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080 CONTOS

SELECIONADOS

MIDU GORINI
Volume 5 – Contos 62 a 80
midugorinibook 2010 © primeira edição
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MIDU GORINI

080 CONTOS SELECIONADOS


Volume 5 – Contos 62 a 80

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080 Contos Selecionados
Epígrafe Indispensável

― Quem sabe respirar o ar de meus escritos


sabe que e um ar da altitude, um forte ar. E
preciso ser feito para ele, senão o perigo de se
resfriar não e pequeno. O gelo esta perto... ,
mas com que tranqüilidade esta todas as coi-
sas, a luz, com que liberdade se respira... , o
autentico livro do ar das alturas.

Friedrich Nietzsche.

Preâmbulo

― Um livro de contos para adultos, que possui


o ar forte da altitude, o gelo esta ao lado, resta
saber se você e feito para ele e sabe respirar o
ar forte das alturas. Um ar com pouco oxigênio
e fragmentos de fatos verídicos, regados a san-
gue frio, dominados por violenta emoção. E de
quebra alguns contos de humor intercalados
aos outros, boa leitura e boa sorte ♣.
Midu Gorini.
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080 Contos Selecionados
Em cinco volumes - As capas anteriores

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080 Contos Selecionados
Índice

Ж 08 – A noite de núpcias.
Ж 14 – O garoto de programa.
Ж 18 – O ladrão de sexo.
Ж 22 – Lágrimas de sangue.
Ж 27 – A exibicionista.
Ж 31 – Perdido na solidão da noite
Ж 37 – A garota de programa.
Ж 43 – O espírito do mal.
Ж 50 – Mulher casada procura.
Ж 55 – O acordo.
Ж 59 – O desejo.
Ж 62 – Um estranho casal.
Ж 69 − A fantasia sexual.
Ж 78 – Vício maldito.
Ж 82 – Homofobia.
Ж 87 – O Hacker.
Ж 92 – Terror! O vôo do horror.
Ж 95 – A colheita.
Ж 96 – A tempestade.
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Conto 62

A noite de núpcias

PARECIA um sonho para as famílias, enfim


chegaram à grande data, todos os preparativos
em dia com o casamento, inclusive Terezinha
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a noiva virgem com sólida formação familiar,
moral e religiosa.
O noivo Angelino se continha dentro da
sua grande ansiedade e preocupação. Durante
todo o período de namoro e noivado Terezinha
conquistou os seus sentimentos mais nobres,
mas não conquistou o seu desejo sexual, le-
vando-o a ter uma conversa séria com os pais,
a segunda que tiveram na vida, a primeira,
quando a data do casamento foi marcada.
Pacienciosamente seu Lino, o pai lhe ex-
plicou que o desejo do homem é estimulado
principalmente pela visão e depois pelo tato, o
amor em si conta menos. Sendo Terezinha
uma moça recatada era normal ela não ter
permitido os toques de carícias, ou a visão de
partes do corpo nu durante esse período e a-
firmou com toda segurança depois do casa-
mento tudo estará normalizado. Veja eu e sua
mãe, somos feitos unha e carne, corpo e alma.
Totalmente ruborizada dona Angélica, a
mãe complementou as experientes palavras do
marido, “o desejo feminino tem início no café
da manhã com um beijo amoroso, aumentando
durante o dia com ações de atenção, respeito,
educação e companheirismo, chegando ao ápi-
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ce à noite, quando a esposa recebe inebriada
de desejos os burburinhos de carinhos do ma-
rido, convidando-a para o leito perfeito”.
E relembrou a sua própria mãe dizendo,
“Angelino tome cuidado os tempos mudaram,
a sua avó, minha mãe era uma mulher bela a-
dormecida para o sexo, este só lhe servia para
fins de procriação. A sua educação rígida su-
blimou o seu desejo sexual, por isso aceitava
as traições do seu avô. Ela sempre me ensinou
a cultivar atitudes de passividade, ternura, afe-
tividade com uma pequena pitada de sensuali-
dade, para garantir a sedução do homem para
levá-lo ao altar. Sua avó nunca me disse uma
só palavra sobre orgasmo, masturbação ou a
existência de lésbicas, eu só fui descobrir que
tudo isso existia pelas amigas, revistas e de-
pois pelo seu pai que me explicou tudo direiti-
nho”.
E finalizou incentivando o filho a conti-
nuar presentear Terezinha com perfumes, flo-
res, bombons, sempre acompanhados de um
carinhoso bilhetinho com belas palavras de
amor.
Porém as sábias palavras proferidas pelos
pais tranqüilizaram em parte Angelino, sem
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desejo por Terezinha ele temia fracassar na
noite de núpcias, e isto ele não tinha coragem
de falar com ninguém.
Desesperado ele procurou envergonhado
a única farmácia existente na pequena cidade
do Vale da Ribeira. Comprou comprimidos de
um eficiente estimulante sexual, dizendo que
era para o seu tio, o coitado tinha diabetes,
“sempre a mesma estória, sempre o comprimi-
do é para alguém..., só que esse se casa hoje”,
pensou o balconista, não perdeu tempo, logo
após a venda tratou de espalhar a noticia pela
cidade. Assim a novidade chegou aos ouvidos
de Ana Maria, a maior fofoqueira da região.
A cerimônia de casamento ocorreu como
manda o figurino, os noivos no altar, o pai e os
padrinhos da noiva à esquerda, a mãe mais a
frente, o mesmo acontecia do lado do noivo.
Dama de honra e cavalheiro com as bandejas
das alianças no canto do altar, os familiares
dos nubentes nos bancos reservados mais pró-
ximos, depois os dos convidados, muita músi-
ca, belas palavras do Pastor e lágrimas, muitas
lágrimas.
A recepção aos amigos e familiares no sa-
lão de festas da própria Igreja, refrigerantes,
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salgados e doces, além do enfeitadíssimo bolo,
à vontade. O clima era de alegria com discreta
apreensão muitos dos convidados já sabiam da
compra dos comprimidos, mas ninguém se a-
trevia a falar com a noiva, muito menos com
Angelino sobre o assunto.
A gravata do noivo estava sendo cortada
e vendida aos pedacinhos pelos padrinhos,
quando Isabel moça invejosa da felicidade a-
lheira pediu para a Terezinha lhe apresentar o
tio diabético de Angelino para quem ele havia
comprado alguns comprimidos estimulantes
sexuais.
A surpresa da noiva com o inusitado pe-
dido foi avassaladora, Angelino não tinha tios.
Os pais dele eram filhos únicos, portanto os
comprimidos só poderiam ser para ele, com
perspicácia Terezinha conseguiu dissimular,
ela chamou alguns convidados para se junta-
rem a conversa e rapidamente se misturou a
outros deixando Isabel para traz sem resposta,
furiosa, a ver navios.
Assim da forma mais abrupta possível a
noiva recém casada descobriu a insegurança
sexual do marido, levou essa preocupação para
o leito nupcial. Seria alguma coisa de ordem
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psicológica ou física, talvez um nervosismo
natural e passageiro, realmente ela não sabia
do que se tratava.
O que aconteceu naquela noite de núpcias
se repetiu por inúmeras outras, a falta de diá-
logo criou um abismo entre eles, sem traquejo
nenhum Angelino sabia muito bem o que era
“transar”, sem desejo mesmo com os compri-
midos o seu desempenho sexual na cama foi
pífio.
Terezinha queria aprender a fazer “amor”,
não conseguiu um orgasmo sequer com o ma-
rido até a terceira gravidez, logo após a criança
desmamar no sexto mês, ela procurou um mé-
dico especialista em sexualidade, muito cons-
trangida relatou sem rodeios com imenso sen-
timento de frustração o seu problema.
Disse que na medida do possível vivia ra-
zoavelmente bem com o marido, ele era um
excelente pai, não deixava faltar nada em casa,
mas não queria um tratamento médico e sim
um diagnóstico de ser sexualmente incapaz,
assim teria uma desculpa plausível para se re-
cusar a “transar” com Angelino sem magoá-lo,
assim foi feito.
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Conto 63

O garoto de programa

Sou um profissional do sexo, alguns me cha-


mam de prostituto, outros de garoto de pro-
grama, mas isso não me irrita, porém duas coi-
sas me irritam nesta manhã ensolarada na es-
quina da vida, na boca loca da cidade.
A primeira o menino jornaleiro gritando
sem parar, se deliciando com a trágica notícia
“extra, eeeeextra, extra! marido voador! Sim
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marido voadooooor, Voou do edifício Jafé
com dor no coração, pegou mulher com Ricar-
dão, p'ra que tanta dor Mané? P'ra que tanta
dor Manééééé, extra, eeeeextra...”.
A segunda o som estridente dos quatro
sinos coralinos anunciando a Santa Missa, uma
Igreja no meio do inferno, os féis com fé cega
e rostos caídos caminhavam recatados rumo a
ela como anjos subtraídos, entre eles o padre
pedófilo, sem dúvida buscava o perdão e a sal-
vação em vão.
Do outro lado da esquina, as meninas
prostituem-se desinibidas, os meninos traficam
às escondidas, os senhores sofridos, as mães
recém paridas e o caboclo retorcido, recém fo-
ragido trocam palavras lavradas com esperan-
ça mansa de um emprego e meio luto puto, na
longa fila que dobra a esquina da vila. Depois
preenchem as fichas sem rixas, com identifica-
ção, Fé e desnutrição, com mãos trêmulas en-
tregam os currículos sabendo que o trabalho é
o máximo, o salário é o mínimo.
Mas hoje infelizmente não há vagas, tal-
vez amanhã de manhã. O retorcido aborrecido
voltou para o crime, os outros lamentaram com
seus gritos aflitos, as meninas diminutas, cada
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vez mais prostitutas continuam nas esquinas,
os meninos magros, cada vez mais magros
continuam ás escondidas.
Com o frescor depois do sol onde a lua
beija a pele prateada do mar que parou para
amar e sonhar, a noite chega. As garotas boni-
tas ejaculadas e mal pagas iluminam a esquina
perigosa e gostosa.
Os garotos travestidos iluminam o marido
enrustido disfarçado de cabra-macho, mais um
grande cambalacho. O viciado traficante, a vi-
ciada nauseante e mais um sangue acima de
qualquer suspeita, cheio de AIDS no meio da
pop-gangue.
O bangue-bangue ilumina a esquina agora
perigosa, a polícia policia a navalha, o canalha,
o pivete, o canivete e mais um sangue acima
de qualquer suspeita cheio de maracutáia e bi-
rita no meio do mangue.
No silêncio macio do lado calado gostoso
e amoroso que ilumina a esquina, no fundo do
mundo, beijo a boca loca da madame direita e
mais um sangue acima de qualquer suspeita,
cheio de prazer sombrio e vadio acaricia o meu
peito.
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Pago eu me deito com a vida perdida en-
tre gritinhos e gemidinhos que ecoam na es-
quina perigosa e gostosa ao lado do mangue,
satisfeito depois do leito perfeito, me retirei,
voei como um vil pássaro virgem. Voei lá para
o velho e bom Grêmio, lá só tem gente bamba
que faz samba p'ra boêmio e tem uma loira que
é um prêmio, enfim por alguns momentos dei-
xei para traz o lado calado, da vida vivida nas
esquinas.

