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Voltando para casa

Gisela Cardoso da Silva*

Resumo
O artigo tem por objetivo propor- para quem estiver passando pelo mesmo
cionar ao leitor uma idéia da teoria de processo e para quem ainda vai chegar
Carl Gustav Jung sobre o envelhecer lá. “Voltando para casa” tenta enfatizar
humano. O texto contém uma síntese da a idéia de que envelhecer é parte da
história “O mágico de Oz”, que é usada vida e não pode nem deve ser negado,
como metáfora para o processo de indi- mas, sim, compreendido e valorizado. O
viduação, uma das grandes contribuições texto sugere que o ser humano é uma
que Jung deixou para se compreender a fonte rica de possibilidades e que cada
jornada humana. A luta de Dorothy, a etapa da vida tem seus prazeres e suas
heroína da história, para voltar para seu limitações, que podem ser mais bem vi-
lar permeia todo o texto, e a frase “Não vidos quanto maior consciência a pessoa
há lugar como nossa casa” é usada como tiver de si mesma, independentemente
motivo para refletir sobre as idéias de da idade que tiver.
“casa” e “lar” como lugares simbólicos
da alma que atingem a maturidade. Do- Palavras-chave: Casa. Lugar. Metanóia.
rothy também foi a fonte de inspiração Consciência. Individuação.
para a metáfora do desenvolvimento da
consciência, que, para Jung, é o centro
de todo o trabalho humano em torno do
Si-mesmo. O texto inicia com a letra da
música “Over the rainbow” e aproveita
a tradução para lembrar ao leitor desejo,
comum a todos nós seres humanos, de *
Psicóloga clínica, arteterapeuta, professora de Introdução
encontrarmos um lugar ideal para vi- à Abordagem Junguiana e de Mediação na Dança do
vermos. As fotos usadas no artigo são de Curso de Pós-Graduação em Arteterapia da Centrarte.
pessoas citadas no texto e foram tiradas
pela autora, e a opinião de cada um so-
bre o que é envelhecer serve de estímulo
Recebido em maio 2006 e avaliado em jul. 2006

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Há um lugar de que ouvi falar de casa para algo mais amplo do que
Numa cantiga de ninar “espaço físico familiar”. Quando escuto
Em algum lugar, acima do arco-íris “casa” e/ou “lar”, penso em algo íntimo,
O céu é azul um “porto seguro”, alguma coisa que nos
E os sonhos que você ousa sonhar é própria, que transformamos num lugar
Se tornam realidade especial, no “nosso lugar”... E volta a per-
Um dia farei um pedido às estrelas gunta: Que lugar é esse? O que ele tem que
E acordar num lugar onde as nuvens estão o torna tão especial?
Muito atrás de mim. Sabemos que a vida é uma aventura
Onde os problemas derretem como incrível, que cada um de nós tem seus
dropes de limão desafios para enfrentar e seus limites
Bem acima do alto das chaminés para confrontar. Quando crianças, geral-
É onde vai me achar mente o lugar de segurança que temos
Em algum lugar, acima do arco-íris é junto com nossos pais, ou com algum
Os pássaros azuis voam adulto que nos ofereça o conforto de nos
Os pássaros voam acima do arco-íris proteger e assegurar o nosso crescimento,
Por que, então, eu não posso? garantindo as necessidades físicas básicas
Se os felizes passarinhos azuis voam além e o apoio afetivo de que tanto carecemos.
do arco-íris Ao crescermos, vamos descobrindo novas
Por que eu não posso? facetas que a vida nos oferece e passamos
(“Somewhere over the rainbow”, Harold a perceber que aquele “outro” do qual
Arlen/ E. Y. Harburg, tradução livre). esperávamos tanto (e que provavelmente
nos deu “tanto”) já não podia garantir a
Quando recebi o convite para escrever demanda de velhas e/ou novas necessida-
para a terceira idade, logo veio a minha des. (Refiro-me ao que acontece com fa-
mente a história do “O mágico de Oz”, que mílias que têm uma estrutura considerada
ficou eternizada no cinema especialmente adequada, sem me deter em casos em que
pela música (cuja letra está na abertura pode haver ou ter havido abandono, maus-
deste texto), na voz doce e afinada de Judy tratos ou outras agressões àquilo que é tido
Garland. Acho esta história muito rica em como um desenvolvimento saudável do
símbolos e, no que se refere ao processo de ser humano, no geral). Voltando às novas
“envelhecer com saúde”, o que me chamou necessidades deste ser que, na verdade,
à Dorothy e seus amigos foi a frase “não vai se transformando com o passar do
há lugar como nossa casa...” A frase ficou tempo, começamos a sentir que o espaço
tão presente que comecei a pensar mais físico pode ser apenas uma representação
profundamente nela. Que casa é essa? deste espaço de que sentimos falta dentro
Apesar de a história ser direcionada de nós.
