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ANA

HATHERLY
CONTEXTO
Em 1959 Ana Hatherly publicou o primeiro poema concreto em Portugal:
poeta arca seta. Porém, a artista desde cedo se demarcou do programa
concretista, preferindo a liberdade de experimentar a escrita, tanto na sua
expressão visual como semântica, sendo pioneira do experimentalismo nos
anos 1960.
Esta atitude, que a afasta dos movimentos artísticos da época, é reflexo de
uma irreverência em relação ao panorama artístico nacional e internacional,
ao mesmo tempo que mostra uma intuição muito apurada e um pensamento
singular sobre o ato da escrita, aliás tema principal da sua obra: a escrita,
as palavras, a poesia, que se desdobram em múltiplas dimensões, seja em
textos teóricos, poemas, desenhos ou pinturas. Esta continuidade entre o
trabalho criativo e a investigação científica denota não apenas um percurso
consistente, mas é também a evidência do encontro da artista com os laços
familiares da modernidade e da tradição que procura reaver para corroborar
o seu pensamento sobre o ato criador.
Nas suas pesquisas espeleológicas às profundezas da escrita, Hatherly
descobre a gratuitidade da mão que se dá plenamente ao gesto de inscrição
com uma inteligência própria, e o jogo enquanto procedimento de di-versão,
isto é, que promove o desvio do utilitarismo em favor de uma ação desvin-
culada e rebelde. Imagem disso são as suas escritas ilegíveis que apontam
para o texto, que rapidamente se desfigura e reconfigura em formas visuais.
Caixa Alfabeto
1970
Madeira, plástico e fio de cordel
5,7 x 13,8 x 10 cm

A nossa tarefa é entender o mundo


diziam os antigos
já sabiam
que o jogo somos nós
(the toys are us).
Ana Hatherly, in Fibrilações

Uma das imagens do entendimento do mundo é a leitura de um livro. Aliás,


há uma predisposição do homem para a leitura: lemos textos, imagens, ros-
tos, mapas, mãos, vísceras. O mundo, então, não é apenas um livro, é tam-
bém um jogo feito de signos, símbolos, sinais, que no momento da escrita se
vão ordenando e cristalizando.
Na Caixa Alfabeto, de Ana Hatherly, o alfabeto amotinou as convenções e
deixa-se desarrumar no interior da caixa. Esta caixa guarda uma infinidade
de ideias, tantas quantas estas letras deixarem. Disposto ao acaso, este ma-
terial está à disposição dos seus jogadores para manusearem/manuscrever-
em uma nova poesia feita de objetos-atos que exigem jogar (atuar) para
decifrar. A escrita é feita de palavras-objetos e sem a implicação do corpo do
jogador-escritor as letras estão sozinhas.
O alfabeto desta caixa é simbólico, pois permite criar outros códigos, rein-
ventando a leitura ou indo além da ordem natural da leitura, relevando uma
nova atitude em relação à arte (poética, literária) que consente o jogo, a
performance, como ato em si suficiente e significante.
Poeta chama poeta II Poeta chama poeta I Desenho (Revolução)
1989 1989 1975
Tinta-da-China sobre papel Tinta-da-China sobre papel Tinta-da-China sobre papel
30 x 23 cm 23 x 30 cm 19 x 14 cm
A palavra-escrita
é um labor arcaico:
sulca enigmas
venda e desvenda
o sentido do gesto
Ana Hatherly, in A Palavra-Escrita