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Conto 64

O ladrão de sexo
EUZEBÍOZINHO nasceu em berço de mer-
da, pai desconhecido, mãe alcoólatra e para
piorar as coisas na mais completa miséria.
Nasceu negro em terra de brancos, cres-
ceu abandonado pelas ruas praianas da peque-
na cidade paradisíaca, famosa por sua requin-
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tada praia de nudismo, depois de apanhar mui-
to do padrasto e ser expulso de casa pela mãe,
que não tolerava mais vê-lo apanhar tanto do
seu amado e fiel companheiro.
Na rua, Euzebíozinho foi discriminado
desde cedo, a elite local não se incomodava
com sua presença nas ruas cuidando dos luxu-
osos carros de veraneio, diziam aos turistas
“pode confiar nele, esse menino é bonzinho, é
negro, mas tem ações brancas”.
Frases como esta entre outras doía fundo
nos ouvidos e no peito de Euzebíozinho, apeli-
do que ele recebeu na escola e odiava assim
como ele começou a odiar os brancos que o vi-
lipendiavam.
Mas nestas ocasiões em que se sentia dis-
criminado, Euzebíozinho repetia em voz baixa
e embargada a única coisa que aprendeu na sa-
la de aula, antes de abandoná-la para sempre,
alguns versos de Cruz e Souza: “Ninguém sen-
tiu o teu espasmo obscuro, Ó ser humilde entre
os humildes seres. Embriagado tonto dos pra-
zeres, O mundo para ti foi negro e duro”.
Embora não entendesse o que o poeta
quis dizer com “embriagado tonto dos praze-
res...”, repetir esses versos lhe fazia bem, a-
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calmava-lhe o espírito revoltado e o coração
apaixonado pela namorada Bernadete, jovem
empregada domestica na casa do prefeito, com
futuro promissor desde que prestasse alguns
favores sexuais ao patrão.
Fato que partiu o coração de Euzebíozi-
nho, “quanta vida vivida até chegar aos beijos
teus, Bernadete, e agora isso”, murmurou com
voz embasbacada, sentindo na alma o antigo e
cruel castigo do gato sobre o rato, no peito a
sobrevida que agoniza perdida, na sua cabeça
vingança era a palavra de ordem. Lágrimas so-
noras serpentearam-lhe o rosto como um rio
amargo, estava decidido para Bernadete o des-
prezo, pois não se mata quem se ama, para o
prefeito a cobrança da honra em forma de dor
e sofrimento eternos, levados sem dó nem pie-
dade às ultimas conseqüências.
A tocaia foi feita, quando o prefeito abriu
a porta de sua camionete, Euzebíozinho encos-
tou uma faca na garganta do vil político, e dis-
se com imensa calma na voz: “Branco eu sou
Negro com ações brancas, isto é um assalto
sexual”. Em local ermo o prefeito é seviciado
por horas a fio, violentamente espancado e a-
busado sexualmente foi encontrado clamando
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por socorro, por pescadores no dia seguinte.
No hospital imediatamente após o prefeito de-
talhar o fato ocorrido, a intensa caçada ao cri-
minoso começou. Sensibilizado o governador
pediu ao ministro da justiça a Polícia Federal
no caso, enquanto isso a primeira dama fazia o
maior escarcéu, demitiu Bernadete colocando-
a abaixo de zero nos jornais, com estardalhaço
nas rádios locais noticiou a ação de divorcio
com uma salgada pensão mensal.
Tudo jogo de cena da esposa do prefeito,
todos sabiam, foi ela quem descobriu a traição
do marido e colocou Euzebíozinho a par da si-
tuação. As más línguas diziam até que ela deu
algum dinheiro para ele fazer o que fez fato es-
te não comprovado nas investigações.
Os correligionários do prefeito pediam a
justiça de Deus e exigia a justiça dos homens,
inclusive a dos apenados, aludindo ao fato de
que, uma vez no presídio, Euzebíozinho seria
transformado em “mulherzinha” pelos demais
presidiários, pedido em vão, pois os presos fi-
zeram um pacto de não agressão.
A oposição se deliciava com tudo isso fa-
zendo chacota dos fundilhos do prefeito, das
espalhafatosas entrevistas da primeira dama,
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além de esculhambarem com a vida de Berna-
dete, que acabou retornando para sua cidade
natal no nordeste. Depois de árduas diligencias
policiais os investigadores concluíram apenas
que Euzebíozinho conseguiu chegar à capital
paulista, depois disso ninguém soube de mais
nada.

Conto 65

Lágrimas de sangue
VÂNIA CRISTINA percebeu logo no primei-
ro dia, que trabalhar como assistente social em
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um precário hospital público da periferia seria
um trabalho paciencioso, pesado e perigoso, os
pacientes na maioria pardos, prostitutas e po-
bres amontoavam-se uns sobre os outros, nu-
ma fila sem fim à espera de atendimento. A-
lém de uma folclórica cidadã protestando con-
tra o mau atendimento, fantasiada de palhaça.
Contudo ela não perdeu a fé e a esperan-
ça mansa de mudar a situação caótica, sentia-
se preparada para a árdua missão. A fila não
andava, Vânia Cristina vestiu com garra a ca-
misa daquelas pessoas humildes que esperam
agonizadas horas a fio, por um alento médico.
Questionou duramente o diretor clínico do
hospital sobre aquelas lágrimas de sangue na
fila, ele simplesmente se justificou jogando to-
da a culpa na esfera governamental, e ainda i-
ronizou “se tem anestesista, não tem cirurgião,
se tem os dois, não tem sala cirúrgica disponí-
vel. Se tem os três não há leito de UTI para co-
locar o paciente recém operado, se a fila não
anda reclame com quem quiser, menos comigo
mocinha.”
Este “mocinha” realmente tirou Vânia
Cristina do sério, mas num esforço supremo
ela conseguiu se controlar, não valia à pena
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gastar sua energia e preciosas horas de traba-
lho com um médico desmotivado a espera de
sua aposentadoria.
Ela voltou para a ferida do problema, a fi-
la, conversou com as pessoas nela presentes,
diagnosticou a baixa estima deles, proveniente
do desemprego ou do subemprego, gerando
uma baixíssima renda individual, que lhes ti-
ravam a dignidade, sem produtividade tornava-
os descartáveis, frente a uma sociedade con-
sumista e discriminatória. Ninguém estava ali
porque queria óbvio ululante!
Não havia para onde transferir esse bata-
lhão de enfermos, todos os hospitais da rede
pública estavam super lotados, recorrer a um
promotor público, não lhe pareceu uma boa i-
déia, pois se não mexeram até agora uma só
palha para resolver o problema, porque mexe-
riam agora? Só ouviria mais demagogia vinda
agora do ministério público.
Sem ter para onde ir, ou apelar, Vânia
Cristina resolveu agir caso a caso com que ti-
nha em mãos, ou seja, quase nada. Uma assis-
tente social, que entendia quase nada de medi-
cina teria que priorizar um ou outro paciente
da fila para o atendimento.
24
Quem estava fazendo esse trabalho de
“diagnóstico clínico” era o guarda de seguran-
ça da portaria, se o paciente tivesse sangrando
muito, tendo ataque ou desmaiado, entra para
atendimento na emergência, gestante parindo
tinha preferência, e fim de papo caso contrário
para a fila de espera, sem antes passar pela re-
cepcionista do hospital.
Como o guarda de segurança parecia ter
um bom “olho clínico”, pois ninguém estava
morrendo ou tendo nenê na fila, Vânia Cristina
resolveu deixá-lo lá, foi procurar possíveis er-
ros de “diagnóstico clínico” do esforçado
guarda, observou que um rapaz loiro chorando
muito se afastava lentamente da fila.
Ele sangrava discretamente nos fundilhos
da calça, se queixava de assalto sob ameaça de
faca por dois desconhecidos, seguido de vio-
lência sexual. Após o ato carnal forçado lhe in-
troduziram sem dó nem piedade um tubo de
desodorante, que havia comprado na farmácia.
Dizia que o guarda da portaria lhe negou
atendimento, alegando que o serviço do hospi-
tal para casos de violência sexual era voltado
apenas às mulheres e crianças. “Quem poderia
atender esse rapaz de vinte anos? Já que o ser-
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viço de atenção às vítimas de violência sexual
era formado por uma equipe composta por três
ginecologistas e um pediatra?”, pensou a assis-
tente social.
Retornou com o rapaz para o hospital,
conversou com uma enfermeira padrão, pron-
tamente ela lhe indicou duvidando da violência
e suspeitando de homossexualismo um médico
proctologista, que estava fazendo plantão de
clínica geral, no ambulatório de clínica médi-
ca.
Onde o rapaz acabou sendo atendido, ho-
ras depois para a retirada do corpo estranho in-
troduzido, em seguida Vânia Cristina chamou
os policiais de plantão no posto policial do
hospital para a respectiva queixa contra dois
agressores desconhecidos, o retrato falado não
foi possível por falta de perito especializado na
área.
Assim trabalhava Vânia Cristina todos os
dias, vestindo a camisa daquele povo humilde,
tentando resolver caso a caso da melhor forma
possível, fazendo o seu próprio verão como
uma andorinha solitária.