mais para as crianças, que, entre outras Somos seres de passagem: estamos
coisas, podem estar descontentes com seus sempre “morrendo” para alguma coisa
lares ou com os problemas que encontram e “renascendo” para outra. As escolas de
neles, creio que podemos imaginar a idéia psicologia trouxeram e trazem comprova-

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ções das crises que acompanham a todos chamou a isso de “processo de individua-
nós, seres humanos, nas diferentes fases ção”. Esta jornada, na visão junguiana, é
de nossas vidas. Cada vez mais aparecem obra de uma vida inteira, na qual cada fase
estudos científicos com novas nuanças apresenta contribuições e desafios a serem
sobre o desenvolvimento infantil, as levados em conta. No texto “as etapas da
turbulências dos adolescentes, as dificul- vida humana”, que faz parte das Obras
dades de deixar a adolescência e entrar Completas, editada pela Vozes, Jung afir-
na vida adulta, a crise da meia-idade, do ma que é a evolução da consciência que
“ninho vazio” etc. Somos cheios de crises, traz os grandes problemas humanos. Diz
justamente porque cada fase que dizemos que não dá para sabermos como surgiu
“nova” é precedida por uma “velha” que a consciência no homem, pois “[...] não
temos que “perder”. São as “perdas ne- estávamos presentes quando os primeiros
cessárias”, tão bem descritas no best-seller homens se tornaram conscientes” (JUNG,
de Judith Viorst. 1998, p. 407).
Muitos autores e pesquisadores da Jung afirma que podemos ter uma
psique falaram sobre a chamada “terceira idéia dos primórdios da consciência ao
idade”, mas vou enfocar neste texto o pen- acompanhar o despertar da mesma numa
samento de Carl Gustav Jung. Psiquiatra criança pequena. A criança começa reco-
suíço e fundador da psicologia analítica, nhecendo e fazendo conexões que se trans-
Jung foi um dos maiores estudiosos da formam em “ilhas de consciência”; com
alma humana e, já no início de sua car- o passar do tempo, essas ilhas vão se tor-
reira, tinha grande interesse em conhecer nando mais complexas e vão adquirindo
os segredos da psique; queria saber mais energia própria. Somente mais tarde é que
sobre a personalidade humana. Enquanto aparece um “centro” para organizar todas
acompanhava seus pacientes no decorrer essas “ilhas”, que é quando o “complexo
dos atendimentos, Jung também observou do eu” (ou do ego) se forma e a criança
a si mesmo, ou seja, foi objeto de estudos vai sentindo que é alguém, que tem um
de sua própria psicologia. O resultado centro de subjetividade, uma identidade
de suas descobertas está na extensa obra como pessoa. Nos primeiros anos de vida,
que deixou, na qual se podem perceber a ligação com os pais ainda prevalece, a
a profundidade e a tentativa de ser fiel dependência é total e a sensação é de que
ao empirismo psicológico, apesar de ele não existem “grandes problemas” a serem
mesmo afirmar que o estudo da psique é resolvidos, pois a criança não tem poder
uma tarefa por demais complicada, pois para resolver nada, nem responsabilidade
é a psique observando a si mesma. Jung sobre a própria vida. Isso não significa que
percebeu a experiência humana como não haja conflitos na criança, mas, sim,
uma jornada, na qual cada um tem sua que não há uma maturidade de consci-
própria caminhada, mas cuja meta para ência para que possa entender o que está
todos é “tornar-se indivíduo”, ou seja, acontecendo com ela, pois não tem ainda
realizar a experiência do “Si-mesmo”, isto condições para fazer uma reflexão mais
é, ser sujeito de sua própria história. Ele elaborada da situação nem um ego madu-

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ro para realizar as próprias escolhas. Nos possamos sobreviver, vamos tentando
primeiros anos de vida do ser humano, a ao máximo corresponder (considerando
natureza instintiva ainda “reina absoluta” o que acontece com a maioria) a essas
e os adultos responsabilizam-se totalmen- expectativas. Queremos e precisamos ser
te pelos pequenos, que ainda não “nasce- aceitos, queridos, amados. Cada criança
ram” totalmente para a vida psíquica. gosta de reinar absoluta e, quer queira
O nascimento psíquico e, com ele, a dife- quer não, vai absorvendo do ambiente fa-
renciação só ocorrem na puberdade, com miliar os valores e modelos que têm ao seu
a irrupção da sexualidade. A mudança redor. Além de ser uma “esponja” capaz
fisiológica é acompanhada também de de absorver o meio externo, ainda existe
uma revolução espiritual. Isto é, as várias a herança genética, a herança psíquica
manifestações corporais acentuam de tal e a cultura vigente do período em que a
maneira o eu, que este freqüentemente se criança nasce. Além disso tudo, segundo
impõe desmedidamente. Daí o nome que Jung, também existe uma psique ou alma,
se dá a essa fase: “os anos difíceis” da ado- que quer e precisa se realizar! Quer dizer,
lescência (JUNG, 1998, p. 407).