“A mão que escreve” uma escrita ilegível é a mão que já não procura prender
a linha na “máscara da palavra”, antes lhe permite pôr-se em fuga. Ana
Hatherly, poeta, deixa que a linha vagueie pela página branca e jogue ao
esconde-esconde da escrita e da forma, desapossando a primeira do sentido
e constrangendo a segunda ao burburinho da leitura.
Esta ambiguidade na reversibilidade da linha, que ora é escrita ora é desen-
ho, é o que lhe possibilita operar com total liberdade imaginativa. A linha
foge em frente, liberta-se da sismografia da palavra, segue o seu próprio
itinerário fora da mancha do texto, colapsando a geometria deste e esfu-
mando o seu contorno. O corpo de texto metamorfoseia-se num doodle com
diferentes tempos, onde a linha tanto corre veloz como abranda na borda-
dura de uma quase palavra que se decifra a custo.
Esta liberdade descobre Ana Hatherly quando decide aplicar “à escrita lati-
na o mesmo processo de análise que tinha usado para a escrita chinesa,
fazendo abstração do conhecimento da língua que ela podia representar e
à qual estava ligada”1. Diz “para tal, tornei a minha própria escrita ‘ilegível’,
a fim de poder observá-la apenas gestualmente.”2. A artista age sobre a
escrita desinteressada da sua finalidade, usando-a como molde para outras
formas que em si apontam para outros sentidos. Este desinvestimento na
memória que a palavra detém, esta anestesia do olhar cria uma abertura
(o infrafino duchampiano) onde a energia do gesto da “mão inteligente” é
capaz de, num mesmo tempo, dizer a escrita e o desenho.
Estas escrituras revelam ainda a profunda compreensão da artista sobre a
arte barroca, naquilo que esta mais perseguiu: a múltipla dimensionalidade
(artística) dos objetos, eternizando-os em enigmas e labirintos sem saída.

1
Ana Hatherly, Mapas da Imaginação e da Memória, Lisboa: Moraes Editores, 1973.
2
Ibid.
Loom
Anos 1960
Acrílico
88 x 60 x 45 cm

O mistério supremo é a claridade. Não é a bruma é a limpidez o que se


prolonga infinitamente igual ao ar. Tudo estar aí claramente como o céu ou
o espaço. Cair infinitamente é o terror que inspira o espaço o ele ser vazio.
Sentirmo-nos despenhar no ar. Tudo ser como o ar como estar no ar. Eis
porque todos procuram angustiadamente a relação.
Ana Hatherly, Tisana n.º 121

Apresentar três figuras geométricas transparentes, umas dentro de outras,


em meados dos anos 1960 em Portugal, revela muito mais da atitude do
autor do que qualquer conteúdo conceptual. Loom é uma peça audaz por
nada ter a dizer. A sua simplicidade extrema reserva-se somente à perce-
ção estética, fugindo a qualquer elaboração teórica. Esta economia severa
assume-se assim como uma tomada de posição face ao panorama artístico
português, atuando numa nova perspetiva do objeto artístico – o que o torna
de imediato, político.
Por razões familiares, Ana Hatherly viveu alguns anos entre Portugal e In-
glaterra. Em Londres, a artista teve acesso a novos materiais como papéis,
tintas de escrever e o acrílico, cuja transparência leva a artista aos seus
tempos de criança no Porto com a avó e aos rebuçados embrulhados em
papel transparente colorido.
Embora começando já a ser utilizado por alguns artistas portugueses nessa
década, o acrílico era ainda um material raro quando Loom aparece, o que
torna esta peça única – também no contexto do corpo de trabalho da artis-
ta –, porque introduz no horizonte português uma nova realidade estética,
muito próxima da experiência minimalista. Chapas coloridas com diferentes
dimensões são simplesmente coladas e montadas. A mensagem é a simplici-
dade. E essa é também a sua grande modernidade e radicalidade, que causa
uma grande estranheza.
Mas Loom joga ainda com a sonoridade do título, uma vez que a tradução
literal da palavra mantém o enigma, mas o seu som se confunde com a pa-
lavra portuguesa “lume”, conotando logo a escultura com a imagem de uma
labareda geométrica.
Desenho (Ideograma Estrutural)
1966
Tinta-da-China sobre papel
25 x 19 cm