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Conto 66

A exibicionista
NUMA manhã ao acordar de sonho cheio de
olhos com magia e fantasia, Laura Maria viu-
se transformada em uma mulher imoral.
Imediatamente os seus pensamentos re-
trocederam aos seus dezesseis anos, a beira da
piscina do Country Club, quando acidental-
27
mente a parte de cima do seu discretíssimo bi-
quíni se soltou, os elogios dos garotos aos sei-
os ainda em formação, foram imediatos. As
amigas que presenciaram a cena lúdica, tam-
bém teceram elogios, ressaltando o sucesso
que ela estava fazendo entre os garotos.
De uma forma estranha o acontecido aci-
dental mexeu muito com Laura Maria, ela sen-
tiu um bem-estar extasiante no momento, eu-
fórica a partir dessa manhã, começou a sentir
vontade de exibir-se em público para os garo-
tos, desde que fossem desconhecidos.
No início ficou só na vontade, mas as fan-
tasias seguidas dos anseios sexuais atordoa-
vam-lhe a mente, afrontando a sua extrema ti-
midez. Ela nunca namorou, nunca beijou na
boca, pois a religião não permitiria isso fora de
um namoro evangélico com linhas e desígnios
bem traçados por Deus.
Toda essa situação opressora levava Lau-
ra Maria à agonia, a solidão era intensa o so-
frimento psicológico imenso, a Fé em Deus i-
nabalável e se reconfortou em seu Perdão. Em
pouco tempo comportamentos sexualmente
excitantes recorrentes e intensos de prazer, en-
volvendo a exposição dos genitais através de
28
calcinhas transparentes a um estranho insus-
peito, se repetiam sempre de forma “aciden-
tal”.
Eu existo e possuo o objeto permanente
do desejo alheio, pensando assim Laura Maria
começou a namorar um bom rapaz da Igreja,
contudo nada se comparava ao prazer irresistí-
vel de se mostrar “acidentalmente” em públi-
co. Tentou convencer o namorado a fazer amor
dentro do carro, às escondidas na rua, não deu
certo o namoro terminou, ela não aceitou fazer
amor só depois do casamento.
Laura Maria resolveu desde então ficar
sozinha com suas fantasias e fetiches, aos de-
zoitos anos fotografou nua e crua numa praia
deserta sob os olhares atentos dos pescadores
locais, para uma revista masculina. Aos deze-
nove trabalhava na noite fazendo shows de s-
treep tease em várias boates da capital, pouco
depois vieram os filmes de sexo explícito.
Laura Maria sentia um enorme prazer em
tudo que fazia desde que estivesse nua, não li-
gava para o dinheiro em si e sim pelo prazer de
se mostrar nua em público diariamente.
Até ela acordar do seu sonho cheio de o-
lhos com magia e fantasia, percebeu que preci-
29
sava de ajuda, não podia mais ser escrava da
sua única fonte de prazer, que a transformara
em uma mulher imoral, segundo o julgamento
de seus familiares, alguns ex-amigos e a Igreja
que freqüentava.
Laura Maria procurou ajuda no consultó-
rio de um psicólogo, depois de um psiquiatra,
assim chegou ao meu consultório de Terapia
Ocupacional, tinha sérios problemas de opini-
ão com os familiares, com o pastor, antigos
amigos e de relacionamentos amorosos.
Não sentia prazer com homens e muito
menos com mulheres, estava assexuada, sua
única fonte de prazer era o exibicionismo, sua
vida girava em torno disso com compulsão,
depressão e pensamentos obsessivos.
Os profissionais de saúde procurados aju-
daram-na muito, trabalhamos arduamente em
conjunto no caso de Laura Maria a cura com-
pleta para os seus males, não foi possível, mas
ela nunca mais se mostrou “acidentalmente”
em público, continuou solteira e solitária, po-
rém sem compulsão, angústias ou arrependi-
mentos.
Apenas aceitou-se como realmente é uma
pessoa diferente, feliz da vida continua a fazer
30
os seus filmes de sexo explícito e seus shows
de strip tease na capital paulista, esporadica-
mente posa nua em locais públicos, para revis-
tas masculinas.

Conto 67

Perdido na solidão da noite

TRÊS minutos sem respirar, três dias sem be-


ber, três semanas sem comer, três meses sem
escrever, Flávio sabia que em qualquer uma
31
dessas situações estaria morto. Ele era afeito a
fazer obras primas, segundo as críticas mais
criteriosas, seus livros os mais vendidos da e-
ditora, mas a inspiração lhe faltava há dois
meses e meio.
Flávio se sentia em estado de coma em
uma UTI do SUS, ele escrevia pelo mesmo
motivo que uma pessoa respira, bebe ou come,
Flávio escrevia para viver e sentir-se vivo, não
suportava mais o fim súbito da sua vocação
inquestionável de criar belos poemas, contos,
crônicas e romances.
Mas nada como um dia após o outro, in-
tercalado por uma noite de amor, um jantar a
luz de velas no apartamento da Gabriela com
muita magia e fantasia de sobremesa, excita-
dos e entregues nas delicias da carne, do pra-
zer pelo prazer, fizeram amor como se não
houvesse amanhã.
Gabriela adormeceu com seus instintos de
fêmea saciados, Flávio abre as cortinas do a-
partamento, deixando penetrar no ambiente o
frescor da noite e o luar, o luminoso da loja em
frente piscava suave, dando um leve toque a-
vermelhado ao quarto. Em seguida ele pega
um bloco de notas que estava ao lado do tele-
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fone e na solidão da noite começa a escrever,
depois de alguns minutos beija carinhosamente
o rosto adormecido de Gabriela e parte silen-
ciosamente, tomando cuidado em não fazer ba-
rulho ao fechar a porta da sala do pequeno a-
partamento.
Os primeiros raios de sol acordaram Ga-
briela e iluminaram os escritos de Flávio que
se encontrava na cabeceira da cama, ela os leu
avidamente, como se devorasse palavra por
palavra, letra por letra:

“MEU profuso olhar azul desliza na pe-


numbra dessa cama onde ecoam os nossos
burburinhos de carinhos e pela primeira vez
pousa em ti com o brilho do fogo do esmeri-
lho. Difuso neste silencio atencioso vejo a re-
tidão imóvel do espelho refletir olhos azuis
sem mágoas tingindo o teu corpo amoroso.
Na penumbra vejo miragens sobre a tua
pele desnuda muda, vejo suas formas mais de-
licadas com aromas mais que selvagens, mais
uma vez os meus olhos passeiam encantados,
extasiados sobre a translucidez das tuas curvas
felinas e sofrem com o seu ciúme.
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Sois o vil ciúme, amor de dor, remóis,
destróis, corróis depois deseja os meus açoites
á flor da noite, a meia noite, mas foi-te no per-
noite com o teu ácido a cor dos meus desejos,
a luz dos meus olhos e o mel dos meus lábios.
Remóis o meu peito dividido no leito an-
tes e depois do seu perfume, destróis os meus
carinhos, os meus fascínios, dos encantos so-
bram os desencantos, do leito só a saudade no
peito.
Corróis a minha alma com calma, entre-
gue a palma de sua mão de peito aberto, de co-
ração aberto, ser fiel já não basta para o teu fel.
Assim vou para a rua de lua a lua á espreita de
esquina em esquina.
Assim eu me vingo do seu ácido, nos bra-
ços de uma morena de bom tom, gostooosa
como bombom, assim eu me vingo da sua fú-
ria nos lábios de uma loira de doce abrigo gos-
tooosa como figo.
Assim eu me vingo do seu vil ciúme como
um pássaro vil, até ele aprender que sou cavalo
selvagem, vara que verga, mas não quebra. Até
ele aprender que o seu mel não pode ser fel,
até ele aprender que te amo como nunca amei
ninguém.
34
Clamo por ti, gemo, tremo, te amo irra-
cionalmente, por instinto, por impulso não re-
sisto és tatuagem irreversível marcada no meu
corpo, cravada no meu coração, tatuada em
minha alma. Minha boca convidará sempre o
teu desejo com dentes de marfim, aroma e á-
gua, bela e pura, nua e crua para o leito perfei-
to.
Entrego-me sempre aos seus prazeres, às
suas vontades de peito aberto, às suas fantasias
feito unha e carne, corpo e alma. Meus olhos
te celebram, meu peito se encanta, mulher dos
meus cuidados, mulher dos meus prazeres.
Respiro com gosto a natureza sem censu-
ra dessa intimidade, transpiro com gozo o des-
tino sem pudor dessa felicidade, até o seu co-
ração falar chega e sei que não falará, o seu cio
é o meu vício, o seu amor ciumento a minha
dor.
Hora de partir, a esperança dança perto
dos olhos, a cicatriz feliz da saudade levo den-
tro do meu peito. Na rua os ruídos da noite fe-
rem a madrugada sem maldade, amanhã volta-
rei trazendo o vinho, o pão, o aroma gostoso e
o desejo de um beijo amoroso.”
35
Assim terminava os escritos de Flávio, de-
pois de dois meses e meio sem escrever uma
linha sequer, escreveu estas para a pessoa a-
mada, infelizmente Gabriela não reagiu bem,
delírios de ciúmes lhe atormentaram a mente,
tiraram-lhe o bom senso e o discernimento da
medida dos pesos, da medida das forças.
Como disse certa vez um amigo meu:
“Fantasmas, eu entendo, espíritos vingadores,
eu entendo, demônios, eu entendo. Mas pesso-
as? Pra mim é só um bando de malucos!”
Ao meio dia em ponto, hora em que a
sombra é mais curta, um canal de televisão no-
ticia com todo o estardalhaço espalhafatoso de
uma edição extraordinária que interrompeu a-
bruptamente a programação local, o mais lon-
gos dos erros de Gabriela: “A literatura está de
luto, inconformada com as traições do noivo,
noiva mata poeta com um tiro no coração no
centro da cidade...”, definitivamente Gabriela
não soube amor, mas pode aprender, nunca é
tarde para isso.

36
Conto 68

A garota de programa

NINA corpo de menina, carinho de mulher,


alma feminina, linda menina-mulher. Nina que
ilumina a esquina, nos lençóis da vida ambição
feminina, sonha! Jeito funk, sorriso dark twist,
mas a vida insiste e passa triste, pena menina-
mulher... O amor quando possível, quando
permitido era sentido e valorizado no coração
dela, misturado ao medo e ao prazer vividos
37
nas esquinas da vida, por michê. Uma simples
e sigilosa prestação de serviço, sexo em troca
de dinheiro, para o cliente uma “masturbação
terceirizada”, para ela o seu trabalho, o seu ga-
nha pão, que sempre envolvia o medo do des-
conhecido e não raramente prazer, traduzidos
em orgasmos múltiplos.
O amor sempre machucava o coração de
Nina. Ela se “casou” algumas vezes e fazia de
tudo para agradar o seu homem, mas seus
“maridos” não aceitavam a sua profissão, odi-
avam ser chifrados profissionalmente por ela,
por outro lado nem um deles foi capaz de mu-
dar a sua realidade e tirá-la da vida nas esqui-
nas. Muito pelo contrário, às vezes pediam di-
nheiro para Nina. Ela entendia perfeitamente
bem os “maridos” que passaram por sua vida,
eles não queriam ter uma prostituta como es-
posa, qual homem quer ter? O “marido” estava
lá só para tirar proveito dela.
A prostituição era uma rota de fuga, que
Nina começou a trilhar a muito tempo atrás,
quando aos onze anos pediu socorro a sua pro-
fessora, esta encaminhou às presas a menina
para um posto de saúde. Ela sangrava pela va-
gina, o doutor constatou o estupro, informou a
38
delegada e o padrasto de Nina foi preso. Ele
confessou tudo na delegacia em cínico depoi-
mento, desprovido de remorsos o padrasto dis-
se que estava desempregado e beijava Nina na
boca e nos peitos todos os dias quando a sua
esposa se ausentava para trabalhar de faxineira
na casa de alguma madame, depois completa-
va os seus atos libidinosos introduzindo o dedo
indicador na vagina e no ânus da enteada.
Chegando a penetrá-la na tarde anterior
pela primeira vez na vagina com o seu pênis,
ferindo-a e provocando um vasto sangramento
na menina, em seguida como sempre fazia ele
ameaçou Nina de morte, depois de bater nela
com o chinelo e enxugar o sangue que saia da
vagina dela. A Mãe de Nina, abismada com os
fatos ocorridos foi buscá-la na delegacia, des-
consertada e perturbada com a descoberta da
situação, se isentava de culpa, disse que não
sabia e nem desconfiava de nada.
O seu esposo estuprador acabou ficando
preso na penitenciária por três anos, quando
ganhou a liberdade condicional e foi recebido
de braços abertos por ela, foi quando aos qua-
torze anos Nina fugiu de casa para não mais
39
voltar, a mãe não foi atrás, muito menos o pa-
drasto.
Sem ter para onde ir, Nina refugiou-se na
casa de uma amiga, um ano mais velha que e-
la, esta amiga estava se iniciando na prostitui-
ção e levou Nina para morar na casa de um
travesti que também se prostituia, ele ficou
completamente encantado por ela. Ensinou tu-
do que sabia a Nina, ensinou a ela como se
vestir sensual, beber moderadamente, não fu-
mar, ficar longe das drogas, seduzir um ho-
mem e dançar com maestria, o que a ajudou
muito no seu primeiro emprego, dançarina em
uma boate, na zona do meretrício da cidade.
A primeira vez que Nina fez um “pro-
grama”, foi com um coroa que ela achou lindo,
cheio da nota, sujeito da capital, foram a um
motel chique, Nina estava nervosa, uma dose
de uísque a acalmou, correu tudo bem. Mas
rapidamente ela compreendeu que sair com vá-
rios homens, sem escolher parceiro, cobrar pe-
los serviços prestados, ser vista pela sociedade
como um fator de risco para a disseminação de
doenças, como a AIDS. Além de vivenciar al-
gumas situações de violência, maus tratos, es-
tupro e extorsão da polícia, tornava sua pro-
40
fissão de garota de programa, uma profissão
que a expunha a riscos, preconceitos, estigmas
e descriminação, sem alternativa de emprego
dito digno pela sociedade, continuou na “vida
fácil”.
Uma bela noite, quando Nina comemo-
rava os seus dezesseis anos, ela viu o seu pa-
drasto entrar na boate em que trabalhava, Nina
foi até a casa do travesti. Colocou suas coisas
em uma mochila se despediu longamente dele
e com pouco dinheiro guardado, ela pegou um
ônibus na rodoviária, tinha jeito de moça, nin-
guém pediu documento, Nina largou a boate, a
escola, os amigos, alguns clientes e caiu no
mundo, nunca estudou, nunca voltou a dançar.
Chegou à capital praticamente com uma
mão na frente outra atrás, começou a fazer
“programas”, a noite sua atividade alcança seu
zênite, não tanto pelos maiores ganhos ou pelo
maior número de clientes, mas porque a prosti-
tuição integrava o universo noturno da boemia.
Com vinte e cinco anos Nina, embora fosse
muito bonita e sensual, não conseguia mais
clientes à noite em número suficiente para se
manter financeiramente, era considerada “ve-
lha” para o trabalho. Passou então a trabalhar à
41
tarde, eram “programas” mais rápidos e segu-
ros, a clientela era de melhor nível social,
composta por muitos profissionais liberais que
pretendiam ter uma pequena entrevista intima
com Nina entre o período de saída do trabalho
e a ida para a casa. Aos trinta e cinco anos e
ainda mantendo os seus traços de beleza e sen-
sualidade, Nina não conseguia mais clientes à
tarde em numero suficiente para se manter, fi-
cou “velha” para o serviço vespertino.
Sem saída foi trabalhar de manhã, fazia
programa com uma clientela, onde predomina-
va os velhos aposentados, assim permaneceu
até completar sessenta anos. Foi quando Nina
informou aos amigos e clientes que iria se mu-
dar em breve para o interior, e assim foi feito.
Lá ela queria realizar os seus três grandes so-
nhos de sua vida, comprar uma casinha popu-
lar com um carro popular na garagem e se a-
posentar como profissional do sexo pela Pre-
vidência Social, pois ela pagava a Previdência
como autônoma. Depois disso, ninguém soube
de mais nada.