são muitas coisas a serem conhecidas e
Não é por acaso que a adolescência se adquiridas, e até mesmo repetidas do meio
transforma numa tentativa quase deses- externo, mas há, igualmente, um “mundo
perada de auto-afirmação, já que tantos interno”, que carrega seus mistérios, suas
anos de identificação com os genitores particularidades e que vai batalhar para ser
começam a pesar nesse “processo de in- reconhecido e respeitado. É assim, neste ir
dividuação”, que vai “capturando” cada e vir de informações, imagens e comporta-
vez mais o ser humano à medida que o mentos, exigências externas e internas, que
tempo passa. a consciência vai “navegando”, e o “Eu”,
ou “Ego”, é o responsável para “dirigir o
barco” nesta ou naquela direção.
Jung coloca a consciência como uma
obra “contra a natureza”, já que ela con-
duz o indivíduo para um trabalho de se
diferenciar da natureza inconsciente. Ele
fala que há um impulso para a individua-
ção, e este é praticamente o drama mais
básico com que temos de lidar em nossas
vidas: ficar entre aquilo que já é conheci-
do, acomodado e confortável, ou enfrentar
os riscos que chegam com o desejo do
novo, de alguma coisa ainda não vivida,
Figura 1 - Dona Iracema.
não experienciada.
Se pensarmos na consciência como
Sabemos que ao nascer já temos uma
algo que se forma a partir do inconsciente
série de expectativas depositadas sobre
e que vai se desenvolvendo progressi-
nós. Como seres dependentes, para que

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vamente, podemos pensar que ela é a da mulher e volta para casa, mas Doro-
“pedra” de apoio para a realização da thy foge com ele, preocupada com o que
grande obra da individuação. Como afir- pode acontecer se ficarem por ali. Após
ma Grinberg (1997), analista junguiano, é andar alguns metros, Dorothy depara-se
[...] “como se ela fosse um ‘órgão’ invisível com um homem na estrada, que finge ser
que também cresce, desenvolve-se, adoece, um adivinho e “descobre” que a menina
necessita de cuidados e transforma-se ao está fugindo de casa porque ninguém a
longo de nossas vidas” (p. 71). compreende, mas a convence de que Tia
Essa fala toda sobre a consciência é Em está triste e doente por causa de sua
importante para entendermos a dinâmica partida, o que faz com que Dorothy queira
de desenvolvimento que Jung propõe: o voltar imediatamente.
crescimento se dá pela maturidade da Ao retornar ao sítio, porém, um tor-
consciência e estruturação do ego, e cada nado se aproxima e todos correm para o
idade ou cada fase que a pessoa atravessa abrigo, mas Dorothy não chega a tempo e
é uma experiência importante e contém a cena que se segue mostra a casa girando
elementos fundamentais para que o ser dentro do tornado, levando Dorothy e
humano passe da sua condição inicial de alguns personagens do sítio, como os aju-
“passivo-dependente” para a de sujeito dantes dos tios, o “adivinho” e a vizinha
ativo, que conquista seu “lugar” no mundo rabugenta. Dorothy vê as coisas e pessoas
e em si mesmo. Falando em lugar... volte- girando em torno da janela de seu quarto e
mos agora ao filme O mágico de Oz: sente-se girar também, e só pára quando a
A história passa-se em algum lugar do casa “aterrissa” num lugar estranho, onde
Kansas, EUA, onde há riscos constantes imediatamente os moradores do local vêm
de furacões. Dorothy vive com “Tia Em” recebê-la e festejar sua chegada, pois a
e “Tio Henry”, que possuem um sítio casa acabara de cair em cima da Bruxa Má
nesta localidade. Dorothy tem um cachor- do Leste, que há muito tempo atormen-
rinho, de nome Totó, a quem ama muito. tava a população local. A Bruxa Boa do
Na vizinhança, mora a Srta. Gulch, uma Norte, de nome Glinda, chega e esclarece
mulher rabugenta e mal-humorada, que, Dorothy sobre o que está acontecendo,
logicamente, não gosta de crianças nem perguntando o que ela deseja. Dorothy diz
de animaizinhos. Ela se incomoda com o que só quer voltar para o sítio, no Kansas.