Na senda do estudo de um dicionário de inglês-chinês em meados dos anos


1960, Ana Hatherly mergulha no universo da escrita, procurando compreen-
der os processos de organização e significação da linguagem.
Esta investigação reflete o momento da sua formação, em que autores li-
gados à linguística – nomeadamente o trabalho de Ferdinand de Saussure
sobre os anagramas –, à semiótica e ao estruturalismo eram o seu horizonte
de estudo.
No seu livro Mapas da Imaginação e da Memória, Hatherly relata o seu em-
preendimento na construção de uma “nova escrita”, a que chama “alfabeto
estrutural”1, e que resulta da organização de oito carateres básicos que se
ligam a partir de uma lógica matemática criando um sistema de sentido se-
melhante aos ideogramas. Estes carateres têm uma dimensão material mas
não hierárquica e não têm significação. A sua combinação permite formar
estruturas abertas, fechadas ou mistas, e quando lhes são atribuídos valores
semânticos constituem um vocabulário coerente, capaz de expressão con-
ceptual, apesar do seu “caráter utópico”2.
A artista indica ainda que apesar deste “alfabeto sem chave” não ter expres-
são fonética, ele pode ser falado, uma vez que constitui uma linguagem es-
pecífica dado o seu valor metafórico, não assegurando, contudo, uma língua.
Nas operações realizadas na construção destas estruturas linguísticas, Ha-
therly perscruta a liberdade criativa do processo combinatório, descobrindo
que este está muito próximo do jogo poético. A natureza do ato criativo e
a sua “gratuitidade” revela-se nesse cálculo de probabilidades de sentidos
que fogem às combinações úteis do “circuito fechado da língua”.

1
Ana Hatherly apresentou oito fases de desenvolvimento deste alfabeto estrutural, mais um
ideograma na revista de Poesia Experimental Operação 1, em 1967.
2
“O carácter utópico (…) de Ana Hatherly reside no facto de eles efectivamente não servirem
para comunicar senão a sua própria existência.” Ernesto Melo e Castro, in Ana Hatherly: Obra
Visual, 1960-1990, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.
Desenho
1970
Tinta-da-China sobre papel
65 x 50 cm

Desenho
1970
Tinta-da-China sobre papel
65 x 50 cm
Ao estudar a escrita chinesa arcaica, que encontrou num dicionário de
inglês-chinês, Ana Hatherly descobre a pedra de toque para uma investiga-
ção profunda sobre o próprio ato da escrita. A ligação aos carateres orien-
tais centrou-se unicamente no estudo morfológico, uma vez que Hatherly
nunca chegou a aprender a língua.
A aprendizagem da escrita levou-a à rigorosa disciplina da mão, num pri-
meiro momento, transcrevendo carateres, repetindo o gesto até que este se
tornasse natural. A repetição dos movimentos, a compreensão da pressão
sobre a caneta de feltro e o seu deslize na folha de papel, a descoberta da or-
dem dos traços e as suas derivações e fusões tornaram a “mão inteligente”.
A instrução da mão serviu sobretudo para indagar os caminhos da escrita,
direcionando a investigação da artista para o próprio “idioma artístico” e o
seu valor mediúnico.
Neste itinerário sobre o gesto que se dá gratuitamente à escrita, os sinais
foram-se simplificando, tomando modulações mais geométricas, envoltas
sempre de ressonâncias orientais, a que posteriormente se juntaram outras
geografias, nomeadamente as escritas cursivas, como o alfabeto latino e
outras escritas fundacionais. Esta pesquisa sobre as diferentes grafias até
às suas raízes foi dando lugar à exploração formal dos carateres a partir de
um jogo anagramático que exige uma total “reinvenção da leitura”.
Ana Hatherly quer pois “mostrar a escrita, não o escrito”1 e para isso torna
a “escrita ilegível a fim de poder observá-la apenas gestualmente”2. O pro-
cesso de des-semantização das palavras afasta-as da sua aparência, para
as oferecer exclusivamente como formas. São palavras-imagens que, não
dizendo nada, soam sempre a qualquer coisa. A artista e poeta encontra
uma outra poesia, feita ainda de signos e sons, que, não sendo os da escrita,
os das palavras, são das coisas para as quais as formas apontam.