42
Conto 69

O espírito do mal

UMA PRESIDIÁRIA prestes a ganhar sua li-


berdade que racionaliza a sua culpa e a projeta
na sociedade, jamais se recuperará. Este é o
caso da jovem Darlene, condenada a seis anos
de reclusão por furto qualificado, ela cumpriu
um ano em regime prisional fechado, na peni-
tenciária estadual.
Os doze meses em que Darlene passou
detida foram dias terríveis para ela, foi assedi-
ada sexualmente logo no primeiro dia por uma
colega de cela, Darlene perdeu o controle da
43
situação, teve um ataque de fúria e partiu para
cima da assediadora. Apanhou muito naquele
primeiro dia e durante todo o tempo que ela
esteve presa serviu docilmente de escrava se-
xual para aplacar os instintos mais primitivos e
selvagens de uma lésbica metida a machão, de
nome Moraes.
Este tempo de sofrimento só lhe serviu
para esfriar ainda mais os seus sentimentos, já
congelados pela sociedade e pelas pessoas,
Darlene era uma pessoa desprovida de amor ao
próximo, seu único amor ela mesma.
Para ganhar a tão sonhada liberdade, em
regime semi-aberto, onde poderia trabalhar de
dia e dormir em sua casa, já que não havia ne-
nhuma vaga, para que ela pudesse fazer isto
em uma prisão albergue, Darlene se esforçou
ao máximo, contra a sua natureza comportou-
se exemplarmente.
Nunca deu “trabalho” a nenhuma carce-
reira, sempre as tratou com uma educação elo-
giável, sempre fez o que lhe foi pedido com
um sorriso nos lábios e um esforço quase so-
brenatural para isso. Reclamou uma única vez
da sua condição de ser explorada sexualmente
para a carcereira de plantão, esta não mexeu
44
um fio de cabelo para ajudá-la, ninguém iria
ajudá-la, na penitenciária em briga de marido e
mulher, ninguém mete a colher.
Mas o fato é que o bom comportamento
de Darlene a ajudou muito na entrevista com o
psicólogo forense, para avaliação de periculo-
sidade, ele começou lhe perguntando: - Deseja
o regime semi-aberto? “Sim doutor”, respon-
deu ela com voz languida. Em seguida Darlene
respondeu com doce voz “não doutor” às se-
guintes perguntas; você vai cometer novos fur-
tos? O crime compensa? Gostou de ficar pre-
sa? Você deseja falar alguma coisa?
E por fim Darlene respondeu, devorando
o psicólogo com os olhos “estou cansada de
sofrer” a pergunta; que garantia você me dá
que não vai furtar de novo? Em seguida seguro
de si o psicólogo informa para ela que vai re-
comendar ao juiz, em regime de progressão de
pena, a sua soltura por não apresentar mais pe-
rigo à sociedade e ganha um caloroso abraço
com um beijo no rosto, bem próximo ao canto
de sua boca. Ruborizado ele dá a Darlene um
cartão com o endereço e telefone do seu con-
sultório clínico.
45
Ledo engano, o psicólogo forense foi ma-
nipulado se rendeu ao bom comportamento,
beleza e poder de sedução da Darlene, ele não
levou em consideração as respostas sempre
egoístas valorizando só o lado dela e de mais
ninguém. Nenhuma resposta altruísta valori-
zando a sua família ou a sociedade como um
todo, muito menos qualquer sinal de arrepen-
dimento pelo furto praticado. Darlene não ti-
nha sentimentos por ninguém, mas conseguia
simular perfeitamente bem, uma pretensa e-
moção sentimental por outras pessoas, quando
assim lhe convinha, foi o que ela fez com o
psicólogo.
Em liberdade Darlene ávida por novas
aventuras, caiu na promiscuidade sexual, fazia
qualquer coisa com homens ou mulheres desde
que recebesse algum dinheiro. Em uma dessas
entrevistas íntimas com uma madame mal ca-
sada, recebeu mais que o rotineiro michê, re-
cebeu uma proposta que lhe valeria muita gra-
na, só tinha que matar o marido da infeliz.
Coisa que ela fez sem vacilar, como uma
verdadeira predadora, armou uma tocaia ás es-
condidas e desferiu seis tiros certeiros de cali-
bre 38 no pobre marido rico da madame. Dois
46
anos depois uma nova e poderosa tocaia, mais
seis tiros certeiros calibre 38 e cai ao chão da
avenida sem defesa, nem reza na calada da
noite o corpo morto de uma lésbica metida a
machão, de nome Moraes.
Com o bom dinheiro pago pela madame
Darlene viveu tranquilamente em sua casa,
sem fazer nada, apenas cumprindo o restante
de sua pena, que chegou ao fim, juntamente
com o seu dinheiro, depois de cinco anos. Sem
ter como se manter ela resolve procurar e se-
duzir o psicólogo forense.
Como os homens são burros parece que
só pensa com a cabeça de baixo, o psicólogo
forense foi facilmente seduzido por Darlene.
Casaram-se em três meses e pela primeira vez
ela começou a sentir um sentimento verdadeiro
por outro ser humano, que se traduziu na for-
ma de um ciúme doentio insuportável, para o
marido.
Para a minha surpresa o psicólogo foren-
se, que foi incapaz de atestar a periculosidade
e diagnosticar a sociopatologia de Darlene, re-
solve quebrar todas as regras da psicoterapia e
decide ele mesmo tratar a esposa dos males
47
que lhe afligiam o corpo e a mente, fez isso
por amor a ela.
O psicólogo decide hipnotizar Darlene,
ouviu o que não queria ouvir, fatos inconfes-
sáveis por ela em outra situação, ele abismado
percebeu todo o distúrbio da personalidade
dissocial dela.
Quase no fim da seção de hipnose Darle-
ne mostrou-se outra pessoa, com uma persona-
lidade boa em uma moça frágil, carente e dócil
que precisava urgentemente de ajuda, então
num relance de competência extrema o psicó-
logo entende a situação.
Novamente para a minha surpresa o até
então incompetente psicólogo, mantendo Dar-
lene em mais completo estado de hipnose, vai
até a sua estante de livros, pega um e volta, a-
bre o livro e lê em alto e bom som:
“Allan Kardec pergunta: Interferem os
espíritos em nossos pensamentos e atos?” Res-
posta dos espíritos de luz: “A esse respeito os
espíritos interferem muito mais do que imagi-
nais, a ponto de serem eles, muitas vezes, que
vos dirigem”.
Então para a minha surpresa final ele re-
solve falar diretamente comigo, olhando fixa-
48
mente para os olhos fechados de Darlene que
eu fiz abrir neste momento “você espírito pri-
mário, perverso sociopata que ainda não de-
senvolveu sentimentos, em sua consciência in-
ferior, espírito do mal que vive saído da barbá-
rie e levou a minha querida esposa Darlene
como instrumento seu para cometer sem re-
morsos as suas barbáries, vou levá-lo frente a
frente com um médium, um espírito de luz,
vamos ver se você resiste a isso”
Realmente eu não estava nem um pou-
quinho a fim de escutar todo aquele blá, blá,
blá, de uma seção espírita. Então eu resolvi
deixar o corpo de Darlene sem dar nenhuma
resposta ao psicólogo, estava me lixando para
ele ou para a esposa dele, parti para outra a-
ventura de pouca luz. Logo encontrarei uma
nova pessoa, onde farei morada em seu corpo
e mente talvez eu passe pela sua rua, quem sa-
be?