cãozinho de Dorothy e ameaça-o. Dorothy Glinda diz que apenas o “Mágico de Oz”
tenta falar para seus amigos e tios sobre a pode realizar esse desejo e dá a ela os sa-
ameaça da vizinha rabugenta, mas nem os patos vermelhos que pertenciam à Bruxa
tios nem os empregados do sítio lhe dão a Má. Os sapatos são mágicos e devem
atenção de que ela necessita, e, para com- ajudar Dorothy a chegar à Cidade das Es-
pletar, a “bruxa” vai pessoalmente buscar meraldas, onde habita o grande “Mágico
Totó para levá-lo ao xerife. Ameaça tam- de Oz”, que lhe concederá o retorno tão
bém os tios de Dorothy, que não têm outra esperado. A Fada Boa mostra-lhe o cami-
saída a não ser deixar que o cãozinho parta nho dos “tijolos amarelos” e orienta à me-
com a Srta. Gulch. Totó consegue escapar nina que siga por ele, pois a conduzirá à

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Cidade das Esmeraldas. E assim Dorothy e entendimentos, honra com medalhas e
e seu cãozinho partem em sua aventura, certificados os companheiros de Dorothy,
confiantes e esperançosos de voltarem concedendo a cada um o reconhecimento
para casa. No caminho, porém, Dorothy das virtudes que buscavam. Foi graças à
encontra três figuras esquisitas que se inteligência do Espantalho, que teve várias
tornam seus amigos e a acompanham até idéias para derrotar a bruxa, à coragem do
o mágico, pois cada um deles está preci- Leão, que superou seus medos para salvar
sando de algo e Dorothy os ajuda a crer Dorothy, e ao coração do Homem de Lata,
que o grande mágico de Oz vai conseguir que todo tempo se encheu de amor para
dar-lhes o que querem: uma alma para o ajudar a menina, que eles conseguiram
Espantalho, um coração para o Homem de chegar à meta. O mágico conta-lhe como
Lata e coragem para o Leão Covarde. O fora parar ali: chegara num balão de gás,
que esse excêntrico grupo não sabe é que agradara a todos e acabara arranjando um
são seguidos de perto pela Bruxa Má do “emprego” de mágico. Ele se compromete
Oeste, irmã da falecida Bruxa do Leste e a levar Dorothy para casa, mas Totó escapa
que quer para si os sapatos mágicos. Ela do balão na hora da partida e Dorothy
tenta de todo jeito atrapalhar a paz dos salta para pegá-lo, enquanto o balão voa
caminhantes, mas, apesar das tentativas, com o mágico. Dorothy fica triste e chora,
os quatro amigos conseguem chegar à mas logo a cena muda e ela aparece dei-
Cidade das Esmeraldas, onde são muito tada em sua cama, rodeada por seus tios
bem recebidos por seus habitantes, que os e companheiros do sítio, esperando que
preparam para o esperado encontro com o ela acorde após ter sido apanhada pelo
Grande Mágico. Ao fazerem seus pedidos, tornado. Sim, tudo não passara de um
o Mágico de Oz diz que poderá atendê-los, sonho. Ela acorda e leva um susto, pois vê
mas com uma condição: que derrotem a nos rostos que sorriem ao recebê-la com
Bruxa Má do Oeste. O Leão Covarde quer tanto carinho as feições amigas de seus
fugir, todos se apavoram, mas superam companheiros de viagem. E ela acredita,
suas dificuldades e enfrentam a Bruxa Má. finalmente, que tudo já estava ali, pois
Após atravessarem terríveis momentos, o “não há lugar como nossa casa”.