1
Ana Hatherly, A Casa das Musas, Lisboa: Editorial Estampa, 1995, p. 196.
2
Ana Hatherly, Mapas da Imaginação e da Memória, Lisboa: Moraes Editores, 1973.
Desenhos
1965–75
Marcador preto,
esferográfica, colagem sobre
papel (132 elementos) ?
Várias dimensões
O poeta é uma sombra
um perfil
um desaparecimento
Ana Hatherly, O Cisne Intacto

No texto introdutório à obra O Escritor (1975), Ana Hatherly afirma tratar-


se de uma narrativa composta por vinte e sete momentos onde, pela força
cinética, cada desenho se apresenta como um “fotograma congelado na pá-
gina” e o ato da leitura1 ativa o movimento cinemático.
O tema de O Escritor extravasa, no entanto, esta obra, sendo retomado em
outros desenhos, dando assim conta da atenção particular da artista sobre
o ato da escrita e o lugar do seu autor. Este aparece num perfil imaginário
materializado pelo rendilhado linear de palavras que “descem por sobre a
face do poeta como cortinas de água”. “A máscara da palavra/ colou-se ao
rosto”, o escritor “chora lágrimas de tinta” e “as palavras ao poeta surgem
sobem descem sobretudo nascem”.
O retrato do escritor é a imagem clara da união mais íntima do seu corpo e
da escrita. Pela boca hiante entram e saem palavras. Na boca acontece esse
contacto íntimo da fusão, no beijo, na felação, na antropofagia, mas também
na poesia, na leitura, na escrita sussurrada. Na boca do poeta as palavras
ora são devoradas, ora brotam numa verborreia angustiante. O poeta é uma
“máquina de triturar letras”, torturado pela necessidade de se fazer ouvir e
desaparecer na escrita.2

1
“A leitura será sempre múltipla porque à ilusão de ver se acrescenta a ilusão de ler.” Ana
Hatherly, O Escritor, Lisboa: Moraes Editores, 1975.
2
“As palavras vão assim caindo, precisas, num processo de reconciliação do homem que as
solta retendo-as, de quem as diz com moderada generosidade.” María Zambrano, A Metáfora
do Coração e Outros Escritos, intro. e trad. de José Bento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 38.
OXO
1970
Colagem sobre papel
69,5 x 49,5 cm

De repente, no fundo de uma gaveta, descubro um presente que um admirador há


muitos anos me enviou: é uma pequena caixa de folha de OXO Cubes. Abrindo-a
encontro dentro uma pluma branca enrolada e dentro dela um minúsculo frasco
de perfume redondo, azul celeste. Ao fechar a caixa leio num dos lados da tampa:
keep the lid closed.
Ana Hatherly, Tisana n.º 281

Para Ana Hatherly, a modernidade revela-se na capacidade do artista de ol-


har o real e ver nele outra fundura, sem contudo o perder de vista. O artista
está perante o real com olhos diferentes e por isso transforma-o, dando-lho
um novo sentido. Esta modernidade, que nada tem a ver com o conceito
histórico, diz antes da atitude do artista, daquilo que ele consegue ver do
real1.
Ora, OXO é uma marca inglesa de caldos de carne em cubos e condensados
de sopa, estando associada, até pelo seu nome, à sopa de rabo de boi (ox).
As fontes e o design muito característicos levaram Ana Hatherly, por graça,
a guardar uma caixa destes caldos. Com o passar do tempo os oxo cubes
tornaram-se numa marca datada. Os que a reconhecem, vêm na palavra um
contexto, uma imagem da sociedade dos anos 1960. Porém, no imaginário
recente, ela tornou-se abstrata e misteriosa; não querendo dizer nada, pode
dizer tudo aquilo que o leitor quiser. É uma palavra extraordinária para a
artista, porque ao perder o seu significado cria novos desafios.
Desta feita, Hatherly apropria-se da palavra e joga com ela em diferentes
composições, preservando o seu valor icónico embora mantendo o enigma.