49
Conto 70

Mulher casada procura

NÃO ERA do feitio de Jorge falar não para o


sexo, Carla não fazia o seu tipo, ela estava
longe disso, mas ele não podia dizer não. Vivia
na dieta da “sopa”, mulher deu “sopa” Jorge
comia sem titubear, mesmo sendo casado há
oito anos com Gabriela a qual carinhosamente
chamava de “Cravo e Canela”. Ele traia a sua
esposa sem remorsos, pois achava que o sexo
50
fora do casamento fazia parte do universo
masculino, o seu avô fez, seu pai fez, porque
ele não faria, afinal de contas todo homem que
é verdadeiramente macho faz?
Jorge fez sexo com Carla como não se
houvesse amanhã, aplacou seus instintos mais
selvagens e primitivos em um motel de quinta
categoria na periferia da cidade, durante toda à
tarde de terça-feira que não arde covarde ao
sol, depois com o acalento do vento lento lhe
acariciando o rosto, foi para a sua casa como
nada tivesse acontecido. Chegou lá como sem-
pre chegava, com um largo sorriso no rosto
acarinhou Gabriela, depois beijou e brincou
com as filhas, tomou um bom banho, jantou,
verificou os e-mails no computador da sala e
foi dormir cedo, no mesmo horário das filhas
pequenas alegando que o dia de trabalho tinha
sido extenuante.
Sua esposa não sabia de nada, nunca des-
confiou de nada, abandonou a profissão para
cuidar das duas filhas, do marido e da casa.
Mas o fato é o que os olhos não vêem o cora-
ção não sente, assim Gabriela vivia feliz da vi-
da em seu lar, até aquela fatídica noite de ter-
ça-feira, quando Jorge chegou como sempre
51
chegava e foi dormir cedo esquecendo o com-
putador da sala ligado, com sua caixa de en-
trada de e-mails aberta.
Toda a traição de Jorge veio à tona, Ga-
briela descobriu que seu amado marido envol-
veu-se sexualmente com muitas mulheres das
quais a maioria ela não conhecia, várias prosti-
tutas, e até com o seu primo homossexual.
Estavam quebrados os laços de confiança
matrimoniais e desvelados os segredos mais
íntimos, juntamente com as esdrúxulas menti-
ras contadas pelo marido. Até então Gabriela
sentia-se muito segura de si, achava que era a
única mulher na vida de Jorge, se entregou de
cabeça para ele, fazia de tudo para agradá-lo,
era fogosa na cama, dona de casa zelosa, exce-
lente mãe.
A cegueira mágica da paixão de Gabriela
por Jorge, da simbiose das trocas amorosas,
dos papéis complementares, das estruturas e ri-
tuais do lar, que davam a ela a ilusão de um
amor verdadeiro, respeito e conhecimento mú-
tuo acabou com um enorme sentimento que
misturava ódio, raiva e sedê de vingança, co-
mo se fosse uma faca cravada no seu coração.
52
Com o coração sangrando Gabriela não
dormiu naquela noite, fumou dois maços de
cigarros, estava desesperada, não sabia o que
fazer separar-se sem emprego jamais, como
manteria as filhas? Com a pensão do Jorge, e
ela como se manteria? As dúvidas lhe ator-
mentavam a mente, dificultando o seu raciocí-
nio lógico, decidiu se calar, dissimular fazer de
conta que nada daquilo que leu nos e-mails do
marido tinha realmente acontecido.
E assim ela tentou fazer dia após dia, mas
não conseguiu, tinha nojo do marido, perdeu
totalmente o desejo sexual por ele, o amor a-
cabou veio à insônia, a depressão e o desespe-
ro vivo, seu único alento as filhas, vivia para
elas.
Jorge não entendia as mudanças intem-
pestivas no comportamento de Gabriela, suge-
riu para a esposa uma consulta psiquiátrica, ela
disse que faria isso, pois também não entendia
o que estava acontecendo.
Mas Gabriela não procurou um médico e
sim uma Lan Hause, postou em um site de re-
lacionamento, duas fotos suas de lingerie, uma
de frente outra de costas, ambas escondendo o
rosto, logo abaixo delas o seguinte recado “O-
53
lá, moro em São Paulo, tenho 32 anos, 1,66 e
55 kg. Procuro um HOMEM casado, com car-
ro e algum dinheiro para dividir o motel ou um
lugarzinho para termos deliciosos momentos
de prazer. Estou muito carente e com muito
amor para dar. Meu e-mail esposacaren-
te@r7.com, aguardo contatos, não tenho ne-
nhum preconceito, mas que você tenha apa-
rência física e idade compatível com a minha,
higiene, sigilo absoluto, nada de compromisso,
mais camisinha, e claro, há! se quiser fumar eu
não ligo, pois também eu fumo.”
Alguns dias depois Gabriela informou ao
marido que a partir daquela data, toda terça-
feira à tarde, ela teria uma sessão de psicotera-
pia com o psiquiatra, para ele não se preocupar
que o convênio médico cobriria todos os cus-
tos do longo tratamento médico que começaria
naquela tarde, sem prazo para terminar.

54
Conto 71

O acordo

A tarde arde covarde ao sol, no acalento len-


to do vento e eu Adira, delegada de plantão
neste fim de mundo, neste fim de ano que se
esvai, continuo aqui nesta delegacia suja pen-
sando com os meus botões.
55
Ainda não me decidi em qual artigo de
abuso sexual, indicio esse malandro coca-cola,
não sei se é estupro, atentado violento ao pu-
dor ou talvez pederastia para limpar um pouco
a sua barra. Mas dessa ele não escapa, sujeito
sem palavra vai ter que pagar por fugir do
compromisso assumido e prometido.
Como pode um colega de trabalho, con-
vidar outro para assar uma carninha amigável
em sua residência, depois de tomarem umas e
outras, resolvem lá pelas tantas alugar um fil-
me pornô para animar a festa, e como animou,
resolveram até “trocar figurinhas” num festivo
troca-troca de comum acordo.
Tiraram “cara ou coroa” e esse malandro
coca-cola como legítimo ganhador, saciou-se
amplamente no seu passivo colega de trabalho,
aplacou completamente os seus instintos mais
primitivos, sem dó nem piedade, depois pediu
licença para ir ao banheiro e fugiu pelos fun-
dos da casa deixando o seu colega na mão, to-
do ardido e fissurado, ah! Isso não se faz.
Resultado o homem que “deu e não rece-
beu”, indignado com o “prejuízo” veio regis-
trar queixa no meu plantão, tá certo ele, o coi-
tado não pode ficar no “prejuízo”.
56
Mas ele não precisava ser tão burro de re-
clamar também com o repórter policial de
plantão, estou até imaginando a manchete do
jornal de amanhã “Rompimento de acordo se-
xual entre dois colegas de trabalho vira caso de
polícia, para a delegada Aldira resolver.”
Estou desconfiada que esse malandro co-
ca-cola trapaceou no “cara ou coroa” então
uma coisa é certa, ele é um contraventor, vou
indiciá-lo também pela prática de jogos de a-
zar. O melhor a fazer é ir embora e tomar as
medidas cabíveis ao caso amanhã de manhã,
bem cedo: - Escrivã já estou indo embora, até
amanhã.
- Delegada Aldira vou assar uma carninha
em casa, quer ir?
- Tome juízo escrivã, que posso indiciá-la
por assédio sexual.
- Eu hein, vá com Deus delegada.
- Amém.

57
Conto 72

O desejo

A IDÉIA de se matar era um grande consolo


para Paulo, ajudava-o a suportar as noites mal
dormidas dominadas pela insônia e desespero,
na verdade ele não queria morrer, queria ajuda,
mas a dor psicológica era insuportável a an-
gustia dentro do seu peito imensurável.
As portas se fecharam para Paulo depois
que sua firma de médio porte foi por água a-
baixo, juntamente com ela foram à estrutura da
sua família de classe média alta que não supor-
tou a nova condição de classe pobre, então a
mulher e os filhos o deixaram a ver navios.
58
Mais do que nunca Paulo precisava de a-
juda para tirar o pé do lodo, mas os amigos
sumiram, os parentes próximos preferiam ig-
norar a sua situação. Emprego essa era a solu-
ção, a palavra mágica para ele, contudo inde-
pendente de sua capacitação profissional como
Paulo poderia arranjar um emprego se sua ida-
de estava com o prazo de validade vencida pa-
ra o mercado de trabalho.
Para aliviar a sua dor ele se aproximou do
álcool e do alcoolismo, porém não se trans-
formou em um alcoólatra embora bebesse to-
dos os dias no boteco do seu único amigo que
o deixava pendurar a conta por longos perío-
dos de tempo.
Desempregado, vivendo de um bico aqui
outro ali, Paulo se culpara pelos atos pratica-
dos que levara sua firma á falência, pelas per-
das de pessoas significativas que sumiram de
sua vida. A solidão era imensa na sua mente
campeava a desesperança e o imenso desejo de
dormir uma noite bem dormida, com belos so-
nhos e acordar morto.
Assim seguia lentamente a vida dele, uma
monótona agonia, até que veio a alta ansieda-
de, o stress máximo e a explosão de fúria, per-
59
cebendo que o ônibus urbano lotado no horário
do rush não iria parar no ponto, ele sinalizou
com o braço direito se atirando na frente do
veículo. O motorista conseguiu desviar do
corpo de Paulo, mas não do braço dele que foi
arrancado na altura do cotovelo pelo impacto
com o ônibus.
Paulo em choque hemorrágico foi socor-
rido prontamente e levado em estado grave pa-
ra o hospital. Os médicos optaram por não re-
implantar a parte do braço decepado, ele não
suportaria a cirurgia dado ao seu estado de
coma provocado pela intensa hemorragia, fi-
cou duas semanas na UTI, depois mais um
mês de internação.
Com o acalento lento do vento, depois
desse tempo Paulo recebe alta, a flor do rosto a
falta do trabalho e o peso do pão, as monóto-
nas renúncias e todos os sonhos na prece. Para
além desta sedução as marcas da sobrevivência
tatuadas sem pudor a flor da pele com a dureza
transparente do cristal que não quebra não
trinca apenas resiste, misturando sentimentos e
sensibilidade. Num balanço que voa do infini-
to ao nada, dos erros aos poucos acertos na vi-
60
da, gerando breves frutos Humanos de tristeza
e de dor.
Com a mutilação no braço bem estabele-
cida, Paulo entra em uma casa lotérica e pede
para o dono lhe fornecer em consignação al-
guns bilhetes de loteria estadual e federal, as-
sim foi feito. E não é que com a venda de bi-
lhetes de loteria no calçadão do centro da ci-
dade ele conseguiu se estabilizar financeira-
mente dentro da classe pobre.
Paulo não se sentia mais um socialmente
inútil, resgatou a sua dignidade e auto-estima,
virou a pagina de sua antiga vida e vive feliz
com o pouco que Deus lhe reservou.