grupo consegue se livrar da bruxa e corre Se usarmos alguns aspectos da histó-
de volta para o mágico. O que eles não ria e os relacionarmos com a jornada que
esperavam é que o mágico fosse uma frau- fazemos em nossa vida, talvez possamos
de! Totó puxa o cortinado que o mágico entender simbolicamente as aventuras
usava para se esconder. Na verdade, ele e desventuras que precisamos enfrentar
era um homem comum e usava técnicas para encontrar o “nosso lugar”. Podemos
para impressionar as pessoas, como um pensar em Dorothy como um símbolo do
alto-falante para ampliar o som de sua Eu ou ego. A menina que não consegue ser
voz, uma cabeça fictícia gigante, muita ouvida e que sonha com um lugar mágico,
fumaça colorida e som de trovões. O mági- onde não existam problemas, pode repre-
co sente-se bastante envergonhado ao ser sentar o sonho do ego de reinar absoluto
desmascarado, mas, depois das desculpas e realizar tudo o que deseja. A pessoa que

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tem uma visão infantil da vida quer fugir ânsia de prazer ou domínio (JUNG, 1998,
dos problemas, quer ir para um mundo p. 407).
mágico, onde haja só alegria... Isso tem A história do Mágico de Oz mostra
a ver com a busca do “paraíso perdido”, a necessidade que o ser humano tem de
que nossa cultura infelizmente continua buscar seu próprio caminho, de andar com
reforçando. A percepção que Dorothy tem suas próprias pernas. Dorothy arrisca-se
das pessoas e do lugar onde vive muda para salvar seu objeto de afeto. Ela aban-
muito após a experiência na terra de Oz. dona o que está seguro por amor a Totó. O
Basicamente é o que acontece conosco. cãozinho pode simbolizar o afeto por algo
Na primeira metade da vida, aproxima- novo e frágil, que precisa ser cuidado. Ela
damente, temos sede de auto-afirmação, arrisca separar-se dos afetos antigos para
queremos conquistar nosso espaço, “do- salvar o novo; ao mesmo tempo, sente falta
minar o mundo”. Se as coisas não acon- daquilo que é conhecido. E ela estabelece,
tecem conforme esperamos, ou se somos mesmo sem ter consciência disso, uma
contrariados, sentimo-nos incompreen- meta: encontrar um caminho onde o novo
didos, mal-amados. A consciência, nesta e velho possam viver juntos, voltar para
fase, está voltada para o reconhecimento sua verdadeira casa... sem abrir mão do
familiar e social, para os estudos, para a desafio, de arriscar-se ao desconhecido,
procura de um parceiro, para a afirmação de enfrentar medos e dificuldades. Ela sai
profissional e a segurança financeira. É a da casa familiar e parte em busca de um
exigência da conquista de um espaço no caminho novo. Logo ouve o conselho de
mundo e, ao mesmo tempo, há um outro alguém mais “sábio”, que compreende a
mundo, cheio de pulsões e instintos a dor da menina e mostra que ela pode en-
serem administrados. Literalmente, o ego contrar uma outra solução que não seja a
fica esmagado entre os choques e desafios de fugir. Mas não é fácil para Dorothy vol-
dos mundos externo e interno! tar para casa... Parece que a vida exige que
Se procurarmos extrair os fatores comuns ela mergulhe mais fundo em si mesma,
e essenciais da variedade quase inexaurível que “gire” para dentro do redemoinho do
dos problemas individuais que encontramos inconsciente e busque de forma simbólica
no período da juventude, deparamo-nos com ou imaginária o seu verdadeiro Eu.
uma característica peculiar a todos os pro- Como peças de um quebra-cabeça que
blemas desta fase da vida: um apego mais ou vão se encaixando, ela tem de se deparar
menos claro ao nível de consciência infantil,
com seus vários personagens internos,
uma resistência às forças fatais existentes
dar a cada um o que lhe é devido e se
dentro e fora de nós e que procuram envol-
ver-nos no mundo. Alguma coisa dentro autorizar a ser uma pessoa de coragem,
de nós quer permanecer como criança, que sabe pensar e decidir por si mesma
quer permanecer inconsciente, ou, quando e que valida seus próprios sentimentos,
muito, consciente apenas do seu ego; quer isto é, escuta seu coração. O caminho dos
rejeitar tudo o que lhe é estranho, ou então tijolos amarelos pode sugerir a “estrada
sujeitá-lo à sua própria vontade; não quer da consciência”, que se amplia, se divide,
fazer nada, ou no máximo satisfazer sua se atrapalha, se perde... mas que tende a

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chegar aonde precisa. A Fada Boa conce- fantásticas de Jung, no meu entender.
