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1309 5D AnaHatherly v2 PDF
1309 5D AnaHatherly v2 PDF
HATHERLY
CONTEXTO
Em 1959 Ana Hatherly publicou o primeiro poema concreto em Portugal:
poeta arca seta. Porém, a artista desde cedo se demarcou do programa
concretista, preferindo a liberdade de experimentar a escrita, tanto na sua
expressão visual como semântica, sendo pioneira do experimentalismo nos
anos 1960.
Esta atitude, que a afasta dos movimentos artísticos da época, é reflexo de
uma irreverência em relação ao panorama artístico nacional e internacional,
ao mesmo tempo que mostra uma intuição muito apurada e um pensamento
singular sobre o ato da escrita, aliás tema principal da sua obra: a escrita,
as palavras, a poesia, que se desdobram em múltiplas dimensões, seja em
textos teóricos, poemas, desenhos ou pinturas. Esta continuidade entre o
trabalho criativo e a investigação científica denota não apenas um percurso
consistente, mas é também a evidência do encontro da artista com os laços
familiares da modernidade e da tradição que procura reaver para corroborar
o seu pensamento sobre o ato criador.
Nas suas pesquisas espeleológicas às profundezas da escrita, Hatherly
descobre a gratuitidade da mão que se dá plenamente ao gesto de inscrição
com uma inteligência própria, e o jogo enquanto procedimento de di-versão,
isto é, que promove o desvio do utilitarismo em favor de uma ação desvin-
culada e rebelde. Imagem disso são as suas escritas ilegíveis que apontam
para o texto, que rapidamente se desfigura e reconfigura em formas visuais.
Caixa Alfabeto
1970
Madeira, plástico e fio de cordel
5,7 x 13,8 x 10 cm
“A mão que escreve” uma escrita ilegível é a mão que já não procura prender
a linha na “máscara da palavra”, antes lhe permite pôr-se em fuga. Ana
Hatherly, poeta, deixa que a linha vagueie pela página branca e jogue ao
esconde-esconde da escrita e da forma, desapossando a primeira do sentido
e constrangendo a segunda ao burburinho da leitura.
Esta ambiguidade na reversibilidade da linha, que ora é escrita ora é desen-
ho, é o que lhe possibilita operar com total liberdade imaginativa. A linha
foge em frente, liberta-se da sismografia da palavra, segue o seu próprio
itinerário fora da mancha do texto, colapsando a geometria deste e esfu-
mando o seu contorno. O corpo de texto metamorfoseia-se num doodle com
diferentes tempos, onde a linha tanto corre veloz como abranda na borda-
dura de uma quase palavra que se decifra a custo.
Esta liberdade descobre Ana Hatherly quando decide aplicar “à escrita lati-
na o mesmo processo de análise que tinha usado para a escrita chinesa,
fazendo abstração do conhecimento da língua que ela podia representar e
à qual estava ligada”1. Diz “para tal, tornei a minha própria escrita ‘ilegível’,
a fim de poder observá-la apenas gestualmente.”2. A artista age sobre a
escrita desinteressada da sua finalidade, usando-a como molde para outras
formas que em si apontam para outros sentidos. Este desinvestimento na
memória que a palavra detém, esta anestesia do olhar cria uma abertura
(o infrafino duchampiano) onde a energia do gesto da “mão inteligente” é
capaz de, num mesmo tempo, dizer a escrita e o desenho.
Estas escrituras revelam ainda a profunda compreensão da artista sobre a
arte barroca, naquilo que esta mais perseguiu: a múltipla dimensionalidade
(artística) dos objetos, eternizando-os em enigmas e labirintos sem saída.
1
Ana Hatherly, Mapas da Imaginação e da Memória, Lisboa: Moraes Editores, 1973.
2
Ibid.
Loom
Anos 1960
Acrílico
88 x 60 x 45 cm
1
Ana Hatherly apresentou oito fases de desenvolvimento deste alfabeto estrutural, mais um
ideograma na revista de Poesia Experimental Operação 1, em 1967.
2
“O carácter utópico (…) de Ana Hatherly reside no facto de eles efectivamente não servirem
para comunicar senão a sua própria existência.” Ernesto Melo e Castro, in Ana Hatherly: Obra
Visual, 1960-1990, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1992.
Desenho
1970
Tinta-da-China sobre papel
65 x 50 cm
Desenho
1970
Tinta-da-China sobre papel
65 x 50 cm
Ao estudar a escrita chinesa arcaica, que encontrou num dicionário de
inglês-chinês, Ana Hatherly descobre a pedra de toque para uma investiga-
ção profunda sobre o próprio ato da escrita. A ligação aos carateres orien-
tais centrou-se unicamente no estudo morfológico, uma vez que Hatherly
nunca chegou a aprender a língua.
