reduzidas a leis fisicas. Uma andlise mais exata mostra que esta tese equivale 4 afirmacdo de que certos dominios da realidade nao estariam submetidos a uma regularidade uniforme e radical. £ compreensivel que a concepcdo cientifica do mundo possa mostrar confirmacdes mais nitidas de suas visdes fundamentais em dominios que jd atingiram precisio con- ceitual do que em outros dominios: no dominio da fisica mais do que no dominio da psicologia. As formas lingilisticas em que ainda hoje falamos no dominio do psiquico formaram-se em tempos passados, bascadas em certas representagdes metafisicas da alma. A formagdo de conceitos no dominio da psicologia é dificultada, sobretudo, por tais deficiéncias da linguagem: carga metafisica e incongruéncia légica. A isto acres- cem ainda certas dificuldades faticas. A conseqiiéncia é que até o momento a maioria A Concepgito Cientifica do Mundo ~ O Circulo de Viena 17 dos conceitos empregados na psicologia sfo definidos deficientemente. Quanto a al- guns no é nem mesmo certo se sio dotados de sentido ou se sio tomados como tais apenas pelo uso lingtistico. Assim, para a andlise epistemolégica, quase tudo ainda esté por ser feito neste dominio. Certamente a andlise & aqui também mais dificil do que no dominio do fisico. A tentativa da psicologia behaviorista de abranger todo 0 quico no comportamento de corpos e, portanto, em um nivel acessivel & percepeao, estd proxima, em sua atitude fundamental, 4 concepgio cientifica do mundo. 3.5 Fundamentos das Ciéncias Sociais Todo ramo da ciéneia, em especial da fisica ¢ da matemitica, é levado, em um estdgio anterior ou posterior de seu desenvolvimento, a necessidade de um exame de seus fundamentos, a uma andlise légica de seus conceitos. Tal é, portanto, o caso, também nos dominios cientificos sociolégicos, em primeira linha histéria e economia politica. Jé ha cerca de um século estd em curso nestes dominios um processo de separagao de misturas metafisicas. Ainda no se alcancou aqui o mesmo grau de purificagdo alcan- gado na fisica. Por outro lado, talvez neste caso a tarefa de purificaggo seja também menos urgente. Segundo parece, em tal ambito 0 peso metafisico nao foi particular- mente forte, mesmo no auge da metafisica e da teologia. Talvez isto se deva a que os conceitos desse domifnio, como guerra e paz, importagdo ¢ exportagdo, estejam mais proximos a experiéncia imediata do que conceitos tais como dtomo e éter. Nao é de- masiado dificil abandonar conceitos como “espitito do povo” e, em vez deles, tomar por objeto grupos de individuos de determinada espécie. Quesnay, Adam Smith, Ricardo, Comte, Marx, Menger, Walras, Miller-Leyer, para citar pesquisadores das mais diferentes orientagdes, atuaram no sentido de uma atitude empirista e antimetafisica. O objeto da histéria ¢ da economia politica sio homens, coisas e sua disposicgo. 4 RETROSPECTIVA E PERSPECTIVA A moderna concepedo cientifica do mundo desenvolvew-se a partir dos trabalhos acerca dos problemas citados. Vimos como, na fisica, o esforgo para obter resultados palpdveis, inicialmente mesmo com um instrumental cientifico insuficiente ow ainda insuficientemente esclarecido, viu-se forgado sempre maisa empreender também investi- gagdes metodolégicas. Assim se processou o desenvolvimento do método de constru- go de hipéteses e, posteriormente, o desenvolvimento do método axiomiitico e da andlise 16gica. A construgio de conceitos alcangou, deste modo, clareza ¢ rigor sempre maiores. O desenvolvimento da pesquisa de fundamentos nos dominios da geometria fisica, da geometria matemdtica e da aritmética conduziu também, como vimos, aos mesmos problemas metodolégicos. Foi principalmente destas fontes que se originaram 08 problemas com que os representantes da concepgdo cientifica do mundo hoje se ocupam preferencialmente. E compreensivel que no Circulo de’ Viena ainda perma- nega nitidamente reconhecivel a origem de seus membros a’ partir de diferentes domi- nios de problemas. Devido a isso resultam também freqiientemente diferengas de orientagdo de interesses e de pontos-de-vista, que levam a concepgdes diversas. E, porém, caracteristico que as divergéncias diminuem mediante 0 esforgo pela formula- do precisa, pela aplicagdo de uma linguagem e de um simbolismo Idgico exatos, pela 18 Hans Hahn, Otto Neurath, Rudolf Camap diferenciagio nitida entre 0 contetido tedrico de uma tese ¢ as meras representagdes acompanhantes [Begleitvorstellungen]. Gradativamente cresce o fundo de concepgoes comuns que constituem o ntcleo da concepgdo cientifica do mundo, a que se ligam, com divergéncia subjetiva mais acentuada, as camadas exteriores. Retrospectivamente torna-se-nos nitida a esséncia da nova concepgdo cientifica do mundo por oposigio & filosofia tradicional. Nao se estabelecem “proposigdes fi- loséficas” proprias, mas apenas se esclarecem proposigdes, e precisamente as proposi- ges da ciéncia empitica, como o vimos nos diferentes dominios de problemas ante- riormente discutidos. Alguns representantes da concepgdo cientifica do mundo nao mais querem aplicar a palavra ‘ilosofia’ ao seu trabalho, a fim de acentuar ainda mais a oposicdo 4 filosofia sistemdtica. Como quer que tais investigagdes venham a ser desig- nadas, algo € certo: ndo hd filosofia como ciéncia fundamental ou universal, ao lado ou sobre os diferentes dominios da ciéncia empirica. Nao hd caminho para conheci- mento de contetdo ao lado do da experiéncia; no ha um reino das idéias, que estaria sobre ou além da experiéncia. Todavia, o trabalho das investigagbes “filosdficas” ou “de fundamentos”. no sentido da concepgao cientifica do mundo, permanece impor- tante, pois 0 esclarecimento logico dos conceitos, proposiges ¢ métodos cientificos li- bera de preconceitos inibidores. A andlise logica e epistemol6gica néo quer impor limi- tagdes a pesquisa cientifica; pelo contrdrio, péedhe a disposicdo um dominio, 0 mais completo possivel, de possibilidades formais, do qual deve escolher a adequada a res- pectiva experiéncia (por exemplo, as geometrias ndo-cuclidianas e a teoria da relativi- dade). Os representantes da concepgio cientifica do mundo postam-se decididamente no solo da simples experiéncia humana. Langam-se confiantemente ao trabalho de remo- ver do caminho o entulho metafisico e teolégico dos séculos; ou como pensamalguns, apés um intervalo metaffsico, voltam a uma imagem unitdria e imanente (diesseitig) do mundo, como, em certo sentido, a que ja estava 4 base da crenca magica, livre de teologia, dos prineipios. O incremento da inclinagdo metafisica e teologizante que hoje se verifica em mui- tas associages ¢ seitas, em livros e periddicos, em conferéncias e cursos universitarios, parece apoiar-se nas violentas lutas sociais e conémicas do presente. Um dos grupos de combatentes, mantendo-se preso ao passado no dominio social, cultiva também as atitudes tradicionais, freqiientemente hd muito superadas, da metafisica ¢ da teologia, enquanto outro grupo, voltado para a modernidade, especialmente na Europa central, recusa tais atitudes ¢ se pée sobre o solo da ciéncia empitica. Este desenvolvimento se associa ao do moderno processo de produgdo, que se configura de um modo cada vez mais mecanizado e técnico, deixando sempre menos espago a representages metafisi- cas. Tal desenvolvimento se associa também a decepgio das grandes massas pela pos- tura daqueles que preconizam as doutrinas metafisicas e teoldgicas tradicionais. Resul- ta, assim, que, em muitos paises, as massas recusam estas doutrinas, agora muito mais conscientemente do que no passado, ¢ se inclinam por uma concepgdo mundana e em- pirista, em conexao com sua atitude socialista. Em outros tempos, o materialismo foi a expresso desta concepgao. Entrementes, porém, o empirismo moderno se desenvol- veu a partir de muitas formas insuficientes e alcangou uma configuragio sdlida na con- cepeao cientifica do mundo. A Concepedo Cientifica do Mundo — 0 Circulo de Viena 19 Assim, a concepgdo cientifica do mundo esté préxima vida contemporanea. Na verdade, duras lutas e hostilidades certamente a ameagam. Nao obstante, hd muitos que ndo desanimam, mas, face a presente situagdo sociolégica, aguardam com esperan- a o desenvolvimento futuro. Certamente nem todo partiddrio da concepcio cientifi- ca do mundo serd um combatente. Aqueles que se comprazem na solidgo, levardo uma existéncia retirada, sobre as montanhas geladas da l6gica; alguns, talvez, até mesmo desprezem a mistura com as massas ¢ lamentem a “trivializaggo” inevitavel com a divulgagdo. Mas suas realizagdes também se inserem no desenvolvimento histérico. Pre~ senciamos a penetragdo, em crescente medida, do espitito da concepedo cientifica do mundo nas formas da vida privada e pdblica, do ensino, da educacio, da arquitetura, € a sua contribuigao na configuracdo da vida econémica e social, segundo principios ra- cionais. A concepedo cientifica do mundo serve d vida, e a vida a acolhe. APENDICE 1. Membros do Circulo de Viena Gustav Bergmann Rudolf Carnap Herbert Feigl Philipp Frank Kurt Gédel Hans Hahn Viktor Kraft Karl Menger Marcel Natkin Otto Neurath Olga Hahn-Neurath Theodor Radakovic Moritz Schlick Friedrich Waisman 2. Simpatizantes do Circulo de Viena Walter Dubislav Josef Frank Kurt Grelling Hasso Harten E. Kaila Heinrich Loewy F. P. Ramsey Hans Reichenbach Kurt Reidemeister Edgar Zilsel 20. Hans Hahn, Otto Neurath, Rudolf Carnap 3. Representantes Principais da Concepedio Cientifica do Mundo Albert Einstein Bertrand Russell Ludwig Wittgenstein Tradugéo de: Fernando Pio de Almeida Fleck

Você também pode gostar