de-lhe os sapatos vermelhos da Bruxa Má. Dorothy segue sua meta, leva suas “faltas”
Os sapatos estão ligados aos pés, que são para serem preenchidas, enfrenta sua
nossos condutores, nossos guias na mar- sombra, integra partes dela e consegue o
cha da vida. O vermelho sugere energia reconhecimento que tanto almeja: de que
vital, força, e também fogo, paixão, impul- é amada e capaz de agir por si mesma.
sividade. É a cor do sangue, que lembra Entendo que Dorothy, ou o ego, após
vida e sacrifício. E pertenciam à Bruxa passar por inúmeros desafios e alcançar
Má. A metáfora dos sapatos vermelhos (ou não) o merecimento esperado, pode
da bruxa pode representar a “sombra” entrar, como Dorothy, numa busca por
humana. Fazem parte da sombra todos um lugar mágico, querer fugir. Outros, po-
nossos “defeitos”, as coisas que negamos rém, ousam entrar (ou entram à força) no
e/ou reprimimos, o nosso pior lado, que “redemoinho” do inconsciente; estes vão
preferimos esconder. “além do arco-íris”, onde aparentemente
Enquanto nos esforçamos para satis- existem a paz e a beleza, mas também
fazer a expectativas e criamos uma “per- personagens desconhecidos, cheios de
sona” (máscara), que nos permite sermos excentricidade, bondade e, igualmente,
aceitos socialmente, em nível inconsciente perigos e riscos a correr, como na segunda
vai se constelando uma “sombra”, com metade da vida. É a “metanóia” de Jung,
características opostas à da persona. Jung ou a “crise de meia-idade”.
conceituou persona e sombra como partes Depois que o ego consegue se satisfa-
integrantes da totalidade humana, e, no zer com as conquistas e reconhecimentos
processo de individuação, é fundamental durante a primeira metade da vida (perto
que possamos identificar as várias más- dos 35, 40 anos, em média), geralmente
caras que cobrem nosso verdadeiro “eu”, a pessoa começa a sentir-se incomodada
bem como é importante que possamos com o que antes lhe dava contentamento e
aceitar nossa sombra e resgatar a energia prazer. Normalmente é uma fase de perdas
que está ali contida, justamente por ser consideráveis, como a entrada dos filhos na
desconhecida. adolescência, as rugas que vão surgindo, o
Nem sempre a sombra é cheia de corpo que não responde mais como antes
coisas “negativas” ou “ruins”. Muitos de etc. Ao contrário da sociedade oriental, na
nós não assumimos potenciais enormes e qual a figura do velho é símbolo de sabe-
construtivos, que ficam igualmente presos doria e respeito, no Ocidente há um grande
na sombra se não conseguirmos torná-los preconceito com o envelhecer. Jung acre-
conscientes. Ao calçarmos os “sapatos ditava que o ser humano não viveria tanto
vermelhos da bruxa”, poderemos estar tempo se isso não tivesse um sentido para
calçando a aceitação da totalidade huma- a espécie. Ele observou que é mais ou me-
na (que significa estarmos acolhendo as nos na metade da vida que o inconsciente
nossas boas e as nem tão boas caracterís- inicia uma espécie de “reversão de valores”,
ticas). Essa idéia de sermos “inteiros”, não uma mudança que pode começar de forma
“perfeitos”, é uma das contribuições mais modesta, mas muito importante. Pode ser

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uma mudança no caráter da pessoa, ou É a primeira vez na história da huma-
traços da infância que voltam à tona, ou nidade que temos pessoas “velhas novas”.
até mesmo inclinações e interesses novos. Explico: nunca se viram tantos idosos
Como o ego vai lidar com as mudanças vai saudáveis, ativos, bem dispostos e de bem
depender de cada indivíduo. com a vida. Há alguns anos, aposentadoria
Quem se protege contra o que é novo e es- era sinônimo de um envelhecer sem graça,
tranho e regride ao passado está na mesma da imagem do velho rabugento, “perdido”
situação neurótica daquele que se identifi- dentro de casa, lendo seu jornal e dando
ca com o novo e foge do passado. A única palpites na vida de todo mundo, inclusive
diferença é que um se alheia do passado e na vida da “sua velha”, que até podia se
o outro do futuro. Em princípio, os dois aposentar enquanto profissional, mas não
fazem a mesma coisa: mantém a consciên- se aposentava das “lidas domésticas” e
cia dentro de seus estreitos limites, em vez familiares. Mas as coisas estão mudando.