1
“O grande artista não é tanto aquele que infringe a regra mas o que varia o hábito.” Giovanni
Pozzi, citado por Ana Hatherly em “Quando o poeta pensa a escrita”, in Ana Hatherly, Interfa-
ces do Olhar, Lisboa: Roma Editora, 2004, p. 102.
Papiro Rock A Revolução
1981 1977
Lápis de cera e colagem sobre papel, madeira Tinta acrílica sobre papel
45,5 x 540 cm 84 x 60 cm

Para criar é preciso aprender a descobrir.


Ana Hatherly, A Casa das Musas

Em 1981 Ana Hatherly leva para a exposição “25 Artistas Portugueses de


Hoje”, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo,
uma série de desenhos e colagens sob o título Papiro Rock. O mesmo tema
foi explorado numa outra instalação na exposição “Alternativa 1”, em Al-
mada, no mesmo ano.
Papiro Rock é uma audácia da artista que procurou juntar duas imagens de
tempos muito diferentes entre si. O papiro é indissociável da antiguidade,
sobretudo da escrita de civilizações ancestrais, tratando-se de um suporte
privilegiado para a escrita antes do papel. Alguns destes Papiro Rock tomam
a forma de torá, evocando outros suportes na cultura ocidental anteriores ao
formato do livro. Já o termo Rock é um conceito musical do século XX, cuja
sonoridade se caracteriza por ritmos rápidos e batidas fortes, fazendo parte
da imagem de uma modernidade dinâmica, ousada, com grande liberdade.
Esta relação, que à partida parece inusitada, reflete de modo claro o pen-
samento da artista sobre a difícil responsabilidade da desordem das van-
guardas, que no seu processo de rutura com tudo o que está estabilizado e
institucionalizado, deve tomar boa nota da tradição, pois o estabelecimento A Revolução
de uma nova ordem só é possível pela reinvenção. 1977
A estas considerações não são alheios os estudos teóricos de Hatherly sobre a Tinta acrílica sobre papel
literatura barroca, que lhe permitiram ver com olhos modernos todo um progra- 84 x 60 cm
ma que constitui o quadro mental e a sensibilidade artística contemporâneos.
Papiro Rock propõe-se não esquecer o antigo e até, com a maior simpli-
cidade, reatar ao novo a partir de uma operação estética (e política) que
reconhece no poeta um “ator, porque a obra será cada vez mais ação – op-
era/ação”1. Uma operação feita de gestos ágeis que resultam numa imagem-
ação muito próxima da imagética subversiva dos graffitis.
1
“Os textos estão cada vez mais fora das páginas dos livros. Os textos serão cada vez mais
textos-atos.” In Ana Hatherly, Um Calculador de Improbabilidades, Lisboa: Quimera Editores,
2001, p. 388.
O Pavão Negro O Pavão Negro O Pavão Negro
1999 1999 1999
Tinta acrílica sobre papel Tinta acrílica sobre papel Tinta acrílica sobre papel
59 x 42 cm 59 x 42 cm 59 x 42 cm

O Pavão Negro O Pavão Negro O Pavão Negro


1999 1999 1999
Tinta acrílica sobre papel Tinta acrílica sobre papel Tinta acrílica sobre papel
59 x 42 cm 59 x 42 cm 59 x 42 cm
Na escrita
torna-se imagem
a imagem que a tinta reproduz
no assalto do ver-ler
Ana Hatherly, in O Pavão Negro