61
Conto 73

Um estranho casal

VALERIA conheceu a sua verdadeira cara


metade, tinha convicção disso, estava realmen-
te convencida que esse era o homem ideal, não
vacilou nem por um segundo para aceitar o
pedido de casamento.
“Maduro, bonito, simpático e experiente”,
assim Valéria definia o seu marido Alberto, e-
les se identificaram por terem tido uma infân-
cia muito parecida, ele preocupado em susten-
tar a sua mãe e ela com os seus irmãos, a fo-
me, a falta de amor embora ambos tivessem
pais. Enfim, à vontade de viver, a necessidade
de amar, os sofrimentos, o apoio mútuo os u-
niu.
62
Aberto era uma pessoa livre, não havia
cobrança da esposa nos seus horários comerci-
ais, devido à profissão por ele exercida, corre-
tor autônomo de seguros, mas Valéria sabia
que isso o facilitava a um contato maior com o
sexo oposto e com o passar do tempo veio à
descoberta da traição.
A partir deste dia a dor, desconfiança,
mais a magoa levaram Valéria a sentir-se um
farrapo, os filhos sabiam que algo estava acon-
tecendo, não dava para disfarçar, ela não acre-
ditava mais no marido. A verdade tornou-se
mentira, era como ter construído algo muito
grande e ver destruído em minutos, o sentido
da vida para ela ia sendo perdido pouco a pou-
co.
Então tudo começou a mudar na vida de
Valéria, começou a olhar mais para ela, pois
vivia em função do marido traidor, voltou a es-
tudar, tirou carteira de motorista, enfim tentou
recuperar o tempo que perdeu, sem ter, no en-
tanto, novos horizontes claramente bem defi-
nidos na sua cabeça.
Não havia mais atividade sexual com Al-
berto, as horas em que ele não se encontrava
em casa era um martírio para Valéria e quando
63
ele chegava ao apartamento ela sentia nojo de
tocar em seu corpo, a coisa piorou muito
quando as crianças foram para a colônia de fé-
rias com os avôs.
Alberto passou a exigir sexo, Valéria fe-
chou as pernas e abriu a boca, soltando os ca-
chorros em cima dele, até aquela fatídica noite
quando ele chegou alterado pelo álcool, doses
a mais de uísque 12 anos fizeram Alberto per-
der o bom senso e o bom discernimento. Exi-
giu veementemente sexo, Valéria negou pe-
remptoriamente, sem dó nem piedade ele a a-
grediu, os vizinhos ouviram a gritaria e inter-
cederam junto à porta do apartamento, amea-
çaram chamar a polícia.
O que se passou a seguir foi um verdadei-
ro descalabro, Valéria vai chorando para o
quarto, Alberto permanece furioso na sala,
respira fundo vai até a cozinha pega uma faca
tipo peixeira e se dirige com passos firmes em
para o quarto. Coloca a faca na garganta de
Valéria e diz “se der um píu morre”, ele a es-
tupra de todas as formas de todos os lados, ela
sofre calada.
Depois estranhamente ele vai até a sala,
pega um litro de uísque quase cheio no barzi-
64
nho e se dirige arrependido ao banheiro, sus-
surra as quatro paredes: “o que faço com mi-
nha lucidez que atrapalha a minha embria-
guês?” Entra na banheira de hidromassagem
completamente vazia e começa a beber até a-
dormecer completamente embriagado.
Após duas horas de ser desumanamente
estuprada, Valéria vai até o banheiro, encontra
Alberto alcoolizado em profundo sono, retorna
ao quarto, pega dois comprimidos sublinguais
de Bromazepam 6 mg, que o médico lhe recei-
tou como sedativo e volta pensativa ao banhei-
ro, coloca os dois comprimidos na boca de Al-
berto, ele nem percebeu.
Em poucos minutos os comprimidos se
dissolveram, em pouco mais de meia hora o
álcool potencializou em muito o efeito do me-
dicamento, transformando o sono profundo de-
le em um sono comatoso. Sem dó nem piedade
Valéria pega a peixeira que estava jogada ao
chão e calmamente decepa o pênis de Alberto
na base, ele nem sentiu. Depois se sentindo
vingada, ela coloca a faca na mão direita dele,
joga o membro decepado no vaso sanitário, da
descarga e liga apavorada com o sangramento
65
pedindo urgente socorro médico para o marido
desmaiado.
O socorro chega, Alberto é levado em es-
tado grave para o hospital, Valéria dá a sua
versão dos fatos. Diz que o marido chegou
embriagado, brigaram porque ele queria sexo,
os vizinhos intercederam, Alberto se acalmou
temporariamente, mas tentou estuprá-la. Como
não conseguiu ereção por causa da embria-
gues, revoltado com a impotência ele entrou
no banheiro com uma garrafa de uísque e uma
faca, enfim fez o que fez.
Os bombeiros retiraram o vaso sanitário,
eles procuraram em vão o pênis decepado, Al-
berto estava condenado a nunca mais fazer se-
xo ativo, quando ele acordou não se lembrava
de quase nada, apenas de ir arrependido para o
banheiro, por isso acabou aceitando a versão
de Valéria para o ocorrido.
Valéria sabia que ela não era mais a
mesma, Alberto também mudou muito, eles
reuniram com os filhos, ele pediu perdão de-
pois disse que começou a freqüentar uma igre-
ja e nunca mais se envolveu com ninguém,
mas esporadicamente pagava para praticar o
sexo passivo.
66
Com o passar do tempo Valéria começou
a brincar com o marido, para melhorar o astral
entre eles, conversavam bastante, mas é como
se Alberto fosse outra pessoa. Certa vez, per-
guntaram para ela se ainda o amava, a resposta
foi clara, “não quero outra pessoa, mas acho
que não o amo mais”.
Valéria procurava encarar a situação com
os pés no chão, não adianta pensar em mais
vingança, procurava valorizar-se como mulher,
certo dia um homem mais novo, começou a
observar as suas boas qualidades e valorizá-las
com simpáticos elogios.
Assim começou um tórrido romance entre
Valéria e Pedro, repleto de desejo, sensualida-
de e paixão avassaladora. Quando Arnaldo
descobriu a traição da Valéria, ficou atônito,
passado não teceu nenhum comentário para a
sua mulher, que não sabia da descoberta.
Alberto passou por um dramático proces-
so psicológico, primeiro a negação, não acredi-
tava que era corno, depois veio à raiva ele se
culpava pela atitude de Valéria. Procurou ga-
nhar tempo e analisou se o casamento, depois
veio à fase da compreensão da realidade, com
lamentação e tristeza interna.
67
Depressivo e entristecido veio à fase da
aceitação, Alberto resolveu não falar nada com
a Valéria, pois achava que ela era a sua com-
panheira ideal, mãe exemplar, ele não queria
separar a família e levou o casamento em fren-
te como nada tivesse acontecido ou acontecen-
do.
Viveram assim como irmãos por muito
tempo, fingiam não saber de nada, sempre se
declaravam fiéis, contudo um estranho remor-
so mútuo aumentava dia após dia dentro do co-
ração amargurado deles, corroendo-lhes impi-
edosamente a alma.
Eles com muita competência criaram,
formaram, casaram os filhos, batizaram os ne-
tos e depois morreram em um trágico acidente
de carro, deixando para trás duas cartas de
despedida endereçadas a um amante e aos fi-
lhos. Que ficaram inconsoláveis no duplo ve-
lório, chocados com a barbárie dos crimes pra-
ticados por ambos, abaixo da linha da cintura.

68
Conto 74

A fantasia sexual

BRASÍLIA, última primavera do século pas-


sado... Henrique homem alto, mais bonito que
nota de dinheiro novo, coisa que lhe sobrava
nos bolsos e nos bancos, funcionário público
federal de altíssimo escalão no Ministério da
Justiça, com o seu grisalho topete avantajado
chegava a um metro e noventa de altura. Uma
69
beleza de 38 anos, estonteante segundo as mu-
lheres da repartição.
Dentro do seu coração, bem no fundo,
mesmo amando e desejando muito a sua mu-
lher, incrustado nos seus sonhos mais íntimos
Henrique gostaria de ter uma jovem e bela es-
posa, a qual os homens a desejassem e as mu-
lheres a invejassem.
Porém os caminhos percorridos pelo a-
mor, desejo e paixão são tortuosos, muitas ve-
zes incompreensíveis à razão. Desprovida de
qualquer vaidade, atributo ou beleza física, oi-
to anos mais velha que Henrique, Adalgisa sua
simpática e fogosa mulher também tinha um
metro e noventa.
Mais precisamente noventa centímetros
de altura por um de largura, estranha realidade,
mas era a pura e cristalina verdade para o de-
sespero de muitas jovens mulheres invejosas
de plantão, que cobiçavam e se ofereciam des-
caradamente, sem sucesso algum para Henri-
que.
Porém havia entre elas, uma belíssima
exceção, Tereza Maria moça gostosa de corpo
e rosto perfeito mexia com as mais sensuais
70
fantasias sexuais dele, mas não passava disso,
ele era um marido fiel.
O casal Henrique-Adalgisa não tinha a
discrição como virtude, amava-se desfrutando
deleitosamente todos os seus momentos, minu-
tos, segundos como não houvesse amanhã. In-
dependente do local um amor vivido dia a dia
sem medo de ser feliz, ultrapassava todas as
barreiras sem dificuldades.
Em público invariavelmente por onde o
casal passava sempre de mãos dadas, chamava
atenção. Na maioria das vezes de forma pejo-
rativa como se o amor e a alegria existente en-
tre eles fossem medidos pela diferença de ida-
de, beleza ou altura.
O feliz casal aguçava a curiosidade alheia
com um pingo de inveja feminina e muitas ve-
zes com alguma gozação masculina. Como
uma mulher feia daquelas poderia ter um ho-
mem daqueles de tirar o fôlego até das mais
recatadas mulheres casadas da sociedade local,
se perguntavam entre si estes curiosos injuria-
dos, levantando mirabolantes hipóteses absur-
das para justificarem o relacionamento amoro-
so do alto e belo Henrique com a feia e anã
Adalgisa.
71
Contudo, ninguém sabe os males que se
escondem nos corações humanos, já dizia na
antiga Grécia o velho filósofo, a jovem e bela
Tereza Maria não se conformava com o des-
prezo recebido de Henrique, resolveu agir so-
zinha. Contratou por um bom dinheiro pago a
vista, logo após do “serviço” feito, um menor,
Jorginho Dedo Nervoso, rapagão de 17 anos
afeito a praticar crimes de morte sob enco-
menda.
Quando Jorginho foi detido em flagrante,
algumas horas depois de receber e esconder
em local seguro a boa quantia paga por Tereza
Maria e a arma do crime, disse em seu depoi-
mento ao delegado que havia fugido da FE-
BEM. Depois foi à procura de um revolver 38,
roubado e escondido há tempos, em seguida
praticou o assalto à mão armada ao carro de
Adalgisa preso no congestionamento. Ato rea-
lizado sem qualquer premeditação com a única
e exclusiva intenção de obter algum recurso
financeiro para sobreviver temporariamente.
Neste ponto do seu relato o menor infra-
tor foi incisivo, falou que ele não era viciado e
só atirou na mulher porque ela foi egoísta e re-
agiu à voz de assalto acelerando indevidamen-
72
te o veículo. Tentando em vão empreitar uma
fuga desesperada no meio do pesado transito
lentíssimo, preferindo perder a vida ao invés
de perder a bolsa com algum dinheiro, enfim
pura ganância dela lamentou o depoente de 17
anos, recém completados.
Abismado com o cinismo, falta de arre-
pendimento e a cara de pau do menor-serial
killer o delegado perguntou-lhe onde estava à
arma do crime, ele disse que não sabia, havia
perdido-a durante a fuga em disparada do local
dos fatos. Com mais um crime de morte nas
costas, feliz da vida Jorginho Dedo Nervoso
retornou a FEBEM.
O menor sabia que sairia com 21 anos pa-
ra desfrutar o bom dinheiro ganho com os seus
vários assassinatos por encomenda e talvez
tentar uma vida nova, quem sabe? Nenhum
psiquiatra seria louco o suficiente para atestar
a sua insana periculosidade, prolongando-lhe
em muito o período de internação na própria
instituição corretivo-educacional ou em um
manicômio judiciário, locais de fácil fuga.
Por isso, seguro de si, Jorginho pratica-
mente se entregou ao delegado confessando-
lhe tudo espontaneamente, mas sem despertar
73
suspeitas sobre a premeditação desse último
crime, assim o caso foi encerrado e dado como
resolvido.
A morte prematura de Adalgisa chocou os
amigos, parentes e conhecidos do estranho ca-
sal, Henrique ficou inconsolável, durante todo
o velório, enterro e missa de sétimo dia, era
um choro só, um choro incoercível que cortava
o coração de todos. Ao lado dele como um be-
lo grude inseparável, Tereza Maria, de forma
prestimosa e carinhosa procurava ajudá-lo da
melhor forma possível e ajudou mesmo, seis
meses depois trocavam “sim” no altar da Igre-
ja Central.
Enfim Henrique tinha uma jovem e belís-
sima esposa desejada pelos homens, invejada
pelas mulheres. Coisa que intimamente lhe a-
gradava muito lhe inflava o ego, mas lhe tirava
completamente o apetite sexual, fato que levou
Tereza Maria a uma profunda depressão, obri-
gando-a a uma consulta psiquiátrica e posterior
medicação, dormia somente sob efeito de soní-
feros.
Para restabelecer a sua libido, atividade e
principalmente realizar a sua mais íntima fan-
tasia sexual Henrique procurou Pai Abadhá,
74
um renomado mago sado masoquista, mestre
nas artes das magias negras. Sob efeitos de
fortes soníferos Tereza Maria foi levada até e-
le, pelo marido impotente, mas ávido por uma
cura, uma denúncia de seqüestro mediante res-
gate foi feita por Henrique a polícia, a pedido
dele.
A cerimônia da missa negra encomendada
e paga a peso de ouro, foi realizada pelo velho
mago três dias depois do suposto seqüestro,
em local pouco conhecido e ermo na zona ru-
ral de Brasília, a céu aberto no místico planalto
central. Consciente Tereza Maria teve com re-
quintadas técnicas médicas-cirúrgicas, mas
sem a utilização de anestésicos a língua arran-
cada, as mãos amputadas, a coluna vertebral
dilacerada e os olhos perfurados, durante a ce-
lebração da longuíssima cerimônia macabra.
Tratada com eficientes curativos e ótimos an-
tibióticos, mas nunca analgésicos, por 43 dias
Tereza Maria ficou “desaparecida”. A polícia
encontrou-a abandonada, depois de um telefo-
nema anônimo, em uma estrada rural de terra
batida, junto a ela um bilhete: “Dr. Henrique o
senhor se negou a pagar o resgate em sua tota-
lidade, problema seu agora receba o que so-
75
brou de sua bela esposa, uma mulher paraplé-
gica, sem mãos, muda e cega”.
O caso chocou profundamente a socieda-
de local da capital federal, comovida com os
esforços infrutíferos de Henrique para levantar
os fundos monetários necessários à totalidade
do resgate, dinheiro que na verdade foi desti-
nado ao Pai Abadhá. Sem pistas a polícia pro-
cura os seqüestradores até hoje, diz que foi
trabalho de profissionais e jamais encerrará o
caso.
Prisioneira da fantasia e das taras do seu
marido, Tereza Maria vive a sua história de
calvário, sem sentir nada da cintura para baixo,
sem poder visualizar o seu próprio terror, nem
gritar todo o seu horror, sem poder ao menos
escrever um simples bilhete pedindo socorro.
Enquanto Henrique se delicia com a sua mais
íntima fantasia sexual, possuir uma ex-bela jo-
vem mulher, 100% submissa, 100% dependen-
te, 100% alienada às suas vontades.
Com o passar do tempo a curiosidade a-
lheia se aguçava cada vez mais, sempre com
um pingo de inveja feminina e alguma goza-
ção masculina, como uma mulher naquelas
condições físicas poderia ter um homem da-
76
queles de tirar o fôlego até das mais recatadas
mulheres casadas da sociedade local da capital
federal perguntavam-se entre si estes curiosos
de plantão, injuriados levantavam as mais ab-
surdas hipóteses mirabolantes para justifica-
rem o relacionamento amoroso do fiel, belo e
desejado Henrique com a depressiva, paraplé-
gica e mutilada Tereza Maria.
A vida é assim, como nos ensinou o velho
filósofo grego, ninguém sabe os males que se
escondem nos corações humanos...