de fazê-la explodir na tensão dos opostos e Vejo meus pais, amigos e parentes com
construir um estado de consciência mais
mais de sessenta anos buscando os desa-
ampla e mais elevada. Este resultado seria
o ideal, se pudesse ser conseguido nesta se-
fios propostos por Hillman.
gunda fase da vida (JUNG, 1998, p. 407). Coloco nestas páginas a imagem e a
opinião de algumas pessoas que sinto real-
No livro A força do caráter, da Editora mente ressignificando a velhice. Vejo neles
Objetiva, James Hillman, analista junguia- a imagem da Dorothy, principalmente
no contemporâneo, já na “casa” dos oitenta na dona Iracema (Figura 1), que, após
anos, esmiúça o que é ser um velho e vai enfrentar duramente um sério problema
colocando, com todo sentimento e poesia de visão, deixou de calar suas dores para
que lhe são próprios, sobre as mudanças expressá-las nas mais diferentes artes.
que vão se “apoderando” dos velhos e do Ela já escreveu um livro e prepara outro,
quanto a velhice é necessária para que o molda maravilhas em argila, pinta, dança,
caráter de uma pessoa se complete. Este canta, está aprendendo violão e participa
livro é maravilhoso e creio que seja um de diversos concursos literários. Ela não
“tratado” psicológico sobre o envelhecer. deixa de se preocupar com seus filhos e
Entre as coisas lindas que Hillman traz netos; a diferença é que não mais se aban-
encontramos uma questão que ele diz ser dona para viver por eles; ela preferiu viver
crucial para os idosos e que tem tudo a com eles. Dona Iracema tem 73 anos.
ver com a escolha de Dorothy: agarrar-se Para Lucy, 64 anos, as coisas não são
a alguma coisa ou cedê-la. muito diferentes. Apesar de ter a formação
[...] devemos nos envolver de todo o coração em “Belas Artes”, a preocupação excessiva
nos acontecimentos do envelhecimento. Isto com os filhos e a dedicação a uma religião
requer curiosidade e coragem – neste caso, para a qual “os outros” sempre deveriam
coragem para deixarmos para trás velhas vir em primeiro lugar não a deixavam viver
idéias e nos deixarmos levar por idéias desco-
suas potencialidades artísticas (Figura 2).
nhecidas, deslocando a importância dos acon-
A “mãezona” nela não desapareceu,
tecimentos que tememos. Ou seja: a coragem
de ser curioso (HILLMAN, 2001, p. 19). pois, quando pode, continua fazendo de

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tudo por todos, mas já se permite fazer ao passado. Penso que o passado não deve
outras coisas, como se divertir com as ser negado nem pode ser esquecido. O que
personagens das novelas, ir ao cinema, normalmente percebo nas pessoas que
caminhar, além de “tirar um tempo” para temem o envelhecimento é que se apegam
seus estudos e desenvolvimento artístico. demais ao que passou; há um desesperado
Lucy diz que envelhecer, para ela, “é saudosismo, uma negação das atuais pos-
aproveitar a vida ao máximo, gostando das sibilidades e a não-descoberta de novas
coisas boas e tentando entender as ruins. potencialidades. Ter um certo saudosismo,
É ter um ‘sentido para viver’”. uma nostalgia, falar e lembrar o passado é
maravilhoso, mas viver aberto para o novo
é permitir que se mantenha acesa a chama
da vida.
A psicologia junguiana vê a segunda
metade da vida como uma jóia rara, uma
preciosidade. Após passar anos e anos
atendendo às expectativas externas e cui-
dando para acertar ao máximo em tudo o
que faz, finalmente, o ser está “liberado”
para atender aos chamados de sua alma.
É como se houvesse um sentimento de
dever cumprido com as leis da juventude:
“Pronto, você já contribuiu com sua parte
Figura 2 - Oloir e Lucy.
ativa, como trabalhador efetivo, agora
pode ser um trabalhador afetivo!” Após
Seu marido, Oloir, 69 anos, é o típico a conquista do sustento material, pode
vovô: querido por todos os filhos e netos, buscar mais profundamente o alimento
está sempre a brincar e a dispor de sua espiritual; pode ousar experimentar sem
presença. Também sente suas dores, o tanto medo de não dar certo; pode falhar
corpo já não é mais o mesmo, e o que mais que não terá mais medo de ser punido. É
o assusta na velhice é o “sentimento de so- na segunda metade da vida, geralmente,
lidão que às vezes aparece, e até uma coisa que os filhos estão grandes e as obrigações
de depressão”, mas isso não o impede de diminuídas, liberando a pessoa para am-
visitar sua família, de assistir aos jogos de pliar a sua consciência, para buscar mais
futebol, de acompanhar sua esposa onde intensamente novas possibilidades, para
for preciso e de desenvolver seu trabalho sentir-se mais inteira, sem medo de calçar
em madeira, ofício que descobriu há não os sapatos vermelhos da “bruxa”...