A aprendizagem da escrita levou-a à rigorosa disciplina da mão, num pri-
meiro momento, transcrevendo carateres, repetindo o gesto até que este se
tornasse natural. A repetição dos movimentos, a compreensão da pressão
sobre a caneta de feltro e o seu deslize na folha de papel, a descoberta da or-
dem dos traços e as suas derivações e fusões tornaram a “mão inteligente”.
A instrução da mão serviu sobretudo para indagar os caminhos da escrita,
direcionando a investigação da artista para o próprio “idioma artístico” e o
seu valor mediúnico.
Neste itinerário sobre o gesto que se dá gratuitamente à escrita, os sinais
foram-se simplificando, tomando modulações mais geométricas, envoltas
sempre de ressonâncias orientais, a que posteriormente se juntaram outras
geografias, nomeadamente as escritas cursivas, como o alfabeto latino e
outras escritas fundacionais. Esta pesquisa sobre as diferentes grafias até
às suas raízes foi dando lugar à exploração formal dos carateres a partir de
um jogo anagramático que exige uma total “reinvenção da leitura”.
Ana Hatherly quer pois “mostrar a escrita, não o escrito”1 e para isso torna
a “escrita ilegível a fim de poder observá-la apenas gestualmente”2. O pro-
cesso de des-semantização das palavras afasta-as da sua aparência, para
as oferecer exclusivamente como formas. São palavras-imagens que, não
dizendo nada, soam sempre a qualquer coisa. A artista e poeta encontra
uma outra poesia, feita ainda de signos e sons, que, não sendo os da escrita,
os das palavras, são das coisas para as quais as formas apontam.
1
Ana Hatherly, A Casa das Musas, Lisboa: Editorial Estampa, 1995, p. 196.
2
Ana Hatherly, Mapas da Imaginação e da Memória, Lisboa: Moraes Editores, 1973.
Desenhos
1965–75
Marcador preto,
esferográfica, colagem sobre
papel (132 elementos) ?
Várias dimensões
O poeta é uma sombra
um perfil
um desaparecimento
Ana Hatherly, O Cisne Intacto
1
“A leitura será sempre múltipla porque à ilusão de ver se acrescenta a ilusão de ler.” Ana
Hatherly, O Escritor, Lisboa: Moraes Editores, 1975.
2
“As palavras vão assim caindo, precisas, num processo de reconciliação do homem que as
solta retendo-as, de quem as diz com moderada generosidade.” María Zambrano, A Metáfora
do Coração e Outros Escritos, intro. e trad. de José Bento, Lisboa: Assírio & Alvim, 2000, p. 38.
OXO
1970
Colagem sobre papel
69,5 x 49,5 cm
1
“O grande artista não é tanto aquele que infringe a regra mas o que varia o hábito.” Giovanni
Pozzi, citado por Ana Hatherly em “Quando o poeta pensa a escrita”, in Ana Hatherly, Interfa-
ces do Olhar, Lisboa: Roma Editora, 2004, p. 102.
Papiro Rock A Revolução
1981 1977
Lápis de cera e colagem sobre papel, madeira Tinta acrílica sobre papel
45,5 x 540 cm 84 x 60 cm
1
“Da tinta, a escrita se emancipa, em tinta a escrita se torna quando deixa de querer signifi-
car.” Paulo Cunha e Silva no Prefácio a Ana Hatherly, O Pavão Negro, Lisboa: Assírio & Alvim,
2003, p. 11.
GLOSSÁRIO
Anagrama – Palavra resultante do re- Ideograma – Símbolo gráfico que Poesia Experimental – Próxima da
arranjo das letras de outra palavra. O representa uma palavras ou concei- poesia concreta nas pesquisas mor-
termo deriva da combinação de ana to. A escrita oriental baseia-se em fológicas da escrita poética, a poesia
que significa repetição e grama que sistemas ideográficos, ao contrário experimental distingue-se por uma
se refere à escrita. Esta repetição da das escritas ocidentais onde pre- maior liberdade para explorar vis-
escrita joga com as variações pos- dominantemente se utiliza o alfabeto ualmente convenções da escrita e
síveis da combinação de letras, daí o para a construção das palavras. Uma gramáticas, numa atitude, por vezes,
seu uso lúdico na literatura barroca. das escritas ideográficas mais con- transgressora, mas sobretudo ori-
hecidas são os hieróglifos egípcios. entada para a descoberta de novas
Arte Concreta – O termo “con- formações compositivas resultantes
creto” foi importado para as artes Poesia Concreta – Da revalorização, de processos de escrita inovadores,
plásticas pelo pintor El Lissitzky, em nos anos 1950, de uma plástica pura, como a introdução de novas tecno-
1919, em relação com os seus Proun, absoluta, iniciada pelas vanguardas logias.