A série de desenhos O Pavão Negro de Ana Hatherly foi apresentada na ex-


posição com o mesmo nome na Galeria Presença, no Porto, em 1999. Aos
visitantes era distribuída uma folha de sala com o poema O Pavão Negro.
Em 2003, a artista e poeta publica um livro de poemas com o mesmo título.
Hatherly situa-o no contexto do seu trabalho em torno da escrita, “na sua du-
pla vertente oral e visual” ou melhor, na sua visualidade verbal e não-verbal.
O Pavão Negro é um conjunto de variações do tema do corpo da escrita,
quando esta perde a sua máscara de palavra e se torna um borrão de tinta.
Nesta variabilidade do negro está o gesto da “mão inteligente” que procura
curto-circuitar a experiência da leitura a partir de uma revolução do texto
que lhe abre novas possibilidades formais e sentidos, que inevitavelmente
culminam na ilegibilidade.
Assim, nos diversos desenhos, o toque leve e rápido do pincel não deixa
senão sombras, “sombras da voz” que não se chegam a imobilizar, porque
a escrita apenas quer ser imagem e não voz. Cria-se, deste modo, um jogo
do dito e do não-dito, do que entretanto se transforma, testando assim as
possibilidades do texto.
Pela folha branca repete-se a matéria negra, caprichosa, formando “um
leque de opções” de padrões luxuosos, cujas pequenas variações em “ras-
tos/restos/resíduos” são parte do acaso ordenado da escrita. Uma escrita
ainda “refém do olhar” mas já emancipada da significação, procurando ago-
ra “o outro lado do ver”.1