muito tempo, mas que lhe dá imenso pra- Dona Iracema acredita que os grupos
zer. De que ele mais gosta, porém, é estar são fundamentais para o idoso continuar a
entre seus familiares, principalmente se se divertir e encontrar pessoas com objeti-
estiverem tocando e cantando... vos parecidos. É assim que pensa também
São exemplos de “novos velhos”, pes- dona Lea Costi, 74 anos, que procura nos
soas especiais que não querem ficar presas

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grupos de terceira idade a parceria que
precisa para dançar, fazer exercícios físi-
cos, conversar com amigos e “trocar figuri-
nhas”, de todas as espécies. São os “novos
velhos”, uns precisando estar com outros
de sua idade; outros, nem tanto, mas todos
se esforçando para encontrar um “lugar”
onde se sintam dignos e honrados. “Não
há lugar como nossa casa”, diz Dorothy,
não há prazer maior do que se “sentir em
casa” num corpo de cinqüenta, sessenta,
setenta, oitenta... ou mais. O corpo de
prazer extrapola as “paredes” da pele.
A verdadeira casa que dá prazer é mais Figura 3 - Dornelis Benato.
parecida com um lar, onde há tolerância,
amizade, respeito, aceitação, familiari- Abstract
dade; onde a gentileza e a elegância não
são apenas “regras de boa convivência”,
mas, sim, experiência de vida colocada Going back home
em prática. Termino com as palavras de
Dornelis Benato (Figura 3), um “jovem” The objective of the article is to
de 64 anos, analista junguiano e amigo provide to the reader an idea about the
querido: theory of Carl Gustav Jung on human
aging. In the text there is a summary of
O envelhecer é uma realidade muito obje-
the story “The Wizard Of Oz”, that is
tiva. Não tenho mais a fantasia de buscar
a formação de fortuna ou sucesso. Estou used as a metaphor to the Individuation
voltado para o meu desenvolvimento in- Process, one of the great contributions
terior. Estou totalmente dedicado à alma left by Jung to the understanding of the
e suas manifestações. Aceito com tran- human journey. The struggle of Dorothy,
qüilidade as minhas limitações físicas heroine of the story, to come back home
da idade. Contudo, o trabalho interior é permeates all the text, and the sentence
mais gratificante, profícuo e profundo. A “There’s no place like our house” is used
agitação da juventude nos distrai muito as a reason to reflect the ideas about “hou-
dos nossos verdadeiros objetivos. Mas são se” and “home” as symbolic places for a
fases diferentes e todas têm um fim em si soul that has reached maturity. Dorothy
mesmas. Sinto que envelhecer com reco-
was also the source of inspiration for the
nhecimento e aceitação é muito bom. É a
development of the conscience metaphor,
preparação para o meu encontro final com
a minha plenitude. which, according to Jung, is the center of
all human work round the Self. The text
begins with the song “Over The Rain-
bow” and uses its translation to remind
the reader about the desire of finding the

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ideal place to live that all human beings Referências
have. The pictures showed in the article
are from people mentioned in it and were
taken by the author. Their opinion about GRINBERG, L. P. Jung. O homem criativo. São
Paulo: FTD, 1997.
aging is used to stimulate other people
that are going though the same process HILLMAN, J. A força do caráter. Rio de Janeiro:
and for others that are on the way. “Going Objetiva, 2001.
Back Home” tries to emphasize the idea JUNG, Carl G. Obras completas. Petrópolis: Vozes,
that aging is part of life and cannot and 1998. v. III.
should not be denied, but understood and
valorized. The text suggests that the hu- Endereço:
man being is a rich source of possibilities
Gisela Cardoso da Silva
and that each stage of life has its pleasures
Rua 18 do Forte, 422/503
and limitations and that, depending on
CEP 95020-472
the level.
Caxias do Sul - RS
E-mail: gisedpc@terra.com.br
Key words: House. Place. Metanoia. Cons-
cience. Individuation.

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