procurando apresentá-los como ob- europeias na segunda década do séc- O experimentalismo foi desenvolvi-
jectos concretos que procedem à ulo XX, de que se destacam os con- do em vários países e consequen-
síntese da pintura, da escultura e da strutivistas e o grupo De Stijl, ganha temente em várias línguas e tomou
arquitectura. Esta ambição tem no expressão uma vertente literária que várias denominações, seja poesia
seu fundamento todo um paradigma se vem a denominar Poesia Concreta. visual, espacial, concreta. Em Portu-
político moderno voltado para a de- Esta corrente poética teve um grande gal, a poesia experimental não teve
mocratização das artes, o funcion- desenvolvimento no Brasil com o a força de um movimento artístico;
alismo e a produção industrial. Em grupo Noigandres, fundado em 1952 no entanto, vários poetas e artis-
1930, Theo van Doesburg, artista as- pelos irmãos Augusto e Haroldo de tas desenvolveram ações, publi-
sociado ao neoplasticismo, escreve o Campos e Décio Pignatari. O nome cações, exposições, que dão conta
Manifesto da Arte Concreta, publica- Noigandres foi retirado da obra de de uma postura muito crítica tanto
do no primeiro e único número da re- Ezra Pound The Cantos e não tem um em relação ao panorama político na-
vista Art Concret, e nele fala de uma significado preciso. O grupo define a cional, quanto às práticas literárias
visualidade eminentemente abstrata poesia concreta como uma poesia em vigentes. O grupo Po.Ex, que inte-
mas que paradoxalmente é absoluta- progresso que desenvolve as “ten- grava Herberto Helder, José Alberto
mente real porque a linguagem que sões de palavras-coisas no espaço- Marques, Ana Hatherly, Ernesto de
apresenta (baseada em linhas, cores tempo”. O seu propósito era desen- Melo e Castro, António Aragão, Sal-
e planos) é mais concreta e muito volver uma nova sintaxe espacial que ette Tavares e Liberto Cruz, publicou
mais próxima da natureza do que as explorasse as relações internas da dois números da revista Cadernos de
formas miméticas e simbólicas. estrutura visual do poema. Poesia Experimental, onde se fazem
Sem conhecer as pesquisas do grupo notar as influências literárias de Mal-
Guillaume Apollinaire – Figura in- brasileiro Noigandres, com que mais larmé, Ezra Pound, James Joyce ou
contornável das vanguardas do início tarde virá a colaborar, Eugen Gom- E. E. Cummings, ou das experiências
do século XX, Apollinaire foi poeta e ringer publica na Europa, em 1953, visuais dos caligramas de Apollinaire,
ensaísta, próximo do cubismo e do Konstellationen, partindo do poema nas “palavras em liberdade” dos fu-
movimento surrealista, tendo mes- de Mallarmé Un coup de dés jamais turistas e nos poemas-colagem dos
mo escrito, em 1911, o texto Les Cub- n’abolira le hasard. O termo “con- dadaístas. Ana Hatherly alarga ainda
ists para a revista L’Intransigeant. stelação” (“constelação de significa- estas influências aos textos-imagem
Na poesia, Apollinaire foi defensor dos”), adotado de Mallarmé, procura do barroco à antiguidade.
de “um novo espírito” poético que juntar ao sentido das palavras o
combinasse a liberdade e a ordem. silêncio que, em si, tem também um Poesia Visual – Em resposta à ação
Em 1914 compõe o poema figurado valor significacional. programática, de cariz objetivista e ra-
Voyage, onde explora, com grande Depois da publicação do Plano-piloto cional da poesia concreta, a poesia vis-
lirismo, a tipografia. Apollinaire ap- para Poesia Concreta pelo grupo bra- ual procura uma maior subjetividade
resenta-o como um ideograma, mas sileiro, a poesia concreta tornou-se na exploração do imaginário, recor-
mais tarde, em 1918, vai definir estes fortemente programática e, de certa rendo à configuração da mancha de
poemas visuais como caligramas, forma, redutora nos seus meios de texto, à materialização das palavras,
onde às relações semânticas se asso- produção, focando-se exclusivamente aproximando-a da escultura e da insta-
cia uma pesquisa plástica da escrita. na libertação das palavras da sintaxe lação, ao uso da cor criando espaços
convencional, isolando-as e trabal- pictóricos e à exploração do gesto de
hando-as como matéria plástica. inscrição no desenho, progredindo as-
sim para uma escrita cada vez mais
visual. Desta forma, a linguagem ver-
bal assume definitivamente as suas
potencialidades figurativas, desvincu-
lando-se ainda mais do semanticismo
em favor da semiologia.