77
Conto 75

Vício maldito
GOSTARIA muito de dizer que sou usuário
contumaz de drogas pesadas, como Cocaína,
Ecstasy ou LSD, pois todo viciado destas dro-
gas de uma forma ou de outra sensibilizam as
pessoas, mas ninguém ri deles. Não é o meu
caso, não é longe disso eu era viciado em por-
nografia e masturbação, hoje sou viciado em
religião.
Sim eu uso a religião que os homens cria-
ram para louvar Deus e raramente o álcool pa-
78
ra aliviar as minhas dores, tanto a religião,
como o álcool me serve de muletas, as quais
eu uso para fugir da realidade, quanto a Deus
sou um mero ateu.
Eu me visto impecavelmente com calça
social preta, camisa de linho branco com man-
gas compridas dobradas abaixo dos cotovelos,
cinta, meias e calçados pretos, a Bíblia sempre
em mãos, pratico o meu vício em praças públi-
cas, onde vocifero com meu vozeirão a minha
pregação recheadas de ameaças aos descrentes.
O mais impressionante é fato de eu atrair
muitos curiosos, algumas pessoas com almas
condoídas e por incrível que pareça poucos se-
guidores que me dão dinheiro para eu sustentar
o meu vício. Porém muitos me chamam de
louco, outros riem da minha pregação, eu não
me importo mais a minha Bíblia tem todas as
respostas.
Não me importo mais com os pastores de
verdade no meu pé, pois eu criei a minha pró-
pria religião, não dependo mais deles. Minha
crença foi criada em cima dos pecados dos
descrentes, pois eu os julgo e os condeno ao
inferno, só a Palavra de Deus os salvarão.
79
De praça em praça eu me distancio do
mundo real, desprezando e me isolando de to-
dos que não me aceitam como um legítimo es-
colhido de Deus para pregar a sua Palavra la-
vrada na Bíblia Sagrada.
A religião é a minha droga, sou espiritu-
almente doente, como talvez todos os viciados
em alguma coisa ruim também o sejam. Se re-
almente Ele existir queria descobrir Deus, sei
que não somos marionetes em suas Mãos a es-
pera que algo aconteça, temos livre arbítrio,
contudo não sei como agir fora do meu vício.
Por outro lado adoro entrar em conflito
com Darwin, ou qualquer outra teoria científi-
ca que discorde da criação do mundo relatada
na Bíblia, “se o homem veio do macaco por-
que não vem mais?”, o problema é que sempre
tem um biologista ávido para explicar isso
quando eu prego em praça pública, não resta
dúvida a ciência mata a Palavra.
A religião é uma grande bigorna, onde
malharam e malham o ferro em demasia, onde
gastaram e gastam muitos martelos em vão,
mas algo está mudando em minha vida, eu sin-
to isto.
80
Sinto que Deus deve ser algo tão extraor-
dinário, tão fabuloso, tão inacreditável que é
difícil mesmo muitos acreditar nele, só sei que
esta mudança me trouxe até vocês um pastor,
um padre e um psiquiatra.
Então é isso, eu não sei e nunca soube
quem sou, o que sou e o que serei, será que
vocês poderiam me ajudar?
Virei à vida do avesso e não virei um po-
ema com poesia: virei tema um Zumbi com
maresia, abstrato como um traço de esperança
mansa, abissal como um passo de caminho
sem chão, absurdo como um laço de fome e
desnutrição.
Virei à vida do avesso e não virou um po-
ema, sem a cadência do fonema, sem o ritmo
do compasso virei um Zumbi no espaço, será
que vocês poderiam me ajudar?

81
Conto 76

Homofobia

A NOTÍCIA foi bombástica aos ouvidos de


Cristina, a princípio ela não quis acreditar,
chorou muito, mas não teve jeito, a verdade
era cristalina, pura, límpida como as águas das
montanhas, pois ouviu a terrível notícia do
próprio filho caçula Francisquinho.
Desesperada com os seus sonhos e ideali-
zações caindo aos pedaços, virando pesadelos
e tormentas, os nervos a flor da pele, ela ime-
diatamente procurou pessoalmente o marido
Chicão no trabalho, atrapalhando-lhe o ganho
diário, coisa que ele não tolerava se o assunto
não fosse grave e de urgência urgentíssima.
82
Pasmo, abismado com o queixo caído e o co-
ração disparando, Chicão ouviu calado da boca
nervosa de Cristina a fatídica novidade. O fi-
lho caçula Francisquinho, um filho da promes-
sa, pois eram religiosos fervorosos, o qual eles
sonharam e idealizaram um futuro brilhante
para ele, com profissão de doutor e família
constituída, queria ser matriculado na escola
de Ballet Clássico porque quer ser bailarino
para o resto da vida.
O tom de voz do casal instantaneamente
se alterou, o nervosismo e o desespero toma-
ram conta da conversa, cada vez mais áspera,
aonde erraram na educação do filho caçula, se
questionavam, trocavam acusações mútuas
com a voz nas alturas.
Esse era o triste mote da fervorosa dis-
cussão do casal, concluíram que Cristina criou
Francisquinho com muitos mimos, deu muita
atenção a ele, enquanto isso Chicão por causa
da longa jornada diária de trabalho se tornou
um pai ausente, distante do filho.
De comum acordo com os ânimos mais
apaziguados o casal resolveu procurar uma re-
nomada psicóloga, que diagnosticou: “Se
Francisquinho de fato se interessou por esse
83
tipo de aula, deve ter o direito de experimentar
para ver se ele gosta”.
Inconformados com o diagnóstico o casal
procurou outra psicóloga e o diagnóstico foi
mais terrível ainda: “Francisquinho tinha o di-
reito de buscar a sua satisfação e a felicidade
de sentir prazer por fazer o que deseja”.
Resignados Cristina e Chicão, ainda com
um fio de esperança mansa de reverter à ina-
ceitável situação, procuraram a orientadora
educacional, da escola particular onde o filho
estudava e descobriram que Francisquinho fa-
zia parte do grupo de dança da escola.
Foi uma notícia avassaladora para o casal,
com estardalhaço fizeram um verdadeiro es-
cândalo espalhafatoso, culpavam a escola pela
escolha de Francisquinho, ameaçaram proces-
sá-la por danos morais e perdas irreparáveis.
Eles procuraram um advogado, depois outras
psicólogas se acalmaram e concluíram que o
melhor seria ceder à vontade e a realidade do
filho.
Com oito anos Francisquinho finalmente
foi matriculado na escola de Ballet Clássico,
aos seis ele começou dar suas primeiras pirue-
tas, aos sete sabia de cor e salteado todas as
84
coreografias aprendidas e ensaiadas em casa
pela irmã Paula de quinze, matriculada desde
os sete anos na mesma escola.
A vida do jovem bailarino, não foi fácil,
novo colégio velhas chacotas, além das meni-
nas que não o aceitavam de jeito nenhum, por-
que na cabeça delas ballet não era coisa para
um homem de verdade praticar.
Por sua vez os meninos do colégio ou da
rua em que morava só se aproximavam dele
para agredi-lo. Perguntavam se ele dançava de
sainha e meias cor de rosa, nunca conversavam
com ele, pois tinham medo de serem tachados
como meninos que mais cedo ou mais tarde,
sairiam do armário e assumiriam a sua condi-
ção homossexual. O único alento de Francis-
quinho era a amizade e o apoio incondicional
da irmã Paula que também sonhava em ser bai-
larina.
Cristina teve que ser internada de urgên-
cia em uma clínica de repouso, quando Fran-
cisquinho levou a sua primeira malha (roupa
de ballet), mais as suas sapatilhas para serem
lavadas em casa. Foi um verdadeiro piripaque
hipertensivo, provocado pelo estresse depres-
sivo de visualizar o futuro sem esposa, filhos
85
ou título de doutor do filho bailarino, mas o
menino nunca desistiu.
Seguiu em frente nos seus propósitos, se
esforçou ao máximo, no limite das suas forças,
contra tudo e contra todos, salvo a irmã que
sempre o ajudou, lutou bravamente pelo seu
ideal e como recompensa se formou em Ballet
Clássico com louvor e aplausos dos seus mes-
tres. Como fruto do seu suor e lágrimas Fran-
cisquinho se tornou o mais promissor bailarino
profissional do país, apareceu em várias repor-
tagens de revistas e televisão, dançando e en-
cantando mundo a fora.
Só então Cristina e Chicão emocionados e
arrependidos de muito dos seus atos, entende-
ram que criaram um artista de primeiríssima
estirpe e classe, como sempre os alertou a filha
Paula que abandonou o ballet para seguir a
profissão de odontóloga.
Com o passar do tempo, o casal sempre
que pode visita Francisquinho na França e ma-
tam a imensa saudade do filho pródigo nas ar-
tes da dança, da esposa dele e dos dois netos
Cristina Francisca, em homenagem a eles e Pi-
etro Pierre.
86
Conto 77