1
“Da tinta, a escrita se emancipa, em tinta a escrita se torna quando deixa de querer signifi-
car.” Paulo Cunha e Silva no Prefácio a Ana Hatherly, O Pavão Negro, Lisboa: Assírio & Alvim,
2003, p. 11.
GLOSSÁRIO
Anagrama – Palavra resultante do re- Ideograma – Símbolo gráfico que Poesia Experimental – Próxima da
arranjo das letras de outra palavra. O representa uma palavras ou concei- poesia concreta nas pesquisas mor-
termo deriva da combinação de ana to. A escrita oriental baseia-se em fológicas da escrita poética, a poesia
que significa repetição e grama que sistemas ideográficos, ao contrário experimental distingue-se por uma
se refere à escrita. Esta repetição da das escritas ocidentais onde pre- maior liberdade para explorar vis-
escrita joga com as variações pos- dominantemente se utiliza o alfabeto ualmente convenções da escrita e
síveis da combinação de letras, daí o para a construção das palavras. Uma gramáticas, numa atitude, por vezes,
seu uso lúdico na literatura barroca. das escritas ideográficas mais con- transgressora, mas sobretudo ori-
hecidas são os hieróglifos egípcios. entada para a descoberta de novas
Arte Concreta – O termo “con- formações compositivas resultantes
creto” foi importado para as artes Poesia Concreta – Da revalorização, de processos de escrita inovadores,
plásticas pelo pintor El Lissitzky, em nos anos 1950, de uma plástica pura, como a introdução de novas tecno-
1919, em relação com os seus Proun, absoluta, iniciada pelas vanguardas logias.
procurando apresentá-los como ob- europeias na segunda década do séc- O experimentalismo foi desenvolvi-
jectos concretos que procedem à ulo XX, de que se destacam os con- do em vários países e consequen-
síntese da pintura, da escultura e da strutivistas e o grupo De Stijl, ganha temente em várias línguas e tomou
arquitectura. Esta ambição tem no expressão uma vertente literária que várias denominações, seja poesia
seu fundamento todo um paradigma se vem a denominar Poesia Concreta. visual, espacial, concreta. Em Portu-
político moderno voltado para a de- Esta corrente poética teve um grande gal, a poesia experimental não teve
mocratização das artes, o funcion- desenvolvimento no Brasil com o a força de um movimento artístico;
alismo e a produção industrial. Em grupo Noigandres, fundado em 1952 no entanto, vários poetas e artis-
1930, Theo van Doesburg, artista as- pelos irmãos Augusto e Haroldo de tas desenvolveram ações, publi-
sociado ao neoplasticismo, escreve o Campos e Décio Pignatari. O nome cações, exposições, que dão conta
Manifesto da Arte Concreta, publica- Noigandres foi retirado da obra de de uma postura muito crítica tanto
do no primeiro e único número da re- Ezra Pound The Cantos e não tem um em relação ao panorama político na-
vista Art Concret, e nele fala de uma significado preciso. O grupo define a cional, quanto às práticas literárias
visualidade eminentemente abstrata poesia concreta como uma poesia em vigentes. O grupo Po.Ex, que inte-
mas que paradoxalmente é absoluta- progresso que desenvolve as “ten- grava Herberto Helder, José Alberto
mente real porque a linguagem que sões de palavras-coisas no espaço- Marques, Ana Hatherly, Ernesto de
apresenta (baseada em linhas, cores tempo”. O seu propósito era desen- Melo e Castro, António Aragão, Sal-
e planos) é mais concreta e muito volver uma nova sintaxe espacial que ette Tavares e Liberto Cruz, publicou
mais próxima da natureza do que as explorasse as relações internas da dois números da revista Cadernos de
formas miméticas e simbólicas. estrutura visual do poema. Poesia Experimental, onde se fazem
Sem conhecer as pesquisas do grupo notar as influências literárias de Mal-
Guillaume Apollinaire – Figura in- brasileiro Noigandres, com que mais larmé, Ezra Pound, James Joyce ou
contornável das vanguardas do início tarde virá a colaborar, Eugen Gom- E. E. Cummings, ou das experiências
do século XX, Apollinaire foi poeta e ringer publica na Europa, em 1953, visuais dos caligramas de Apollinaire,
ensaísta, próximo do cubismo e do Konstellationen, partindo do poema nas “palavras em liberdade” dos fu-
movimento surrealista, tendo mes- de Mallarmé Un coup de dés jamais turistas e nos poemas-colagem dos
mo escrito, em 1911, o texto Les Cub- n’abolira le hasard. O termo “con- dadaístas. Ana Hatherly alarga ainda
ists para a revista L’Intransigeant. stelação” (“constelação de significa- estas influências aos textos-imagem
Na poesia, Apollinaire foi defensor dos”), adotado de Mallarmé, procura do barroco à antiguidade.
de “um novo espírito” poético que juntar ao sentido das palavras o
combinasse a liberdade e a ordem. silêncio que, em si, tem também um Poesia Visual – Em resposta à ação
Em 1914 compõe o poema figurado valor significacional. programática, de cariz objetivista e ra-
Voyage, onde explora, com grande Depois da publicação do Plano-piloto cional da poesia concreta, a poesia vis-
lirismo, a tipografia. Apollinaire ap- para Poesia Concreta pelo grupo bra- ual procura uma maior subjetividade
resenta-o como um ideograma, mas sileiro, a poesia concreta tornou-se na exploração do imaginário, recor-
mais tarde, em 1918, vai definir estes fortemente programática e, de certa rendo à configuração da mancha de
poemas visuais como caligramas, forma, redutora nos seus meios de texto, à materialização das palavras,
onde às relações semânticas se asso- produção, focando-se exclusivamente aproximando-a da escultura e da insta-
cia uma pesquisa plástica da escrita. na libertação das palavras da sintaxe lação, ao uso da cor criando espaços
convencional, isolando-as e trabal- pictóricos e à exploração do gesto de
hando-as como matéria plástica. inscrição no desenho, progredindo as-
sim para uma escrita cada vez mais
visual. Desta forma, a linguagem ver-
bal assume definitivamente as suas
potencialidades figurativas, desvincu-
lando-se ainda mais do semanticismo
em favor da semiologia.

Stéphane Mallarmé – Em 1987


Stéphane Mallarmé publica na revis-
ta Cosmopolis o poema Un coup de
dés jamais n’abolira le hasard. O mé-
todo compositivo que usou, segundo
o poeta, foi a “subdivisão prismática
da ideia”, dando assim oportunidade
ao poema de se desenvolver em ver-
sos livres, ocupando o espaço gráfico
de forma descontinuada e usando
diferentes tamanhos de letras. Sem
pontuação, o branco da folha gere os
intervalos de silêncio com diferentes
durações, imprimindo, desse modo,
diferentes ritmos que introduzem
uma nova musicalidade. Un coup de
dés… revoluciona a tipografia poéti-
ca e reata uma prática literária que
toma balanço não apenas na com-
posição semântica, mas também na
organização espaço-temporal do po-
ema.
BIBLIOGRAFIA
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