O Hacker

A PRIMEIRA VEZ que Fábio ouviu no rádio


o som da palavra cracker, pensou tratar-se de
uma bolacha água e sal, sorriu com gosto. Pois
era evidente o seu erro afinal de contas uma
bolacha não ia presa, algemada pela Polícia
Federal, porque roubava informações sigilosas
e confidenciais armazenadas nos computado-
res de suas mais variadas vítimas.
Fábio ficou fascinado com a longuíssima
história criminosa do jovem cracker Rafhael,
narrada pelo locutor da rádio. 19 anos a mes-
ma idade dele e só foi preso porque a polícia
contou com a valiosa ajuda de Marcelo, um
87
Hacker muito experiente, que utilizava todos
os seus conhecimentos para melhorar softwa-
res de forma legal. Auxiliando muitas pessoas,
empresas e neste caso a própria Polícia Fede-
ral, enfim Fábio descobriu o que queria ser na
vida, queria ser um Hacker, queria ser um no-
vo Marcelo.
Para dar seguimento ao seu intento, ele
comunicou o que queria ser na vida ao seu pai,
Pedro, este não entendeu muito bem a profis-
são escolhida pelo filho, mas ficou muito con-
tente, Fábio estava deixando a profissão de va-
gabundo para ser alguém no mundo dos com-
putadores. Por isso pagou de bom grado um
Curso de Hacker para iniciantes, escolhido por
Fábio a dedo na internet.
Depois vieram outros e outros cursos, to-
dos pagos por Pedro, fato que já começava a
desagradá-lo após cinco anos, então veio à boa
notícia da boca sorridente do próprio filho, a-
gora Fábio era um Hacker. Só tinha um pro-
bleminha ele era um Hacker desempregado,
embora se autodenominasse autônimo à dispo-
sição do mercado de trabalho.
Mas o tempo passa, o tempo voa e nada
de emprego, ou bicos, então Fábio recebeu um
88
enérgico ultimato do pai Pedro “vai trabalhar
vagabundo, que eu não lhe dou mais mesada
semanal”, este fato mexeu intimamente com
Fábio, feriu dolorosamente seus brios. Daquele
dia em diante ele decidiu vencer na vida a
qualquer custo, custe o que custar se preciso
fosse venderia a sua alma ao demônio, porém
conquistaria a tão sonhada independência fi-
nanceira.
Fábio cinco dias após a fatídica conversa,
aproveitando-se do bom relacionamento co-
mercial do pai, informou a ele que arranjou um
bom emprego como Hacker, em uma firma in-
ventada por ele. Mas na verdade ele arranjou
um emprego de oficce-boy, em uma grande
firma de despachantes de veículos, ganhava
um salário mínimo por mês, pouco, muito
pouco.
Fato que Fábio solucionou facilmente en-
viando automaticamente pelo seu computador
para milhares de pessoas chamativos e-mails
com spams, (mensagens eletrônicas com um
vírus Cavalo de Tróia, criado por ele) que,
quando instalados no computador, roubavam
as senhas bancárias da vítima.
89
De posse dessas senhas, o hacker pagava
débitos, como IPVA e multas, e faturas refe-
rentes a veículos, embolsando assim o dinheiro
recebido na empresa para este fim. Os bancos
não conseguiam identificar quem pagava a
conta de quem, a polícia alucinada rastreava
em vão a I.P do computador de Fábio, pois ele
enviava os e-mails de forma anônima, utili-
zando-se de um programa chamado Anomma-
il, facilmente encontrado de forma descarada e
escancarada na internet.
Enfim ele podia dizer ao pai que seu salá-
rio era ótimo, muito maior que o dele por si-
nal. Contudo na firma de despachantes, devido
à ostentação financeira de Fábio todos acha-
vam que Pedro continuava a dar-lhe a polpuda
mesada semanal de sempre, gerando brincadei-
ras de mau gosto e gozações dos colegas de
trabalho, irritando tremendamente ele.
Com os nervos a flor da pele, mas com um
bom dinheiro guardado literalmente embaixo
do colchão, Fábio abre sua firma de aprimo-
ramento de softwares. E aprimorou mesmo,
principalmente o programa feito por ele utili-
zado na firma de despachantes, que agora “cri-
ava” virtualmente o dinheiro que Fábio de-
90
sembolsava para pagar suas contas e gerar
muitos créditos em sua conta corrente.
“Em sua conta corrente”, talvez se esses
créditos fossem gerados em diversificadas
contas correntes de firmas frias, criadas espe-
cialmente para a lavagem do dinheiro, Fábio
nunca seria pego, pelo seu algoz, o Hacker
Marcelo, seu ídolo, contratado pelo banco para
rastreá-lo.
Fábio foi preso, julgado e condenado a
uma pena de nove anos e meio de prisão, com
direito a progressão de pena, ou seja, em um
ano e meio ele já poderia trabalhar fora do pre-
sídio. Fato animador para Fábio, pois o seu ta-
lento e a sua capacidade enfim foram reconhe-
cidas por algumas firmas de segurança em in-
formática, estas disputavam “a tapas” a sua
contratação.

91
Conto 78

Terror! O vôo do horror


Um conto em prosa e verso.

Com olhos de alma homicida voa a bala perdi-


da. Com o brilho do esmerilho voa o fogo sel-
vagem. Com o cheiro forte da morte no lamen-
to do vento ao norte.

Inocente entre a bala e o vil bandido, Flavinho,


menino enzoneiro, filho da fome sem piedade,
92
com movimento marouço, maroto garimpa o
lixo da cidade, vive de rua em rua com sofri-
mento muito, de lua a lua com esperança pou-
ca. Criança de rua, criança de lua, lesa a poesi-
a, corta o coração.

Voa a bala selvagem


sem bem, sem o bem
sem meu bem, sem alguém
no coração ninguém

Distraído entre Flavinho à bala e o vil bandido,


Pedro tem a flor do rosto a falta do trabalho e
o peso do pão, as monótonas renúncias e todos
os sonhos na prece. Caminha pela rua num ba-
lanço que voa do infinito ao nada, dos erros
aos poucos acertos na vida, gerando breves
frutos de tristeza e de dor.

Voa perdida selvagem


risca os céus das antigas terras sagradas
das modernas favelas faladas, por onde Noé
navegou com Fé, com medo e tristeza suave

Entre Pedro, Flavinho à bala e o vil bandido. A


janela da dona Conceição.
93
Ela observa o torturante relógio gotejar as ho-
ras. Segura no silêncio solidão a bengala com
mãos marcadas, pela ação do tempo, enobreci-
das pela mão de obra, humildes pela ação da
sabedoria, bondosas pela ação do coração,
mãos de poema com poesia esperando o tempo
passar e sua hora chegar.

Ela de pé pela janela vê um jovem na rua...,


poderia ser Eu ou Você!

Pela calma banida no coração da mão bandida


a vida cai com tristeza, sem defesa, nem reza,
sem o estribilho da valentia, nem o rastilho da
covardia.
Sem uma lástima a polícia no local, sem uma
lágrima a noticia no jornal. Fica apenas o chei-
ro forte da morte no lamento do vento ao nor-
te.

¥¥
Nota do autor: Fica o meu protesto às auto-
ridades brasileiras e a minha solidariedade
as famílias das vítimas
¥
94
Conto 79

A colheita

A COMIDA POUCA virou semente pouca na


terra seca pouca, rachada pela água pouca. O
pai descalço semeou, a mãe descalça orou, a
criança descalça chorou e a fome só piorou.
Semente na terra seca esperando a chuva
ama seca para germinar em verde esperança,
do pai que de sol a sol semeou. Da mãe que de
lua a lua orou, da criança que de sono a sono
chorou, da terra seca que de sede rachou.
Choveu a chuva ama seca molhou a terra
seca, terminou a negra desesperança. O pai
calçado colheu, a mãe calçada agradeceu, a
criança calçada sorriu e a fome triste morreu.
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Conto 80

A tempestade

MILHA FAMILIA é simples tal qual vinho e


pão, somos inseparáveis como a flor e o per-
fume.
Minha lembrança descansa na amarga re-
cordação, o céu fechou a cara, o dia nunca e-
negreceu tanto, disparou sua farta artilharia de
trovões, roucos gritos aflitos, incansáveis re-
lâmpagos azulados e raios, espadas prateadas
que sangravam a terra.
A chuva era grossas e espessas gotas de
chumbo, o granizo enlouquecido salpicava e
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pipocava histericamente no chão. O vento ui-
vava com raiva bailava violento com a fúria
dos infernos infernais. O dia virou noite, o cór-
rego rio, a rua corredeira, o telhado goteira, a
sala pânico, meu coração medo. Minha família
inseparável como a flor e o perfume.
Depois da chuva veio o alívio com a
mansa bonança, os mortos, os prejuízos, a lim-
peza, a reconstrução e um arco-íris estendido
ao comprido cortando o céu.
Desta vez a nossa casa simples como uma
flor do campo, não resistiu e também morreu
levando algum sonho meu, mas continuamos
inseparáveis como a flor e o perfume.

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Midu Gorini
080 CONTOS SELECIONADOS
Volume 5 – Contos 62 a 80

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midugorinibook

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Volume 5 – Contos 62 a 80
Primeira Edição © 2010
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